A criminologia da reação social (ou interacionista) e seus desdobramentos em criminologia crítica e radical surge na década de 60, nos EUA, e redireciona o foco dos estudos criminológicos, afastando-o da percepção positivista[1] (e revigorada pela teoria da defesa social[2]) de análise do “ser criminoso”, ou seja, do homem e sua disfunção biológica e social como fonte causadora do delito, e orientando-o para parâmetros de subjetividade inter-relacional, buscando enfatizar questões de valoração social de comportamentos, incidência dos mesmos (valores) na constituição das regras jurídicas e sociais, e as conseqüências que dita valoração e regras geram no campo da criminologia[3]. Como o próprio nome desta corrente informa, a maneira pela qual se dá a interação entre indivíduo e sociedade é que irá designar o conceito de desvio e desviante, sendo que tal processo irá ocorrer através da formação da identidade social, a socialização dos indivíduos frente à mesma e aos valores que representa[4] (através dos processos de rotulação e etiquetamento[5]) e, por fim, da concretização de tais valores na lei[6].
A Escola interacionista subdivide-se, basicamente, em duas correntes, quais sejam a norte-americana e a alemã. Para os interacionistas norte-americanos, a lei, sendo o exemplo desta concretude de valores, serve para dividir os homens em dois gêneros distintos – os delinqüentes e os não delinqüentes[7] – através da rotulação de comportamentos “não aceitos” pelo ente social.
Desta visão (norte americana) depreende-se a importância que a lei volta a deter frente ao estudo criminológico, eis que, através do simbolismo que carrega, passa a ser a fonte original do delito e do delinqüente. O rótulo de desviante deixa de ser, como na Escola Positiva, uma qualidade inerente à pessoa, e passa a ser uma conseqüência da aplicação da lei – rótulo – sobre a pessoa[8] – etiquetamento.
A teoria da reação social, ao trabalhar em seus fundamentos com os paradigmas da rotulação social (comportamentos e conseqüências da rotulação) e, ao buscar em autores como Goffman e Becker as bases de seu desenvolvimento, traz como conseqüência uma instabilidade e incerteza no que diz respeito ao objeto a ser catalogado como desviante, eis que, partindo do pressuposto de que é a lei quem origina o delito e, na medida em que a lei (regra jurídica) nada mais é do que o reflexo do exercício de poder em uma sociedade, tem-se que, pela própria evolução da sociedade, a lei se modifica e, daí, modifica-se também o conceito de desvio e o desviante[9].
Mais: não basta que o indivíduo tenha cometido um comportamento que se amolde ao ditame legal (e, por conseqüência, ao comportamento rotulado) para que seja tido como desviante; dois indivíduos podem realizar uma ação idêntica e, mesmo assim, somente será etiquetado com tal conceito aquele que tornar-se objeto da ação dos entes institucionais[10] (no caso, polícia, Poder Judiciário, etc.), entes estes que, por sua vez, determinam-se frente à reação social ao delito.
Constatada a necessidade de que, primeiro, ocorra uma reação social ao fato e ao indivíduo para, após, ocorra o processo de rotulação/etiquetamento do mesmo, os interacionistas norte americanos apontam alguns aspectos que determinam a (in)existência da reação apontada. Para que a mesma se verifique, deflagrando, desta maneira, o processo de etiquetamento sobre o desviante, torna-se necessária a observância da vítima (quem foi o lesado) e do praticante do ato (em sua posição social e econômica); o reflexo destes dois fatores frente à sociedade (o grau em que a sociedade reage frente ao ato, considerados os fatores retro) irá determinar a reação e, consequentemente, o etiquetamento.
Como claramente se percebe, os conceitos de desvio e desviante adquirem um caráter de absoluta transitoriedade, eis que por força das mudanças ocorrentes no processo de etiquetamento/rotulação do indivíduo, ou até pelo fato de o mesmo, ainda que praticando ato previsto em lei, não ter sido alcançado pela ação institucional, poderá passar da categoria de “ser normal” para desviante, e vice-versa, sem que, para tanto, tenha modificado seu próprio comportamento.
Três dos principais efeitos deste processo de rotulação e etiquetamento são: (1)os fatores que levam um indivíduo ao comportamento desviante não difere dos mesmos que conduzem outros indivíduos ao comportamento não desviante[11]; (2) os indivíduos desviantes são segregados pelos não desviantes; tal segregação faz com que os desviantes também acabem por formar um grupo próprio e passem a estigmatizar os não desviantes[12]; (3) gera a continuidade do comportamento desviado naquele que já teve contra si a etiqueta de desviante[13].
Os adeptos da reação social se preocupam, então, com o estudo da maneira pela qual as instituições oficiais recaem sobre o indivíduo[14] (labelling approach), assim como os efeitos de tal situação, modificando o paradigma da Escola Positivista (que era o homem em si, sendo o desviante um produto da natureza) através do entendimento do fenômeno/ binômio “criminalidade e criminoso” como algo que surge de uma realidade social (identidade nacional concretizada) preexistente ao próprio indivíduo[15].
Neste viés, tem-se que a lei nada mais é do que reflexo e maneira de controle exercido pelo poder político e econômico[16], e o processo de criminalização, que redunda na estigmatização do indivíduo, ocorre em três níveis diferentes: (a) criminalização de novas condutas anteriormente lícitas; (b) criminalização do indivíduo através da submissão do mesmo aos procedimentos penais que culminarão com cunhar-lhe a merca de desviante; (c) criminalização do próprio desviante, através do estigma/segregação social que se impõe a qualquer um que tenha sofrido o processo de etiquetamento[17].
A maior preocupação dos interacionistas norte americanos encontra-se na análise dos efeitos que o processo de rotulação gera no indivíduo submetido ao mesmo, especialmente no que diz respeito à criminalização secundária; o indivíduo é atacado em sua identidade individual (eis que a identidade utilizada pelo mesmo vai contra a identidade social, ou seja, contra seu próprio paradigma) e social (eis que a imagem que projetava ao ente social passa, imediatamente, a ser reformulada ante o estigma)[18] desde que ingressa no mundo dos desviantes; após tal ingresso, o ente social passa a ter expectativas sobre seus atos (voltadas, estas, à prática de novos atos desviados), o próprio indivíduo passa a acreditar em tais expectativas (eis que a expectativa social condiciona a expectativa individual[19]) e, consequentemente, direciona seu comportamento conforme as mesmas[20], ou seja, volta a cometer o delito. Como se percebe, o próprio processo de criminalização e reação social passam a gerar a conduta estereotipada[21].
Tal constatação, qual seja a de que a própria sociedade, através de seus mecanismos de rotulação e etiquetamento é quem cria o desvio e o desviante, assim como através da reação social à prática do ato rotulado acaba por gerar uma nova criminalidade (secundária), interfere, direta e inexoravelmente, nas razões da punição a ser imposta pelo sistema (pena). Diferentemente da Escola Clássica, onde a pena detinha caráter retributivo e preventivo, da Escola Positivista, onde a pena detinha caráter de tratamento e defesa social, e da Escola Garantista, onde a pena detém caráter de retribuição e segurança ao próprio delinqüente, para os interacionistas a pena serve, em verdade, para a perpetuação do caráter desviante sobre o indivíduo já etiquetado uma vez[22].
Do entendimento de que o desvio e o desviante formam-se exclusivamente da lei, surge a diferenciação entre a escolas norte-americana e alemã do labelling aproach; neste sentido:
a) Para a Escola norte americana, em acordo com a teoria da rotulação (Gofmann, Becker) e com o desenvolvimento supra, os níveis do processo de criminalização resumem-se em três passos (criminalização do ato, do indivíduo e do desviante), todos decorrentes da incidência da lei sobre o indivíduo; volta sua análise, ante este processo, aos efeitos que a incidência do rótulo sobre o indivíduo pode gerar, especialmente no que tange à destruição da identidade social, criação de expectativas (sociais e individuais) e ação em acordo com as mesmas – condicionamento do agir e criminalização secundária por parte do rotulado.
b) A Escola alemã, por sua vez, direciona seu foco para a criminalização diferencial de indivíduos(…) fulcrada esta diferenciação na classificação social dos mesmos[23] . A interação social, para os alemães, surge da interação entre classes sociais, ou seja, transcende a perspectiva individual da escola norte americana. O delinqüente, na ótica do interacionismo alemão, é vítima de uma sociedade dividida em classes[24].
Para os interacionistas alemães, existem metaregras[25] a serem observadas quando do processo de criminalização. Enquanto os norte-americanos limitam os processos de criminalização à lei e à sua incidência sobre o indivíduo (processo microssocial), os alemães adotam as “teorias de conflito”, ou seja, não é a lei em si (regras)[26] e a incidência da mesma sobre o indivíduo que determina a criminalização ou a criminalidade (rotulação/etiquetamento), mas sim os mandamentos sociais que, além de criarem ditas leis, condicionam sua aplicabilidade (metaregras – processo macrossocial)[27].
Na escola alemã, as meta-regras deveriam ser analisadas de um ponto de vista objetivo e sociológico e seriam regras objetivas do sistema social que determinariam todo o processo de filtragem que faz com que uma parte da conduta delituosa total seja criminalizada e outra não(…)[28]. Desta maneira, a criminalização pode ser entendida como uma construção social que está em constante criação e que provém não das regras de Direito Penal, mas das meta-regras que condicionam a atividade de definição das instâncias de controle[29].
A incidência destas metaregras no caso em concreto pode variar em acordo com a perspectiva adotada pelos autores que versam sobre o tema; no entanto, depreende-se que, em sua totalidade, as mesmas, incidentes através de um sistema de condicionamento (socialização) e vigília sobre o indivíduo que se iniciam desde seu núcleo familiar[30], são reflexo de exercício de domínio econômico de uma classe social sobre a outra, e a observância deste sistema serve para desmascarar a política penal vigente de que o criminoso é um ser desajustado e em minoria frente ao ente social[31].
Por intermédio desta visualização do fenômeno desvio e desviante, a lei, tida como ente máximo do processo de criminalização do labelling aproach norte americano, cede seu espaço à identidade e condicionamento social; incrementa-se a valoração subjetiva da conduta e dos indivíduos participantes do processo (autor, vítima, juiz, autoridade policial, etc.), que passam, neste momento, a serem os responsáveis diretos pela ocorrência ou inocorrência do etiquetamento legal.
A Escola alemã substitui a influência da rotulação norte americana (lei) pelo estereótipo; a divisão de classes existente na sociedade e a supremacia de uma sobre a outra acabam por criar imagens, modelos de comportamento que se ajustam a determinados grupos sociais; daí decorre uma maior incidência da criminalização dos indivíduos que pertençam a tal grupo – não pelo fato de os mesmos cometerem mais “delitos”, mas sim pelo fato de os mesmos se amoldarem ao estereótipo social do desviante[32].
O estereótipo faz com que as classes sociais dominadas sejam alvo de maior observação por parte das instituições legais, tornando-se, desta maneira, mais vulneráveis à ação do processo criminógeno[33]; tal situação cria aquilo que Gofmann já descrevera como auto afirmação ante o próximo, eis que, na medida em que um indivíduo observa em um terceiro estereotipado as qualidades que despreza, passa, diretamente, a reforçar em em si próprio a presença das qualidades que valoriza[34]. A estereotipização do terceiro nada mais é do que um processo de reafirmação do sistema de valores do grupo dominante (grupo observador).
O estereótipo, além de servir à reafirmação supra mencionada, é extremamente funcional quando (1)utilizado para dirigir a agressividade das classes sociais mais baixas contra o ser estereotipado, ao invés de ser utilizada, como seria de se esperar, contra o poder dominante[35]e, ao reverso, (2)permite às classes média e alta…descarregar simbolicamente as suas culpas sobre esse grupo pequeno e bem definido de criminosos de classe baixa, de vez que derivam para eles a sua hostilidade contra a classe proletária[36]. Em suma, a existência do estereótipo reduz a tensão social existente nas relações interclasses e possibilita o exercício de dominação social já retratado[37].
A observância do processo de criminalização/criminalidade por tal viés acaba por destruir mitos fundantes do Direito Liberal surgido no modernismo; o princípio da igualdade dos indivíduos frente à lei, por exemplo, é absolutamente negado, e um exemplo marcante de tal negação é a criminalidade(?)[38] do colarinho branco (Sutherland) e a cifra negra que acompanha tal desvio, fornecendo, inclusive, uma falsa percepção da distribuição do fenômeno criminógeno junto às classes sociais. O princípio da legalidade também acaba por ser negado junto ao seu entendimento positivista de imperativo categórico (o crime só nasce da lei…), pois não é a lei que faz nascer o crime, mas sim, e fundamentalmente, a observação, interpretação e valoração do ato por parte das instâncias oficiais, em acordo com o estereótipo predeterminado .
Dentro de tal perspectiva, a Escola alemã, contraditando a Escola norte americana, aduz que a criminalidade deixa de ser um fenômeno pré-constituído à atuação de tais instâncias, e passa a ser uma qualidade atribuída por estes últimos (referindo-se aos juizes) a determinados indivíduos. E isto não somente conforme o comportamento destes últimos se deixe ou não subsumir dentro de uma figura abstrata do direito penal, mas, também, e principalmente, conforme as meta-regras, tomadas no seu sentido objetivo antes indicado[39].
A criminalidade, neste viés passa a ser encarada como um “bem negativo”, e é “distribuída” socialmente da mesma forma que os “privilégios”; o desvio não é uma característica do comportamento adotado em si, mas sim uma característica atribuída a dito comportamento ( comportamento desviante é o que os outros definem como desviante[40]). Para melhor entendimento deste sistema de distribuição da criminalidade, vale recorrer novamente à questão formulada por Sutherland; a classe alta, formada por indivíduos que cometem, tradicionalmente, os comportamentos definidos como “crimes de colarinho branco”, não é atingida pelo processo de criminalização, pois seus integrantes não se enquadram no estereótipo social do desviante[41]. Esta não criminalização do “criminoso de colarinho branco” ocorre, consoante advertência de Chapman[42], por força da influência que a linguagem exerce sobre a sociedade, e cita como exemplo que, nas representações teatrais, como no rádio e na televisão, os autores descrevem os que cometem crimes contra a propriedade como pessoas repelentes e de características pessoais desagradáveis, ou seja, o “criminoso” é um estereótipo exatamente oposto à figura do “magnata” alto, saudável, de feições bem delineadas, bem vestido e bem sucedido, cujo comportamento, ante esta imagem vitoriosa frente à vida, acaba ratificado pela admiração e o êxito[43].
Concluindo: a criminologia da reação social, tanto através da corrente norte-americana quanto pela corrente alemã, traz em si um mérito incontestável[44]: expõe de forma clara e precisa que o sistema penal existente nada mais é do que uma maneira de dominação social (seja política, seja econômica)[45]. Neste sentido, a função seletiva do sistema penal em face dos interesses específicos dos grupos sociais, a função de sustentação que tal sistema exerce em face dos outros mecanismos de repressão e de marginalização dos grupos sociais subalternos, em benefício dos grupos sociais dominantes -hipóteses sobre as quais o ‘labelling approach’ já havia chamado nossa atenção – parece, portanto, colocar-se como motivo central para uma crítica da ideologia penal, também no interior desta recente reflexão[46].
Os interacionistas destroem, também, a estética do mal vigorante nas premissas fundadas pela Escola Positiva e hoje adotadas pela Escola da Defesa Social, pois o desvio deixa de ser um atributo inerente ao ser humano[47], a criminalidade não é mais encarada como um fato natural e sim uma construção social definida através da interação entre os integrantes (sejam indivíduos, sejam classes sociais). Desta maneira, a reação social acaba por trazer ao Direito Penal a crítica que lhe deve ser inerente, pois, demonstrando a contradita existente entre sua real atuação e os fins que o legitimam, serve para repensar sua legitimidade e reformulá-lo em acordo com estes últimos.
Informações Sobre o Autor
Daniel Gerber
Professor de Direito Penal e Processual Penal junto à ULBRA/RS, além de Mestrando em ciências penais pela PUC/RS.