Resumo: O artigo discute a crise política e diplomática entre o Equador e o Brasil, desencadeada em razão da decisão do governo do Equador de suspender o pagamento da dívida com o BNDES.
No dia 20 de novembro de 2008, o governo do Equador anunciou que pediu a abertura de arbitragem internacional questionando a legalidade da dívida contraída junto ao banco estatal brasileiro, o BNDES, por meio do grupo Odebrecht, para a construção da usina hidrelétrica San Francisco.[1] Enquanto o governo do Equador insiste que o problema em torno das acusações de fraude contra a construtora brasileira é um assunto entre o Estado do Equador e uma empresa privada[2], o governo Brasileiro convocou o Embaixador do Brasil no Equador, Antonino Marques Porto e Santos para consultas.[3] O Presidente do Equador, Rafael Corrêa afirma que a divida é ilegal, ilegítima e corrupta[4], e portanto não será paga. Todavia, segundo o BNDES, o não pagamento implica em inadimplência do banco central devedor com os demais bancos centrais signatários do Convenio de Pagamentos e Créditos Recíprocos, o CCR, realizado com a finalidade de estimular a integração entre os países membros. Portanto, a controvérsia envolve tanto aspectos concernentes ao Direito Internacional Privado quanto ao Direito Internacional Público.
O contrato entre a construtora brasileira Odebrecht e o governo do Equador deve ser interpretado, não apenas de acordo com as regras referentes à arbitragem internacional, mas também dentro do contexto da integração regional Latino-Americana. O presente artigo aborda algumas questões jurídicas concernentes à crise entre o governo do Equador, a construtora brasileira Odebrecht, o BNDES e o governo Brasileiro. Trata-se de relação jurídica complexa, envolvendo tanto atores estatais quanto privados, devendo ser interpretada a luz de princípios derivados do Direito Privado Internacional e do Direito da Integração Econômica. O primeiro eminentemente privado e o segundo eminentemente público.
No que se refere especificamente as normas relativas ao contrato de financiamento da obra de construção da hidrelétrica San Francisco, pelo BNDES, há que se levar em consideração o contexto em que tal contrato foi celebrado. Não se trata de contrato padrão para construção de uma obra pública de infra-estrutura, mas de contrato internacional celebrado no contexto da integração regional latino-americana e avalizado pelos Estados participantes do CCR.[5] Levando-se em conta as peculiaridades do litígio envolvendo a construtora Odebrecht e o governo do Equador, o presente artigo propõe esclarecer aspectos jurídicos relativos a disputa. Estas são algumas perguntas endereçadas pelo artigo: Por que a Arbitragem Internacional não oferece soluções para crise entre Governo do Equador e a construtora Odebrecht? E por que a crise entre um governo e uma empresa privada se tornou inevitavelmente uma crise política e diplomática?
I. Da coexistência de normas e princípios de Direito Internacional Publico e Privado
O contrato de financiamento firmado entre o BNDES e a Hidropastaza S.A.[6], a concessionária da Central hidrelétrica San Francisco, visando a exportação de bens e serviços brasileiros destinados ao projeto de implantação da hidrelétrica San Francisco foi assinado em abril de 2000.[7] Tal operação comercial foi realizada no âmbito do Convenio de Pagamento de Créditos Recíprocos da Associação Latino-Americana de Integração (CCR/ALADI). Trata-se de convênio internacional celebrado no âmbito da ALADI e da Corporação Andina de Fomento (CAF), com a finalidade de estimular a integração regional entre os Estados membros. O Brasil mantém papel de liderança neste processo, que tem por base normativa o parágrafo único do artigo 4 da CF/88: ‘A Republica Federativa do Brasil buscara integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.’[8] Neste sentido, as normas referentes política de credito direcionado, com juros subsidiados e garantias de credito da CCR, para a construção de obras de infra-estrutura em Estados membros, tais como hidrelétricas, devem ser interpretadas no contexto da integração regional.
A decisão do governo do Equador de interpor medida cautelar para suspender o contrato de financiamento da divida contraída pelo mesmo para a construção da hidrelétrica San Francisco, alegando fraude e irregularidades na execução da obra pela construtora Odebrecht. Ainda que tal decisão seja valida do ponto de vista jurídico, e ainda que a medida cautelar seja favorável aos argumentos defendidos pelo governo do Equador, tal medida repercute diretamente no projeto de integração regional latino-americano, e mais especificamente, ameaça a continuidade das relações comerciais entre Brasil e Equador.
II. Contexto, Fatos e Normas referentes ao Contrato de Financiamento da Hidrelétrica San Francisco
A dimensão da atual crise se torna ainda mais evidente quando analisamos a intensa relação comercial entre o governo do Equador e o BNDES. O pais é o segundo maior destino das exportações de bens e serviços financiados pelo BNDES. Entre 1997 e 2008 totalizaram US$ 693 milhões referentes a exportações para Quito, representando nada menos de 21% de todo o dinheiro liberado para o continente sul-americano.[9] Alem disso, as exportações de bens e serviços brasileiros, inclui não apenas serviços de infra-estrutura na área de engenharia, destinados a projetos como rodovias, hidrelétricas e irrigação, mas também ampla diversidade de itens exportados inclusive equipamentos agrícolas, aviões, dentre vários outros.
O contrato, objeto da atual crise diplomática entre os países, assinado em abril de 2000, refere-se a financiamento firmado entre o BNDES e a Hidropastaza S.A, no valor de US$ 242,9, objetivando à exportação de bens e serviços brasileiros destinados a obra de implantação da Hidrelétrica de San Francisco. Para tanto, o procedimento para aprovação do referido contrato de financiamento substanciou-se tanto em regras de direito comercial internacional, bem como regras de direito internacional público. Isto é, por se tratar de contrato de empréstimo entre um banco estatal e avalizado pelo banco central, de acordo com as regras do CCR, ha. regras mais rigorosas. No caso concreto, de acordo com o informe do BNDES, parte integrante do contrato: “A legalidade e exigibilidade das condições contratuais foram atestadas em pareceres favoráveis da Procuradoria Geral da Republica do Equador, tendo a divida sido aprovada pelo Congresso Nacional equatoriano. Em razão do curso no CCR, que confere a dívida um caráter irrevogável e irretratável, foram emitidas, ainda, autorizações do Banco Central da Republica do Equador quanto ao pagamento das obrigações resultantes do contrato de financiamento.”[10]
Todavia, isto não significa que o governo do Equador não esteja autorizado a recorrer à arbitragem internacional em caso de litígio. A possibilidade de levar a ação a CCI, praticada em função de regime contratualmente estabelecido, está vinculada a prática do comercio internacional. A arbitragem é instância jurisdicional para dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado ou direito publico, com procedimentos próprios, geralmente mais flexíveis e voltados para o objeto do contrato. Neste sentido, Irineu Strenger comenta a importância da arbitragem para contratos de comércio internacional: “Inegavelmente, a arbitragem é um dos fenômenos mais atuantes no mundo contemporâneo, e não são poucas as incursões doutrinarias e legais nesse campo de alta fertilidade, sem previsão de esgotamento, em face das exigências da vida cotidiana e, especialmente, do processo intensamente desenvolvimentista do comercio internacional”[11]
A arbitragem internacional, entretanto, no caso especifico do litígio entre o governo do Equador e a construtora Odebrecht, ameaça não apenas a relação comercial entre uma pessoa de direito publico e uma pessoa de direito publico, mas também afronta a base normativa de tal contrato, firmado no contexto do CCR e da integração regional latino-americana.
III. Impactos para a Integração Regional Latino Americana
A decisão de suspensão de pagamento, por parte do governo de Rafael Corrêa, demonstra diante do exposto, verdadeira imaturidade em lidar com questão de tamanha importância. Tal como exposto anteriormente, os financiamentos oferecidos pelo BNDES são responsáveis por grande parte dos projetos de investimentos de infra-estrutura na região da América Latina, inclusive no Equador. Os projetos de infra-estrutura financiados no âmbito do CCR pelo BNDES têm por finalidade proporcionar uma diminuição nas desigualdades da região, na medida em que viabiliza o projeto de integração econômica latino-americana. Neste sentido, é possível que a crise entre o governo do Equador e a construtora Odebrecht influencie o rumo das relações comerciais entre estas duas partes do contrato[12], bem como entre outras partes afetadas, tais como o BNDES, o governo do Brasil, e os bancos centrais conveniados no CCR, incluindo os paises membros do Mercosul e da ALADI.
Em termos diplomáticos, as medida tomadas pelo governo do Equador contra a presença da construtora Odebrecht no pais, causaram serias preocupacoes para o governo brasileiro. Em outubro, o Presidente Rafael Corrêa assinou um decreto retirando o visto de funcionários da construtora Odebrecht e revogou o visto de cinco funcionários da empresa brasileira Companhia Furnas Centrais Elétricas.[13] Na pratica, tal medida significa a expulsão dos funcionários de duas empresas brasileiras. Não obstante tais medidas hostis, o Presidente do Equador também se referiu a divida referente ao contrato de financiamento da hidrelétrica San Francisco, como divida ‘corrupta, ilegal e ilegítima’. Em razão desta sucessão de eventos, por fim, o governo brasileiro decidiu convocar para consultas o Embaixador brasileiro no Equador. O Ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, justificou a medida de convocar para retornar ao Brasil o seu embaixador, como medida de necessidade para preservar os interesses comerciais e políticos do Brasil. De acordo com o ministro brasileiro “Nós lamentamos. Nós não fazemos isso de coração leve, com prazer ou satisfação. O Brasil tem um grande empenho na integração sul-americana, um grande empenho em ajudar os países mais vulneráveis da região, claro que também sempre respeitados os nossos interesses. Agora, para que isso ocorra, certas condições também têm que estar presentes. Isso nós quisemos significar com esse chamado a serviço [do embaixador]”[14]
O Senado brasileiro apoiou oficialmente a decisão do Presidente Lula e do Ministério das Relações Exteriores, de convocar o embaixador do Brasil no Equador. Não obstante, para o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Heráclito Fortes, defendeu que o Brasil tome medidas mais drásticas. Neste sentido, o Senador Fortes afirmou que “O Brasil não pode ficar silencioso. O brio brasileiro esta ferido.”[15]
A crise entre o governo do Equador e a construtora Odebrecht, inevitavelmente tornou-se uma crise bilateral entre dois Estados. De acordo, os interesses comerciais e políticos do Brasil foram afetados de maneira negativa. Mas não apenas os interesses do Brasil encontram-se ameaçados, mas também de paises que aspiram à integração econômica, social e cultural latino-americana. O contrato de financiamento da hidrelétrica San Francisco deve ser interpretado no contexto da integração econômica latino-americana, e o não-reconhecimento do governo do Equador do contexto e função primordial do contrato comercial firmado entre o Brasil e o Equador no âmbito do CCR, significa uma agressão não apenas contra o Brasil, mas também contra outros Estados conveniados.
IV Conclusões
Notas:
Informações Sobre os Autores
Tatiana Waisberg
Professora de Direito Internacional na Escola Superior Dom Helder Câmara. Bacharel e Mestre em Direito pela PUC-MG, LLM com tese pela Faculdade de Direito Buchman da Universidade de Tel Aviv. Pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Direito Zvi Meitar (Fellowship, 2005-8). Advogada e Consultora Jurídica em Belo Horizonte.
Marcelo Marques Antunes Ribeiro
Advogado, Mestre em Direito Privado, PUC/MG