A essência da justiça na fundamentação das decisões

Sumário: 1. Importância da fundamentação nos processos em geral. 2. Exigências legais de fundamentação das decisões. 3. Relação entre fundamentação e liberdade. 4. O problema das decisões interlocutórias e despachos sem fundamentação. 5. Exceção da irrecorribilidade dos despachos. 6. Considerações finais. 7. Notas.

1. Importância da fundamentação nos processos em geral

Das decisões emanadas do Judiciário, desperta especial interesse, o princípio da motivação que as sustenta. A fundamentação é o esteio de uma decisão. O acerto esclarecedor na sua construção é o que em geral proporciona a resignação da parte sucumbente, a inexistência dela, ou seu equívoco, o interesse de recorrer.

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Porém, o encargo de fundamentar, não é somente do julgador, também as partes devem expor os fundamentos de fato e direito[1], para a obtenção da prestação jurisdicional.

Sob a rubrica de direito processual, o significado de fundamentar, retrata bem a forma ideal de se exercer esta exigência legal:

Fundamentar. 2. Rubrica: direito processual. Demonstrar através da lei, da doutrina, da jurisprudência, ou de provas (aquilo que a parte alega em juízo) com o fim de obter uma decisão favorável. 3. Apoiar(-se) em fundamentos; fundar(-se), documentar(-se), justificar(-se).[2]

Alfredo Buzaid, autor do projeto do Código de Processo Civil de 1973, albergando entendimento de Chiovenda, assim se referiu ao princípio da motivação, cerne das decisões:

“Característica formal da sentença é a exposição precisa do estado da questão resolvida e do trabalho mental realizado pelo juiz; por isso a sentença deve encerrar, ademais do dispositivo, sob pena de nulidade: a) o teor dos pedidos das partes, excluído o fato e os motivos; b) os motivos de decidir, de fato e de direito, sem que seja lícito referir-se simplesmente aos motivos de outra sentença (Chiovenda, Instituições de direito processual civil, vol. III, nº. 302”[3]

Pugnando pela constitucionalidade do novel art. 285-A do CPC, na qualidade de amicus curiae ao intervir na Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 3.695/DF, movida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o egrégio Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, referiu-se à motivação, como pressuposto da segurança jurídica:

“Como, para a escorreita incidência do art. 285-A do Código de Processo Civil, faz-se necessário que o juiz, como dá-se, de resto, quando profere qualquer decisão – e isto é imposição constitucional (art. 93, IX, da Constituição Federal) e infraconstitucional (arts. 165 e 459, caput, do Código de Processo Civil ) -, motive-a, fundamente-a, diga, legitimando a competência que recebeu desde a Constituição, porque decidiu em um e em outro sentido, não há porque supor que a segurança jurídica estaria sendo violada”. [4]

2. Exigências legais de fundamentação das decisões

Há atualmente, enorme destaque para a essencialidade da fundamentação em todas as decisões emanadas do Judiciário, a partir da ênfase desta garantia, dada pela Constituição Federal de 1988, ao dispor que, todas as decisões do Poder Judiciário, deverão ser fundamentadas sob pena de nulidade.[5]

A Constituição Federal antecedente, de 1967, não conteve esta garantia, mas esta imperiosidade já era expressa no Código de Processo Civil de 1939 no parágrafo único do artigo 118 e 280, e não prescindia da motivação inclusive nos despachos:

Art. 118.

Parágrafo único. O juiz indicará na sentença ou despacho os fatos e circunstâncias que motivaram o seu convencimento.

Art. 280. A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá: I – o relatório; II – os fundamentos de fato e de direito; III – a decisão. [6]

O Código de Processo Civil atual prevê a fundamentação nos artigos 131 e 165, como dever do juiz, e no art. 458, II, como requisito essencial da sentença.

3. Relação entre fundamentação e liberdade

A importância da fundamentação transcende o enfoque da literalidade da lei que a garante, ao refletir um dos bens mais sagrados que o homem pode desfrutar: o da liberdade, pois o julgador, ao expor os motivos de seu convencimento, deixará esclarecidas, as razões conducentes à decisão, demonstrando sua lógica.

A revelação do silogismo utilizado, ao mesmo tempo em que afasta a possibilidade de se imaginar que o percurso lógico utilizado foi equivocado, caprichoso ou arbitrário, serve como elemento de conformação para as partes, cumprindo a função de apaziguamento social.

Assim, não há lugar para o autoritarismo, a ditadura, pois o próprio intérprete ao desenvolver a motivação, terá oportunidade, com suas reflexões, de evitar incorrer no grave erro da arbitrariedade, que significaria retrocesso no avanço civilizatório.

Por isto, a inexistência da exposição dos motivos de seu convencimento, ou sua inadequação, vulnera uma decisão, dentre outras causas, por ser passível de conter algum germe ditatorial.

Na década de 1960, Gabriel José Rodrigues de Rezende (citando Lopes da Costa), assim mostrou a associação entre o princípio da motivação das decisões, e a liberdade:

“Expondo as razões de seu convencimento, demonstrando haver estudado o processo, suas decisões serão obra da razão e do direito, e não da ignorância, de paixões ou de caprichos.

A falta de motivação torna nula a sentença.

O princípio é de ordem pública: ‘põe a administração da justiça a coberto da suspeita dos dois piores vícios que possam manchá-la: o arbítrio e a parcialidade.

Num regime, que não seja de puro despotismo, o povo sempre conhece as razões do legislador, ou pelos debates nas assembléias, ou, ao menos, quando o executivo enfeixa no seu absolutismo o poder de legislar, pelos motivos que precedem os decretos. O juiz não é legislador.

A autoridade de suas decisões assenta na autoridade da lei. É pois necessário que ele demonstre a conformidade entre uma e outra’ (Lopes da Costa, Direito Processual Civil, vol. 3º n.º 14, 1ª. Ed)”.[7]

O anseio de aferir a justiça de uma decisão, por meio de sua fundamentação, é inato do ser humano, tanto que, os infantes, geralmente não se conformam quando recebem dos adultos algum comando, como “não!” e “sim!”, desacompanhado da respectiva justificativa.

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4. O problema das decisões interlocutórias e despachos sem fundamentação

Não é raro acontecer especialmente na atualidade, em que o tempo tem sido artigo em extinção, emanarem decisões interlocutórias comprimidas, da espécie: “Indefere-se o pedido retro, por falta de amparo legal”, desprovidas assim de motivação, a comportar recurso para obtenção de pronunciamento fundamentado.

A decisão que – infelizmente, ocorre amiúde no foro – indefere a pretensão “por falta de amparo legal” não tem guarida no sistema constitucional processual brasileiro. Primeiro porque a decisão precisa ser fundamentada, sob pena de nulidade de acordo com o art. 93, nº. IX, CF. Segundo porque o juiz, preenchidas as condições da ação e pressupostos processuais, deve pronunciar-se sobre o mérito da pretensão do autor, concedendo ou negando a tutela jurisdicional a ele solicitada. No caso de a negar, deverá dizer qual a lei que proíbe o deferimento do pedido. Somente assim estará agindo corretamente indeferindo a pretensão por falta de amparo legal e atendendo ao preceito constitucional do direito de ação e da fundamentação das decisões judiciais.[8]

Outro fato comum, que ocorre amiúde no foro, é a ausência de motivação das decisões concessivas ou denegatórias de liminar, em mandado de segurança, cautelares, possessórias e ações civis públicas. A locução “presentes os pressupostos legais concedo a liminar”, ou, por outra, “ausentes os pressupostos legais denego a liminar”, são exemplos típicos do vício aqui apontado.

O ministro, desembargador ou juiz tem necessariamente de dizer por que entendeu presentes ou ausentes os pressupostos para a concessão ou denegação da liminar, isto é, ingressar no exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os termos da lei, sem dar as razões de seu convencimento.[9]

Apesar do texto legal sobre os embargos de declaração, contido no art. 535, no inciso I do CPC[10], referir-se a: “sentença” ou “acórdão”, a jurisprudência já pacificou, que o recurso é cabível também em relação às decisões interlocutórias.

A Lei 8.950/94 modificou o regime dos embargos de declaração, revogando os arts. 464 e 465 do CPC. Contudo, não enunciou expressamente o seu cabimento contra decisões interlocutórias. Essa omissão, entretanto, não invalida o argumento aqui expendido, porque não se proíbe a interposição dos embargos contra decisão. Continuam válidas, portanto, as considerações que aqui são feitas, no sentido do cabimento dos embargos contra interlocutórias.[11]

5. Exceção da irrecorribilidade dos despachos

Numa situação mais crítica, em decorrência da regra de irrecorribilidade[12], são os despachos, também sem o conteúdo de seu motivo, como o da determinação de emenda de uma Petição Inicial sem o apontamento da ausência de seus requisitos ou existência de seus defeitos e irregularidades.

O pronunciamento judicial também neste caso é cogente, sob pena do processo tornar-se um mistério, uma caixa de surpresa, cuja chave pode ser encontrada apenas na mente do dirigente processual; também porque a oportunidade dada à parte para correção de determinada falha, não quer dizer que o julgador esteja agindo de ofício, ou tornando-se parcial.

Entretanto, doutrina e jurisprudência, afastam a forma em favor da razoabilidade, condicionando a vedação ao direito de recorrer, à inexistência de prejuízo às partes ou à possibilidade de reversão por meio de recurso posterior, conforme entendimento esposado por Teresa Arruda Alvim e jurisprudências, respectivamente:

“Os embargos de declaração são um recurso de fundamentação vinculada, mas, em contrapartida, não há restrição quanto aos pronunciamentos de que são cabíveis. Dissemos, propositadamente, que são cabíveis de pronunciamentos judiciais, e não exclusivamente de decisões, porque entendemos que, em tese, até os despachos (pronunciamentos desprovidos de conteúdo decisório relevante) são recorríveis por meio de embargos de declaração”.[13]

É irrecorrível o despacho do juiz, se dele não resulta lesividade à parte (RT 570/137). Assim, em linha de princípio, todo ato judicial preparatório de decisão ou sentença ulteriores é irrecorrível, porque não causa prejuízo, uma vez que o recurso pode ser interposto posteriormente.[14]

Processual Civil. Emenda da Inicial. Execução Fiscal. Conteúdo Decisório. Prejuízo. 1. Deve ser relativizada, em casos excepcionais, a regra de que o despacho que determina a emenda da petição inicial é irrecorrível, analisando-se se a decisão agravada subverte ou não a legislação processual em vigor de maneira a causar gravame à parte. 2. Recurso especial provido. Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Eliana Calmon e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.[15]

6. Considerações finais

A fundamentação adequada, além dos benefícios da transparência, revela a superação de um período em que a liberdade – um dos bens mais preciosos que o homem pode conquistar – foi esgarçada pelo regime ditatorial, já que o autoritarismo se caracteriza pela blindagem de suas ordens, dos decretos, não admitindo questionamento a seus motivos, que dirá, quanto seus equívocos.

De deixar como reflexão, até que ponto cada um, continua servindo de veículo a algum resquício do sistema ditatorial, já que, inobstante a extirpação formal do regime em 1985, este deixou sua marca, porque exerceu impressionante influência nas pessoas, nos lares, nas instituições.

7. Notas

[1] CPC. Art. 282. A petição inicial indicará: (…) III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido.
[2] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. In: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm
[3] BUZAID, Alfredo. Estudos e Pareceres de Direito Processual Civil – Editora: RT. 35ª edição – 2002. Pág. 211. Notas de adaptação ao direito vigente de Ada Pellegrini Grinover e Flávio Luiz Yarshell.
[4] http://www.direitoprocessual.org.br/site/ (in: textos importantes).
[5] Constituição Federal de 1988. Inciso IX do Art. 93.
[6] CPC. Parágrafo único do art. 118 do Decreto-Lei Nº 1.608, de 18 de setembro de 1939, que corresponde ao art. 131 do CPC atual.
[7] FILHO, Gabriel José Rodrigues de Rezende. Curso de Direito Processual Civil – Editora: Saraiva S/A Livreiros Editôres. 8ª edição – 1968. Pág. 23.
[8] JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal – Editora: RT. 8ª edição – 2004. Vol. 21 Pág. 147.
[9] JÚNIOR, Nelson Nery. Opus cit. Pág. 219.
[10] CPC. Art. 535. Cabem embargos de declaração quando: I se houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição; II for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.
[11] JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios Fundamentais – Teoria Geral – dos Recursos. São Paulo. – Editora: RT. 4ª edição – . 1997. Pág. 213.
[12] CPC. Art. 504. Dos despachos não cabe recurso.
[13] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do Processo e da Sentença. São Paulo. – Editora: RT. 4ª edição – vol. 16. 1997. Pág. 214.
[14] NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil – Editora: Saraiva. 39ª edição – 2007. Nota 2 ao art. 504. Pág. 644.
[15] STJ. REsp 891671/ES 2006/0216600-4 – Relator Ministro Castro Meira – Segunda Turma – Data do Julgamento – 06/03/2007. Data da Publicação/Fonte DJ 15.03.2007 p. 303.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ricardo Calil Fonseca

 

Advogado em Itaberaí, Goiás, atuante desde 1992, nas áreas: cível e trabalhista, inscrito na OAB/GO sob nº. 12.120. Pós-graduado em direito do trabalho, pelo convênio Universidade Católica de Goiás/PUC-SP

 


 

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