Resumo: O
presente artigo tem como objetivo traçar uma discussão teórica sobre a
categoria cidadania como subsídio para o entendimento mais apropriado desta
expressão que tem sido usada nas mais diversas áreas de conhecimento,
especialmente nas Ciências Sociais Aplicadas. Para a materialização deste
objetivo realizamos uma pesquisa bibliográfica em fontes referenciais sobre o
tema como Marshall (1967), Santos
(1997, 2003), Corrêa (2002) e Herkenhoff (2001), que propõem, de forma
complementar, a definição de cidadania enquanto relações entre os indivíduos de
uma sociedade, e entre indivíduos e Estado, com caráter de inclusão social.
Palavras-chave: cidadania, direitos,
fundamentos.
Introdução:
Refletir sobre a categoria cidadania, na
sociedade contemporânea, especialmente a brasileira, estabelecida por um
processo de desigualdade social que gera a exclusão dos indivíduos, traz uma
inquietação no que diz respeito ao seu significado.
O século XX, marcado pela experiência de duas
guerras mundiais, além da articulação de uma nova ordem mundial, baseada no
aumento de desigualdades econômicas e sociais, bem como também na teoria
liberal do Estado, novas questões devem trazidas para a concepção do termo
cidadania, passando de uma visão formal, onde cidadania significa “a condição
de membro de um Estado-nação” (LESSA, 1996, p. 73) a conceituação chega à noção
da cidadania substantiva, “definida como a posse de um corpo de civis,
políticos e especialmente sociais” (LESSA, 1996, p. 73).
Os objetivos traçados para a pesquisa, de forma geral, implicam na
análise teórica da categoria cidadania, pretendendo sistematizar o entendimento
sobre o significado desta categoria na sociedade contemporânea, como forma de
fazer prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de
todos em direitos e deveres, demonstrando que a dinâmica das relações humanas
impõe um repensar do significado de cidadania.
Para a realização desta pesquisa, na perspectiva teórica, foram
analisados autores envolvidos com o tema, como: Marshall, Santos, Corrêa e Herkenhoff[1],
sem prejuízo de outros já consultados, sistematizando o entendimento sobre o significado da categoria cidadania, os quais
demonstram que cidadania abrange dimensões que ultrapassam o conteúdo civil e
político de suas primeiras definições.
A questão da cidadania tem se destacado como um debate relevante para a
reflexão acadêmica, enquanto relação social colocada a serviço do
reconhecimento e da efetivação de direitos fundamentais, assim, este artigo
pretende contribuir para o debate sobre um dos grandes problemas de nosso
tempo, qual seja, a luta para a efetivação dos direitos garantidos pela
Constituição Federal. Espera-se que o
estudo possa contribuir como subsídio para possíveis pesquisas de caráter
quantitativo e qualitativo que abordem direta ou inderatemente o tema.
Cidadania: fundamentos históricos e conceptuais
Resgatando historicamente a categoria
cidadania temos que, na Grécia antiga (séculos VIII e VII a.C.) chega-se ao
conceito por exclusão, ou seja, o indivíduo é considerado cidadão desde que,
não seja: escravo, mulher, criança. Cidadania não era a relação de todos e sim
de poucos.
O status
de cidadania, inicialmente, era marcado pelos direitos civis, onde os
contratos conferiam liberdade ao indivíduo para possuir, mas não garantia a
efetividade da posse. Numa passagem Marshall (1967) coloca que o direito à
liberdade de palavra, por exemplo, não adianta se, devido à falta de educação o
indivíduo não tem nada a dizer, ou seja, apenas com a garantia ou prescrição do
direito, não se tem necessariamente a marca da cidadania nas relações sociais.
Numa sociedade Feudal a qualidade de cidadão
era marca do poder de participar de determinada comunidade quando o indivíduo
reunia direitos (civis, políticos), servindo então para distinguir classes na
medida de desigualdade, “não havia nenhum código uniforme de direitos e deveres
com os quais todos os homens – nobres e plebes, livres e servos – eram
investidos em virtude de sua participação na sociedade” (Marshall: 1967, p.64), ou seja, numa sociedade de classes
desiguais, não havia um princípio de igualdade de cidadãos, portanto, ocorria
um processo de desigualdade e de exclusão social, não se garantindo a todos a
cidadania.
Em seus estudos Marshall (1967, p. 63)
assinala o desenvolvimento do sentido da expressão de cidadania[2], até o
fim do século XIX, em três partes: civil, relacionados aos direitos necessários
à liberdade individual, ligados às questões de justiça, por isso afetos aos
tribunais de justiça; político, pertinente a participação do exercício do poder
político, afeto ao parlamento; e, social, no sentido do mínimo de bem estar
econômico e segurança do direito de participar, ligado aqui ao sistema
educacional e serviços sociais. Inicialmente esses três direitos (civil,
político e social) se confundiam porque as instituições não estavam definidas.
Nos fins do século XIX e
início do século XX há “um interesse crescente pela igualdade como um princípio
de justiça social e uma consciência do fato de que o reconhecimento formal de
uma capacidade igual no que diz respeito a direitos não era suficiente” (MARSHALL, 1967: p. 83), mas os
direitos sociais surgidos compreendiam um mínimo e ainda não faziam parte
integrante do conceito de cidadania.
Foi numa dinâmica de
avanços e recuos, que os elementos que compõem a cidadania, foram tomando
forma. Chegou um momento em que “os três elementos distanciaram-se uns dos
outros” (MARSHAL, 1967, p. 66)
tornando-se estranhos, a ponto de, segundo o autor, poder se estabelecer a
formação de cada um num século diferente: no século XVIII, os direitos civis,
que se estabeleceram de forma semelhante ao que existe atualmente, consistindo numa
aquisição de direitos; no século XIX, os direitos políticos, que se seguiram os direitos civis,
ampliando-os; e, finalmente os direitos sociais que somente no século XX,
atingiu o mesmo patamar dos demais direitos.
Marshall (1967, p. 62)
concebeu a cidadania como “modo de viver que brotasse de dentro de cada
indivíduo e não como algo imposto a ele de fora.”, consiste numa “igualdade
humana básica de participação.”
Neste
aspecto, Corrêa (2002, p. 212) propõe a noção moderna da cidadania “enquanto
igualdade humana básica de participação na sociedade, concretizada através da
aquisição de direitos.” Para
Herkenhoff (2001, p. 19), a “história universal da cidadania é a história da
caminhada dos seres humanos para afirmarem sua dignidade e os direitos
inerentes a toda pessoa humana”, assim, cidadania possui quatro dimensões que
podem resumir sua essência: a dimensão social e econômica, no que diz respeito
Às proteções ao trabalho, ao consumidor, assistência aos desamparados, face ao
projeto econômico neo-liberal instalado; a dimensão educacional, onde “ninguém
pode ser excluído dela, ninguém pode ficar de fora da escola e ao desabrigo das
demais instituições e instrumentos que devem promover a educação do povo”
(HERKENHOFF, 2001, p. 219) e; dimensão existencial, onde “a cidadania é
condição para que alguém possa, realmente, ser “uma pessoa” (HERKENHOFF, 2001,
p. 219.
Marshall (1967, p. 76) estabelece que “cidadania
é um status concedido àqueles membros integrais de uma comunidade”. Para Marshall (1967, p.62):
“[…] há uma espécie de
igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na
comunidade […] o qual não é inconsistente com as desigualdades que
diferenciam os vários níveis econômicos na sociedade. Em outras palavras, a
desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a
igualdade de cidadania seja reconhecida.“
Enquanto cidadania refere-se à relação estabelecida
entre os membros de uma sociedade, tornando-os igual em direitos e obrigações,
mesmo em suas formas iniciais, afirma Marshall (1967, p. 76) que cidadania é
“uma instituição em desenvolvimento” desde
a segunda metade do século XVII, e esse desenvolvimento coincide com o
desenvolvimento do sistema capitalista, que tem como pressuposto um sistema de
desigualdade, por isso, no século XX, cidadania e sistema de classe capitalista
são termos “em guerra”.
Cidadania para Correia (2002, p. 210) e
Herkenhoff (2001, p. 33) está estreitamente ligada à noção de direitos humanos[3], e é
na luta pela implementação de seus direitos que o homem se faz cidadão, no eixo
que estabelece a igualdade, o acesso a direitos, a participação no meio social.
A definição teórica dos autores tem
proximidade e se complementam, porém Santos (1997, p. 261) vai além de
Marshall, pois sustenta que nas lutas para a efetivação dos direitos, onde
Marshall (1967, p. 62) colocava cidadania-classe social, estão grupos sociais
que:
“…ora são maiores, ora são menores que classes, com contornos mais ou
menos definidos em vista de interesses coletivos por vezes muito localizados,
mas potencialmente universalizáveis. As formas de opressão e de exclusão contra
as quais lutam não podem, em geral, ser abolidas com a mera concessão de
direitos, como é típico da cidadania; exigem uma reconversão global dos
processos de socialização e de inculcação cultural e dos modelos de
desenvolvimento, ou exigem transformações concretas imediatas e locais (por
exemplo, o encerramento de uma central nuclear, a construção de uma creche ou
deu ma escola, a proibição de publicidade televisiva violenta), exigências que,
em ambos os casos, extravasam da mera concessão de direitos abstratos e
universais.“
As lutas que marcaram o
longo da história dos homens ocorreram, em síntese, para ver inscritos os mais
diversos direitos, com os mais diversos enfoques. No estudo de Hobsbawm (1995,
p. 551), o autor identifica que o século XX determinou a bipolaridade das
potências mundiais, e teve como resultado uma revolução social de âmbito global
que veio a determinar mudanças, quais sejam, as sociedades agrícolas foram
substituídas pelas sociedades industriais, conseqüência disto ocorre o
crescimento das cidades; o poder econômico da população aumentou e, o processo
de globalização num modelo do liberalismo econômico passa a mostrar cada
Estado, uma perspectiva global, ignorando suas fronteiras políticas.
Desta revolução social,
segue-se também uma revolução cultural, que mudou a vida do homem alterando os
inter-relacionamentos. Surge uma nova e jovem cultura internacional que teve
seu apogeu em 1968, e transformou-se na imagem de toda a revolução cultural do
século. (HOBSBAWM, 1995, p 416-418)
Da revolução cultural
resultante do século XX, nasce a necessidade da proclamação dos direitos
sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências, segundo Bobbio (2004, p. 52), “como os do bem-estar e da
igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado.”
Chega-se ao século XXI,
numa perspectiva para a diminuição do Estado, e, não obstante as garantias
conquistadas ao longo dos séculos, resta agora, a necessidade de luta para efetivação
destes direitos, para Bobbio (2004, p. 64):
“Não se pode por o problema dos direitos do homem abstraindo-se dos dois
grandes problemas de nosso tempo, que são os problemas da guerra e da miséria, do
absurdo contraste entre o excesso de potência criou as condições para uma
guerra exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas
humanas à fome.”
O debate atual remodela a
categoria cidadania, que, além de apontar a necessidade de efetivação dos
direitos inscritos também trava a luta para o respeito à identidade cultural.
Luta que deve ter vistas ao multiculturalismo emancipatório[4], à
justiça multicultural, aos direitos coletivos, às cidadanias plurais, no dizer
de Santos (2003, P. 25).
Defendendo a idéia de que
cidadania deve ocorrer no marco da emancipação e não da regulação (SANTOS,
1997, p. 240) evidencia que numa sociedade liberal está presente a tensão entre
a subjetividade[5]
individual dos agentes na sociedade civil e a subjetividade monumental do
Estado, onde, o mecanismo que vem a regular essa tensão é o princípio da
cidadania, de um lado, limitando as funções do Estado e por outro lado,
tornando universais e iguais as particularidades dos sujeitos, de forma a
realizar a regulação social.
A cidadania, resumida em direitos e deveres,
desenvolve a subjetividade, multiplicando as possibilidades de auto-realização,
porém, feitas através de direitos e deveres gerais e abstratos, tornam a
reduzir a:
“individualidade ao que
nela é universal, transforma os sujeitos em unidades iguais e intercambiáveis
no interior das administrações burocráticas públicas e privadas – receptáculos
de estratégias de produção, enquanto força de trabalho; de consumo, enquanto
consumidores; e de dominação, enquanto cidadãos da democracia de massas.”
Surge daí a tensão entre a igualdade da
cidadania (reguladora) e diferença da subjetividade, que no marco da regulação
liberal não percebe as diferenças da sociedade, seja no tocante a propriedade,
ou a raça ou ao sexo.
Consequentemente surge a necessidade
da cidadania emancipatória para reconhecer e respeitar as diferenças, as
múltiplas culturas, as várias expressões de uma sociedade, o que, para uma teoria
política liberal, ocorre a necessidade da redefinição de cidadania,
estabelecida com base em noções inclusivas, onde há o respeito às diferentes
concepções alternativas da dignidade da pessoa humana e o reconhecimento da
pluralidade de culturas.
Neste aspecto, SANTOS e
NUNES (2003, p. 27) destacam a diferença entre a cultura num enfoque universal
e a pluralidade de culturas. Sob o foco universal, a cultura seria, para os
Autores, “o repositório do que de melhor foi pensado e produzido pela
humanidade”, baseando-se em “critérios de valor estéticos, morais ou
cognitivos, que definindo-se a si próprios como universais, elidem a diferença
cultural ou a especificidade histórica dos objetos que classificam”. Em uma
concepção coexistente os autores citam o reconhecimento da “pluralidade de
culturas, definindo-as como totalidades complexas que se confundem com as
sociedades, permitindo caracterizar modos de vida baseados em condições
materiais e simbólicas”.
Para Santos (2003, p. 15)
é na possibilidade das lutas e das políticas ao reconhecimento do
multiculturalismo[6],
que será redesenhada a noção de cidadania emancipatória, e:
“A defesa da diferença cultural, da identidade coletiva, da autonomia ou
da autodeterminação podem, assim, assumir a forma de luta pela igualdade de
acesso a direitos e recursos, pelo reconhecimento e exercício efetivo de
direitos da cidadania ou pela exigência de justiça.” (SANTOS: 2003, p. 43)
Ou seja, para o autor
(SANTOS, 1997, p. 227-278) essa “nova cidadania” consubstancia-se tanto na
obrigação vertical entre os cidadãos e o Estado e também na obrigação política
horizontal entre cidadãos. E mais, a “nova cidadania” revaloriza os princípios
da comunidade, igualdade, solidariedade e autonomia e assim, entre o Estado e o
mercado, surge um campo que não é estatal nem mercantil, mas apto a lutar e
exigir do Estado as prestações sociais, reivindicando uma cidadania social, que
segue os caminhos da emancipação, campo este composto pelos movimentos sociais
e organizações sociais que compõem a esfera pública de interesses coletivos.
No Brasil, as lutas pela
cidadania política e social têm historicamente avanços e recuos importantes,
muitas lutas foram e ainda são empreendidas pelos diversos movimentos sociais
para uma conquista da democracia, que tenta a todo custo consolidar-se, porém,
ainda pode-se dizer que está numa fase embrionária, não obstante as importantes
conquistas ocorridas no processo de redemocratização e com a Constituição de
1988, contudo, em termos de garantias fundamentais falta muito para que as
práticas inscritas na Carta Magna tornem-se realidade na vida dos brasileiros.
Ensina Corrêa (2002, p.
22) que é importante ressaltar que não basta estudar o fenômeno jurídico, como
propunha Kelsen, acima da própria realidade, calcado em normas prescritivas, a
partir do dever-ser e sim, deve-se estudar o fenômeno jurídico a partir da
realidade social, através das relações de sujeitos sociais com interesses
distintos. Nesta perspectiva, principalmente o modelo da relação social e
econômica que determinada sociedade apresenta, levanta questionamentos a
respeito do contexto, e a partir de daí, a significação do tema cidadania para
esta sociedade, e, somente após, com a análise das políticas públicas
existentes, pode-se compreender o alcance que aquelas normas prescritivas
apresentam.
Cidadania
contextualizada, historicamente, “como um processo de inclusão social dentro de
específicos modos de produção da vida social” (CORRÊA, 2002, p. 33) mostra que
o Brasil ainda tem muito que evoluir para galgar um patamar de país democrático
em suas relações.
No contexto da produção
da vida social estão o Estado e a Sociedade civil como seus elementos
essenciais. A análise marxista clássica dos fundamentos materiais da sociedade
civil, conclui que a divisão em classes sociais é a contradição antagônica
fundamental que marca a esfera das relações econômicas,
“De um lado estão os
burgueses, detentores dos meios de produção (capital) e, do outro, os
proletários-trabalhadores, que possuem apenas sua capacidade de trabalho
(força-de-trabalho). Desse tipo de relações de produção Marx deduz a função e a
natureza específica do Estado no sistema capitalista: ao invés de representar a
encarnação formal do suposto interesse universal (nos moldes de Hegel), ele se
caracteriza como um organismo que garante a propriedade privada, assegurando e
reproduzindo a sociedade de classes pela repressão coativa dos conflitos oriundos
de tal antagonismo.” (CORRÊA: 2002, p. 127)
Em razão da divisão de
classes apontada por Marx, surge um desequilíbrio, assinala Santos (1997), no
pilar da regulação, em razão do desenvolvimento exagerado do princípio do
mercado em detrimento ao princípio do Estado, e de ambos em relação ao
princípio da comunidade, sendo acentuado esse desequilíbrio num Estado com
política liberal:
“Por esta razão, o contrato social assenta, não numa obrigação política
vertical do cidadão-Estado, como sucede no modelo liberal, mas antes numa
obrigação política horizontal cidadão-cidadão na base da qual é possível fundar
uma associação política participativa. E, para isso, a igualdade formal entre
os cidadãos não chega, é necessária a igualdade substantiva, o que implica uma
crítica da propriedade privada, como, de resto, Rousseau faz no seu Discurso sobre a Origem das Desigualdades.” (SANTOS,
1997, p.237)
Na concepção de Estado
proposta por Rousseau, “a vontade geral tem de ser construída com a
participação efetiva dos cidadãos, de modo autônomo e solidário, sem delegações
que retirem a transparência à relação entre “soberania” e “governo””. Numa
critica ao Estado burguês, Marx identifica-o a um Estado de classe,
particularista (SANTOS, 1997, p. 239), pois esse Estado, que deveria ser a
representação universal da vontade de todos acaba por defender interesses de
determinada classe:
“Sendo o Estado,
portanto, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer
seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época,
conclui-se que todas as instituições comuns passam pela mediação do Estado
[…] Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade, e, mais ainda, em uma
vontade livre, destacada da sua base concreta. Da mesma maneira, o direito por
sua vez, reduz-se à lei.” (MARX: 2002, p. 74)
Da divisão de interesses que norteia o Estado
surge a contradição do privado X público, e estabelece o questionamento de
Corrêa (2002, p. 127): “como conciliar um mundo movido por interesses particulares
e interesseiros com o mundo da esfera pública na qual deve prevalecer a vontade
ou o interesse geral?”
O modelo de relação social, enquanto exercício
de cidadania, e econômica em que o “ser” cidadão está inserido necessita ser
questionado, porque cidadania não se efetiva somente com normas prescritivas e
sim através das relações que permitem o exercício da igualdade proposto pela
norma.
Uma visão clássica de cidadania muitas vezes
ainda não passa do direito de votar (de forma obrigatória), de pagar imposto,
de respeitar a lei, enfim, sempre práticas impostas. Ainda existem muitas
barreiras culturais para que o país possa dizer-se plenamente imbuído na
efetivação das questões da cidadania, por que:
“Construir cidadania é também construir novas relações e consciências. A
cidadania é algo que não se aprende com os livros, mas com a convivência, na
vida social e pública. É no convívio do dia-a-dia que exercitamos a nossa
cidadania, através das relações que estabelecemos com os outros, com a coisa pública
e o próprio meio ambiente. A cidadania deve ser perpassada por temáticas como a
solidariedade, a democracia, os direitos humanos, a ecologia, a ética.”[7]
Herkenhoff (2001: p 36) e Corrêa (2002, p. 211)
apontam que a concepção moderna de cidadania está vinculada à noção de direitos
humanos, e assim fala-se em “direitos de
cidadania”, e, num Estado Democrático de Direito deve predominar o
interesse em concretizar os direitos humanos, cujo discurso “…surge
estreitamente ligado aos problemas da democracia e da paz” (CORRÊA, 2002, p.
160):
“Direitos do homem,
democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico:
sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia, sem
democracia não existem condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.”
(Bobbio: 1992, p. 1)
Aqui reside outra questão que influência na
modelação da cidadania, enquanto analisada no âmbito internacional; conforme
Herkenhoff (2001, p.36), alguns países do Primeiro Mundo concebem a “idéia de
Direitos Humanos apenas para consumo interno”, ou seja, internamente os
Direitos Humanos são reconhecidos, protegidos e respeitados; externamente, nas
relações com países dependentes, o reconhecimento, a proteção e o respeito é
para os interesses econômicos e militares, que podem perfeitamente justificar
violações de direitos humanos, ocorrendo neste caso uma contradição.
O que se entende por direitos humanos também
merece revisão que saia do eixo ocidental e passe a reconhecer e integrar a
diversidade cultural, segundo Santos e Nunes (2003, p. 18):
“…de modo a permitir a reinvenção dos direitos humanos como uma
linguagem de emancipação. Contra um falto
universalismo baseado na definição dos direitos humanos como eles são
concebidos no Ocidente, como se essa fosse a única definição possível desses
direitos, o autor propõe o diálogo intercultural entre diferentes concepções da
dignidade humana que reconheça a incompletude de todas as culturas e a
articulação da tensão, entre as exigências do reconhecimento da diferença e da
afirmação da igualdade, entre direitos individuais e direitos coletivos.”
Para Santos (2003, p. 429), somente com a
identificação das tensões dialéticas da modernidade ocidental (regulação social
X emancipação social; Estado X sociedade civil; Estado-Nação X globalização) é
“que os direitos humanos podem ser colocados a serviço de uma política
progressista e emancipatória”.
Direitos humanos emancipatórios, frente a tensão
da regulação social X emancipação social, impõe o desejo de superar a crise da
regulação social (Estado intervencionista X Estado providência) e da
emancipação social que tem a crise da revolução social e do socialismo com
paradigma de transformação social radical, as quais, para o autor, são
simultâneas e alimentam-se uma da outra.
A tensão do Estado X sociedade civil, enquanto
luta para definir o que é de atribuição do Estado e o que é marco de luta da
sociedade civil, e neste contexto entender os direitos humanos enquanto objetos
de luta para reconhecimento ou para a efetividade daqueles direitos declarados.
Por fim, a regulação social e as lutas
emancipatórias são edificadas num Estado-Nação soberano, que, coexiste com
outros igualmente soberanos, aqui, a leitura dos direitos humanos, concebidos
num prisma local, é colocado sob tensão quando pensados em termos de
globalização.[8]
O Brasil, marcado por uma trajetória de lutas pela
Democracia, projeta a concepção de um Estado Social Democrático de Direito,
balizado na Constituição da República, no entanto, necessita efetiva-la, no
sentido de fazer prevalecer a cidadania democrática, a prevalência dos direitos
humanos (com fins emancipatórios).
Porém, frente às tensões dialéticas da
modernidade, identificadas por Santos (2003, p. 429), para prevalecer as garantias
da cidadania, dos direitos humanos, do princípio da dignidade da pessoa humana,
com vistas a uma política de emancipação, independente dos vínculos ou
subordinações a outros Estados ou as lutas internas de poder, deve programar
políticas públicas necessárias para que a prática dos direitos sociais possa
ser a essência do próprio conceito de Estado Democrático Social de Direito, e
não apenas prescrições estabelecidas num corpo legislativo.
Nesse diapasão, em especial, importa avaliar como
a democracia constitucional brasileira protege os direitos e garantias
fundamentais de seus jurisdicionados nas suas relações, especialmente quando os
jurisdicionados sejam sujeitos que precisem ver reconhecidas e respeitadas as
suas desigualdades para assim ter efetivada a garantia da igualdade
estabelecida como princípio fundamental no artigo 5º[9] da
Constituição da República de 1988, tais como: as pessoas em peculiar condição
de desenvolvimento (crianças e adolescentes), os homossexuais, os negros, as
mulheres, enfim, a diversidade e complexidade existentes numa sociedade.
Na visão de Dagnino (2000, p. 88) a constituição
do sujeito em “tornar-se cidadão”, coloca a cultura democrática e:
“…aponta para a ampliação
do alcance da nova cidadania, cujo significado está longe de ficar limitado à
aquisição formal e legal de um conjunto de direitos e, portanto, ao sistema
político-jurídico. A nova cidadania é um projeto para uma nova sociabilidade:
não somente a incorporação no sistema político em sendo estrito, mas um formato
mais igualitário de relações sociais em todos os níveis, inclusive novas regras
para viver em sociedade.”
Cidadania, estabelecida em razão da relação
social e tais relações ocorrendo entre sujeitos sociais com interesses
distintos que postulam a possibilidade de serem diferentes (DAGNINO, 2000: p.
83), não pode ser discutida sem que se tenha o resgate do significado desta
categoria, na perspectiva da convivência do homem e na efetivação da garantia
de seus direitos mesmo que desigual na relação social, para que, possa
igualmente participar.
A educação para a participação deve se fazer
presente, bem como também práticas políticas que possam garantir o exercício de
direitos assegurados, conforme Herkenhoff (2001, p. 227) “a cidadania não é
apenas uma soma ou um catálogo de direitos”, implica inclusive em deveres dos
cidadãos, tais como a participação social e a solidariedade, assim, a relação
que se estabelece não é apenas vertical (Estado-cidadão), mas também horizontal
(cidadão-cidadão), conforme análise de Santos (1997, p. 227-278). ASSIM, o
Brasil precisa firmar o compromisso desta educação para a participação social,
porque o processo de delimitação do instituto da cidadania traz ao cidadão, o
direito à igualdade de oportunidade, direito que todos têm de mostrar e
desenvolver diferenças ou desigualdades, direito igual de ser reconhecido como
desigual, ou, nas palavras de Dagnino (2000, p. 82), “o direito a ter direitos”, e esses direitos de ser reconhecido
como igual precisa ser assimilado pelo indivíduo.
Considerações finais:
Da análise feita a partir dos autores consultados
nesta revisão, percebe-se que não basta estudar a cidadania apenas do ponto de
vista jurídico, mas, é fundamental uma análise, através das relações de
sujeitos sociais – nas quais o modelo econômico determina o tipo de cidadania
que teremos. Cidadania relaciona-se não apenas à aquisição de direitos e a respectiva
inscrição no texto legal, no modelo de Estado liberal, mas, essencialmente, na
materialização destes direitos.
O acesso aos direitos implica no reconhecimento do
indivíduo, em suas múltiplas facetas, sob a ótica do princípio da igualdade, da
justiça social, da dignidade da pessoa humana, não como manifestação conceitual
de um direito natural positivado, mas sim, como princípio fundamental inserido
na vida e na práxis humana, ou seja,
como materialização dos direitos conquistados.
Hoje se entende
cidadania não por exclusão como no período da sociedade antiga, mas por
inclusão. E é pela participação integral numa comunidade que a cidadania se
estabelece como a relação entre seus pares, com efetiva e integral
participação, que implica em direitos e deveres de uns para com outros, por
isso, cidadania faz parte de um processo que envolve a participação de vários
segmentos sociais de uma sociedade como membros integrais desta. Membros que
enfrentam um contexto de relações sociais excludentes, e em especial na
trajetória brasileira quanto ao reconhecimento dos direitos.
Cidadania é também o reconhecimento do
multiculturalismo, em bases inclusivas, com possibilidade de serem diferentes,
e no respeito pela diferença. Cidadania enquanto direito igual de ser
reconhecido como desigual, pois ao lado do direito à igualdade também está o
direito à diferença, e esses direitos devem ser assimilados pelo indivíduo de
forma a, como propõe Marshall, importe num comportamento do indivíduo, no modo
de vida que brota de dentro de cada indivíduo e não de fora dele, ou seja, de
participação efetiva na sociedade.
A completar a concepção de cidadania, enquanto
relações sociais, entre pares, também impõem relação entre Estado e Sociedade
Civil numa perspectiva de democracia, enfrentando a desigualdade e a exclusão,
postos na produção da vida social, na luta por direitos, para que essa
cidadania se efetive e não fique apenas como prescrição de um Estado intitulado
Estado Social Democrático de Direito.
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Pela mão de Alice: o social e o político
na pós-modernidade. 3ª. Ed. São
Paulo: Cortez, 1997.
UNESCO, Declaração Universal sobre a Diversidade
Cultural, 2001
O que é cidadania. Disponível:
<http:/www.dhnet.org.br/direito/sos/textos> – acesso em 05/10/06 – dados
incompletos.
Notas:
[1] Elegeu-se T. H. Marshall como
referencial teórico a respeito de cidadania em razão de que o autor é um
clássico referido em todos os demais autores utilizados, bem como também,
procurou-se selecionar autores das áreas de Ciências Sociais (Boaventura Souza
Santos), de Direito (João Batista Herkenhoff) e com formação filosófico-jurídica
(Darcísio Corrêa)
[2] Cidadania, numa concepção moderna pode
ser analisada sob dois enfoques, primeiro, a cidadania formal, que diz respeito
a condição de membro de um Estado-nação, e segundo, cidadania substantiva, que
é a concepção da análise desta pesquisa, cuja trajetória para os tempos atuais
é marcada por questões novas, sendo inicialmente analisa num estudo clássico de
T.H. Marshall, em 1950, que descreveu o desenrolar da extensão dos direitos
civis, políticos e sociais para toda população de uma nação, e atualmente, se
tem a forte concepção de cidadania como incorporação de direitos básicos, civis
e políticos, e também a concepção correlata de uma necessária independência das
instituições da Sociedade Civil em relação ao Estado. (LESSA, 1996, p.73)
[3] Para o autor direitos humanos são
quaisquer direitos atribuídos aos seres humanos, seja aqueles reconhecidos na
Antiguidade, desde o Código de Hamurabi, até os novos direitos conquistados e
em fase de luta ainda pelo homem, inclusive os direitos culturais.
[4] O autor ressalva que nem todas as
noções de multiculturalismo têm sentido emancipatório, contudo, para efeitos da
presente pesquisa, procurar-se-á sempre tomar o termo se sentido emancipatório.
[5] Para Santos (1997, p. 240), na subjetividade estão as idéias de autonomia
e auto-responsabilidade, materialidade de um corpo e particularidades
potencialmente infinitas que conferem o cunho próprio e único à personalidade.
[6] Santos (2003, p. 33) estabelece que o
termo é generalizado como o “modo de designar as diferenças culturais em um
contexto transnacional e global, e alerta para o fato de que é importante
especificar as condições que levam o “multiculturalismo como projeto pode
assumir um conteúdo e uma direção emancipatórios.”
[7] O que é cidadania –
Disponível: <http:/www.dhnet.org.br/direito/sos/textos> – acesso em
05/10/06 – dados incompletos.
[8] Globalização, na definição de Santos
(2003, p. 433), que privilegia um definição mais sensível às dimensões sociais,
políticas e culturais “é o processo pelo qual determinada condição ou
entidade local estende a sua influência
a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de considerar como sendo
local outra condição social ou entidade rival.”
[9] Art. 5. – Todos são iguais perante a
Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos:
Informações Sobre os Autores
Maria Cristina Rauch Baranoski
Danuta E. Cantóia Luiz
Professora doutora do curso de serviço social e do mestrado em Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa.