Conforme noticia a imprensa, em breve, o Governo Federal enviará ao Congresso Nacional projeto de uma ampla reforma sindical, inclusive modificando o art. 8o da Constituição Federal e promovendo substanciais alterações no Título V da CLT.
Em uma análise preliminar, constata-se como pontos fundamentais do projeto, na última versão até o presente (agosto/2004), a institucionalização gradativa da pluralidade sindical; o fim das contribuições sindical, confederativa e assistencial, substituídas por uma contribuição vinculada à negociação coletiva e o fim do poder normativo da Justiça do Trabalho.
Passa-se a uma apreciação crítica de tais pontos, ainda que tais observações sejam feitas no calor do momento, já que o tema merece uma reflexão mais detida.
Da estrutura sindical
O projeto extingue, na prática, a unicidade sindical, já que permite a coexistência de vários sindicatos na mesma base territorial. É correto que o novo sistema sindical convive com alguns elementos do sistema anterior, como a manutenção da atual restrição constitucional à criação de sindicatos com base territorial inferior ao município. Tal restrição, sem dúvida, evita o excessivo fracionamento da estrutura sindical e evita a implantação do sindicato por empresa. Segundo o projeto, ainda, os sindicatos para se constituírem devem apresentar um percentual de sindicalização mínimo de 20% ou se filiarem a uma Central (que passa a ser reconhecida como entidade sindical), Confederação ou Federação que possua o nível de sindicalização mínimo de 22% dos trabalhadores da base.
O projeto possibilita a manutenção da exclusividade da representação sindical pelos sindicatos existentes até a data de promulgação da Emenda Constitucional desde que demonstrem terem o nível de sindicalização exigido por lei. Não demonstrado o nível de sindicalização mínimo, o sindicato perde a exclusividade de representação, criando-se a pluralidade sindical naquela base sindical. O Ministério do Trabalho, a pretexto de induzir uma agregação por ramo de produção, passa a ter poderes inéditos para, ouvido um Conselho consultivo formado por representantes sindicais, extinguir, fundir ou dividir bases de representação sindical. Na negociação coletiva, existindo vários sindicatos de trabalhadores na mesma base territorial, qualquer sindicato pode celebrar acordo, em nome de associados ou não associados. Na prática, isso significa que será o empregador quem poderá escolher com que sindicato de trabalhadores pretende celebrar o convênio coletivo aplicável a todos os trabalhadores da base.
O projeto, como se vê, além de confuso e de constitucionalidade duvidosa (já que permite uma intervenção excessiva do Estado, contrariando o princípio da liberdade sindical), importa em claro debilitamento do poder dos sindicatos.
Não cabe aqui tecer maiores considerações sobre o tema da unicidade x pluralidade sindical. A polêmica entre as essas duas propostas de estruturação sindical divide o movimento sindical há décadas e parece longe ainda de uma solução de consenso. Admitida, de plano, a impossibilidade de lograr a unanimidade, pareceria, entretanto, razoável buscar pontos que, ao menos, sejam aceitáveis para ambos os lados, na esperança de lançar algumas pontes que vencessem o fosso da incompreensão que, lamentavelmente, tem marcado a discussão a respeito do ponto em nosso país.
Em primeiro lugar, é de se supor consensual que a unidade sindical é um valor imprescindível. Qualquer reformulação da estrutura sindical deveria ter em conta que, em um sistema que interesse aos trabalhadores, a unidade organizativa, mais que uma possibilidade, é uma meta a ser buscada pelo conjunto do movimento sindical. Esperar-se-ia que, mesmo os mais intransigentes defensores do modelo pluralista reconhecessem o valor da união dos trabalhadores em suas reivindicações frente aos empregadores. Portanto, do ponto de vista dos trabalhadores, certamente não interessam propostas (sejam unitaristas ou pluralistas) que importassem em insuperável cisão da unidade sindical, nem que inviabilizassem a unificação pela base. Repetindo o conhecido lema sindical de que a “união faz a força”, mesma as propostas de pluralidade sindical deveriam possibilitar que, em determinado momento durante o processo de negociação coletiva, os trabalhadores pudessem aparecer unidos frente aos empregadores.
Assim, em um projeto que pretendeu ser fruto do consenso entre os sindicatos de trabalhadores, era de se esperar que, uma vez admitida a pluralidade sindical, se adotassem formas de manter a unidade negocial, como por exemplo, a regra de designação do sindicato mais representativo em determinada base territorial para negociar coletivamente em nome de todos os integrantes da categoria profissional, sejam associados ou não ao sindicato mais representativo (modelo espanhol, no qual a representatividade é aferida pela eleição direta dos representantes do comitês de empresa – órgãos unitários). Tal providência evitaria o fracionamento dos trabalhadores no processo negocial, como permite o projeto do governo.
Da extinção das fontes de sustentação econömica dos sindicatos
Quanto à sustentação econômica dos sindicatos, parece inevitável tecer algumas considerações sobre a atual polêmica a respeito da conveniência ou não de extinção da contribuição sindical.
Apesar da acirrada campanha contra a contribuição sindical, cada vez encontram-se menos adeptos da tese simplista de que os sindicatos poderiam sustentar-se somente com a chamada contribuição associativa (mensalidade sindical). Mesmo os mais intransigentes defensores da extinção da contribuição sindical (impropriamente chamada de “imposto sindical”) reconhecem que os sindicatos necessitam de uma fonte adicional de recursos, sob pena de extinção em massa. O fenômeno mundial do decréscimo percentual de trabalhadores sindicalizados atinge também fortemente o Brasil.
O aumento do desemprego, a descentralização produtiva e até a drástica redução de importantes categorias de trabalhadores (por exemplo, a dos bancários) podem ser apontados como explicações para o significativo decréscimo da sindicalização, que atinge praticamente todos os sindicatos nacionais (com a exceção dos servidores públicos). Além disso, o valor unitário da mensalidade sindical também se ressente da crise que passam os trabalhadores, obrigando os sindicatos a mantê-los em valores muito baixos, em muitos casos, quase simbólicos. De qualquer forma, parece fora de dúvidas que não se pode mais utilizar impunemente o surrado bordão que o “imposto sindical sustenta pelegos”.
Não apenas os sindicatos ditos combativos não apresentam níveis de sindicalização maiores do que os chamados sindicatos “pelegos”, como, em qualquer dos casos, o total da contribuição associativa arrecadada é inexpressivo em face aos compromissos financeiros mínimos de sustentação de um sindicato. Agrega-se a tal quadro, já por si só dramático, a dificuldade crescente representada pela jurisprudência, principalmente do TST, relativamente às chamadas “contribuições assistenciais” previstas em dissídios coletivos, acordos e convenções coletivas. Cada vez mais, exige-se a previsão de salvaguardas de “direito de oposição” aos não associados para oporem-se ao desconto salarial das contribuições assistenciais. Tais cláusulas terminam por permitir, mesmo, a ação anti-sindical dos empresários, que podem promover, dentro das suas empresas, coletas de assinaturas entre os empregados em “listas de oposição ao desconto”, tudo no sentido de enfraquecer financeiramente o sindicato. Assinale-se que a Portaria 160 do Ministério do Trabalho está suspensa apenas até início de 2005, através da Portaria 180. Naquela, tais estas contribuições ficariam restritas aos associados.
Por outro lado, a tentativa de criação de uma “quarta contribuição”, a chamada contribuição confederativa (prevista no art. da CF), foi pouco frutífera, sendo alvo de fortes questionamentos judiciais, que tornam bastante incerta sua sobrevivência ante a reforma sindical que se avizinha. Resta claro, assim, que boa parte dos sindicatos nacionais (especialmente as centrais sindicais) sobrevivem atualmente através de financiamento público através de convênios que envolvem o repasse de recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Tal fato não chega a ser uma novidade, já que em outros países, como a Espanha, o Estado assume parte da responsabilidade de manter financeiramente os sindicatos, reconhecendo sua utilidade pública.
No Brasil, portanto, ante a realidade que se descreveu, em que o governo passa a ser o responsável por decisões que implicam na própria sobrevivência ou não dos sindicatos, como é possível, com seriedade, manter-se a acerba crítica à contribuição sindical, sob o falacioso argumento de que este implica a ingerência do Estado no movimento sindical? No caso da contribuição sindical, tal repasse de recursos é automático e incondicionado. Já o repasse de recursos do FAT depende de decisões discricionárias dos governantes e, portanto, pode representar, esse sim, um perigoso instrumento de atrelamento dos sindicatos à política governamental.
Portanto, encarando-se de forma realista o quadro atual, não é possível concordar que a contribuição sindical deva ser extinta e nem mesmo gradualmente ou substituída por uma incerta taxa negocial.
O fim do poder normativo da justiça do trabalho
O projeto extingue o Poder Normativo da Justiça do Trabalho, abrindo espaço para que, doravante, os conflitos coletivos sejam resolvidos pela arbitragem. Sobrevive do Poder Normativo (agora denominado arbitragem pública compulsória) apenas para a manutenção ou não de cláusulas normativas já existentes em vias de esgotar o prazo de vigência e em que não houve acordo entre as partes. Nestes casos, a Justiça do Trabalho atuará exclusivamente para manter ou não as cláusulas, sem poder acrescer qualquer condição nova e limitada pelo mecanismo de ofertas finais. Quanto ao reajustamento salarial, somente poderá a Justiça do Trabalho atuar se os sindicatos de empregados e empregadores pedirem em conjunto sua intervenção.
Na prática, o Poder Normativo fica extinto ou em vias de extinção, com prejuízo enorme aos trabalhadores, em especial para as categorias menos organizadas.
A inexistência de previsão para a organização por local de trabalho
Finalmente, há de se comentar também as omissões do projeto. A principal, sem dúvida, é a inexistência de previsão para a organização por local de trabalho – o que, a princípio, anunciava-se como a maior e mais relevante novidade do projeto de Reforma Sindical.
Apesar de consensual entre os trabalhadores, a proposta não foi incluída no projeto, porque vetada pela bancada representante dos empregadores no Fórum da Reforma Sindical.
Por certo, é urgente a necessidade de regulamentar o artigo 11 da Constituição Federal, de modo a assegurar-se a representação dos trabalhadores no interior das empresas. Sejam unitaristas ou pluralistas, não há divergência entre os sindicalistas quanto a este ponto. É inequívoco o atraso de nossa legislação que não prevê qualquer garantia aos representantes eleitos pelos trabalhadores, tornando “letra morta” a norma constitucional. A esta insuficiência soma-se o revés que representa para o movimento sindical as mais recentes decisões judiciais que ressuscitam, por assim dizer, a regra do art. 522 da CLT, que já se entendia como revogada por expressa incompatibilidade com a liberdade de auto-organização sindical prevista no art. 7o da Constituição Federal.
Parece, assim, imprescindível a revogação expressa do arcaico art. 522 da CLT, garantindo-se a estabilidade para um número razoável de dirigentes sindicais. Por outro lado, não se pode pensar em modernização das relações sindicais no Brasil sem uma verdadeira representação dos trabalhadores nas empresas, o que, necessariamente, implica dotar os representantes sindicais de garantias de atuação, dotando-lhes de uma proteção contra despedidas arbitrárias equivalente, pelo menos, a dos atuais cipeiros.
A ausência da OLT (Organização por Local de Trabalho), por si só, torna bastante duvidoso que a aprovação do projeto seja de interesse dos trabalhadores.
Informações Sobre os Autores
Luiz Alberto de Vargas
Desembargador do Trabalho do TRT 4ª. Região
Ricardo Carvalho Fraga
Juiz do Trabalho no TRT RS
Coordenador do Fórum Mundial de Juízes