Resumo: As teorias bioantropológicas da criminologia, inauguradas por Cesare Lombroso, objetivavam fixar critérios científicos de investigação das causas da delinqüência com base no estudo do biótipo do criminoso. Este artigo discute as razões pelas quais, no Brasil, o negro tornou-se o delinqüente nato e como as teorias bioantropológicas contribuíram para a estigmatização negativa do negro, tornando-o presença privilegiada na população carcerária.
Palavras-Chave: criminologia, discriminação racial, delinqüente
Keywords: criminology, racial discrimination, delinquent
Sumário: 1. Introdução; 2. A tradição lombrosiana na criação do homem delinqüente; 3. A influência das teorias bioantropológicas nas políticas criminais: o racismo e a eugenia; 4. O processo de adaptação do racismo científico na sociedade multi-racial brasileira: a miscigenação para o embranquecimento; 5. A estigmatização do negro como delinqüente: um levantamento da população carcerária; 6. Conclusão; 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Não seria razoável delegar às teorias bioantropológicas da criminologia, inauguradas a partir de Lombroso no final do século XIX, a responsabilidade pelas altas taxas de condenação dos indivíduos negros e pardos. Embora não se consiga determinar ao certo a origem da discriminação dos negros, sabe-se que a crença na existência de raças superiores é tão antiga quanto a própria história da humanidade.
A teoria de justiça de Aristóteles[1] não o impediu de proclamar que havia povos que tendiam naturalmente à escravidão. Montesquieu[2], por sua vez, compartilhava a tese de que no regime democrático, em que todos seriam iguais, ou na aristocracia, em que todos seriam tão iguais quanto à natureza do governo permitisse, os escravos seriam contra o espírito da constituição, pois só davam ao homem um luxo que não deveria ter. A escravidão era fruto da preguiça, e não existia trabalho, por mais penoso que fosse, que não pudesse ser desempenhado por homens livres.
Todavia, logo em seguida, ao tratar da escravidão dos negros, Montesquieu se declarava favorável, pois acreditava ser necessária a escravidão para o desbravamento das Américas. Ainda: considerava natural a cor constituir a essência da humanidade e duvidava que os negros possuíssem alma. Para comprovar sua tese, declarava o fato dos negros trocarem ouro por colares ou espelhos sem valor, demonstrando, assim, sua ausência de discernimento.
Os homens sempre criaram teorias que pudessem justificar a exploração de uma camada da população sobre a outra. Era o caso da escravidão da guerra ou de castas sociais intransponíveis.
As teorias bioantropológicas surgiram neste contexto de legitimação do poder mediante a criação de uma lógica de diferenciação de grupos pautadas nas ciências biológicas e antropológicas. Conforme atesta Jacques Maritain[3], os postulados pseudo-biológicos, retirados arbitrariamente de verdades e hipóteses da biologia e etnologia, foram utilizados para satisfazer a vontade de poderio ou defender, de maneira feroz, a preservação de um grupo étnico.
Embora a criação de teorias discriminatórias sempre tivesse existido, pela primeira vez, uma lógica de discriminação fundada na defesa da raça real, poderia se avocar como científica (e, portanto verdadeira), uma vez que seguia os rigores de observação dos métodos biológicos e antropológicos.
O racismo científico[4] veio a formar um casamento perfeito com a escola positiva italiana, criadora da criminologia.
A escola positiva via a criminologia como uma ciência empírica preocupada não em interpretar a lei penal, mas em reconhecer as causas da criminalidade. Somente pelo conhecimento das causa do crime seria possível extingui-lo. Assim, a escola positiva assumiu como missão política defender a sociedade contra o crime, denotando uma visão organicista, tal como a defesa de um corpo contra um vírus.
O objeto de estudo não era o crime, mas o criminoso, e o que revelava o caráter criminoso de um indivíduo era o seu biótipo. Com isso, a tarefa do criminólogo assemelhava-se a classificação de um biólogo em busca das características físicas do delinqüente.
Estas teorias, embora possuíssem grande variedade, caracterizavam-se pelo uso do método indutivo (observação do delinqüente) e na formulação de leis que relacionassem causa (biotipo) e efeito (crime cometido).
Desta forma, a crença na possibilidade de erradicar o crime a partir de um estudo do biotipo do criminoso acarretou em diversas políticas criminais racistas que, em última instância, praticaram o extermínio das denominadas “raças inferiores” (fosse mediante o genocídio, como ocorreu com os judeus na Alemanha nazista, ou mediante a prática da esterilização).
Se no Brasil não existiu nenhuma política de extermínio (pelo menos não institucionalizada), o racismo científico influencia, ainda hoje, a criminologia moderna. Consoante Jorge Dias e Manoel Andrade[5], a nova criminologia não desconhece que existam tipos de pessoas portadoras de estigmas negativos, que tem uma presença privilegiada entre a população delinqüente, como, por exemplo, na população carcerária.
Não é mera coincidência que os grupos estigmatizados sejam justamente os grupos outrora denominados “inferiores” ou “potencialmente criminosos”, como aconteceu com os negros no Brasil.
2. A TRADIÇÃO LOMBROSIANA NA CRIAÇÃO DO HOMEM DELINQÜENTE
A criminologia como uma ciência empírica surgiu com a escola positiva italiana, mais especificamente em 1876, com a publicação da obra de Cesare Lombroso intitulada “O homem delinqüente”. Embora Lombroso não fosse o primeiro a realizar estudos anatômicos e antropológicos em prisões (como Lauvergne, na França, e Nicholson e Thompson, na Inglaterra)[6], foi a doutrina do criminoso nato que lhe deu fama mundial.
A doutrina lombrosiana procurava características orgânicas e tipológicas que permitissem identificar o indivíduo delinqüente de maneira diversa do indivíduo “normal”. Consoante esta doutrina, o criminoso já nascia portando estigmas físicos e psíquicos herdados de seus ancestrais, tais como um tamanho específico de crânio, orelhas grandes e afastadas da cabeça, sobrancelhas largas ou lábios virados.
De acordo com Lombroso, havia diversos troncos hominídeos diferentes, uns mais antigos que outros. Quanto mais recente a espécie humana de seu tronco original, mais agressivos e selvagens seriam os seus membros. Este conjunto de características, no entender de Orlando Soares[7], denotava a influência da teoria evolucionista de Darwin na concepção lombrosiana.
Com o passar do tempo, e à medida que as espécies humanas se distanciavam do tronco principal, mais civilizados se tornavam os homens. Os criminosos natos eram os indivíduos nascidos de troncos ainda atrasados, o que explicava a presença de pessoas mais perigosas que outras.
O criminoso lombrosiano possuia uma anormalidade em relação aos demais membros da sociedade decorrente da selvageria ancestral. Tanto seu desenvolvimento físico como seu desenvolvimento mental eram incompletos (por isso havia uma aproximação entre o louco moral e o delinqüente)[8].
O resquício desta anomalia primitiva foi encontrada por Lombroso em 1871, quando realizava a autópsia do crânio de um bandido milanês chamado Vilela. Nesta autópsia, Lombroso achou a terceira fosseta média occipital, também encontrada em crânios de homens primitivos. A partir disso, deu origem à sua teoria do atavismo, que consistia no aparecimento de características da espécie primitiva presente nos embriões, em virtude da herança de um ascendente remoto, ainda que não estivesse presente nos ascendentes imediatos.[9]
Destarte a teoria do atavismo, Lombroso nunca pregou o fatalismo biológico como se o crime fosse produto incontrolável da herança primitiva dos pais. O próprio Lombroso já dizia : “assim como há criminoso ocasional, assim também há aquele que, nascido delinqüente, não se manifesta como tal, porque lhe falta a ocasião”.[10] A hereditariedade era um dos fatores que contribuíam potencialmente à prática do delito, agregados a fatores psicológicos e sociais. Ademais, Lombroso também não pretendia afirmar que todos os crimes possuiam um fundo hereditário. Era o caso dos delinqüentes ocasionais e dos delinqüentes passionais. Neste, o ímpeto era justamente o oposto do delinqüente natural, enquanto que, no criminoso ocasional, era possível encontrar criminosos que cometeram apenas delitos motivados pelas circunstâncias, como os criminosos políticos e prostitutas.[11]
O ciclo iniciado por Lombroso ao investigar a delinqüência a partir de fatores bioantropológicos influenciou diversos criminólogos que o sucederam. É possível citar, dentre os autores mais famosos, Ferri, Garofalo, Charles Goering (com a teoria da hereditariedade), Goddard (teoria da debilidade mental) e Ernest Hooton (teoria da inferioridade antropológica).
Na teoria de Ferri, a responsabilidade penal do criminoso deveria ser compreendida a partir de sua raça. Na realidade, existia uma responsabilidade social, já que as circunstâncias que motivavam o delito estaríam relacionadas com a raça do criminoso e somente a partir da raça seria possível averiguar a responsabilidade do crime.[12]
Emilio Laurent, por sua vez, observava o biotipo de criminosos famosos na História, como Calígula, cuja aparência descrita pelos maxilares grossos e assimétricos, orelhas afastadas anormalmente do crânio, assimetria das arcadas orbitárias, lóbio superior levantado de um lado, caráter atávico e expressão sardônica e cruel, revelaria seus maus instintos. Em Nero, o mesmo cientista reparou a expressão desvairada, comissuras labiais fundas e descaídas e um aspecto bestial.[13] No Brasil, houve quem defendesse a autópsia do corpo de Virgulino Ferreira, o Lampião, na tentativa de conhecer o biotipo criminoso do cangaceiro.
Diante das descobertas da escola positiva italiana, surgiu a necessidade de reelaborar as políticas criminais, antes pautadas na escola clássica, para extinguir as causas da criminalidade. Neste contexto, qualquer política criminal eficiente deveria localizar a causa do crime e adotar mecanismos aptos a eliminá-la. Em termos práticos, diminuir a taxa de criminalidade significava eliminar as raças de troncos ainda primitivos.
3. A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS BIOANTROPOLÓGICAS NAS POLÍTICAS CRIMINAIS: O RACISMO E A EUGENIA
A partir da repercussão da teoria lombrosiana do criminoso nato, diversos criminólogos ocuparam-se do estudo da biotipologia do infrator, criando a antropologia criminal. Para este novo ramo, o crime era um fenômeno biossocial que revelava um biotipo anormal, perigoso e irresponsável.[14]
Além disso, pesquisadores de outras áreas começaram a relacionar características físicas com o delito cometido. Surgiram, então, as teorias endocrinológicas (explicavam as causas do crime a partir do estudo das glândulas), as teorias genéticas (estudavam o crime a partir de anomalias cromossômicas) e as teorias psicológicas (estudavam o comportamento do delinqüente a partir do funcionamento do sistema nervoso, especialmente o cerebral).
Cada país procurou adaptar e desenvolver políticas criminais voltadas às últimas descobertas de Lombroso e às novas teorias criminológicas. Ainda que cada teoria desse ênfase a um aspecto orgânico, como o tipo, os gens, o cérebro ou as glândulas, a nova ciência criminológica possuia um objetivo muito claro: o aperfeiçoamento da raça, ou em outras palavras, a eugenia.
Diverso do caráter punitivo das penas, as teorias seguidoras da bioantropologia procuravam a “cura” dos delinqüentes, daí porque o sistema penal deveria promover políticas criminais eugênicas voltadas ao melhoramento das características físicas e psíquicas da raça.
As políticas eugênicas foram desenvolvidas a partir da realidade sociocriminal de cada país, variando desde a endogamia com o fito de evitar a transmissão de doenças hereditárias, até o uso de meios cirúrgicos. Nos Estados Unidos e na África do Sul (mesmo não havendo mais escravatura) foram proibidos os casamentos inter-raciais, para a preservação da raça e contenção da criminalidade. Já na Austrália, os filhos de aborígines com brancos ficavam sob a tutela do Estado – o objetivo era que os mestiços se casassem somente com indivíduos brancos, para ocorrer o embranquecimento da raça.
A preocupação na transmissão de doenças hereditárias era tamanha que cientistas em todo o mundo passaram a defender a adoção da esterilização e, em alguns casos, da castração e da pena de morte.
A Alemanha foi um dos países que mais absorveu as teorias eugênicas. Em 24 de novembro de 1933, foi introduzida a lei de castração como medida de segurança aos delinqüentes culpados de crimes sexuais graves e reincidentes de crime contra os costumes, sendo seguida pela aprovação da lei que previa a esterilização a todos os indivíduos degenerados. Nos dizeres de Aureliano Araújo, o intuito dessas normas era impedir a propagação das características psicopatológicas aos descendentes:
“A referida lei, que tem objetivos de prevenção, refere-se à esterilização compulsória dos indivíduos afetados de doenças hereditárias, tais como a imbecilidade congênita, a esquizofrenia, a loucura circular, a epilepsia hereditária, o alcoolismo crônico e a cegueira também transmissível por meio da hereditariedade.”[15]
O ápice da política criminal nazista ocorre com o genocídio de milhões de judeus, negros, ciganos e portadores de deficiência, considerados indivíduos de raças inferiores e uma ameaça à sociedade alemã.
Embora as políticas germânicas de castração e o genocídio tivessem sofrido críticas pela maior parte dos criminólogos, a esterilização foi legalmente aprovada nos Estados Unidos, México, Dinamarca, Canadá, Suécia e Suíça, por não causar os traumas da mutilação ou impedir o coito, mas apenas interrompendo a capacidade reprodutiva. No Brasil, a esterilização como método de prevenção do crime foi defendida por autores como Aureliano Araújo (ex-Professor da Faculdade de Direito do Recife), Edgar Altino, Nina Rodrigues e Lemos Brito, cujos argumentos se justificam em prol do aperfeiçoamento da espécie humana, como medida de profilaxia social e criminal, realizada antes e após o delito. Aureliano Araújo, inclusive, chegou a defender a pena de morte a uma certa categoria de delinqüentes antro-psicológicos inadaptáveis e resistentes a todas as formas de ressocialiazação (a segregação perpétua, defendida por Quintiliano Saldaña, seria muito onerosa ao Estado). [16]
Diferentemente dos Estados unidos, que possuiam uma segregação racial bem definida, e dos países europeus, cuja população racial era muito homogênea, o Brasil, face à grande população negra, necessitou encontrar uma saída alternativa, e no mínimo criativa, para implementar as teorias bioantropológicas e suas políticas criminais eugênicas.
4. O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO DO RACISMO CIENTÍFICO NA SOCIEDADE MULTI-RACIAL BRASILEIRA: A MISCIGENAÇÃO PARA O EMBRANQUECIMENTO
A lógica das políticas criminais eugênicas contribuiu para o desenvolvimento de leis de segregação. Foi o caso da política de Apartheid, na África do Sul, que durou até o final do século XX e nos Estados Unidos, onde a lei da endogamia racial só foi considerada inconstitucional no ano de 1954. Antes disso, a segregação era legalmente institucionalizada e o casamento inter-racial proibido, havia a separação de escolas, bairros, restaurantes e hotéis de acordo com a raça do indivíduo.
Devido às leis de segregação norte-americanas, a sociedade dividia-se em duas categorias raciais definidas com clareza: os negros e brancos (ou os brancos e os não-brancos). A endogamia permitiu a classificação bi-racial mediante o critério da ancestralidade (princípio da descendência), cuja regra definia a raça a partir dos ascendentes e era certificada nos registros públicos. De acordo com Thomas Skidmore, as teorias do racismo científico acabavam por agravar a categorização bi-racial nos círculos acadêmicos e elitistas da sociedade norte-americana.[17]
Ao realizar um estudo comparativo, o historiador americano observou que a realidade multi-racial brasileira diferia significamente da segregação bi-racial dos Estados Unidos. Não que no Brasil não houvesse preconceito[18], mas porque a inexistência de regras de ancestralidade impediam uma definição das categorias raciais.
No Brasil, Carl Degler observou que o surgimento da “escapatória mulata” era a maior dicotomia entre as relações raciais brasileiras e as relações raciais norte-americanas (um dos motivos seria a incapacidade das mulheres da América Portuguesa em impedir a legitimação dos filhos mestiços ilícitos de seus maridos com as escravas).[19] O fato é que a aprovação de diversas leis contra o tráfico negreiro (entre 1831 e 1854), a lei do ventre livre (1871) e a lei dos sexagenários (1885) no período anterior à abolição da escravatura aumentou consideravelmente a população negra e mestiça alforriada ou livre por nascimento.
Enquanto nos Estados unidos o mulato era visto como negro (ou afro-americano, de acordo com a terminologia americana), no Brasil o mestiço era considerado uma terceira categoria racial, com potencial de tornar-se cada vez mais branca e, conseqüentemente, menos degenerada.
Embora não exisisse uma “linha de cor” clara, a elite brasileira aceitou a tese da superioridade branca e tentou conciliar a sociedade multi-racial às teorias bioantropológicas, mediante o argumento de que, no Brasil, o branco prevaleceria através da miscigenação: “Ao invés de mongrelizar a raça, a mistura racial estava embranquecendo o Brasil. Longe de ser uma ameaça, a miscigenação era a salvação”.[20]
A ideologia da miscigenação para o embranquecimento da população criou o mito da democracia racial brasileira, como se o país passasse do período da escravidão para o período da abolição sem quaisquer traumas racistas em relação aos negros: “cria-se a crença de que não há preconceito no Brasil”. Além disso, o assimilacionismo permitia ao mulato uma maior mobilidade social – se o indivíduo não poderia ser classificado como branco, pelo menos não era classificado com negro.
Paralelamente, o governo tomava diversas medidas voltadas para o embranquecimento. Entre 1890 a 1940 não foi realizado o levantamento da população racial nos censos, o mesmo aconteceu no censo de 1970 (época da ditadura), sob a justificativa da ausência de definições das categorias raciais. Na introdução ao censo de 1940, Fernando Azevedo escreveu:
“A admitir-se que continuem negros e índios a desaparecer, tanto nas diluições sucessivas de sangue banco como pelo processo constante de seleção biológica e social, e desde que não seja estancada a imigração, sobretudo de origem mediterrânea, o homem branco não só terá no Brasil seu maior campo de experiência e de cultura nos trópicos, mas poderá recolher à velha Europa – cidadela da raça branca –, antes que passe a outras mãos, o facho da civilização ocidental a que os brasileiros emprestarão uma luz nova e intensa – a da atmosfera de sua própria civilização.” (grifo nosso)[21]
O Decreto nº 528/1890 e o Decreto-Lei nº 7.967/1945 autorizaram a entrada de mais de 4 milhões de imigrantes europeus, registrando a maior história de imigração em massa do país, enquanto isso, o ingresso de negros e asiáticos só eram admitidos com a autorização do Congresso Nacional.
A subjetividade da definição das categorias raciais fez com que, no Brasil, diferente da ancestralidade, os indivíduos delimitassem a raça baseada na aparência e na posição social, em busca de traços característicos, como o nariz, orelhas, cor da pele, cor dos olhos e tipo de cabelo, permitindo definir o indivíduo com negro, mulato ou branco. Em vez de garantir a democracia racial, a ideologia assimilacionista, na realidade, acabou por introduzir o preconceito racial entre os negros e mestiços, que procuravam parceiros cada vez mais claros para embranquecer a raça.
A existência de maior mobilidade social entre os mulatos e o preconceito racial entre indivíduos negros foi evidenciada nas pesquisas de Carlos Alfredo Hasenbalg. Entre os anos de 1968 e 1977, Hasenbalg registra pelo menos 48 ocorrências de crimes de racismo. Em uma delas conta a notícia publicada pelo Jornal do Brasil, no dia 15 de abril de 1971, onde o Clube Náutico de Ipojuca proíbiu em seu regulamento a contratação de jogadores negros, sendo permitido, no máximo, a contratação de morenos “desde que não fossem morenos demais”. No ano seguinte, o juizado de menores da Guanabara constatou que, durante o processo de adoção, as crianças negras eram preteridas inclusive por casais de cor: “quando pretendem adotar, preferem crianças pardas, e, quando forem escuras, que tenham cabelos lisos”.[22]
O maior efeito da ideologia do embranquecimento, derivada das teorias bioantropológicas, é a destruição da identidade negra e o fortalecimento da estigmatização desta raça como inferior. O país que recebeu a maior população escrava da África possui índices que revelam uma queda vertiginosa da população negra, ou pelo menos, da população que se considera negra, conforme se verifica na tabela.
5. A ESTIGMATIZAÇÃO DO NEGRO COMO DELINQÜENTE: UM LEVANTAMENTO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA
A morte de seis milhões de judeus durante a 2ª guerra mundial deixou um alerta ao mundo acerca das conseqüências de uma política sócio-criminal eugênica.
A partir dos anos 50, começaram a surgir diversas ações de fortalecimento da raça negra. Nesta década, era feita a integração forçada nos Estados Unidos e criado o movimento black´s is beautiful. O processo de descolonização da África também fortaleceu o sentimento de nacionalismo na cor. No Brasil, diversos grupos de militância negra e acadêmicos passaram a denunciar a ideologia assimilacionista.
A figura do criminoso nato, própria das teorias bioantropológicas, foi questionada por diversos cientistas. Primeiramente, porque não se chegou à qualquer conclusão definitiva acerca das características biotipológicas do delinqüente (cada país adaptava as teses do racismo científico em detrimento dos segmentos sociais já discriminados), em segundo, porque a nova criminologia entendia o crime como um fato social e não antropológico.
Mas se o biotipo não interferia na delinqüência de um indivíduo, como justificar o fenômeno de que, no censo penitenciário realizado pelo Conselho Nacional de Política Criminal, entre 1992 a 1993, dois terços da população carcerária era formada por indivíduos negros e pardos? Se os negros não possuem uma tendência natural ao crime e se no Brasil não existe racismo (como quer a ideologia assimilacionista), por que eles compõem a maioria da população carcerária?
No ano de 2000, um novo censo foi realizado. O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas cruzou os dados do IBGE com a população do Rio de Janeiro, a fim de estabelecer o retrato do presidiário carioca. A pesquisa revelou que só a quantidade de negros presos é 2,6 vezes maior que o percentual populacional:
Durante os anos de 1900 e 1930, o sociólogo Carlos Antônio Costa Ribeiro Filho estudou 400 processos no Rio de Janeiro e constatou que os negros e pardos tinham mais probabilidade de serem condenados do que um branco respondendo à mesma acusação. Ainda: a cor negra das vítimas acabava funcionando como atenuante (situação igualmente constatada em estudos realizados nos Estados Unidos).[23]
O sociólogo Sérgio Adorno[24], do Núcleo de Estudos da Violência da USP, realizou uma pesquisa semelhante em São Paulo entre os anos de 1984 e 1988, e observou que 48% dos condenados são negros, contra 24% de negros na população. As condenações por roubo qualificado somam 38% de todas as condenações, e 58% dos flagrantes realizados são em pessoas negras, contra 46% em brancos.
O total de 42% de brancos apresentam testemunhas, contra 25% dos negros; 27% dos brancos conseguem responder o processo em liberdade, enquanto apenas 15% dos negros conseguem este benefício. Finalmente, 60% dos brancos são absolvidos contra 27% de absolvição entre os negros.
Nos Estados Unidos, os dados impressionam. Com uma população carcerária de dois milhões de presos, os norte-americanos são considerados a democracia que mais encarcera no mundo.
Jorge Pontual narra que no ano de 1986, o Congresso americano aprovou leis de combate às drogas e iniciou uma forte política criminal de repressão ao consumo e ao tráfico. Consoante as novas leis, o juiz perdia a possibilidade de condenar um usuário de crack, por exemplo, a se tratar em uma clínica especializada, pois a pena era automaticamente fixada em 5 anos de prisão sem redução (embora o consumo do crack nunca tenha ultrapassado 0,5% da população). Diante do conjunto de leis, os negros acabaram se tornando os principais alvos da repressão:
“Como o uso desse subproduto barato da cocaína se concentra nos centros urbanos, cresceu muito a proporção de negros na população carcerária. Entre 1985 e 1995, o número de presos por drogas cresceu 707% entre os negros contra 306% entre os brancos.”[25]
Os negros representam 60% de todas as condenações por tráfico de drogas nos Estados Unidos. A pena de um negro que comete estupro é fixada em 70 meses de prisão, em média, já um branco condenado por estupro recebe, em média, 56 meses. A população de negros nos Estados Unidos é de 12%, mas de acordo com o censo penitenciário, 70% dos presos no país são negros, perfazendo o total de 1,43 milhão.[26]
A alta taxa de indivíduos negros nas populações carcerárias brasileiras ou norte-americanas demonstram uma relação direta entre raça e condenação. Primeiramente porque, em ambos os países, a cor está relacionada com a pobreza, o que dificulta que os indivíduos negros possam se servir de uma assessoria jurídica de qualidade. A testemunha de defesa, por exemplo, que pode ser de extrema importância num processo criminal, não é apresentada pela grande maioria.
Além disso, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, existe uma preocupação especial, por parte das instituições políticas e jurídicas, nos crimes tipicamente cometidos pelos delinqüentes negros, seja mediante uma rigorosa fixação de pena ou uma diligente averiguação policial. Como já dito anteriormente, o roubo qualificado é o crime de maior condenação, porém, crimes amplamente praticados, como o aborto, são raríssimas vezes objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, embora o objeto de violação seja a vida humana e não o patrimônio, como no caso do roubo.
A preocupação em tipificar condutas próprias da raça negra não é recente. O Código Penal de 1890, em seu artigo 402, declarava: “Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem (…). Pena – Prisão celular por 2 a 6 meses”. Na Bahia, as manifestações de candomblé só eram autorizadas uma vez ao ano e até a prática do candomblé era considerado como uma prova da “incapacidade das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo”.[27]
Somado a estes fatores, o legado das teorias bioantropológicas contribuiu para a formação do esteriótipo dos negros como infratores, transformando-os em alvo de constante vigia por parte do sistema criminal. Basta lembrar das denúncias de agressão por parte dos policiais ao realizarem as famosas “batidas” e “revistas” nas favelas. Mesmo sabendo que a maior parte dos moradores é formada por trabalhadores pobres, acabam tratando a todos como traficantes.
Diante dos fatos fica o desafio de Jorge da Silva:
“Se os estudiosos, entretanto, partirem da premissa de que as diferenças nada têm a ver com a raça, a não ser, como ensinaram Richard Leakey e outros estudiosos, as referentes ao fenótipo, sem importância, portanto, para comparar os seres humanos, terão um grande campo de estudo para tentar compreender as causas da marginalização particular das populações negras, e as formas para reverter o quadro, em proveito de todos. Se, ao contrário, não conseguirem se desvencilhar da visão tradicional a respeito da “nocividade inerente” dos negros, basta evitar o assunto ou repetir Nina Rodrigues. E continuar convivendo com a crise social. E partir para a repressão e, por que não dizer, para o extermínio, e para os movimentos eugênicos, e para o “controle da natalidade”…[28]
6. CONCLUSÃO
A escola positiva italiana, inaugurada a partir de Cesare Lombroso, criou a criminologia como uma ciência, cujo método de estudo consistia na investigação do biotipo do criminoso para a identificação das causas do crime. O caráter delinqüente de um indivíduo era proporcionado devido à herança atávica de seus ancestrais primitivos.
Face às descobertas da escola positiva italiana, as políticas criminais de vários países reelaboraram suas políticas criminais na tentativa de extinguir a criminalidade. Na prática, essas políticas criminais foram desenvolvidas no sentido de extirpar as raças que possuíam a “degeneração genética”, seja mediante o extermínio ou a esterilização. No Brasil, diante da ausência de critérios claros de fixação da raça, as políticas criminais eugênicas foram adaptadas com a miscigenação para o embranquecimento da população, assim, a raça branca acabaria por prevalecer após sucessivas diluições sanguíneas, desde que o excedente branco puro (trazido pelos imigrantes euroupeus) não fosse encerrado.
A ideologia assimilacionista afetou consideravelmente a percepção da identidade racial no Brasil, inclusive entre os negros, que buscavam parceiros cada vez mais claros na tentativa de alcançar maior mobilidade social. A investigação da raça era realizada pela aparência da pessoa, por isso a sociedade brasileira tornou-se uma sociedade extremamente atenta a quaisquer sinais que permitissem classificar a raça do indivíduo, como os olhos, o nariz, a boca, o tipo de cabelo, para poder “escapar” do estigma negativo de ser negro (daí a denominação escapatória mulata).
Além disso, como não existiam dados sobre a situação racial no Brasil, criou-se o mito de que no Brasil não existia racismo e qualquer teoria que pudesse afirmar o contrário era vista como atentatória à democracia racial brasileira.
Atualmente, os negros compõem a maior parte da população prisional e registram penas superiores pelos mesmos crimes, comprovando que o fator raça ainda é um forte indicador na condenação de um indivíduo. Além disso, os crimes mais comuns cometidos por membros das classes baixas (e conseqüentemente negros), como o crime de roubo qualificado, são justamente os crimes mais apurados e que representam a maior taxa de condenação.
Uma das justificativas deste fenômeno reside justamente no legado das teorias bioantropológicas, da escola positiva italiana, que dá ao negro o estigma negativo de criminoso, seja mediante a esteriotipização ou pela forte repressão criminal da cultura negra delinqüente. A classe baixa, composta principalmente por negros e mulatos, acaba sendo mais vigiada e punida do que a classe média e alta.
Informações Sobre o Autor
Deborah Dettmam Matos
Professora de Direito da Universidade Federal do Piauí Doutoranda em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco