Resumo: O presente artigo analisa de forma breve mas fundamentada a incompatibilidade das relações adulterinas com o direito familiar brasileiro.
Palavras-chaves: Relações adulterinas – Monogamia – Direito de Família
Abstract: The article analyzes in a brief but based form the incompatibility between the adulterine relations and the brazilian family right.
Keywords: Adulterine relations – Monogamy – Family Rights
Sumário: I. Considerações Gerais; II. Do Direito de Família; III. Da Monogamia; IV. Da União estável x relação adulterina; V. Referências.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
O ser humano sempre sentiu a necessidade de relacionar-se com seus iguais, levando John Donne, poeta inglês do século XVI, a proclamar que “nenhum homem é uma ilha”.
Entre as formas de relacionamento humano, pretende-se abordar n presente discussão a relação homem-mulher, que por muitos séculos foi reconhecida apenas sob o manto do casamento.
No entanto, desde as civilizações clássicas, como a grega e a romana, o casamento (instituição formal e solene) não era a única forma de um casal heterossexual se relacionar.
O concubinato (do latim concubinatus, verbo concumbo, is, ubui, ubitum, ere = deitar-se com alguém, compartilhar o leito) já existia como espécie de relacionamento informal e inferior ao casamento.
Na Idade Média, com a supremacia da religião cristã, o casamento foi instituído obrigatoriamente como a única forma moral e permitida de relação entre homem e mulher que envolvesse atividade sexual. Muitos destes casamentos, porém, eram realizados mais por questões políticas do que amorosas.
Nesse contexto, o concubinato continuou existindo, à margem da sociedade, como instrumento de vazão aos desejos carnais não atendidos no casamento. Esposos e esposas possuíam seus amantes, com quem relacionavam-se em busca do afeto e da realização sexual que não encontravam em seus lares, com seus cônjuges.
Mas o concubinato não representava apenas estas relações adulterinas. O casamento, à época, representava um procedimento de alto custo, marginalizando grande parte da população, que então recorria ao concubinato (união livre e informal) como maneira de relacionar-se, sexual e afetivamente, de forma contínua e duradoura, com pessoa do sexo oposto.
Em todos os casos, porém, o concubinato era considerado pela Igreja (e, por conseguinte, pela sociedade em geral) como profano e sujo, em razão da natureza de pecado que lhe era imposto (fornicação e adultério).
Com o passar do tempo, foram identificadas duas vertentes do concubinato: as relações “puras” e “impuras”.
As relações puras eram constituídas por pessoas solteiras, logo, desimpedidas, que relacionavam-se de maneira estável e duradoura, em aparência de casamento.
As impuras, por seu turno, representavam relações adulterinas, incestuosas ou efêmeras (cujo fundamento era basicamente o desejo sexual).
As relações puras foram gradativamente sendo reconhecidas na sociedade e nos Tribunais, alcançando, após a Constituição brasileira de 1988, o grau de entidade familiar, quando então lhes foi conferida a denominação de união estável.
As relações impuras, que continuaram recebendo a denominação de concubinato, por outro lado, permaneceram com grande carga de preconceito social e jurídico.
Atualmente, portanto, um homem e uma mulher podem se relacionar afetivo e sexualmente não apenas sob o manto do casamento, mas também da união estável, recebendo ambas as instituições a mesma proteção, as mesmas garantias e os mesmos deveres, com pequenas particularidades.
No entanto, nas duas últimas décadas tem-se percebido a proliferação de decisões jurisprudenciais protegendo até mesmo as relações impuras, com natureza principalmente adulterina.
Citem-se como exemplos os seguintes acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, considerado pioneiro nestas decisões, e do próprio Superior Tribunal de Justiça:
“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA A OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. O anterior reconhecimento judicial de união estável entre o falecido e outra companheira, não impede o reconhecimento da união estável entre ele e autora, paralela àquela, porque o Direito de Família moderno não pode negar a existência de uma relação de afeto que também se revestiu do mesmo caráter de entidade familiar. Preenchidos os requisitos elencados no art. 1.723 do CC, procede a ação, deferindo-se à autora o direito de perceber 50% dos valores recebido a título de pensão por morte pela outra companheira. 2) RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. Descabe a cumulação de ação declaratória com ação indenizatória, mormente considerando-se que o alegado conluio, lesão e má-fé dos réus na outra ação de união estável já julgada deve ser deduzido em sede própria. Apelação parcialmente provida.” (Apelação Cível Nº 70012696068, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 06/10/2005)
“APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO”. SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA”. (Apelação Cível Nº 70011258605, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 25/08/2005)
“UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. DUPLICIDADE DE CÉLULAS FAMILIARES. O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, inobstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja “digna” de reconhecimento judicial. Dessa forma, havendo duplicidade de uniões estáveis, cabível a partição do patrimônio amealhado na concomitância das duas relações. Negado provimento ao apelo”. (Apelação Cível Nº 70010787398, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 27/04/2005)
“CONCUBINATO. SOCIEDADE DE FATO. DIREITO DAS OBRIGAÇÕES. Segundo entendimento pretoriano, “a sociedade de fato entre concubinos é, para as conseqüências jurídicas que lhe decorram das relações obrigacionais, irrelevante o casamento de qualquer deles, sobretudo, porque a censurabilidade do adultério não pode justificar que se locuplete com o esforço alheio, exatamente aquele que o pratica.” Recurso não conhecido”. (STJ – REsp 229.069/SP – 4ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 26/4/2005).
“CONCUBINATO. RELAÇÃO EXTRACONJUGAL MANTIDA POR LONGOS ANOS. VIDA EM COMUM CONFIGURADA AINDA QUE NÃO EXCLUSIVEMENTE. INDENIZAÇÃO SERVIÇOS DOMÉSTICOS. Pacífica é a orientação das Turmas da 2ª Seção do STJ no sentido de indenizar os serviços domésticos prestados pela concubina ao companheiro durante o período da relação, direito que não é esvaziado pela circunstância de ser o concubino casado, se possível, como no caso, identificar a existência de dupla vida em comum, com a esposa e companheira, por período superior a trinta anos. Pensão devida durante o período do concubinato até o óbito do concubino”. (STJ – REsp 303.604/SP – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 23/6/2003).
“SEGURO DE VIDA EM FAVOR DE CONCUBINA. HOMEM CASADO. Situação peculiar de coexistência duradoura do de cujus com duas famílias e prole concomitante advinda de ambas as relações. Indicação da concubina como beneficiária do benefício. Fracionamento. Inobstante a regra protetora da família, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra “bigamia”, em que o extinto mantinha-se ligado à família e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do Direito. Recurso conhecido e provido em parte para determinar o fracionamento, por igual, da indenização secundária”. (STJ – REsp 100.888/BA – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – j. 12/3/2000). (grifos nossos)
Acredita-se que estas decisões, no entanto, infringem toda a lógica do ordenamento jurídico familiar brasileiro. Protegendo a relação concubinária, pretendem que lhe seja estendida a mesma dignidade e a mesma proteção constitucional conferida à relação mais antiga (de casamento ou união estável), sob a alegação que o atual Direito de Família busca preservar a afetividade sobre todas as coisas.
Desta forma, o concubino tem sido agraciado, como recompensa pela relação adulterina, com parte da pensão do falecido companheiro (adúltero), com a terça parte da herança, com a triação (em vez da meação) dos bens adquiridos onerosamente, mesmo quando cientes de que o companheiro era casado ou já convivia em união estável.
Ocorre, porém, que esta extensão indiscriminada de direitos tem promovido verdadeiro golpe no sistema jurídico familiar brasileiro, ao romper com um dos maiores princípios informadores e ordenadores do sistema jurídico e da sociedade brasileira: o Princípio da Monogamia.
E, além dessa infração principiológica, testemunha-se verdadeiro retrocesso às sofridas vitórias conquistadas pelos defensores da união estável, pois as decisões que permitem a existência jurídica de relações simultâneas, na maioria das vezes, identificam a relação adulterina com uma forma de união estável, contribuindo para o resgate do preconceito sobre este instituto.
Outrossim, autorizar as relações simultâneas indiscriminadamente poderá representar a inserção do modelo de poligamia na sociedade brasileira, e deve ser ressaltado que as culturas poligâmicas, em regra, inferiorizam e subjugam o gênero feminino, impingindo caráter patriarcal e machista às relações afetivas.
Por outro lado, a existência de “famílias paralelas” não é promissora nem auto-sustentável. Geralmente as famílias se confrontam, se “descobrem”, quando o indivíduo em comum (via de regra, o homem) falece, e então inicia-se verdadeira batalha pelos bens do de cujus e pela pensão por morte.
O valor das pensões, muitas das vezes, já é insuficiente para garantir à família “legítima” do falecido as mesmas condições de vida oportunizadas pelo esforço conjunto (ou isolado) do de cujus. Imagine-se repartindo esta mesma (e única) pensão entre duas, três, quatro famílias, e tantas quantas o falecido conseguiu formular em vida, pela apregoada “ausência” de óbices legais à constituição de famílias paralelas.
Desta forma, urge analisar, de forma crítica, os aspectos sociais e jurídicos do Princípio da Monogamia, assim como seu papel no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de confrontá-lo com a proteção das relações simultâneas e, assim, identificar a ilegalidade e quiçá a inconstitucionalidade desta proteção.
1. DO DIREITO DE FAMÍLIA
O Direito sempre existiu em todas as sociedades e culturas como forma de regular a sociedade, pacificar os interesses conflitantes e permitir a vida harmônica dos seres humanos entre si e até mesmo entre estes e o meio ambiente.
E, ao contrário do que muitos doutrinados alegam, o Direito tem, sim, ingerência sobre os sentimentos do homem.
Ao indivíduo que sente prazer em machucar terceiros, o Direito criou as regras penais. Ao indivíduo que não tem escrúpulos nas negociações com a comunidade, o Direito criou as obrigações e contratos. Ao indivíduo que vive egoisticamente sem pensar sequer em seu futuro, o Direito criou a Previdência.
Assim, sentimentos do homem, ou aspectos de sua natureza e personalidade, curvam-se às regras do Direito, sob pena do indivíduo receber determinadas sanções e ser marginalizado do convívio social – tudo para a finalidade do bem maior da vida harmônica em sociedade.
Nesse mesmo sentido, para regular as relações dos seres humanos no núcleo mais basilar da sociedade – a família – foi criado o Direito de Família, em dois aspectos: o de orientação (o que existe a fazer; o que é o certo a fazer; como deve ser feito) e o de determinação (o que pode ser feito; o que não pode ser feito).
Em cada ramo do Direito, existem duas espécies de princípios que representam a espinha dorsal desta área do conhecimento humano: os princípios informadores e os princípios ordenadores.
Os princípios informadores são princípios abertos, que refletem a idéia diretriz ou justificadora da configuração e do funcionamento do próprio sistema jurídico[i]; os princípios ordenadores, por sua vez, preservam a organização das idéias centrais do sistema, promovendo harmonia e concórdia[ii].
Celso Ribeiro de Bastos leciona que a não observação de um princípio informador é muito mais grave do que a violação da própria lei aplicada, pois o princípio se traduz na própria estrutura informadora da norma[iii].
Enquanto a norma possui somente eficácia nas situações por ela disciplinadas, os princípios abarcam um número indeterminado de situações, fornecendo critérios para as formações das leis, justamente em razão da sua abstratabilidade[iv].
No tocante aos princípios ordenadores, Ives Gandra da Silva afirma que a comunidade não é um aglomerado de pessoas, e sim um todo orgânico, com uma ordem entre as partes. Todas as coisas que existem estão ordenadas entre si, umas servindo às outras, e as coisas que são diversas, diferentes, só convivem em comum porque são ordenadas por algo uno[v].
Para o ilustre doutrinador, existem duas espécies de ordem: a ordem das partes entre si (intrínseca), de subordinação de umas e outras em hierarquia, e a ordem do todo ao fim (extrínseca), fundamentada na busca de todos pelo bem comum. Desta forma, conclui que só existe ordem interna (das partes entre si) se estas partes convergirem no mesmo fim ordenador comum[vi].
No Direito de Família, vários princípios coexistem para informar e ordenar este sistema.
Existe o princípio da dignidade humana, norteador de todo o ordenamento jurídico, que fundamenta a existência dos direitos da personalidade; existe o princípio da afetividade, como razão principal para a união de qualquer entidade familiar; e o princípio da monogamia, objeto do presente estudo, que contribuiu para o respeito ao princípio da igualdade (princípio constitucional), uma vez que nos países onde a poligamia é aceita, implica na discriminação, inferiorização e subjugação do gênero feminino[vii].
