Governança pública e parcerias do Eestado: a relevância dos acordos administrativos para a nova gestão pública

Sumário: I. O Estado Mediador. II Governança Pública. III. Governança Pública e Administração Pública Consensual. IV. Administração Pública Consensual: contratualização da ação pública, acordos e parcerias. V. Considerações Finais


I. O ESTADO MEDIADOR[1]


Como ponto de partida para a reflexão que ora se pretende realizar, importa colocar em relevo o pensamento de BOBBIO, expressado em 1985, para quem “o Estado de hoje está muito mais propenso a exercer uma função de mediador e de garante, mais do que a de detentor do poder de império”.[2]


Tarefas do Estado mediador passam a ser, não somente as de estabelecer e de conferir eficácia aos canais de participação e de interlocução com os indivíduos e grupos sociais, mas a de com eles constantemente interagir, instituindo e mantendo vínculos robustos e duradouros. Tais vínculos são tidos hodiernamente como indispensáveis para a atribuição de eficácia e de efetividade às ações estatais, as quais vêm sendo amplamente desenvolvidas em espaços de forte interseção entre Estado e sociedade civil, esferas em processo contínuo de recíproca interpenetração.


Ademais disso, cabe notar que a principal tarefa da Administração mediadora passa a ser a de compor conflitos envolvendo interesses estatais e interesses privados, definitivamente incluindo os cidadãos no processo de determinação do interesse público, o qual deixa de ser visto como um monopólio estatal, com participação exclusiva de autoridades, órgãos e entidades públicos, e passa a ser compreendido como resultado de processos de harmonização e de ponderação de diversos interesses públicos, interesses privados e interesses das organizações da sociedade civil.


II. GOVERNANÇA PÚBLICA


É nesse contexto que surge uma nova e importante noção para a gestão pública brasileira: a Governança Pública.


Embora trate-se de expressão com diferentes significados, a Governança Pública pode ser fundamentalmente entendida como um modelo alternativo a estruturas governamentais hierarquizadas, implicando que os Governos sejam muito mais eficazes em um marco de economia globalizada, não somente atuando com capacidade máxima de gestão, mas também garantindo e respeitando as normas e valores próprios de uma sociedade democrática.


As origens da Governança Pública datam de meados da década de 90 do séc. XX, e traduzem um consenso de que a eficácia e a legitimidade da atuação pública se apóiam na qualidade da interação entre os distintos níveis de Governo, e entre estes e as organizações empresariais e da sociedade civil.


Condensando os principais aspectos da Governança Pública, a Comissão da União Européia editou em 2001 o Livro Branco da Governança, sinalizando que governança designa o conjunto de regras, processos e práticas que dizem respeito à qualidade do exercício do poder em nível europeu, essencialmente no que se refere a sua responsabilidade, transparência, coerência, eficiência e eficácia. Por isso, concorda-se com o português CANOTILHO, para quem a expressão Good Governance, de origem anglo-saxônica, teria como significado atual “a condução responsável dos assuntos do Estado”.


As práticas de governança são extremamente salutares e bem-vindas em nosso país, porque calcadas em elevados padrões éticos e voltadas à promoção da transparência das ações dos Governos. Ademais disso, revelam-se poderosos instrumentos para atingir a estabilidade das instituições políticas e sociais por meio do fortalecimento do Estado de Direito e da sociedade civil, por intermédio da adoção e da propagação de um pluralismo de dimensões múltiplas, em todas as áreas da atuação do Estado.


Evidente que a crescente solidificação da Governança Pública tende a provocar mudanças significativas na organização, na gestão e na atuação da Administração Pública brasileira.


Indubitavelmente, é a Administração Consensual que mais perfeitamente harmoniza-se com os novos desafios com que se deparam os órgãos e entidades administrativas no séc. XXI, razão pela qual seus fundamentos serão apresentados a seguir.


III. GOVERNANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL


Um tema recorrente, inserido nos movimentos reformadores e modernizadores do Estado, é o emprego em larga escala de métodos e técnicas negociais ou contratualizadas no campo das atividades perpetradas pelos órgãos e entidades públicas. Tais atividades podem envolver unicamente a participação de órgãos e entidades públicas, como também contemplar a sua interação com organizações de finalidade lucrativa (setor privado) ou desprovidas de finalidade lucrativa (Terceiro Setor).


Insta afirmar que vem ganhando prestígio mundial a discussão acerca de uma cultura do diálogo, em que o Estado há de conformar suas ações em face das emanações da diversidade social.[3] Alude-se à figura de um Estado “que conduz sua ação pública segundo outros princípios, favorecendo o diálogo da sociedade consigo mesma”.[4]


Nesse cenário, aponta-se para o surgimento de uma Administração pública dialógica, a qual contrastaria com a Administração pública monológica, refratária à instituição e ao desenvolvimento de processos comunicacionais com a sociedade.


Jean-Pierre GAUDIN refere-se a expansão de uma política de contratualização, a qual ensejaria a contratualização da ação pública. Esclarecendo que na França contratualização e descentralização são fenômenos imbricados, afirma que nesse país a difusão de métodos contratuais operou-se em um enfoque de dupla renovação: (i) formas de participação e consulta pública e (ii) formas de coordenação entre instituições e atores sociais que participam da ação pública.[5]


Daí a expressão governar por contrato, a qual evocaria a necessidade do Estado continuamente estabelecer vínculos com a sociedade, como meio para a melhor consecução de suas ações.


Convém ressaltar que vínculos são criados mediante um prévio e necessário processo de negociação, em que são discutidas as bases sobre as quais eventualmente serão firmados acordos e contratos. O conteúdo desses ajustes será o objeto do entendimento, do possível consenso entre as partes; será o resultado das concessões e dos intercâmbios realizados no transcurso do processo de negociação que antecedeu ao compromisso. Por isso, convém ressaltar que as posturas assumidas pelo Estado mediador são distintas das posições tradicionalmente ostentadas pelo Estado impositor, cuja nota característica encontra-se justamente no poder de impor obrigações, exercido em razão do atributo da autoridade, imanente ao poder político ou estatal.


O ponto em destaque diz respeito à extensão e à intensidade com que técnicas consensuais vêm sendo empregadas, como soluções preferenciais – e não unicamente alternativas – à utilização de métodos estatais que veiculem unilateral e impositivamente comandos para os cidadãos, empresas e organizações da sociedade civil. Por isso, uma das linhas de transformação do direito administrativo consiste em evidenciar que, no âmbito estatal, em campos habitualmente ocupados pela imperatividade há a abertura de consideráveis espaços para  a consensualidade.


Aplicada ao terreno da Administração pública, essa orientação gerou expressões como Administrar por contrato, Administrar por acordos, Administração paritária Administração dialógica, e mais recentemente, Administração consensual. Cumpre notar que tal diversidade terminológica acaba tendo efeitos positivos, principalmente porque evoca o fato de que administrar por meio de métodos ou instrumentos consensuais não significa, necessariamente, lançar mão da figura clássica do contrato administrativo.


O sentido das expressões elencadas sinalizam um novo caminho, no qual a Administração pública passa a valorizar (e por vezes privilegiar) uma forma de gestão cujas referências são o acordo, a negociação, a coordenação, a cooperação, a colaboração, a conciliação, a transação. Isso em setores e atividades preferencial ou exclusivamente reservados ao tradicional modo de administrar: a administração por via impositiva ou autoritária. 


Configurada a Administração Consensual e apresentados os seus fundamentos dogmáticos, abaixo serão expostas algumas de suas formas de expressão e de seus instrumentos de ação.


IV. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL: CONTRATUALIZAÇÃO DA AÇÃO PÚBLICA, ACORDOS E PARCERIAS


Entende-se como formas de expressão da Administração Consensual o modo de atuação dos órgãos e entidades administrativas a partir de bases e de procedimentos que privilegiam o emprego de técnicas, métodos e instrumentos negociais, visando atingir resultados que normalmente poderiam ser alcançados por meio da ação impositiva e unilateral da Administração Pública.


A contratualização administrativa, enquanto forma de expressão da Administração Consensual, retrata a substituição das relações administrativas baseadas na unilateralidade, na imposição e na subordinação por relações fundadas no diálogo, na negociação e na troca.  


É a expansão do consensualismo administrativo que confere novos usos à categoria jurídica contrato, no setor público. E em virtude da amplitude desse fenômeno, defende-se a existência de um módulo consensual da administração pública, o qual englobaria todos os ajustes – não somente o contrato administrativo – passíveis de serem empregados pela Administração Pública na consecução de suas atividades e atingimento de seus fins.


Jean-Pierre GAUDIN alude à idéia de parceria, por ele genericamente compreendida como ”convenções múltiplas que ligam os poderes públicos, o setor privado e, outras vezes, o que denomina-se associações da ‘sociedade civil’”.[6] Para Jacques CHEVALLIER “o termo ‘contrato’ não remete a uma realidade jurídica precisa, e sim evoca um novo estilo de gestão pública, baseado na negociação e não mais na autoridade”. Por isso, o autor enfatiza ser preferível falar não propriamente em contrato, mas de um “movimento de ‘contratualização’”,[7] o qual é “indissociável de um conjunto de mutações mais globais que afetam as formas tradicionais de exercício da autoridade nas organizações sociais de toda a natureza”.[8]


Jean-Pierre GAUDIN apresenta três critérios formais para identificar o que denomina contratos de ação pública. O primeiro critério seria a presença de um acordo negociado sobre os objetivos de uma ação pública. O segundo, um compromisso de desenvolvimento dessas ações a partir de um cronograma de realização inserido entre as realidades do orçamento e o horizonte do planejamento. O terceiro critério relaciona-se com a presença de contribuições recíprocas (v.g. financeiras, de gestão de pessoas, técnicas) das partes visando à realização dos objetivos acordados. Finalizando, aduz que todos esses critérios devem ser aferidos a partir de um “texto de compromisso assinado pelos diferentes participantes”.[9]  


Com efeito, o reconhecimento cumulativo dos critérios assinalados em técnicas, medidas ou experiências negociais permite demonstrar que estar-se-ia perante modelos correspondentes à nova contratualização administrativa, ou seja, de espécies do gênero módulo convencional da Administração pública. Eis a acepção do termo contrato quando o mesmo é empregado para retratar a base consensual dessas novas relações, as quais desenvolvem-se no cenário ora apresentado.


Insta assinalar que a aplicação dos possíveis novos empregos do contrato no âmbito administrativo, que no Brasil acabam sendo conhecidos pela expressão parcerias com o Estado, encontra-se ainda em fase de experimentação.


Como instrumentos de ação da Administração Consensual pretende-se referir aos institutos e mecanismos utilizados pelos órgãos e entidades administrativas para o desenvolvimento de suas atividades a partir de uma perspectiva que privilegia o emprego de técnicas e métodos negociais.


O acordo administrativo constitui, em suas mais variadas vertentes, o instrumento de ação da Administração Consensual, razão pela qual esta também pode ser denominada como Administração por acordos.[10]


Acordo, portanto, é uma noção mais ampla se comparada à de contrato; acordo é gênero, do qual contrato é espécie.


Arrematando, Ernesto Sticchi DAMIANI propõe um quadro sistemático do qual faria parte (i) a noção lógica de acordo, entendida como “expressão do consenso de vários sujeitos em torno de um determinado objeto”,[11] (ii) a noção lógico-jurídica de acordo, por meio da qual “ao consenso formado uma norma jurídica reconhece efeito vinculante”,[12] (iii) a noção de contrato, compreendido como “acordo cujo objeto são relações patrimoniais”,[13] e finalmente (iv) a noção de acordo administrativo, “ato bilateral por meio do qual a Administração pública atua, exercendo poderes não negociais, tendo por objeto relações de direito público”.[14]


Na há uma regra geral no direito brasileiro determinante da competência dos órgãos e entidades administrativas para a realização de acordos administrativos. Entretanto, é possível elencar, entre diversas autorizações legais, (i) o art. 10 do Decreto-lei n. 3.365/41, segundo o qual “a desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente …”; (ii) o compromisso de ajustamento de conduta, previsto no § 6° do art. 5° da Lei federal n. 7.347/85 (Ação Civil Pública); (iii) os acordos no âmbito da execução dos contratos administrativos, nos termos da Lei federal n. 8.666/93, 8.987/95, 11.079/04 e 11.107/05; (iv) o compromisso de cessação de prática sob investigação, nos processos em trâmite na órbita do CADE (art. 53 da Lei federal n. 8.884/ 94), e (v) o contrato de gestão, previsto no § 8º do art. 37 da Constituição de 1988 (preceito inserido com a EC n. 19/98).


V. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Nas últimas três décadas, os movimentos transformadores do Estado contemporâneo visaram não somente à reavaliação dos fins do Estado, mas também ao reexame das funções típicas do modelo estatal providencialista e da forma como tais funções eram comumente desempenhadas.


Com a ascensão de fenômenos como a Governança Pública, emerge uma nova forma de administrar, cujas referências são o diálogo, a negociação, o acordo, a coordenação, a descentralização, a cooperação e a colaboração. Assim, o processo de determinação do interesse público passa a ser desenvolvido a partir de uma perspectiva consensual e dialógica, a qual contrasta com a dominante perspectiva imperativa e  monológica, avessa à utilização de mecanismos comunicacionais internos e externos à organização administrativa


Trata-se da Administração Consensual, a qual marca a evolução de um modelo centrado no ato administrativo (unilateralidade) para um modelo que passa a contemplar os acordos administrativos (bilateralidade e multilateralidade). Sua disseminação tem por fim nortear a transição de um modelo de gestão pública fechado e autoritário para um modelo aberto e democrático, habilitando o Estado contemporâneo a bem desempenhar suas tarefas e atingir os seus objetivos, preferencialmente, de modo compartilhado com os cidadãos.


As parcerias firmadas pelo Estado retratam essa nova realidade, e sua compreensão e finalidades não podem ser apreendidas a partir das tradicionais concepções de formalização dos contratos administrativos, pois estamos diante de uma nova forma de administrar, moldada a partir da Governança Pública e da Administração Pública Consensual.   


 


Notas:

[1] Texto-base para a palestra proferida no Fórum de Estudos de Governança Social, promonvido pelo Instituto de Governança Social-IGS, em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 06.10.08.

[2] BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 26.

[3] BELLOUBET-FRIER, Nicole; TIMSIT, Gérard. L’administration en chantiers. Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et a l‘étranger, Paris, n. 2, p. 299-324, avr. 1994. p. 303.

[4] Ibid., p. 314.

[5] GAUDIN, Jean-Pierre. Gouverner par contrat: l’action publique en question. Paris: Presses de Sciences Politiques, 1999. p. 28-29.

[6] GAUDIN, Jean-Pierre. Gouverner par contrat, 1999. p. 14.

[7] CHEVALLIER, Jacques. Synthèse. In: FORTIN, Yvonne (Dir.) La contractualisation dans le secteur public des pays industrialisés depuis 1980, 1999. p. 403.

[8] Ibid., p. 404.

[9] GAUDIN, Jean-Pierre. Gouverner par contrat, 1999. p. 28.

[10] Para aprofundar as temáticas da contratualização administrativa e da teoria geral dos acordos administrativos no direito brasileiro, cf. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão. São Paulo: RT, 2008.

[11] DAMIANI, Ernesto Sticchi. Attività amministrativa consensuale e accordi di programma. Milano: Giuffrè, 1992. p. 124.

[12] Id.

[13] Id.

[14] Id.


Informações Sobre o Autor

Gustavo Justino de Oliveira

Pós-Doutor em Direito Administrativo – Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Administrativo pela USP. Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP. Advogado. Autor dos livros Terceiro Setor, Empresas e Estado (Ed. Forum, 2007); Consórcios públicos (Ed. Revista dos Tribunais); Direito do Terceiro Setor (Ed. Forum, 2008) e Contrato de gestão (Ed. Revista dos Tribunais, 2008).


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