Atualmente uma das maiores discursões relacionadas ao Biodireito é a Lei de Biossegurança nº. 11.105 que veio regulamentar dentre outras coisas, o uso de células tronco embrionárias para os fins de pesquisa e terapia. Essa lei despertou um grande embate envolvendo religiosos e cientistas, que discutem sobre a questão se, ou, até aonde a reprodução de células-tronco “in vitro” atinge o princípio da dignidade da pessoa humana e as garantias fundamentais constitucionais, como o direito à vida e à saúde. O objetivo, portanto, é esclarecer a posição de cada lado, mostrando primeiramente o que vem a ser o procedimento de retirada das células-tronco, expondo finalmente posicionando argumentado quanto a problemática que envolve a regulamentação do uso das células tronco.
Com intuito de melhorar as condições de vida de milhares de pessoas com doenças graves, foram desenvolvidos estudos utilizando as células-tronco, das quais se originam outras células. É importante esclarecer que existem dois tipos de células-tronco, as denominadas “células-tronco adultas” e as “células-tronco embrionárias”. As primeiras são retiradas das pessoas “propriamente ditas”, ou seja, da placenta, medula óssea e etc., não possuindo capacidade de originar todos os tecidos. As segundas são retiradas dos embriões, assim, possuindo capacidade de gerar qualquer tecido.
A polêmica está em torno da retirada de células-tronco embrionárias, feita através da utilização de embriões guardados em clínicas de fertilização, que serão descartados, ou seja, jogados fora. Um outro meio se consiste na retirada do núcleo celular para ser colocado num óvulo sem núcleo, esse procedimento é chamado de clonagem. A questão é que para se retirar as células-tronco embrionárias são necessários embriões em seu estado inicial de desenvolvimento, provocando a sua destruição. Alguns vêem esse gesto como um atentado contra a vida, considerando que esse embrião em estágio inicial de desenvolvimento, já é uma vida humana. Já outros não vêem nesse estágio uma vida propriamente dita, visto que nada ainda foi formado. Então surge a questão: quando começa a vida?
Ana Maria Nogueira Lemes e Joaquim Donizete Crepaldi, no artigo “A lei do biocrime”, publicado pelo site Jus Navigandi, consideram insano a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos por fertilização “in vitro”, afirmando que a lei de biossegurança fere a dignidade humana, além de ser antiética e imoral. De acordo com os autores, “o embrião, esteja ou não acolhido no ventre materno, é um ser humano, e como tal, dotado de dignidade”. Para sustentar essa idéia, Lemes e Crepaldi vão à busca do que se entende por “ser humano”,
“Ë possível dar à expressão “ser humano” um significado exato. Podemos usá-lo como equivalente a “membro da espécie Homo sapiens”. Pode-se determinar cientificamente se um indivíduo é, ou não, membro de determinada espécie, mediante o exame da natureza dos cromossomos presentes nas células dos organismos vivos. Nesse sentido, não resta dúvida de que é um ser humano, desde os primeiros momentos da sua existência, um embrião concebido do esperma e do óvulo de seres humanos.” (SINGER, apaut LEMES, CREPALDI, 2005, p.2)
A Igreja Católica também defende a existência de vida desde a sua origem, ou seja, desde a fecundação, considerando inconcebível qualquer tipo de destruição desse bem maior. É de conhecimento de todos que o nosso Estado é laico, ou seja, desvinculado com qualquer religião, contudo, LEMES e CRIPALDI afirmam com as palavras de Rizatto Nunes que, “o fundamento ultimo e primeiro de toda moralidade é cristão”, entendendo que independente de vinculação ou não do Estado a alguma religião, o fundamento ético e moral é cristão e deve ser respeitado.
Os autores para completar a defesa da preservação da vida desses embriões utilizados para a retirada de células-tronco, usam as palavras do Dr. Daniel Serrão, dizendo que “o embrião, sendo um ente vivo humano, merece o respeito máximo, porque o homem é um fim em si próprio e nunca um meio que possa ser usado e destruído, ainda que para benefício de outros seres humanos ou de outros seres não humanos”.
Contudo, mesmo com todas as questões éticas e morais religiosas, impostas pelos defensores a não utilização de embriões para esse fim, o desembargador Ivan Ricardo Garisio Sartori do Tribunal de Justiça de São Paulo, em seu artigo “Célula-tronco. O direito. Breves considerações”, publicado pelo site Jus Navigandi, afirma que “ao direito não cabe impor barreiras ou estabelecer divisas morais e religiosas instransponíveis, mas sim disciplinar fatos que, inevitavelmente, venham a surgir em decorrência da evolução humana”.
Graças a essa evolução humana, muitas pessoas têm a esperança de terem uma vida mais digna, melhorando suas limitações decorridas de doenças graves. A lei de biossegurança não veio afrontar qualquer direito da pessoa humana, mas sim regulamentar um acontecimento que já é fato, para melhorar as condições de vida de milhares de pessoas.
É importante salientar que, como já dito anteriormente, essa lei veio a permitir a utilização de embriões humanos produzidos por fertilização “in vitro”, para fins de pesquisa e terapia, contudo, além de outras exigências, é preciso que esses embriões estejam no mínimo há três anos congelados, visto que após esse tempo, já não são considerados viáveis para a geração de um ser, ou seja, seriam descartados.
Apesar desse esclarecimento da condição de uso do embrião, ainda temos a questão: há ou não a interrupção de vida do embrião em seu estágio inicial de desenvolvimento? Para responder essa questão os cientistas utilizam o critério que define a morte, ou seja, é considerada morte o instante em que cessa a atividade cerebral.
“[…] o embrião humano fertilizado “in vitro”, do zigoto ao chamado blastocisto, não apresenta resquício de sistema nervoso nos primeiros 14 dias, período dentro do qual se dá o congelamento. Vai daí que, se utilizando o critério que define a morte quando a atividade cerebral cessa, chega-se à conclusão iniludível de que o blastocisto nesse estado não encerra vida propriamente, tanto que, quando criado por técnicas de reprodução assistida, a possibilidade de se transformar em um bebê é de menos de 1% […]” (SARTORI, 2005, p.3).
Visto isto, é notório que não há afronto ao princípio constitucional do direito à vida, porque os embriões utilizados para esse fim, nunca seriam inseridos em um útero, mas sim descartados. Como acentua SARTORI (2005, p.4), “a ofensa a esse preceito decorreria, justamente, do descarte e da não utilização em prol de pacientes que deles necessitam”. É justamente nesse ponto que entra o direito à saúde, firmado no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, dispondo que, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos […]”. Portanto, como aponta SARTORI (2005, p. 5), “a inviabilização da terapia e da pesquisa previstas na atual Lei de Biossegurança viola essa previsão, em nome de conceito puramente subjetivo e contestável do que vem a ser vida”.
Podemos então considerar como incabível e inadmissível a vedação da regulamentação dada pela Lei de Biossegurança, que resguarda,
“Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.”
É notório que o único objetivo é justamente garantir a saúde, a dignidade e o bom desenvolvimento pessoal de pessoas prejudicadas por alguma doença. Os embriões no momento utilizados não chegaram a formar uma vida, visto que ainda não possuem inicio de formação do sistema nervoso , que de acordo com a maioria dos cientistas, só se inicia a partir do 14º dia de concepção, portando não há interrupção de vida, além disso, se não fossem utilizados para o fim de tratamento de outras pessoas, eles iriam parar literalmente na lata do lixo, por não serem considerados viáveis para formação de uma vida, já que, de acordo com Renato Sabbatini em “O caso dos embriões congelados”, “quanto mais tempo passa entre o congelamento e o descongelamento, maior é o perigo que se produza um aborto ou um feto malformado”. Além disso, a própria lei impõe outras condições para assegurar que esses embriões não sejam utilizados para outros fins, como o consentimento dos genitores, a provação dos comitês de ética e pesquisa, e a vedação da comercialização do material genético.
Frederico Poles Borgonovi, analista judiciário da Justiça Federal em São Paulo, faz uma importante ressalva em seu artigo “Quando começa a vida? Biossegurança e a vida dos embriões humanos”, publicado no site Jus Navigandi, dizendo que, “ainda que potencialmente possa a vir se constituir em vida, não parece legítima a impossibilidade de uso de células-tronco de embriões com remotíssimas chances de sobrevivência, se colocada a serviço do tratamento de doenças degenerativas”. Portanto, não é justo, que vidas deixem de serem melhoradas e até salvas, por conta de não poderem utilizar esses embriões de que nada mais vão servir, além do uso terapêutico e de pesquisa para dar dignidade, saúde a milhares de pessoas necessitadas.
Informações Sobre o Autor
Tarcianna Silvestre Meireles
Acadêmica de Direito