2. DA MONOGAMIA
Ao longo da evolução do conceito de “família”, algumas de suas características se tornaram obsoletas e foram, assim, descartadas, como a prevalência do homem e a imperatividade do casamento. Por outro lado, certos elementos, por se coadunarem com os anseios da sociedade, foram mantidos pelo legislador, como é o caso do princípio da monogamia[viii].
Pelo dicionário Aurélio, a monogamia é definida como “sf. Antrop. Costume ou prática segundo a qual uma pessoa (homem ou mulher) não pode ter mais de um cônjuge” [ix].
Em termos técnicos, a monogamia é o sistema de constituição familiar pelo qual o homem possui uma só esposa ou companheira, e a mulher possui apenas um esposo ou companheiro. É um dogma imposto pelo próprio ordenamento jurídico, logo, não se trata de mera sugestão proposta aos indivíduos, tampouco simples regra moral[x].
Rodrigo da Cunha Pereira reforça que um dos princípios basilares da organização jurídica sobre a família é o da monogamia[xi]. Marco Aurélio S. Viana ressalta que as relações homem-mulher exigem caráter monogâmico, incompatível com o congresso sexual com outra pessoa, pois o elemento espiritual determina a dedicação exclusiva dos corpos[xii].
Como pressuposto da monogamia, Jesualdo Eduardo de Almeida Junior ressalta que toda a estrutura de uma entidade familiar repousa no dever de fidelidade, afirmando:
“como pressuposto da união monogâmica, em praticamente todas as legislações dos povos modernos encontra-se o dever dos esposos, durante toda a vida conjugal, manterem-se fiéis à fé jurada de se pertencerem exclusivamente uns aos outros[xiii].” (grifo nosso)
O Princípio da Monogamia, portanto, remanesce como princípio informador e ordenador do Direito de Família, eis que fundamenta as relações afetivas legais e legítimas, além de orientar os direitos e deveres advindos destas relações, moldando o que seja uma família.
Nesse sentido, as relações reconhecidas como capazes de formar uma entidade familiar, nos termos do artigo 226 da CF[xiv], são o casamento, a união estável e a relação entre qualquer dos pais e seus descendentes.
3. DA UNIÃO ESTÁVEL X RELAÇÃO ADULTERINA
A presente discussão se baseia na entidade familiar formada pela união estável, pois, como alhures referido, as relações adulterinas têm sido identificadas com uniões estáveis para fins de receberem a mesma proteção legal.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a reconhecer a união estável como relação capaz de formar uma família (art. 226, §3.º), retirando a exclusividade do casamento civil.
Este reconhecimento, no entanto, se faz acompanhar de requisitos para identificação do que seja uma união estável.
A Lei n.º 9.278/1996 é a norma que regula o artigo 226, §3.º da Constituição Federal, conceituando e definindo a união estável.
Em seu artigo 1.º, reconhece como entidade familiar a união estável entre homem e mulher com convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida com objetivo de constituição de família.
A legislação que anteriormente regulava a matéria (Lei n.º 8.971/1994) exigia tempo mínimo de convivência (05 anos) e a existência de filhos como fatores determinantes da união estável. A omissão da “nova” lei sobre tempo mínimo, no entanto, não significa que o fator tempo tenha sido desprezado. A previsão de união duradoura pressupõe uma avaliação do tempo da convivência a fim de aferir a estabilidade da relação[xv].
O requisito da publicidade, ou notoriedade, como chama Rodrigo da Cunha Pereira, não significa ostentação da relação, e sim viver em posse do estado de casados, se não para todo o mundo, ao menos para um pequeno círculo[xvi].
Por contínua não se deve imaginar uma relação sem brigas ou separações. Desde que estas separações ocorram em períodos breves, que não retirem a união a sua estabilidade, pode-se configurar a união estável mesmo face a curtos períodos de interrupção da convivência[xvii].
Simone Orodeschi Ivanov vai além da letra fria da lei e reúne os seguintes requisitos cumulativos para caracterização da união estável: convivência; ausência de formalismo; diversidade de sexos; unicidade de vínculo; estabilidade: duração; continuidade; publicidade; objetivo de constituição de família e inexistência de impedimentos matrimoniais[xviii].
Especificamente sobre o requisito da inexistência de impedimentos matrimoniais (arts. 1.521 e 1.522 do Código Civil), tal previsão é relevante porque a Constituição Federal, ao elevar a união estável a entidade familiar, determinou a facilitação da sua conversão em casamento (art. 226, §3.º)[xix], permitindo aferir uma sutil preferência ao casamento civil como modelo de constituição de família.
Desta forma, reconhecer a existência de uma união estável em que o casal (ou um dos conviventes) esteja impedido de contrair casamento, por um dos impedimentos previstos no artigo 1.521 do C.C., é de certa forma inconstitucional, pois contraria a intenção da Constituição Federal de que as uniões estáveis possam ser facilmente convertidas em casamento.
Por conseguinte, são ilegais as relações constituídas entre (art. 1.521, CC):
“I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte”.
Fabrício Zampogna Matielo ressalta que:
“A finalidade primacial das construções jurídicas destinadas a tutelar a união estável é a de que os consortes, ao par da manutenção de relacionamento duradouro e da constituição de família bem organizada, possam decidir pela celebração do casamento civil, selando o compromisso moral mantido até então e passando a regular totalmente a situação através da incidência normativa correspondente[xx]”.
Se um dos companheiros, na verdade, já é casado com terceira pessoa, não há que se falar em união estável, e sim em relação adulterina. Da mesma forma, se um dos companheiros, já em união estável com seu consorte, contrai nova relação com terceiro, esta nova relação não se constitui outra união estável, e sim relação adulterina.
Camilla Fittipaldi Duarte Jales, repetindo a lição de Garcia e Rodrigo Pereira da Cunha, ressalta que houve um tempo em que se justificava a proteção das relações adulterinas uma vez que o casamento não podia ser dissolvido[xxi].
Nos tempos atuais, porém, em que o divórcio já é amplamente permitido, não mais procede, sob nenhum prisma, a proteção destas relações clandestinas:
“(…) pois além da sociedade encontrar-se muito mais tolerante, a Constituição de 1988 consagrou enorme abertura à separação e ao divórcio, não se justificando qualquer tutela jurídica a relacionamentos clandestinos. Entende o autor que tudo é uma questão de liberdade e autodeterminação, de maneira que se o indivíduo escolheu contrair casamento, e ao mesmo tempo mantém relacionamento de fato com outrem, não seria legítima a intenção de que se extraíssem efeitos jurídicos desta relação, sobretudo em detrimento do cônjuge, quase sempre ignorante quanto à existência do concubinato adulterino[xxii]”.
Havendo a construção de patrimônio em comum entre o companheiro ou (cônjuge) com o terceiro na relação adulterina, não serão utilizadas as regras e princípios do Direito de Família, eis que não se trata de entidade familiar, e sim do Direito das Obrigações, por ser entendida a relação adulterina como uma sociedade de fato.
Desta forma, serão partilhados os bens adquiridos por esforço comum entre o casal adúltero, e ressalto que não deve ser utilizada a criação jurisprudencial da “indenização por serviços prestados”.
Tal indenização foi criada para assegurar proteção à companheira que, após vários anos de trabalho doméstico para o companheiro (possuindo ambos vínculo exclusivo), era abandonada pelo consorte, que havia construído patrimônio em comum mas com todos os bens em seu nome.
Assim, os Tribunais de todo o país condenavam o companheiro separado a pagar indenização pelos serviços prestados pela ex-companheira, pois o seu trabalho no lar havia permitido ao companheiro o sossego e a concentração necessários ao sucesso no trabalho externo.
No caso das relações adulterinas (concubinato), não há que se falar em indenização por serviços prestados se o adúltero já possui uma esposa / companheira exercendo os mesmos serviços. Da mesma forma, não há se falar, em caso de morte, na repartição da pensão previdenciária para o concubino sobrevivente, pois isto representaria prejuízo e violação às entidades familiares constitucionais.
À guise de conclusão, como se percebe, a matéria é por demais delicada e polêmica, merecendo estudos e discussões mais aprofundadas, a partir de uma visão sistemática dos dispositivos constitucionais, infra-constitucionais e dos princípios que informam e ordenam o sistema jurídico familiar brasileiro, a fim de verificar se, de fato, a relação afetiva sub examine merece ser acolhida como entidade familiar passível de produção de plenos efeitos jurídicos.
Informações Sobre o Autor
Bruna Barbieri Waquim
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão