Introdução
Vozes no deserto… Ouvidos moucos… As folhas ressequidas da Magna Carta ao vento.
Assim tem sido. O excelso Pretório, notadamente na voz de seu decano, tem sistematicamente bradado, firmemente pregado, a ponto de ficar rouco:
“O Processo Penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O Processo Penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. 1
Na realidade forense, salvo gratas e cada vez mais raras exceções, o que nos deparamos é com uma massiva presença de operadores do direito, notadamente Julgadores, comprometidos com a inversão dessa idéia – força do processo penal como anteparo, como escudo do cidadão ante o arbítrio estatal.
Dito de outra forma:
“Há um nítido descompasso entre a missão garantista dos direitos fundamentais e a concretização do processo penal. Os juízes, amparados por inversões interpretativas sub – reptícias, tem agido como aliados das razões do Estado, espalhando a dor e o sofrimento aos eleitos pelo sistema penal ”.2
De fato e infelizmente, o que mais temos visto é a função maior do Julgador, Guardião Constitucional, “Garante ” dos Direitos Fundamentais, aparentemente sucumbir, de vez, às pressões punitivas dessa quadra histórica.
Senão, vejamos:
Estudo de Caso
Em caso de acusação de tráfico – e tenho para comigo que as drogas são o último campo de luta dos direitos constitucionais, até porque, se a Constituição não proteger os acusados demonizados pela mídia e sociedade, também não poderá proteger os demais – decidiu – se condenar um cidadão, utilizando – se para tanto o torto raciocínio de que o depoimento da usuária, na fase do inquérito, mesmo após esta ter se retratado na instrução judicial, sob o crivo do contraditório, teria pleno valor probatório, devendo a sua retratação ser desprezada, uma vez que tal prova inquisitorial se coadunava com o depoimento de um único policial militar que havia atuado como condutor e que, por óbvio, manteve seus depoimentos nas duas fases.
Anote – se : O acusado jamais confessou, em momento algum, a mercancia. De início, contra si, havia o depoimento de uma usuária e do policial condutor. Em juízo, isto inverteu – se. Nada obstante, pouco importando em inusitadamente supervalorizar a prova oral inquisitorial em detrimento da prova oral judicializada, assim manifestou – se a nobre Julgadora:
“ Em que pese ser possível a retratação, esta há de ser analisada com cautela visto que é cediço que grande maioria dos usuários se retratam em juízo, utilizando de diversos argumentos, principalmente que sofreram pressão, seja física ou psicológica por parte dos policiais.
A retratação da usuária não deve ser considerada haja vista que as afirmações supracitadas não foram comprovadas e se quer há indícios de que realmente ela teria sido ameaçada pela polícia militar e pelo Delegado ”.2
Ora, porque deve prevalecer o depoimento da usuária na fase policial e não aquele prestado na instrução, frente ao Julgador, ao Ministério Público e a Defesa ?
Cautela deve haver é com relação a depoimentos não judicializados, realizados sem o crivo do contraditório, jamais, inversamente, como surpreendentemente raciocinou a emérita julgadora, superpondo prova inquisitorial sobre prova judicializada.
Convenhamos. A ninguém é dado desconhecer que o histórico da investigação policial no Brasil é salpicado de repressão e abusos, sendo comum o mediavelesco uso à tortura, a tal ponto da revista VEJA trazer em sua capa o título : “ TORTURA – O Método Brasileiro de Investigação Policial ”.
O Direito em Questão
Sobre o tema, volvemos ao Supremo Tribunal Federal, em preciosa lição:
“Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal, sob a égide da garantia constitucional do contraditório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório. (…) É nula a condenação penal decretada com apoio em prova não produzida em garantia constitucional do contraditório”.3
A bem da verdade trata-se de recomendação antiga, já que José Frederico Marques advertia que
“Devem ser descartadas as declarações constantes do inquérito, porque colhidas à revelia do contraditório, só servindo estas para o eventual oferecimento de denúncia”. 4
Ou, dito ainda de forma mais peremptória:
“A prova do inquérito tem caráter investigatório e informativo, e não a de ato de instrução. Para valer como prova do processo, necessário era que se tornasse prova judicial, como já o ensinava o grande JOÃO MENDES JUNIOR”.5
De fato, João Mendes de Almeida Junior foi incisivo sobre a necessária judicialização da prova oral, afirmando que
“eficácia probatória alguma teria os depoimentos orais não reiterados perante a instrução criminal”.6
Portanto, sentença legítima, escorreita, sob a ótica legal e constitucional, é a prolatada com fulcro na prova judicializada, banhada a luz do contraditório e da ampla defesa. Bem por isso o Min. VICENTE LEAL, do STJ afirmou que:
Qualquer prova não judicializada, porque não submetida ao crivo do contraditório, é considerada ilícita, imprestável para a formação de juízo de convencimento ”.7
E não se poderia, num legítimo Estado Democrático de Direito, cultuar – se outra referência teórica que não essa. Os meios de prova adequados e válidos para a prolação de um édito condenatório são, inexoravelmente, jungidos a um processo penal constitucional.
Dai que as provas orais obtidas no inquérito policial, porque obtidas na ausência do contraditório e da ampla defesa, servem, sim, para análise da condição da ação penal, porém, jamais, para efeito de se mandar alguém ao cárcere no Estado Democrático de Direito.
Não é possível falar – se em livre convencimento motivado e esquecer – se que o contraditório, o princípio da imediação, notadamente nas provas orais, são verdadeiras condições de validade da prova. Tais valores constitucionais, porque garantidores da higidez da prova e de um justo processo, não poderia ser imolados no altar da defesa social, no vale tudo do combate a criminalidade.
Fechamos com SUANNES:
“Ou o Judiciário se capacita disso ou não terá razão alguma para existir como poder ”.9
Informações Sobre o Autor
Renato de Oliveira Furtado
Advogado Criminalista. Professor de Processo Penal da Universidade Estadual de Minas Gerais – Campus Frutal. Membro IBCCRIM