Resumo: Neste trabalho, pretendemos discutir a problemática da discriminação que incide sobre o negro e sobre a mulher negra, buscando identificar os argumentos que sustentam o imaginário de inferioridade atribuído a fenótipo e gênero na construção da sociedade brasileira, influenciando as formas de expressão sócio-cultural, mantendo um ambiente de desigualdade e exclusão o qual se reflete na deficiência de uma educação de qualidade; na ocupação dos postos de trabalho; nos salários; dificultam o acesso ao ensino superior e a produção em pesquisa. Refletem, ainda, no processo de criminalização e violência que sobre estes entes é mais intenso. Porém, os diversos movimentos sociais de negros e de mulheres, trabalham com a finalidade de desconstruir esse imaginário excludente conscientizando a população para que busque, no Poder Público, as atitudes necessárias à inclusão sem a negação de si mesmo e a implementação da garantia constitucional da dignidade humana.
Palavras-chave: Imaginário, gênero, exclusão, educação, dignidade humana.
Abstract: In this work, we intend to argue the problematic one of the discrimination that happens on the black and the black woman, searching to identify the arguments that support imaginary of attributed inferiority the physical characteristics and sort in the construction of the Brazilian society, influencing the forms of sociocultural expression, keeping an environment of inequality and exclusion which if reflects in the deficiency of an education of quality; in the occupation of the work ranks; in the wages; they make it difficult the access to superior education and the production in research. They reflect, still, in the process of criminalização and violence that on these beings is more intense. However, the diverse social movements of blacks and women, work with the purpose of desconstruir this imaginary exculpatory one acquiring knowledge the population so that it search, in the Public Power, the necessary attitudes to the inclusion without the negation of itself exactly and the implementation of the constitutional guarantee of the dignity human being.
Keyword: Imaginary, sort, exclusion, education, dignity human being.
Sumário: 1. Introdução; 2. O imaginário popular e o paradigma de exclusão; 3. O estigma da criminalização e da violência associadas a pobreza; 4. A característica da pobreza no Brasil; 5. A exclusão e a Constituição; 6. A identificação fenotípica e as relações com a violência; 7. O papel dos movimentos sociais e do Estado na reestruturação das consciências e o caminho da inclusão; 8. Considerações finais.
1. Introdução
Neste trabalho, pretendemos discutir a problemática da discriminação que incide sobre o negro e sobre a mulher negra. Entes estigmatizados e inferiorizados ao longo dos séculos no Brasil e relegados a um “sub-lugar”; impedidos de ocupar plenamente um espaço onde prevalecem os preceitos constitucionais de dignidade da pessoa.
Luiz Alberto Warat (2004) questiona o modo de se invocar o pensamento estabelecido – como senso comum – para justificar a dominação, afirmando que
“constroem um fundamentalismo travestido de senso comum, com o qual autojustificam e impõem a servidão, constroem as indignidades excludentes. Uma espécie de senso comum fundamentalista que serve para fazer do estado de espírito que cultiva o que já é passado (ainda que vivido como presente), um modelo com o qual possa simular as integrações. Todo modelo é uma imposição violenta de um conjunto de hipócritas igualdades com as quais se apagam todas as possibilidades de realização das diferenças”. (WARAT, 2004, p. 270).
E o modelo conjurado é que tem influenciado no surgimento e na manutenção de um imaginário social que rotula, julga, condena e exclui.
Com isso, queremos entender como os direitos fundamentais encontram obstáculos para alcançar tais indivíduos; porque a educação não os contempla adequadamente; de que modo a sociedade como um todo insiste em tratá-los e sob que argumentos; porque são exterminados – seja simbolicamente ou não – num país que não admite a pena de morte.
Para tanto, buscamos identificar esses argumentos invocados para sustentar a exclusão visível (porém silenciosa), enveredando pela construção da visão pela qual a sociedade concebe esses atores; refletindo em torno da relevância que a pobreza tem na formação desse imaginário; situando quem são, de fato, os destinatários que estão submetidos a essas marcas. Quem são seus defensores? O que precisa ser conquistado? O que deve ser reconhecido? Que reparações podem ser realizadas? As perguntas são muitas e sabemos que não teremos todas as respostas de uma vez. Porém, como nação que exige para o seu avanço uma consciência realmente nacional, temos esses fatores em causa e eles precisam ser transpostos.
2. O imaginário popular e o paradigma de exclusão
Inicialmente, para a reflexão sobre o imaginário e a exclusão, trazemos o pensamento de Terry Eagleton (2005, p. 16-17), pois, para o autor, o Estado transcende as divisões existentes entre os indivíduos na sociedade civil, conduzindo harmoniosamente os interesses através da cultura que é “uma espécie de pedagogia ética” capaz de instruir para a cidadania política. Recorre a sua dimensão ética para subordinar a política, de modo que esta seja construtora de responsabilidade e boa índole. Cabe, aqui, um chamado de atenção a uma expressão de cunho pejorativo que o autor utiliza – “denegrecimento da política” – em que entendemos ser uma afirmação que materializa na fala a inferiorização do negro. E isso é reflexo de uma cultura colonialista, dominada pelo europeu que lançou na estrutura da sociedade brasileira em formação, a idéia de que a superioridade branca seria a perfeição desejada, sendo o diverso imperfeito e o negro a degeneração. Lamentável, mas está intrínseco na sociedade e corresponde a um uso distorcido da cultura, como formadora de um senso comum que precisa ser desconstruído.
Entendemos que a construção da sociedade brasileira traz marcas que, desde a colonização, enraízam-se e influenciam as diversas formas de expressão sócio-cultural. Roberto da Matta (2000) discute o índio e o negro – inferiorizados e submetidos a um “encontro harmonioso” com o colonizador -, encaixados numa triangulação racial que os obriga a ocupar a base; submetendo-se a autonegação e a afirmação de uma superioridade que duvidosamente pertence ao terceiro integrante, posicionado no vértice mais alto do triângulo. Dentro da sociedade altamente hierarquizada, latifundiária, patriarcal, escravocrata e patrimonialista, ocorre uma interação mais intensa entre o senhor e o escravo, este sujeito ao trabalho como um complemento natural amparado pela lógica do sistema de relações sociais no Brasil – que admite a intimidade entre os ditos “superiores e os inferiores”, haja vista que “ninguém é igual entre si ou perante a lei”. A desigualdade embrenha-se por todo o universo social, instaurando-se por níveis. Assim, insiste o autor, “neste sistema, não há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do branco como grupo dominante” (DA MATTA, 2000, p. 75).
A mulher, se for branca, ocupa um espaço silencioso que lhe reserva a condição de parideira, sem direito a voz, descontando sua amargura sobre aquela que, sendo negra, é objeto de satisfação do sadismo dos senhores,
“independente da falta ou escassez de mulher branca o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação[…].Seu culto da Vênus fôsca, de formação tão romântica como o das virgens louras, desfigurado em erotismo rasteiro: furor de Dom Juan das senzalas desadorado atrás de negras e molecas”. (FREYRE, 1963, p. 170-171).
O imaginário popular brasileiro, historicamente, é condicionado a ver esses entes dominados e tratados como inferiores, assumindo como verdade tal interpretação. Tanto que, intrinsecamente, existe uma tendência à inversão de culpabilidades insidindo sobre a figura do afrodescendente – fenotipicamente identificado sob uma “matriz bioevolucionista semi-lombrosiana” (veremos adiante) – e da mulher em situações polêmicas (como o aborto por exemplo).
O modo da sociedade encarar a mulher que aborta, seja ela vítima de violência sexual e, portanto, dentro do termo tolerado pela lei – caso de estupro no art. 128, inciso II do Código Penal – ou tendo suas motivações em outras origens, não apresentam distinções significativas capazes de amenizar os encargos dessa conduta. O tratamento a ela direcionado, tende a sua responsabilização exclusiva ou à discriminação. Gilberta Santos Soares (2003) em seu estudo quanto à postura dos profissionais de saúde frente ao aborto analisa que
“Os valores e posições contrárias dos profissionais de saúde ao abortamento aparecem quando se trata de atender mulheres em processo de abortamento incompleto, que chegam no serviço. Nestes casos, a conduta tem sido estritamente normativa e punitiva, caracterizando a trajetória desumana das mulheres nos serviços de saúde”. (Aguirre & Urbina, 1997 apud SOARES, 2003).
Em relação ao negro, o momento posterior à abolição da escravatura esbossa, com propriedade, o cenário que há por vir. A lei não prevê nenhuma garantia aquele de quem a sociedade se serviu, o qual – por séculos – foi explorado para que uma minoria detentora do poder político-econômico mantivesse a sua riqueza. Oliveira Silveira (2003), ao referir-se a data de comemoração da Lei Áurea, esclarece que “o treze não satisfazia, não havia por que comemorá-lo. A abolição só havia abolido no papel; a lei não determinara medidas concretas, práticas, palpáveis em favor do negro”. De fato, o ex-escravo – que na senzala era tratado como “coisa” – inaugura uma nova condição em que passa a não ter tratamento algum. Perambula ao relento social. Não tem amparo, não tem emprego, não tem senzala. Assinala o Relatório de Desenvolvimento Humano (2005) que
“igualmente singular ao racismo brasileiro foi a construção de mitos como o da escravidão benigna e o legado da democracia racial de Gilberto Freyre. Essas teorias alimentaram uma historiografia que via no sistema escravista do Brasil características que o aproximariam de um modelo paternalista, de interações mais próximas entre senhores e escravos. Valorizavam-se o papel da população negra escravizada na formação da nação brasileira e sua influência na cultura, na produção econômica e na prestação de serviços – papel descrito mais detalhadamente pela historiografia atual –, mas deixava-se em segundo plano o dilaceramento da identidade étnica dos escravos pela Igreja e pelos senhores, o tratamento de negação e exclusão que os negros receberam do Estado e da sociedade após a abolição da escravatura, e as reações da população negra a essa situação, por meio de movimentos de resistência como os quilombos e as irmandades religiosas dos negros”. (RDH – BRASIL, 2005, p. 14).
Em meio a isso, a problemática que emerge é se cabe refletir, diante da realidade social da contemporaneidade, sobre a manutenção de um comportamento construído em torno de conceitos que se sustentam através desses equívocos excludentes; ou a realidade brasileira não comporta essa discussão em função da miscigenação que traduz o “mito da democracia racial” e do comportamento pacífico do povo?
3. O estigma da criminalização e da violência associadas a pobreza
O grande desafio é entender como a pobreza relaciona-se com essas marcas culturais, de modo a ser vista como o principal agente produtor do desequilíbrio social. Mas, de que forma se desenvolve essa relação? É a pobreza produtora da violência e do crime? É simplesmente a pobreza quem alimenta o sistema penal com desajustes que adoecem a sociedade? As respostas não são tão claras, tampouco fáceis de encontrar. Parece-nos precipitado concluir que a pobreza, por si, é geradora desses desequilíbrios sem considerar as diversas variáveis que se anexam. Valéria Pereira de Souza (2006) utilizou em seu artigo o banco de dados da pesquisa GRAVAD (2001-2002) realizada com 4.634 jovens (ambos os sexos) de 18 a 24 anos das cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre onde verificou que
“os(as) jovens sem gravidez e aborto provocado eram sobretudo brancos(as), solteiros(as), tinham alta escolaridade, pertenciam a famílias de alta renda. Diferentemente, da maioria dos(as) jovens que tiveram experiência de gravidez terminada em filho ou perda, com ou sem aborto tinham baixa escolaridade, pertenciam a famílias de baixa renda e eram unidos(as)/casados(as)”. (SOUZA et al, 2006).
Como o pobre é quem de fato sofre os efeitos criminalizantes do aborto, ou tem uma visão de ascendência social através da construção precoce de uma família – iniciada por uma gravidez indesejada na adolescência -, preocupa-nos quando um personagem público declara que a “filha do favelado” deve fazer aborto para não abastecer de mão-de-obra o crime.
4. A característica da pobreza no Brasil
Cabe ressaltar que a população que se encontra na faixa de pobreza – ou abaixo dela – é constituída, em sua maioria, por negros. E, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no estudo feito entre 1992 e 2001, a pobreza só não decresceu neste contingente. Os dados do seu relatório mostram que apesar de constituírem 44,7% da população total (dados do Censo 2000) eles correspondem a 70% dos 10% mais pobres e não superam 16% dos 10% mais ricos. Traz, ainda, que o percentual de negros pobres nunca desceu além de 64%.
Quando se trata dos índices educacionais, José Marcelino de Rezende Pinto (2003) investiga os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001 e constata que a taxa de analfabetismo da população negra a partir de 15 anos é de 18,7% em oposição a 7,7% de brancos; 36% dos negros são analfabetos funcionais, enquanto entre a população branca o índice é de 20%; e pelas informações do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2001, os autodeclarados pretos na 4ª série do ensino fundamental era de 11,3%, caindo na 3ª série do ensino médio para 6,4%. Entre brancos, inversamente, salta de 42,4% para 51%.
Note-se, ainda, que no ano 2000 segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2005, do total de rendimentos das famílias no Brasil, 50% cabiam aos homens brancos e 24% pertenciam às mulheres brancas. Os homens negros participavam com 18% e as mulheres negras com, somente, 8%. Danniela Silva (2007) afirma em artigo do jornal A TARDE com base em dados do Departamento intersindical de estatística e estudos socioeconômicos (Dieese), que em média o negro percebe 52,9% do rendimento médio do não-negro na Região Metropolitana de Salvador. Traz, também que ao se considerar, especialmente, a mulher negra no país o índice é ainda mais sofrível, variando de 37,6% a 49,1%. Destaque-se que, de acordo com a pesquisa do Dieese no biênio 2001-2002, quanto a inserção da mulher negra no mercado de trabalho, o emprego doméstico é o segundo mais relevante. Em Salvador são 23,5%, em oposição a 6,7% de não negras nessa atividade econômica. E tal quadro não melhorou no biênio 2004-2005, visto que o órgão pesquisador aponta que
“é significativamente maior a presença das negras em formas de inserção menos protegidas. Em Salvador, Recife e São Paulo este percentual ultrapassou os 50,0% das ocupações preenchidas por mulheres negras no biênio analisado […]. Os maiores percentuais de vulnerabilidade da mulher negra no universo dos trabalhadores ocupados se explicam, sobretudo, pela intensidade de sua presença no emprego doméstico. Esta atividade, tipicamente feminina, é desvalorizada aos olhos de grande parte da sociedade, caracterizando –se pelos baixos salários e elevadas jornadas, além de altos índices de contratação à margem da legalidade e ausência de contribuição à previdência”.(DIEESE, 2005).
5. A exclusão e a Constituição
Já na primeira Constituição do Brasil independente, votar e ser votado condicionava-se à renda do cidadão, portanto, privilégio dos ricos. Todavia, a maioria da população era composta de pobres – livres e escravos. A eles destinava-se o Código Criminal do Império do Brasil que vigorou por mais de meio século e pretendia – entre outras coisas – por fim às lutas por posse de terras, combater as insurreições escravas e destruir os quilombos.
No texto da Constituição de 1988, o art. 6º traz os direitos sociais como garantias que devem ser asseguradas. Portanto, educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assitência aos desamparados encontram-se no rol de itens necessários à dignidade de qualquer cidadão. Entretanto, não é uma realidade para todos, pois o texto é dependente de atitudes. O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) revela este fato ao trazer que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” e que, no entanto, o processo exige anos de luta contra a burocracia e contra os fazendeiros que disputam as terras. Para se alcançar a dignidade não basta ter uma igualdade apenas formal; descrita na lei. Haja vista que a letra inerte não é capaz de vencer o abandono e a discriminação que o negro sofreu ao fim do século XIX e ao longo do século XX, dando origem às favelas que incharam (ainda mais) com a migração do homem do campo para a cidade em busca de melhores condições de vida. Todavia, quais as oportunidades que se apresentam a entes que não foram privilegiados pela educação ou pelas condições básicas para a vivência da dignidade humana?
6. A identificação fenotípica e as relações com a violência
Segundo descreve o texto O fenótipo das vítimas de homicídio e crimes violentos (RDH-BRASIL, 2005, p. 87) “ser preto, de sexo masculino e solteiro significa ser alvo preferencial da violência letal no Brasil” e, ainda, que os negros temem mais a polícia do que os bandidos.
O relatório comenta os dados fornecidos pelos registros de ocorrência da Polícia Civil do Rio de Janeiro entre janeiro de 1998 e setembro de 2002, pela Superintendência de Saúde, pela Secretaria de Administração Penitenciária e pesquisa sobre amostra de presos entre agosto de 2002 e março de 2003. Mostra um fato alarmante entre os opositores mortos pela polícia e a população carcerária em que, dos 1.880 mortos, 609 eram pretos, 409 pardos, 370 brancos, 26 classificados como outros e 466 como desconhecidos. Na população carcerária, num universo de 1.624 presos, 45% eram brancos, 30% eram pardos e 25% eram pretos. Em relação às abordagens, numa referência à pesquisa Datafolha analisada por Túlio Kahn, nos traz que
“se todos são parados pela polícia com a mesma freqüência, as pessoas pretas e pardas são revistadas em maior proporção: dos cariocas que se autodeclararam pretos e que haviam sido abordados pela polícia, a pé ou em outras situações, mais da metade (55%) disse ter sofrido revista corporal, contra 38,8% dos pardos e 32,6% dos brancos. Os números indicam que a polícia, quando depara com transeuntes brancos, mais velhos e de classe média (sobretudo quando circulam por áreas nobres do Rio de Janeiro), tem maior pudor em revistá-los – procedimento fortemente associado à existência de suspeição”. (RDH-BRASIL, 2005 p. 90).
Neste sentido, a questão emergente circunda conhecer, afinal, quem sofre mais intensamente os efeitos da violência, seja ela social ou econômica?
7. O papel dos movimentos sociais e do Estado na reestruturação das consciências e o caminho da inclusão
O movimento negro tem desempenhado uma função de importância crucial nas conquistas da população no sentido de se desconstruir o imaginário de equívocos históricos. A sociedade e o Estado começam a ultrapassar os limites da democracia racial para analisar de outra forma as condições socioeconômicas, as relações raciais e os setores da saúde e educação envolvendo a população negra.
A mulher tem conquistado, significativamente, o espaço que antes era reservado ao público masculino. A política de cotas nas esferas partidárias, por exemplo, tem contribuído para a sua maior participação no Poder, desmontando a ficção de que Política seria um espaço masculino.
O posicionamento do Estado nesse processo, saindo da condição de uma suposta neutralidade, importa sobremaneira. A positivação de determinados procedimentos podem contribuir na formação de um todo cultural que atingirá os componentes sociais independentemente do seu fenótipo ou gênero. Jürgen Habermas (2002), chama a atenção para o estabelecimento de um espaço de interação, no qual se possa movimentar as diferenças como elementos ativos na compreensão e na inclusão do outro – não como autonegação, mas como conquista do seu lugar. Em sua reflexão,
“o Estado nacional responde com a mobilização política dos seus cidadãos. Pois a consciência nacional emergente tornou possível vincular uma forma abstrata de integração social a estruturas políticas decisórias modificadas. Uma participação democrática que se impõe passo a passo com o status da cidadania uma nova dimensão da solidariedade mediada juridicamente; ao mesmo tempo, ela revela para o Estado uma fonte secularizada de legitimação”. (HABERMAS, 2002, p. 128, grifos do autor).
Neste sentido, a consciência da cidadania compartilhada por todos torna-se um objetivo que deve ser perseguido na luta contra a discriminação. As políticas públicas devem atender aos requisitos que provoquem a igualdade substancial de fato, como característica de uma nação que comporta diversos matizes e por eles é sustentada.
A educação é o primeiro instrumento a ser repensado como elemento de superação e de inclusão. A igualdade de oportunidades significa muito pouco quando não se tem recursos adequados para acessá-las. Henrique Cunha Junior (2003) manifesta sua preocupação quanto a pesquisa relacionada à população negra e à formação de pesquisadores negros – que na maioria ingressam após os 35 anos na pós-graduação, são responsáveis pelo sustento da família e as bolsas não os contemplam – evidenciando que
“os argumentos da história não são suficientes para a consciência de que existe um erro, se perpetrado na composição dos corpos de pesquisadores brasileiros, nas temáticas elegidas pela ciência brasileira, sobretudo nas políticas científicas e de formação de pesquisadores no País. É surpreendente não apenas a ausência de políticas nessa área, como também as preocupações democráticas com a implantação das mesmas. Num país que forma seis mil doutores por ano, temos que menos de 1% é negro, menos de 1% trata de temas de interesse das populações afrodescendentes […]. A razão disso é que o negro é pobre. Errado, a razão é que os métodos de discriminação estão tão institucionalizados, que não incomodam as consciências críticas. É natural o negro não entrar nos programas de pós-graduação”. (CUNHA JR, 2003, p. 156)
Mesmo as tímidas ações afirmativas movimentadas pelo Poder Público já fazem uma imensa diferença, pois o que se pretende é a igualdade de condições para o acesso. Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2003) sustenta que
“em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições. Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma concepção substancial da igualdade, que levasse em conta em sua operacionalização não apenas certas condições fáticas e econômicas, mas também certos comportamentos inevitáveis da convivência humana, como é o caso da discriminação”. (GOMES, 2003, p. 88)
8. Considerações finais
Mais de três séculos sob grilhões e a absorção de um mito de harmonia racial, desenvolveram o equívoco da suposta inferioridade da população afrodescendente. Os reflexos dessa interpretação evidenciam-se quando analisamos o tratamento que o negro recebe na sociedade brasileira, basta tomar os números da educação; do emprego, sub-emprego e desemprego; da igualdade enquanto expressão de cidadania; entre outros dados.
A pobreza liga-se com crueldade a esse ente, haja vista que a base da verdadeira libertação – que é a educação de qualidade – não é, ainda, trabalhada adequadamente. O resultado desse processo atinge, primariamente, a adolescente que engravida na fase escolar e que tentará o aborto ou terá, como única esperança de ascenção social, a condição de mãe numa união precoce. Atinge o jovem que sofre discriminação na formação, no ingresso ao mercado de trabalho ou, até mesmo, que é associado à condição de potencial criminoso simplesmente pelo seu fenótipo.
A luta dos diversos movimentos tem sido fundamental no estabelecimento de instrumentos de reparação, de conscientização e de superação, porém, o caminho é muito longo. A realidade da igualdade nas condições de acesso – situação diferente da igualdade de oportunidades que privilegia quem já tem as condições – tem muitos obstáculos a enfrentar. Desde a garantia de uma educação básica de qualidade que possibilite a sua permanência e conclusão; à pesquisa acessível aqueles que não tem experimentado grandes chances de ingresso por fatores puramente excludentes como limites de idade; econômicos; de quantidades das bolsas.
Informações Sobre o Autor
Cláudio José Conceição de Souza
Acadêmico do curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus