“Amor foge a dicionários e a regulamentos vários.” (Carlos Drummond de Andrade)
Em decorrência da evolução e das mudanças pelas quais a sociedade vem passando, é importante que se avalie a possibilidade de aceitação das relações paralelas a um casamento ou a uma união estável como entidade familiar.
1 Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família
Tendo em vista a importância dos princípios para o Direito de Família e, em especial, para o estudo das entidades familiares, faz-se necessário a análise de diversos deles, tais como: o da dignidade da pessoa humana, da afetividade, do pluralismos das entidades familiares e da monogamia.
A conceituação da dignidade da pessoa humana é tarefa árdua, tendo em vista abranger a diversidade de valores existentes na sociedade. Assim, não se trata de um conceito estanque, imutável, visto que deve estar em constante evolução e acompanhando as atuais necessidades do ser humano. Ingo Wolfgang Sarlet ao conceituar a dignidade da pessoa humana estabelece que:
“[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”[1] (grifo do autor).
Então, a dignidade da pessoa humana não tem apenas a função de estabelecer direitos e deveres que assegurem uma vida saudável e justa. Muito mais do que isso, tem o dever de proporcionar situações em que o ser humano se desenvolva em um meio capaz de promover a sua integração e evolução de sua dignidade.
A família tem um importante papel para o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal, em seu artigo 226, estabelece que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” [2] Neste sentido, a família deve valorizar a pessoa e servir como instrumento de desenvolvimento pessoal.
Cabe à entidade familiar, então, possibilitar o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e, como conseqüência, a evolução da sociedade, pois caso contrário não é merecedora de proteção. Assim, este princípio precisa ser utilizado de maneira efetiva e eficaz, sob pena de estagnação e infelicidade do ser humano.
O princípio da afetividade, no entanto, não está previsto de forma expressa no ordenamento jurídico, mas a Constituição Federal ao estabelecer a pluralidade das entidades familiares, reconhece a afetividade como base da família.
A afetividade, como elemento formador da família, deve se adaptar aos anseios do ser humano e acompanhar suas transformações. Segundo Maria Berenice Dias,
“A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família. […] A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado da família. Por isso, a afetividade entrou nas cogitações dos juristas, buscando explicar as relações familiares contemporâneas.”[3]
O princípio da afetividade possui, então, papel imprescindível para a fundamentação dos novos modelos familiares, sendo capaz de explicar a necessidade do pluralismo das entidades familiares para a sociedade contemporânea. O modelo único e tradicional de família, o matrimonializado, não tem como requisito fundamental o afeto, visto que retoma as antigas funções da família (econômica, política, religiosa e procriativa). Os atuais vínculos familiares, no entanto, fundamentam-se, basicamente, na afetividade, motivo pelo qual se passa a analisar o princípio do pluralismo das entidades familiares.
Como se vê, diante da necessidade da sociedade, que não mais se organiza em torno do casamento, ampliou-se o conceito de família e o Estado passou a reconhecer a existência de várias formas familiares. Assim, a sociedade é quem cria as novas formas de família e cabe ao Estado protegê-las. Atualmente, existem novas necessidades que não estão previstas, tão pouco protegidas pelo ordenamento jurídico, mas que não podem passar desapercebidas, sob pena de se promover a indignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal elenca, de forma explícita, como entidades familiares o casamento, a união estável e a família monoparental. No entanto, a interpretação constitucional acerca do pluralismo familiar leva a crer que existem outras entidades familiares implícitas.
Cristiano Chaves de Farias entende que “[…] é preciso ressaltar que o rol da previsão constitucional não é taxativo, estando protegida toda e qualquer entidade familiar, fundada no afeto, esteja, ou não, contemplada expressamente na dicção legal”. [4]
Assim, o conceito de família é plural e abrange as entidades familiares especificadas no artigo 226 da Constituição Federal, bem como todas que possuam um vínculo afetivo e busquem objetivos de vida comuns.
O Direito de Família é palco de diversidade e, por isso, possui como princípio norteador o pluralismo das entidades familiares, que busca através da presença da afetividade, a efetivação da dignidade da pessoa humana.
