Resumo: O trabalho tem como objetivo analisar a repercussão do Direito Penal Médico como uma nova área do Direito, a partir de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul -TJRS, evidenciando a necessidade de mudanças na esfera judicial, uma vez que sem peritos tecnicamente especializados na área médica, só faz dificultar as decisões dos Tribunais, que em razão da insuficiência de provas proferem absolvição à maioria dos réus médicos.
Palavras-chave: direito penal, medicina, repercussão, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Sumário: 1. Introdução; 2. Direito Penal Médico; 3. Conclusão;
1 Introdução
O presente texto traz apontamentos acerca da repercussão do então denominado Direito Penal Médico, haja vista que esta nova área do Direito está cada vez mais em evidência e vem abrangendo diversos crimes além dos costumeiramente polêmicos aborto e eutanásia. O assunto vem sendo muito discutido pelos Tribunais do país.
A jurisprudência chama atenção para um aspecto ainda não percebido pela legislação brasileira, enfrentando o tema penal-médico de forma diferente, ao tratar a relação entre paciente e médico de maneira extremamente consumeirista, em razão da relação entre médico e paciente ter natureza contratual de prestação de serviços.
A relação de consumo de fato existe, mas há manifesta diferença entre o médico que é contratado porque garante um determinado resultado (como no caso das cirurgias estéticas) e aquele que tem como objetivo fazer o que está ao seu alcance, de acordo com a regra técnica da profissão, independentemente de resultado (como nas emergências dos hospitais, onde há responsabilidade de meio do profissional, ou seja, sem comprometimento com a cura).
É assim que ensinam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça na recente (10/02/2009) oportunidade de julgamento do Recurso Especial nº 1.078.057 – MG:
“DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL – ERRO MÉDICO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. ARTIGO 131 DO CÓDIGO CIVIL – 1. O sistema processual civil abraça o princípio do livre convencimento motivado, que, inclusive está positivado no artigo 131 do Código de Processo Civil, impondo ao julgador a indicação dos motivos de suas conclusões. Na hipótese em que a ação proposta tem sustentação na existência de erro médico, uma vez que realizada perícia, deve o julgador indicar os motivos pelos quais resolve concluir pela obrigação de indenizar, tomando posição oposta às conclusões do perito, mormente quando outras provas não existem nos autos. 2. A responsabilidade do médico pressupõe o estabelecimento do nexo causal entre causa e efeito da alegada falta médica, tendo em vista que, embora se trate de responsabilidade contratual – cuja obrigação gerada é de meio -, é subjetiva, devendo ser comprovada ainda a culpa do profissional. 3. Recurso especial provido.” (grifei)
O que ocorre é que o direito do consumidor está sendo utilizado para assistir ao paciente, enquanto o direito penal é invocado para punir eventual dano causado pelo médico, ainda que este não seja um erro propriamente dito. Para que haja responsabilidade do médico deve haver ao menos culpa, não se pune se houve dano sem culpa.
2 Direito Penal Médico
Atualmente, com o avanço contínuo da medicina, as clínicas médicas são procuradas pelas mais diversas motivações: cirurgias reparadoras, plásticas ou meramente estéticas como simples incisões. Dessa forma, a busca pelo corpo perfeito, conseqüentemente, movimenta a procura por especialistas.
O cuidado na escolha dos profissionais e a certeza do preparo deles para o procedimento pretendido devem existir desde os enfermeiros e anestesistas, não se levando em conta apenas o médico-chefe com o qual foi realizada a consulta.
O simples fato de ser especialista em uma determinada área, bem como a divulgação que o profissional faz de seus serviços, o vincula ao resultado pretendido pelo cliente. Por sua vez, o cliente deve estar atento às recomendações médicas no pré e pós-operatório e não omitir dele qualquer informação.
Recentemente no Brasil, a mídia[1] veiculou um suposto “erro médico” que teria ocorrido com a esposa do cantor americano Usher. Logo após a aplicação da anestesia, houve uma parada cardiorrespiratória e a cirurgia (lipoaspiração) nem chegou a acontecer. As complicações pré-cirúrgicas teriam ocorrido porque a moça teria omitido do médico responsável pelo procedimento que o parto de seu filho mais novo havia ocorrido há dois meses e não há quatro como foi relatado por ela. O equívoco acabou sendo desfeito.
O profissional conta com informações prévias prestadas pelo próprio paciente, como: histórico de doenças na família, outras cirurgias realizadas anteriormente, uso de medicação controlada, tabagismo, gravidez recente, etc. Se estas informações forem omitidas do médico, não há como este ser responsabilizado por complicações indesejadas. A culpa é exclusiva da vítima.
Os médicos passaram a ser vistos como a “salvação” nos mais diversificados ramos, como por exemplo, a genética, onde é possível a inseminação (reprodução humana assistida) de um filho com características físicas (fenótipo) escolhidas pelos pais.
Vejam, segundo Adriana Moraes Ferreira e Karla Corrêa Cunha[2], desde a década de 50 “as técnicas de Reprodução Artificial começaram a ser divulgadas e concretizadas no Brasil”, ou seja, é mais de meio século de evolução neste sentido e a legislação brasileira ainda não tomou partido sobre o assunto.
Questões amplamente aventadas, inclusive em nível internacional, já chegaram a ter algum desfecho na legislação brasileira, a exemplo do aborto, que atualmente é permitido em casos de estupro ou risco de morte para mãe (art. 128, CP) e, ainda, em casos de má-formação do feto, como a anencefalia (problema congênito incompatível com a vida), sendo realizados até mesmo na rede pública de saúde.
É, ainda, considerado crime o aborto que não se enquadra em nenhuma das situações acima descritas (arts. 124 a 126 do CP), sendo responsabilizada não só a mãe, como também o médico que interrompe uma gravidez ainda que a pedido da própria gestante. Tal circunstância só fomenta os abortos clandestinos, que sabidamente ocorrem de forma reiterada, a fim de preservar a identidade de quem optou pelo aborto e do profissional que o realizou.
Em qualquer das áreas possíveis para atuação do médico, este carrega uma carga de responsabilidade, independentemente de sua vinculação com o resultado pretendido pelo paciente/cliente. Além da expectativa com o resultado prometido, o paciente traz consigo muitas vezes a realização de um sonho.
A cirurgia pode representar mais do que o procedimento em si, pode representar a cura de um trauma, a possibilidade de aceitação e inclusão na sociedade. Dessa forma, as clínicas médicas acabam respondendo por absolutamente qualquer dano sofrido pelo paciente, seja ele físico ou psicológico.
Não há, ainda, legislação específica sobre determinados temas relacionados à área médica, especialmente por serem polêmicos e tecnicamente incompreendidos pela sociedade em geral, inclusive pelos representantes do Poder Legislativo. Isso torna substancialmente difícil o trabalho do advogado no preparo da defesa, seja ela do paciente/cliente ou do próprio médico.
Os delitos praticados por médicos em regra são: a lesão corporal culposa (que só existe na forma simples, não havendo qualificadoras) e, em casos extremos, o homicídio culposo. Tais crimes estão previstos nos artigos 129, § 6º e 121, § 3º do Código Penal Pátrio. Comumente os médicos não são condenados na forma dolosa.
A modalidade culpa advém de negligência, imprudência ou imperícia e, as excludentes aplicáveis aos médicos são o caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. Ainda, a culpabilidade pode subdividir-se em: dolo eventual, onde o agente assume o risco e anui o resultado que já havia previsto; culpa consciente, onde o agente assume o risco, mas não quer, nem anui o resultado e culpa inconsciente, onde o agente não assume o risco nem quer o resultado.
O médico pode motivar os delitos acima mencionados de diversas maneiras, inclusive prescrevendo uma dieta ou fazendo uso de algum material não esterilizado devidamente. Ademais, a responsabilização dos médicos pode ocorrer em razão de uma ação negativa como, por exemplo, a omissão de socorro. A relação (nexo de causalidade) está entre a ação/omissão e o resultado. Se este agir ou omitir der condições ao resultado, é considerado como causa.
Além da responsabilidade civil e penal, o médico ainda enfrenta o Código de Ética Médica, respondendo à sindicância passível de instauração de Processo Ético-Profissional perante o Conselho Regional de Medicina no qual estiver inscrito, conforme o artigo 2º do Código de Processo Ético-Profissional[3]. A forma de execução da punição é conforme o art. 58 do referido Código, que prevê ao médico a suspensão do exercício profissional e, ainda, a apreensão da carteira profissional.
Na esfera judicial, a lacuna na legislação acumulada com a carência de peritos tecnicamente especializados na área médica, faz com que aumente a dificuldade dos Tribunais em se posicionar ante a insuficiência de provas. Por isso, há muitos julgados no sentido da absolvição dos réus médicos, como vemos a seguir:
‘ACUSAÇÃO DE HOMICÍDIO CULPOSO POR ERRO MÉDICO – NÃO COMPROVADA SUFICIENTEMENTE A EXISTÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE O PROCEDIMENTO ADOTADO PELO MÉDICO E O ÓBITO DO PACIENTE – INVIÁVEL SE TORNA A CONDENAÇÃO – ABSOLVIÇÃO MANTIDA – RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO. Incabe a condenação do médico por homicídio culposo, se na sua conduta não houver nenhuma das modalidades de culpa. A acusação por homicídio culposo, grave por si só, é mais grave ainda quando dirigida a um médico. Daí a razão jurídica e lógica de exigir prova cabal, plena, segura, certa, da existência da culpa na causalidade do evento, no sentido material e psicológico (RT 589/355)’ (Ap. Crim. 30.130, de São José, rel. Des. Souza Varella, 24.6.94). Apelação Criminal n° 98.006862-2, Segunda Câmara Criminal do TJSC, Chapecó, Rel. Des. José Roberge, j. 18.08.1998)”. (grifei)
“APELAÇÃO-CRIME. HOMICÍDIO CULPOSO. ALEGADO ERRO MÉDICO. NÃO COMPROVAÇÃO DA OCORRÊNCIA DE NEGLIGÊNCIA OU IMPERÍCIA NA CONDUTA DO ACUSADO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPUNHA, COM BASE NO ART. 386. VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. Apelos improvidos. (Apelação Crime Nº 70018585810, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 28/11/2007).” (grifei)
No mesmo sentido, a Apelação nº 70002574010 da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“A responsabilização do réu pelo homicídio por erro médico ocorre se demonstrados incorreção técnica, e a relação de causalidade entre sua conduta e o resultado morte (art. 13 do CP). No caso, persistem dúvidas quanto as causas da insuficiência respiratória apresentada pela criança. O auto de necropsia nada esclarece e os médicos ouvidos dizem que uma das causas da insuficiência respiratória é a compressão da cabeça do feto (fl. 91), porém isto é uma das hipóteses e, um Juízo de condenação não pode se basear em hipóteses, mas sim em certeza e, como esta não há nos autos a absolvição se impõe.
Ainda, compartilha este entendimento, a 3ª Câmara Criminal do TJRS, por ocasião do julgamento da apelação nº 70010456200:
“APELAÇÃO-CRIME. homicídio culposo. ERRO MÉDICO. NEXO CAUSAL. AUSÊNCIA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. A ausência de prova do nexo causal entre o medicamento receitado e o resultado morte conduz à absolvição.
Impunha-se, como acentua o Doutor Procurador de Justiça em seu parecer, através de prova técnica complementar, demonstrar o nexo causal, coisa que não fez o apelante, porquanto se trata de questão técnica especializada, que a só literatura médica sem qualquer comprovação científica não é suficiente. Ser um potencializador de algum fato, não significa que lhe tenha dado causa.” (grifei)
O Tribunal de Justiça gaúcho traz alguns ensinamentos acerca da negligência por parte dos médicos, senão vejamos:
“EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. LESAO CORPORAL CULPOSA AGRAVADA PELA INOBSERVANCIA DE REGRA TECNICA. NAO SE CONHECE DOS EMBARGOS DE NULIDADE QUANDO INEXISTE DIVERGENCIA NOS VOTOS CONDENATORIOS (CPP, ART.609, PARAGRAFO UNICO). A AGRAVACAO DA PENA, POR INOBSERVANCIA DE REGRA TECNICA, NO DELITO DE LESAO CORPORAL CULPOSA(CP ART-129, PAR-6 E PAR-7), NAO E DETERMINDADA PELA “NEGLIGENCIA”COM QUE SE HOUVE O AGENTE. ELA E RELACIONADA COM A MAIOR REPROVABILIDADE SOCIAL QUE A CONDUTA CRIMINOSA DO PROFISSIONAL PROVOCA. ENTENDE-SE OCORRENTE A RAZAO DA AGRAVACAO QUANDO O MEDICO DA ALTA A PACIENTE SUA DE CIRURGIA CESARIA SEM EXAMINA-LA, INOBSERVANTE QUEIXAS DE DORES NO VENTRE, VOMITOS E PRESENCA DE BOLINHAS DE PUS NA REGIAO OPERADA, CONTENTANDO-SE EM EXAMINAR O RESULTADO DOS EXAMES DE ROTINA; NEM, APOS NOVA BAIXA DETERMINADA PELA EMERGENCIA VINTE E QUATRO HORAS DEPOIS DA ALTA E CONSTATACAO DE SEPTICEMIA, ACODE AS SOLICITACOES DE ATENDIMENTO, PERMITINDO A DETERMINACAO DE CICATRIZES DESDE A REGIAO UMBILICAL ATE A REGIAO PELVICA, A HEMIACAO DO BAIXO VENTRE E O COMPROMETIMENTO DA FUNCAO REPRODUTORA. EMBARGOS INFRINGENTES REJEITADOS, POR MAIORIA. (Embargos Infringentes Nº 70000173450, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vladimir Giacomuzzi, Julgado em 12/11/1999).” (grifei)
“ERRO MÉDICO. NEGLIGÊNCIA. Havendo indícios quanto ao uso, por paciente que se automedica, de substância capaz de mascarar sintomas de doença grave que leve ao óbito, não se há ver negligente médico que não a tenha diagnosticado com precisão. Absolvição mantida. (Apelação Crime Nº 70008081804, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 03/06/2004).” (grifei)
“HOMICÍDIO CULPOSO. MÉDICO ACUSADO DE AGIR NEGLIGENTE E IMPERITO. CRIANÇA QUE NECESSITAVA DE ATENDIMENTO ESPECIALIZADO, INDISPONÍVEL NA CIDADE DE BARRACÃO. Encaminhamento de urgência, pelo réu, a profissional de outra cidade, ao invés de imediata constatação de se tratar de hipótese de emergência e da adoção de providências adequadas. Culpa não demonstrada. Inexistência de seguro nexo causal entre o imputado agir culposo e a morte da vítima. Apelo improvido”. (Apelação Crime Nº 70007653041, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: RANOLFO VIEIRA, Julgado em 17/03/2004). (grifei)
Corrobora estes ensinamentos, a Câmara Especial Criminal do TJRS, no julgamento da Apelação nº 70002913044:
“Assim é que o fato e suas circunstâncias indicam, com cristalina transparência, o nexo de causalidade a fundar a sua ligação ao evento morte ocorrido.
A ré, ao deixar de agir nos moldes que se lhe impunham as circunstâncias, sob a égide da profissão que exercia, obrou em negligência, fator determinante da evolução do quadro clínico do paciente, culminando com sua morte.
Por fim, a inobservância dos preceitos técnicos específicos, como causadora do resultado, configura elementar do crime, com o que afastada a qualificadora que a portal acusatória arrola. Nesse sentido: “No homicídio culposo, a majoração da pena em virtude de inobservância de regra técnica é incabível quando esta constituir precisamente o núcleo da culpa com que se houve o agente” (JTACRIM 79/253[4]). […]
A conseqüência — resultado morte — foi antecedida de graves padecimentos, em decorrência do quadro clínico instalado pela omissão.” (grifei)
3 Conclusão
Não há como concluir de outra forma, senão que a fundamentação legal é sempre a mesma, pois o argumento maior é que não há provas suficientes a ensejar uma condenação, em que pese o Ministério Público insista em denunciar médicos sem sequer promover perícia técnica especializada a fim de esclarecer se há ou não culpabilidade em relação aos médicos.
Em verdade, o médico, como qualquer outro indivíduo, tem o direito de ser absolvido com a devida fundamentação e motivação do julgador, não tendo a seu favor apenas a argumentação de que não há provas suficientes.
Ressalte-se que o dever de provar as acusações é exclusivo do Órgão Ministerial, mas, contudo, pode haver a inversão do ônus da prova, ante a especificidade da área. Dessa forma, o médico além de encarar um processo, ainda tem que prover os meios para o julgador tomar sua decisão.
Informações Sobre o Autor
Silvia Regina Oliveira