Os
diversos Tribunais Pátrios, inclusive o Supremo Tribunal Federal, ao tratarem
da questão da retroatividade de leis, vem manifestando entendimento de sua
possibilidade jurídica, desde que haja menção expressa no texto legal e
respeite-se o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.
Nesse sentido, transcreve-se Ementa do STF.
“EMENTA. …o dispositivo ora impugnado, ao declarar a ineficácia
retroativa da criação do Conselho Estadual …também viola, diretamente, o
inciso XXXVI do artigo 5º da mesma Carta Magna, o qual veda a retroatividade
que alcance direito adquirido e ato jurídico perfeito, vedação a que estão
sujeitas também as normas constitucionais estaduais.” (STF, Tribunal Pleno,
ADI n.º 596/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 07.05.1993)
Esse
entendimento é compartilhado por ilustres autores e doutrinadores tais como
José Afonso da Silva, segundo quem “Vale dizer, portanto, que a Constituição
não veda a retroatividade da lei, a não ser da lei penal que não beneficie o
réu. Afora isto, o princípio da irretroatividade da lei não é de Direito
Constitucional, mas princípio geral de Direito. Decorre do princípio de que as
leis são feitas para vigorar e incidir para o futuro. Isto é: são feitas para
reger situações que se apresentem a partir do momento em que entram em vigor. Só podem
surtir efeitos retroativos quando elas próprias o estabeleçam
(vedado em matéria penal, salvo a retroatividade benéfica ao réu), resguardados
os direitos adquiridos e as situações consumadas evidentemente.”
Sobre a
retroatividade legal, Celso Ribeiro Bastos se manifesta no sentido de que “Salvo
a Constituição de 1937, todas as demais Constituições mantiveram-se fiéis à sacrossanta
irretroatividade, respeitada, sempre, a formulação técnica consistente no
resguardo da já clássica trilogia (direito adquirido, ato jurídico perfeito e
coisa julgada).”
Muito
embora a retroatividade de leis não seja tema concernente a Direito
Constitucional, tal como bem o ensinam os
doutrinadores citados, nossas diversas constituições, exceto a de 1937,
abordaram e disciplinaram a questão, todavia proibindo-a, como agora se
demonstra.
Da
análise do instituto “lei” em sua essência, fácil constatar-se que não é
compatível com a possibilidade de vigência retroativa. A lei nada mais é do que
um retrato da vontade da sociedade, por conseguinte, enquanto perdura uma lei
que disciplina determinada matéria, pode presumir-se que a vontade da sociedade
era de que aquela normatização fosse a aplicável ao
tema tratado. Quando é aprovada nova lei versando sobre matéria anteriormente
disciplinada de forma diversa, pode-se concluir que a vontade da sociedade é
que, somente a partir daquele momento, recebesse aquele tema
nova normatização.
E nem
sequer poderia ser de forma diversa, mesmo porque um dos objetivos do Direito é
o de assegurar a “segurança jurídica”, posto que disciplina
as relações humanas de forma a possibilitar uma certa previsibilidade em
relação a circunstâncias futuras, o que efetivamente não ocorreria caso pudesse
uma norma retroagir.
Analisando-se
as diversas constituições brasileiras, verifica-se a evolução do instituto da
irretroatividade. Sob a égide da Constituição de 1824, que dispunha que “Nenhuma
lei será estabelecida sem utilidade publica, e a sua disposição não terá effeito retroactivo”, a
irretroatividade legal encontrava-se estabelecida em termos absolutos.
A
Constituição de 1891, estabelecendo que
“E’
vedado aos Estados, como á União prescrever leis retroactivas”, manteve a
irretroatividade nos mesmos termos absolutos. Todavia, com a promulgação da
Constituição de 1934, que estabeleceu que “a lei penal só retroagirá quando
beneficiar o réu”, criou-se ao princípio da irretroatividade legal uma
restrição que até hoje vigora, tendo sido repetida em todas as Cartas
Constitucionais, exceto a de 1937.
Possíveis
dois entendimentos sobre o dispositivo. O primeiro o de que, com a Constituição
de 1934, passou a ser permitida a retroatividade das leis em geral, exceto em
matéria penal, que só poderiam retroagir para beneficiar o réu. O segundo o de
que a irretroatividade continuou como regra, havendo tão-somente a exceção da
lei penal que beneficiasse o réu.
Os
defensores de que a lei pode retroagir, desde que se
respeite o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada, sendo
a irretroatividade direcionada tão-somente para normas penais que não
beneficiarem o réu, lastreiam-se também no fato de que ambos os institutos
tiveram origem simultânea no nosso Direito Constitucional. A mesma Constituição
(1934) que estabeleceu a “retroatividade” penal benigna, foi a que estabeleceu a
impossibilidade de a lei prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito ou a coisa julgada.
Todavia,
apesar da origem simultânea, tais institutos são conceitualmente diversos. A
Constituição de 1934, ao tratar de vigência de normas, disciplinou o tema de
forma mais abrangente e consistente. Estabeleceu a possibilidade de
retroatividade da lei que, versando sobre matéria penal, beneficiasse o réu.
Estabeleceu também que, em relação a efeitos futuros, qualquer lei (não só a
penal) deveria respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a
coisa julgada.
Tanto se
distinguem os dois institutos que, não tendo sido incluídos na Constituição de
1937, foi o segundo (respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e
à coisa julgada) inserido na Lei de Introdução do Código Civil-LICC,
de 1942, sem contudo qualquer nuance de retroatividade
de leis.
A LICC
dispõe que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.” Portanto,
segundo a LICC, uma lei, após promulgada, tem efeito
imediato e geral (nunca retroativo), contudo, deve sempre respeitar o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido ou a coisa julgada.
Há o
entendimento de que a Carta Magna de 1988, por ter expressamente mencionado a
lei penal ao falar em irretroatividade, excetuando a norma penal benigna, e se
omitido em relação às demais normas, implicitamente permitiu que houvesse
retroatividade de normas não penais, desde que respeitados o ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada .
Caso prosperasse este entendimento, o de que se omitindo o texto
constitucional sobre a matéria, implicitamente haveria a possibilidade de
retroatividade legal, restaria-se o absurdo de que,
sob a égide a Constituição de 1937, e até que fosse promulgada a Constituição
de 1946, como não havia qualquer menção ou restrição constitucional sobre a
matéria, poderia qualquer norma ter eficácia retroativa, desde que no corpo da
própria lei fosse assim literalmente estabelecido.
A retroatividade é
tema de tal excepcionalidade, no Direito Pátrio, que
é tratada tão somente em âmbito constitucional, e a Constituição de 1988
somente a permite em relação à lei penal que seja mais
benigna ao réu.
Portanto,
não havendo possibilidade constitucional de retroatividade, exceto em relação à
lei penal mais benigna, resta a pergunta: Qual a
vigência de norma meramente interpretativa?
Responde-se:
Uma norma interpretativa tem por objetivo aclarar o texto de outra norma. Ao
promulgar-se uma lei interpretativa, age o Legislativo “usurpando” a função do
Judiciário, visto que a competência constitucional de interpretador de normas é
atribuída a este. Mas, do mesmo modo como ocorre quando o Judiciário interpreta
determinada norma e esta interpretação prevalece em relação a todos os fatos
ocorridos desde o momento do início da vigência da lei, o mesmo ocorre quando o
Legislativo decide legislar interpretando outra lei. Esta interpretação
prevalece em relação a todos os atos e fatos ocorridos desde o início da
vigência da lei interpretada, e isso efetivamente não implica em
retroatividade, posto que não se está criando nenhuma
nova situação jurídica para vigorar no passado.
Se a lei
interpretativa inovar em relação à matéria, deixará de ser interpretativa em
relação aos dispositivos inovados, que não terão eficácia “retroativa”, posto
que não cabe, a título de interpretar lei
anteriormente promulgada, criar-se ou alterar-se instituto ou norma jurídica.
Como a
retroatividade é a vigência da lei no passado, pode-se afirmar categoricamente
que nem sequer a lei penal mais benigna é capaz de retroagir, devendo nesse
sentido ser interpretada a menção expressa do texto constitucional.
Uma lei
penal mais benigna produz tão-somente efeitos futuros, alcançando todavia as situações pendentes. Ou seja, determinada pessoa
que tenha efetivamente cumprido toda a pena à qual foi condenada, em virtude de
prática de ato qual foi posteriormente deixou de ser considerado ilícito, não
tem qualquer direito à indenização, direito que se lhe seria assegurado caso
efetivamente fosse retroativa a lei penal mais benigna.
Retorna-se
agora ao conceito inicial, o de que a lei nada mais é do que um retrato da
vontade da sociedade.
Caso determinada
pessoa se encontre cumprindo pena em virtude de prática que a
sociedade legalmente considerou como indesejável, e como o objetivo da pena é
reeducar o condenado para que possa este voltar a conviver em sociedade,
incabível imaginar-se que deva este ser mantido cumprindo sua pena para que
seja reeducado de modo não mais venha a praticar fato que a sociedade
passou a considerar como não lesivo ou reprovável.
Todavia,
apesar da situação acima descrita, a inexiste no Direito Pátrio qualquer
retroatividade, inclusive no âmbito penal. Às leis penais aplica-se tão somente
o que o STF denomina de “retroatividade mínima”, leis penais mais
benignas produzem efeitos futuros em relação a fatos passados, mas nunca
produzem efeitos pretéritos.
Conseqüentemente
não se reveste de consonância com o ordenamento constitucional vigente qualquer
norma no que prescreva vigência retroativa, excetuando-se a norma penal, cuja
“retroatividade” se dá tão-somente com efeitos futuros, alcançando todavia fatos ocorridos anteriormente à sua vigência.
Não sendo
cabível a retroatividade de leis mesmo quando houver previsão expressa em seu
corpo, não merece sequer muitos comentários o absurdo praticado pela
fiscalização tributária federal, que vem tentando aplicar retroativamente a Lei
Complementar n.º 105 (que autoriza a quebra do sigilo
bancário), apesar de seu art. 12 no qual expressamente se fez constar a
impossibilidade de vigência retroativa ao prescrever-se que “esta Lei
Complementar entra em vigor na data de sua publicação”.
Há os que
equivocadamente defendem a possibilidade da aplicação da LC 105 a fatos ocorridos
anteriormente à sua vigência, lastreando-se no art. 105, do Código Tributário Nacional-CTN, que estabelece que a legislação tributária
aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes.
A
possibilidade de aplicação de legislação tributária a fatos pendentes somente
pode dar-se nas hipóteses previstas no art. 106 do CTN, que são da lei
meramente e expressamente interpretativa e da lei tributária penal que
estabeleça penalidade mais branda ou deixe de considerar determinado fato como
infração.
Ou seja,
o próprio CTN estabelece tão somente como possíveis de vigência retroativa a
lei interpretativa e a lei penal mais benigna, que efetivamente são as únicas
situações nas quais apresenta-se constitucional a
“retroatividade”: A primeira por não se caracterizar essencialmente como tal,
como já exposto, e a segunda por ter sido expressamente prevista no texto
constitucional.
O próprio
CTN, em seu artigo 101, de forma inconteste estabelece que se aplicam, às leis tributárias, as mesmas disposições sobre
vigência, no espaço e tempo, aplicáveis às normas jurídicas em geral, ou seja,
por ser o Direito Tributário um dos ramos do Direito, e não uma ciência
autônoma e completamente distinta deste, deve manter perfeita consonância com
os diversos institutos e princípios basilares jurídicos, dentre os quais os
aplicáveis à vigência das normas.
Como a
fiscalização habitualmente se dá em relação fatos pretéritos, raramente no
momento da ocorrência do mesmo, cuidou o CTN, em seu art. 144, de impedir a
possibilidade de conflito intertemporal de normal, ao definir o lançamento
(procedimento administrativo do qual se utilizam os agentes fiscais para
determinar o crédito tributário, art. 142 do CTN) reporta-se à data da ocorrência do
fato gerador, e rege-se pela lei então vigente, mesmo que posteriormente
modificada ou revogada.
Por
conseguinte, qualquer lançamento efetuado em relação a fatos ocorridos
anteriormente ao início da vigência da LC 105 deve ser efetuado em conformidade
com a legislação então em vigor, não podendo ser efetuado por meio de
utilização de dados obtidos em virtude da quebra do sigilo bancário do
contribuinte, sendo provas estas inválidas, posto que não autorizadas
legalmente, e
conseqüentemente impossíveis de serem utilizadas para determinação de créditos
tributários, em conformidade com o Constituição Federal, art. 5º, LVI, que
prescreve que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios
ilícitos.”
Para
finalizar a questão, analisa-se agora o §1º, do art. 144, do CTN, que
estabelece que “aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à
ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de
apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das
autoridades administrativas…”
Defendem alguns que a LC 105 possa ser aplicada
retroativamente com lastro no art. 144, §1º do CTN que estabeleceu que se aplica ao lançamento a legislação que, mesmo posterior à
ocorrência do fato gerador, tenha ampliado os poderes de investigação das
autoridades administrativas.
Qualquer interpretação legal não se pode fazer de
forma isolada sob o risco de completo desvirtuamento do teor da norma. Os
antigos já diziam que
“um
texto fora de contexto pode servir de pretexto para qualquer coisa.”
O §1º do art. 144 não dispõe sob forma alguma de
retroatividade de normas, o que nos parece claro, posto que se este dispositivo
disciplinasse vigência de normas no tempo e espaço, não estaria inserido no Capítulo “Constituição do Crédito Tributário”,
mas sim no Capítulo “Vigência
da Legislação Tributária”, mesmo porque um parágrafo deve
ser interpretado em consonância com o tema abordado no caput do artigo, e o do art. 144 não dispõe nem direta nem indiretamente
sobre vigência de normas, mas sim sobre procedimentos para lançamento do
crédito tributário.
Não
dispondo o art. 144 do CTN, e conseqüentemente seu §1º, sobre vigência de
normas, qual é o tema efetivamente abordado por seu §1º?
De fácil
resposta essa pergunta. Trata esse dispositivo tão somente de
procedimentos meramente administrativos concernentes ao lançamento.
Exemplifica-se. Vamos nos utilizar da situação em que determinado Ente de
Direito Público tenha constitua sua fiscalização tributária dividindo seu
quadro funcional em mais de um cargo, por exemplo
Fiscais e Técnicos, incumbindo aos primeiros a fiscalização de empresas de
maior porte e aos segundos empresas de menor porte. Caso efetue, este Ente de
Direito Público, alteração na normatização destes
cargos, ampliando os poderes de investigação das autoridades administrativas
ocupantes do cargo de Técnico, de modo possam fiscalizar empresas outras que
não de pequeno porte, não há empecilho legal a que os Técnicos fiscalizem fatos
geradores ocorridos anteriormente à norma que lhes atribuiu competência para
tanto.
Não se
trata portanto de retroatividade, mas simplesmente de
organização de procedimentos meramente administrativos.
Retornando
ao conceito original de lei. A promulgação da LC 105 foi uma manifestação da
sociedade que desejou que as autoridades fiscais, no exercício de suas
atribuições, passassem a ter poderes para quebrar o sigilo bancário de
contribuintes. Anteriormente à LC 105, repulsava a sociedade esta idéia, mesmo
porque, se assim não fosse, tal norma já teria sido anteriormente aprovada. Portanto, como democraticamente a vontade do povo é sempre soberana
e querendo este que somente a partir da promulgação da LC 105 pudesse a
fiscalização tributária ter acesso a dados bancários de contribuintes, e tão
somente em relação a fatos ocorridos posteriormente à sua vigência, não é
possível a interpretação da LC 105 de modo a revesti-la de poderes de
retroatividade, mesmo porque, além de que se ferir o ordenamento jurídico
pátrio, desrespeita-se a soberana vontade popular.
BIBLIOGRAFIA:
SILVA,
José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 15ª
edição, 1998, São Paulo.
BASTOS,
Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 17ª edição,
1996, São Paulo.
Informações Sobre o Autor
Dênerson Dias Rosa
Consultor Tributário, ex-Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás e sócio da Dênerson Rosa & Associados Consultoria Tributária.