Necessário é, ainda, que se analise o princípio da monogamia, que classifica como família aquela em que o homem possui apenas uma esposa e vice-versa. A monogamia é vista como uma forma de organizar a sociedade e não apenas de impor regras atinentes à moral, viabilizando, assim, o desenvolvimento do ser humano e de suas relações.
No entanto, os atuais arranjos familiares têm como base a afetividade e a busca pela dignidade da pessoa humana. Então, considerar que o princípio da monogamia é constitucional e superior aos demais princípios aplicáveis ao Direito de Família, contraria o principal fundamento de todo o ordenamento jurídico que é a dignidade, assim como os próprios anseios da sociedade. Maria Berenice Dias, a esse respeito, ensina que:
“Ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla. […]
No entanto, pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos.”[5] (grifo do autor).
Neste sentido, o que se vê é que as atuais famílias são estabelecidas de acordo com os princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade, buscando a realização de cada membro. Esses princípios e o da monogamia acabam sendo incompatíveis, não tendo condições de coexistirem no atual Direito de Família. Assim, há que se optar entre a efetiva realização do ser humano, buscando sua dignidade e a valorização do afeto, ou o cumprimento das regras morais impostas pela sociedade, atendendo a satisfação do Estado.
Assim, tendo sido feita a análise dos princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família, possível é que se analise a viabilidade do reconhecimento dos relacionamentos concomitantes com um casamento ou união estável como entidade familiar.
2 O concubinato impuro e a união estável putativa
Como visto anteriormente, o rol do artigo 226 da Constituição Federal não é taxativo, o que representa uma possibilidade para o reconhecimento dos mais diversos tipos de arranjos familiares que se encontram à margem do Direito de Família.
O Código Civil, em seu artigo 1.727, dispõe que: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.” [6] Neste sentido, a lei diferencia de forma veemente a união estável do concubinato.
Silvio Neves Baptista a respeito explica que:
“[…] se não há impedimento matrimonial, entende-se estável a união notória, contínua e duradoura; se há impedimento matrimonial (ainda que a união seja notória, contínua e duradoura), a união permanente ou não eventual é considerada concubinato[…].”[7] (grifo do autor).
É considerado, então, concubinato impuro o relacionamento em que há impedimento matrimonial. Assim, mesmo que a relação possua os requisitos da união estável é classificada como concubinato, uma vez que um de seus participantes já é casado ou possui outra união estável, não estando separado de fato ou judicialmente como excepciona o artigo 1.723 do Código Civil, no seu parágrafo primeiro. [8]
Dessa forma, na perspectiva legalista da previsão do atual Código Civil, caso uma pessoa esteja envolvida em duas famílias, a segunda relação configura concubinato, uma vez que o dever de fidelidade é infringido e, por isso, não preenche os requisitos para a união estável.
Segundo Maria Berenice Dias, existem dois tipos de concubinato, o puro, ou de boa-fé e o impuro, ou de má-fé, diferenciando-se no seguinte sentido:
“A diferença centra-se exclusivamente no fato de a mulher ter ou não ciência de que o parceiro se mantém no estado de casado ou tem outra relação concomitante. Assim, […] somente quando a mulher é inocente, isto é, afirma não ser sabedora de que seu par tem outra, há o reconhecimento de que ela está de boa-fé e se admite o reconhecimento da união estável, com o nome de união estável putativa.”[9] (grifo do autor).
Nessa perspectiva, caso o componente da segunda relação tenha consciência do impedimento de seu parceiro, age de má-fé e, por isso, seu relacionamento é denominado de concubinato impuro. No entanto, se a pessoa não souber do impedimento de seu par, e se envolver de boa-fé, sua relação é chamada de concubinato puro, situação em que é possível, em face da boa-fé, o reconhecimento como união estável putativa. Entende-se, então, que a boa-fé retira a ilicitude de seus atos, uma vez que o sujeito ignora determinada situação.
Cabe lembrar então que o concubinato impuro não tem, em princípio, seus direitos reconhecidos pelo Direito de Família eis que ausente o elemento da boa-fé, uma vez que ambos os envolvidos têm conhecimento do impedimento matrimonial de um deles, ou de ambos.
Esclarecidas as distinções entre o concubinato impuro e a união estável putativa, passa-se a discutir acerca da possibilidade do reconhecimento das relações paralelas e putativas como entidade familiar.
3 A possibilidade do reconhecimento da união estável putativa e paralela como entidade familiar.
Após o estudo dos princípios constitucionais, cabe atentar sobre a inserção das uniões paralelas e putativas no Direito de Família, levando em consideração, principalmente, a dignidade da pessoa humana frente o princípio da monogamia.
Carlos Eduardo Pianovski escreve sobre a simultaneidade das relações e a competência do Direito de Família:
“A simultaneidade de conjugalidades é tema que, embora suscite perplexidades, não é alheio ao direito de família. Identificar os limites e possibilidades da apreensão jurídica e da atribuição de eficácia a situações de tal natureza implica a necessidade de enfrentar questões pertinentes ao universo principiológico que permeia esse ramo do direito. Dentre as questões candentes a demandar análise está a eventual oposição de óbices decorrentes de um possível princípio da monogamia.”[10]
De acordo com este entendimento, mesmo sendo um assunto que cause divergência, os relacionamentos concomitantes devem ser tratados pelo Direito de Família, a fim de que se possa analisar caso a caso, adequando, sempre que possível, os fatos às normas jurídicas.
No entanto, por ser um assunto muito polêmico, existem diversos posicionamentos acerca da possibilidade de reconhecimento das uniões concomitantes como entidades familiares.
Analisar-se-á três correntes acerca da possibilidade da inserção das relações concomitantes no Direito de Família. A primeira, atualmente em extinção, entende que nenhum tipo de relação paralela deva ser reconhecida como entidade familiar, não levando em consideração a boa-fé por parte de um ou de ambos os envolvidos na relação. A segunda corrente admite as uniões estáveis paralelas putativas, ou seja, quando presente a boa-fé. Estas, devem ser equiparadas à entidades familiares; enquanto que quando ausente a boa-fé, devem ser equiparadas à sociedade de fato e sempre que houver construção de patrimônio em comum, tratadas pelo Direito das Obrigações, a fim de evitar enriquecimento ilícito. Finalmente, há quem pregue pelo reconhecimento de todos os tipos de relações pelo Direito de Família, uma vez que os princípios da dignidade da pessoa humana e da pluralidade das entidades familiares devem prevalecer sobre o da monogamia.
Assim, ante a necessidade de um aprofundamento das atuais correntes sobre as relações concomitantes, passar-se-á a analisar a primeira delas. Eduardo Cambi posiciona-se de forma bastante conservadora e entende que:
“A tutela do direito obrigacional deve servir, por ser mais restrita, não só àqueles que, […], denominamos de concubinato adulterino, bem como às uniões putativas, […], já que não podem subsumir a noção de entidade familiar extramatrimonial, porque preexiste impedimento matrimonial, em sentido substancial.”[11]
Nesta linha, qualquer relacionamento concomitante a um casamento ou a uma união estável deve ser tratado no campo do Direito Obrigacional, não sendo competente o Direito de Família uma vez que preexiste uma entidade familiar. Assim, pouco importa a presença da boa-fé, visto que, segundo este posicionamento, o Direito das Obrigações é competente até mesmo para a união estável putativa.
Em contraposição a este entendimento, a segunda corrente entende que o Direito de Família apesar de excluir as uniões estáveis paralelas, abrange as putativas, uma vez que há a boa-fé, ou seja, ausência de malícia e, por isso, merece ser tratada como entidade familiar. De acordo com esta concepção, Rolf Madaleno afirma com veemência que:
“[…] o concubinato adulterino não configura uma união estável, como deixa ver estreme de dúvidas o artigo 1.727 do Código Civil. […]. Não ingressam nesta afirmação os concubinatos putativos, quando um dos conviventes age na mais absoluta boa-fé, desconhecendo que seu parceiro é casado, e que também coabita com o seu esposo, porquanto a lei assegura os direitos patrimoniais gerados de uma união em que um dos conviventes foi laqueado em sua crença quanto à realidade dos fatos.”[12]
Dessa forma, as uniões paralelas estariam vedadas, por ferirem o sistema monogâmico e comprometerem a estabilidade da sociedade. No entanto, sempre que um dos parceiros agir de boa-fé, sua relação é equiparada à união estável.
A mesma idéia é apresentada por Álvaro Villaça Azevedo ao dispor que:
“[…] concubinato impuro ou concubinagem, não deve merecer apoio dos órgãos públicos e, mesmo, da sociedade. Entendemos, ainda, que deste não deve surtir efeito, a não ser o concubinato de boa-fé, como acontece, analogamente, com o casamento putativo, e para evitar-se locupletamento ilícito.”[13]
Além de as uniões paralelas não merecerem o reconhecimento do Direito de Família, entende o autor que a sociedade também deve rejeitar tais relações, por atingirem a base de sustentação da família que é a monogamia.
Assim, de acordo com este posicionamento, as uniões estáveis putativas merecem ser tratadas pelo Direito de Família, mas ainda cabe indagar acerca da competência com relação às uniões estáveis paralelas. Gustavo Tepedino aponta que:
“[…] o abrandamento da rejeição não significou o acolhimento do concubinato no âmbito do direito de família. As relações concubinárias foram, ao revés, reconhecidas com base no direito obrigacional, protegendo-se o esforço que, despendido no curso da vida em comum por parte de um companheiro em favor do outro […], não poderia deixar de gerar efeitos patrimoniais, sob pena de se consagrar o enriquecimento sem causa.”[14]
Apesar da crise do sistema monogâmico e da maior aceitação das relações paralelas, tendo em vista até mesmo a descriminalização do adultério, a união estável paralela continua excluída do Direito de Família. No entanto, de acordo com esta corrente, deve ser abrangida pelo Direito Obrigacional, a fim de evitar o enriquecimento ilícito.
Com este mesmo entendimento, Rodrigo da Cunha Pereira afirma que:
“O concubinato, assim considerado aquele adulterino ou paralelo ao casamento ou a outra união estável, para manter-se a coerência no ordenamento jurídico brasileiro – já que o Estado não pode dar proteção a mais de uma família ao mesmo tempo -, poderá valer-se da teoria das sociedades de fato e, portanto, no campo obrigacional.”[15]
Quando houver a contribuição do casal na construção de patrimônio comum durante a relação paralela, utiliza-se o Direito Obrigacional, tratando a união estável paralela como uma sociedade de fato, evitando, assim, o enriquecimento de uma das partes.
Álvaro Villaça Azevedo explica, ainda, que no caso do concubinato impuro ou adulterino, aplica-se a súmula número 380 do Supremo Tribunal Federal. [16] Tal súmula estabelece que: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.” [17]
A fim de evitar injustiças, esta corrente entende que apesar de não poder ser reconhecida como entidade familiar, as uniões paralelas não podem ser ignoradas e trazer prejuízos, por isso devem ser equiparadas às sociedades de fato e no caso de dissolução, realizada a partilha do patrimônio adquirido em conjunto.
Merece destaque, ainda, a ressalva feita por Carlos Eduardo Pianovski quando ausente a boa-fé por parte de todos os envolvidos da relação:
“De outro lado, se a ostensibilidade é plena, estendendo-se a todos os componentes de ambas as entidades familiares […] e mesmo assim ambas as famílias se mantêm íntegras, sem o rompimento dos vínculos de coexistência afetiva, pode ser viável concluir, segundo as peculiaridades que se apresentam no caso concreto à luz dos demais deveres inerentes à boa-fé, que a simultaneidade não seria desleal, não havendo violação de deveres de respeito à confiança do outro e, sobretudo, de proteção da dignidade dos componentes de ambas as famílias. A simultaneidade atenderia, assim, em tese, às pretensões de felicidade coexistencial de todos os componentes das famílias em tela.”[18]
Nessa linha, a ausência da boa-fé por parte de todos os elementos de ambas as famílias abre oportunidade para que a relação paralela seja reconhecida, de forma excepcional, como entidade familiar. Sendo a relação notória e não questionada por seus membros, não há razão para desconhecer a família, visto que promove a dignidade de seus componentes e oportuniza sua felicidade.
Existe, porém, a terceira corrente, mais ousada, que diverge da equiparação das relações paralelas às sociedades de fato, entendendo-as como família e merecendo, por isso, tratamento pelo Direito de Família e denominação de entidade familiar.
O não reconhecimento das uniões paralelas vai contra o disposto pela Constituição Federal e fere seus princípios. Não há motivo para deixar de analisar as relações concomitantes no âmbito do Direito de Família, visto que a Constituição Federal não é taxativa, apenas exemplificativa, com relação aos modelos familiares.
Por este motivo, Paulo Luiz Netto Lôbo dispõe que:
“Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do direito de família e não do direito das obrigações, tanto os direitos pessoais, quanto os direitos patrimoniais e quanto os direitos tutelares. Não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a como fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo[…].”[19]
Neste sentido, não há razão para fingir ser a relação familiar uma sociedade de fato, visto que não existe proibição expressa pela Constituição Federal de diferentes tipos de entidades familiares. Pelo contrário, vige o princípio da pluralidade delas.
A união estável possui pressupostos para que possa ser reconhecida como entidade familiar e, de acordo com Maria Berenice Dias, eles não contrariam a formação das uniões estáveis paralelas. Neste trilhar, a autora afirma que:
“Agora, para a configuração da união estável basta identificar os pressupostos da lei, entre os quais não se encontra nem o direito à exclusividade e nem o dever de fidelidade. Assim, imperioso que se cumpra a lei, que se reconheça a união estável quando presentes os requisitos legais a sua identificação, ainda que se constate multiplicidade de relacionamentos concomitantes.”[20]
De acordo com esta concepção, a união estável não tem como pressuposto a exclusividade, tampouco o dever de fidelidade, o que leva a crer que o Estado tem o dever de admitir as uniões paralelas como entidade familiar, desde que configurados os requisitos para o reconhecimento da união estável. Neste mesmo caminho segue Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho ao apontar que:
“A manifestação afetiva, pois, não é necessariamente exclusiva. Ademais, não importa para o Direito impor tipos padrões de comportamentos, pois enquanto houver desejo irão se manifestar relações familiares, entenda-se, entidades familiares divergentes daquelas estabelecidas aprioristicamente, de sorte que não há como aprisionar o afeto, restringindo-o às relações de casamento, de união estável e à entidade monoparental. O pluralismo das entidades familiares impõe o reconhecimento de outros arranjos familiares além dos expressamente previstos constitucionalmente.”[21] (grifo do autor).
A capacidade de manifestação de afeto do ser humano não tem limites, por isso, mesmo que se tente controlar, jamais se conseguirá banir as relações concomitantes. Constatado isto, melhor é enquadrar tais relações no ordenamento jurídico, do que deixá-las marginalizadas.
Não cabe então ao Estado negar a realidade e pretender que a concomitância de relações seja algo distante do Direito de Família. Sabe-se que a família tem papel fundamental para o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e que negar seu reconhecimento gera um retrocesso social com descumprimento de preceitos fundamentais da própria Constituição Federal.
Conclui-se então, com as palavras de Maria Berenice Dias que: “Não enxergar fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades, é olvidar que a Ética condiciona todo o Direito, principalmente o Direito de Família.” [22]
Neste sentido, é importante frisar as novas perspectivas para a solução destes conflitos, uma vez que fica evidente a divergência dos posicionamentos sobre a matéria.
4 Novas perspectivas para o tema
A possibilidade de reconhecimento da união estável putativa e paralela, esta principalmente, gera bastante discussão e, por isso, inúmeras soluções têm sido apresentadas para a inserção de tais relações no Direito de Família.
Essencial é, no entanto, buscar a real efetivação dos princípios constitucionais e o bem comum, entendendo como irrelevantes os aspectos morais dos casos em comento. Neste sentido, Rodrigo da Cunha Pereira estabelece que: “É somente em bases principiológicas que será possível pensar e decidir sobre o que é justo e injusto, acima de valores morais, muitas vezes estigmatizantes.” [23]
Nessa mesma linha, o psiquiatra e psicanalista Marco Aurélio Crespo Albuquerque contribui para a evolução do Direito de Família ao enfatizar que:
“Levando em conta estas especificidades devemos manter a mente aberta, no sentido de buscar compreender ao menos um pouco da complexidade do adultério, escapando assim do perigo dos reducionismos limitantes tipo “certo/errado”, “virtude/pecado”, etc.”[24]
Tendo em vista não ser o Direito uma ciência estática, principalmente o Direito de Família, há que se analisar as questões controvertidas sob todos os seus aspectos, sem manter um posicionamento estanque, mas aplicando o Direito da melhor forma possível ao caso concreto. Desta forma, não mais cabe aos operadores do Direito rotular determinada situação ou atitude como certa ou errada, moral ou imoral, mas buscar entender os motivos causadores e a melhor solução para o caso concreto, até porque, sabidamente os casos existem, geram efeitos sociais e, por isso, não podem ser desconhecidos pelo mundo jurídico.
Neste sentido José Carlos Teixeira Giorgis, que apesar de não concordar com o reconhecimento das uniões paralelas como entidade familiar, afirma que:
“A vida moderna e a evolução dos costumes, inclusive no casamento, recomendam o exame dos efeitos da relação clandestina ao matrimônio, principalmente quando se espicha por longos anos e tem publicidade, em que a cicatriz criminal da bigamia deve impor sanção civil a quem o pratica.”[25]
Assim, mesmo que não se concorde com o reconhecimento das relações paralelas pelo Direito de Família, nos dias de hoje, é impossível ignorar a existência de tais relações. É notável o papel que tem a família para o desenvolvimento da dignidade de seus componentes, por isso não se pode deixar à margem do ordenamento jurídico, instituição que possibilita o crescimento da pessoa humana, a sua dignificação e a construção da própria felicidade.
Fábio Ulhoa Coelho assevera que: “[…] quando o concubinato caracteriza-se como uma união livre, a tendência é que, cedo ou tarde, a jurisprudência e a lei comecem a reconhecer alguns direitos dos parceiros, tendo em vista a proteção da família que dela nasce.” [26]
Independentemente de se ter um posicionamento mais tradicional ou mais ousado, a tendência é de conceder às relações concomitantes alguns dos direitos conferidos às entidades familiares, visto que de uma forma ou outra constituem uma família. Neste sentido, inevitável que o Estado utilize o seu papel de protetor e conceda às relações concomitantes o mínimo de direitos, indispensáveis para o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana envolvida na relação.
Neste sentido, Paulo Luiz Netto Lôbo afirma de maneira pertinente que:
“Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude de requisitos da constituição e de efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades. Não pode haver, portanto, regras únicas, segundo modelos únicos ou preferenciais. O que as unifica é a função de locus de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que as integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formação social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa.”[27] (grifo do autor).
Primordial é entender que a família possui especial responsabilidade no desenvolvimento de cada pessoa nela envolvida. Assim, uma família bem estruturada e protegida pelo Estado tem maiores chances de trazer para a sociedade pessoas íntegras, éticas e capazes de viver em grupo.
A Constituição Federal ao não elencar e fechar o rol de todas as entidades familiares protegidas pelo Estado, abriu ensejo a discussão, no caso concreto, de quais relações se caracterizam e merecem ser denominadas de família. Neste sentido, o autor antes mencionado frisa que as entidades não devem ser equiparadas, uma vez que cada uma possui seus próprios requisitos e características, mas reconhecidas pelo que são, evitando conflito entre elas.
Após a caminhada para esclarecer a possibilidade do reconhecimento das uniões paralelas como entidade familiar, é mister identificar a família como base da sociedade e buscar a melhor aplicação da norma ao caso concreto, ensejando o bem comum.
5 Conclusão
Com o passar do tempo a sociedade evoluiu trazendo consigo a valorização das relações afetivas e, conseqüentemente, da pessoa humana. A família perdeu a função meramente procriadora e a mulher buscou seu lugar na sociedade. Assim, a concepção de família, hoje, é muito mais abrangente e seus componentes vivem de maneira igualitária.
Neste ambiente de inovações e adaptações é que os novos modelos familiares, já existentes, tentam se incluir no Direito de Família. A redação do artigo 226 da Constituição Federal retirou do casamento a exclusividade de modelo familiar, possibilitando que a união estável e a família monoparental assim também fossem reconhecidas. No entanto, a discussão continua acerca das uniões concomitantes, uma vez que o sistema jurídico é baseado na monogamia mas a lei não mencionou o seu reconhecimento de forma expressa. Todavia, ao não delimitar, concedeu oportunidade para o seu reconhecimento.
Assim, três são as principais correntes com relação ao reconhecimento das relações concomitantes como entidade familiar. A primeira, com posicionamento bastante conservador, entende que nenhum tipo de relacionamento paralelo deve ser reconhecido pelo Direito de Família, independentemente da presença da boa-fé por parte de algum dos envolvidos.
A segunda corrente considera injusto não reconhecer a união estável putativa, ou seja, quando presente a boa-fé uma vez que ausente a malícia. Assim, havendo boa-fé, a união estável concomitante deve ser inserida no Direito de Família, enquanto que a união estável paralela deve ser equiparada à sociedade de fato e tratada pelo Direito Obrigacional sempre que houver construção de patrimônio em comum, a fim de evitar enriquecimento ilícito.
Finalmente, a terceira corrente entende que o não reconhecimento das relações concomitantes fere os princípios constitucionais e o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. Assim, ante a não taxatividade da Constituição Federal com relação aos tipos de família, não cabe ao Estado decidir quais relações familiares serão inseridas no Direito de Família e quais serão marginalizadas, devendo proteger todo e qualquer tipo de família, a fim de que possa desenvolver a dignidade de cada um de seus membros.
Indiscutível é que a família é ambiente essencial para o desenvolvimento da dignidade de seus componentes e a sua marginalização fere o princípio constitucional fundamental. Outrossim, estabelece a Constituição Federal o princípio do pluralismo das entidades familiares, segundo o qual qualquer relação pode ser reconhecida como entidade familiar, desde que preencha determinados requisitos e colabore para a dignificação dos seus integrantes.
No entanto, reconhecer relações paralelas a um casamento ou a uma união estável também fere a dignidade da pessoa humana e faz com que as famílias percam suas identidades uma vez que se confundem. Assim, havendo uma relação anterior e ausente a boa-fé por parte dos envolvidos não há que se falar em entidade familiar, visto que além de infringir a monogamia, fere a dignidade dos envolvidos na primeira relação.
Diferente é o que acontece nas relações estáveis putativas, ou seja, quando há a boa-fé por parte de pelo menos um dos envolvidos, uma vez que ambas as famílias encontram-se em um estado de ignorância, nenhuma sabendo da outra, com exceção da parte traidora. Neste sentido, não há razão para excluir a segunda pelo simples fato de ser posterior, por preencher os mesmos requisitos da anterior.
Assim, não cabe ao ordenamento jurídico brasileiro atual reconhecer as uniões paralelas como entidade familiar, sob pena de o que é exceção se tornar regra geral e transformar o sistema monogâmico em poligâmico. Não se pode, no entanto, ignorar a existência de tais relacionamentos e marginalizá-los.
Neste sentido, em preservação da dignidade da pessoa humana, imprescindível à análise de cada caso, a fim de se buscar a melhor solução, uma vez que o Direito não pode ser estanque e com respostas únicas, mas tem o dever de se adequar a cada situação e resolvê-la de acordo com suas peculiaridades.
desembargadora do TJRS.
A Constituição Federal reconhece a família como a base da sociedade, assegurando-lhe especial proteção. Faz expressa referência ao casamento, à união estável e às famílias formadas por só um dos pais e seus filhos. A legislação infraconstitucional, de forma exaustiva, regulamenta o casamento, concede tratamento discriminatório à união estável, mas esqueceu de regulamentar as unidades monoparentais.
Esta injustificável omissão, no entanto, não autoriza que se tenham estas famílias como inexistentes. Nem essas e nem outras. Basta dar uma mirada na sociedade dos dias de hoje para concluir que a família é mesmo plural.
E, ao final, a doutrina teve que se render e acabou reconhecendo que as entidades familiares vão além do rol constitucionalizado. Há toda uma nova construção do conceito de família, dando ênfase à solidariedade familiar e ao compromisso ético dos vínculos de afeto.
A visão excessivamente sacralizada da família tenta identificar a monogamia como um princípio, quando se trata de mero elemento estruturante da sociedade ocidental de origem judaico-cristã. Até bem pouco tempo só era reconhecida a família constituída pelos “sagrados” laços do matrimônio. Daí o repúdio às uniões extramatrimoniais. Rotuladas de “sociedade de fato”, eram alijadas do direito das famílias.
A tentativa de perpetuar a família fez o casamento indissolúvel e, mesmo depois do divórcio, ainda o Estado resiste em dissolvê-lo. Impõe prazos e tenta punir culpados. O interesse na preservação da família matrimonializada é tão grande que até 2005 o adultério era crime. A bigamia ainda é.
O Estado se imiscui de tal maneira na intimidade do casal que impõe o dever de fidelidade (Cód. Civil, art. 1.566, I). Considera o adultério como justa causa para a separação (Cód. Civil, art. 1.573, I), e o reconhecimento da culpa do infiel faz com que ele perca o nome de casado (Cód. Civil, art. 1.578). Alimentos, só recebe o quanto baste para sobreviver (Cód. Civil, art. 1.704, parágrafo único).
A lei tenta de todas as formas obrigar a manutenção de um único vínculo familiar, mas a sociedade sempre tolerou a infidelidade masculina. Os homens são os grandes privilegiados, pois nunca foram responsabilizados por suas travessuras sexuais. Tanto é assim que durante muito tempo os “filhos adulterinos” não podiam ser reconhecidos. As uniões extramatrimoniais até a pouco não geravam quaisquer ônus ou encargos. E ter “outra” é motivo de orgulho e da inveja dos amigos.
Em contrapartida, as mulheres sempre foram punidas. A infidelidade feminina autorizava o homem a “lavar a honra da família”, o que livrou muitos maridos traídos da cadeia. Como os “filhos ilegítimos” não tinham direito à identidade, eram só “filhos da mãe”, assumindo ela a responsabilidade exclusiva pela sua criação e manutenção. Também a resistência em abrigar o concubinato no âmbito do direito das famílias gerou legiões de mulheres famintas, pois não lhes era assegurado nem alimentos e nem direitos sucessórios. Como sociedades de fato, dividiam-se lucros e não os frutos de uma sociedade de afeto.
Esta mania de punir a mulher como forma de assegurar ao homem o livre exercício da sexualidade ainda persiste. De maneira simplista os vínculos familiares que se constituem de modo concomitante ao casamento são condenados à invisibilidade. Contam com a conivência do Judiciário. Com isso, as uniões paralelas – uma façanha exclusivamente masculina – continuam sendo incentivadas. Os nomes são vários: concubinato adulterino, impuro, impróprio, espúrio, de má-fé, e até concubinagem.
Mas a conseqüência é uma só: a punição da mulher. A ela é atribuída a responsabilidade pelo adultério masculino. Tanto que, somente na hipótese de ela alegar que desconhecia a condição de casado do companheiro é que tem chance de receber parte do que conseguir provar que ajudou a amealhar. Caso confesse que sabia que o homem não lhe era fiel, é impiedosamente condenada a nada receber. O fundamento: não infringir o dogma da monogamia.
Assim, tanto a lei como a justiça continuam cúmplices do homem. Bem feito! Quem manda ser mulher?
Informações Sobre os Autores
Renata Miranda Goecks
Bacharel em Direito pela Universidade de Passo Fundo/RS
Vitor Hugo Oltramari
Advogado, Professor de Direito de Família e Sucessões na Universidade de Passo Fundo, Mestre pela UFPR