A prescrição atinge a ação ou a pretensão?

Resumo: A prescrição, em nosso ordenamento jurídico, foi concebida como meio de impedir o alongamento do conflito entre os litigantes, por meio do perecimento do direito não submetido ao exame judicial nos prazos estabelecidos em lei. Ela não atinge, no entanto, o direito de ação, uma vez que este é autônomo, sendo desnecessária a existência de um direito subjetivo violado para justificá-lo. De fato, é pela ação que se provoca a atividade jurisdicional, para satisfazer determinada pretensão, mesmo que simplesmente declaratória. Seu conceito evoluiu com a formulação de várias teorias, desde o período em que ação e processo se confundiam como partes do direito substantivo, até a total separação de seus conceitos. Assim, hoje, o direito de ação é abstrato, incondicionado e imprescritível e, já a prescrição, que é instituto de direito material, atinge diretamente a pretensão, ocasionando o indeferimento da tutela jurisdicional.


Palavras-Chave: Prescrição; Pretensão; Direito de ação


Abstract: The prescription in our legal system was conceived as a way of stopping the extension of the conflict between the litigants, through the extinction of the right not submitted to judicial exam within the time allowed by law. It does not reach, however, the right of action, since it is autonomous, being unnecessary the existence of a subjective right violated to justify it. In fact, it is the action that causes the activity court, for satisfy a particular pretension, even if simply declaratory. Its concept has evolved with the formulation of various theories, from the period in which action and process were linked as part of substantive law, until complete separation of its concepts. So today, the right of action is abstract, unconditional and unqualified and have the prescription, which is the Office of substantive law, directly affects the pretension, resulting in the rejection of judicial review.


Sumário: 1. Introdução. 2. Das Teorias da Ação. 3. Do Direito de Ação. 4. Da Prescrição. 5. Conclusão. Referencias bibliográficas


Introdução


A prescrição, ao lado da decadência, é instituto jurídico que visa à pacificação de conflitos, evitando que estes se alonguem demasiadamente. Assim, o prazo prescricional limita o período de tempo que pode perdurar a exigibilidade de uma obrigação, fazendo com o que a inércia do credor extinga a possibilidade de se exigir o cumprimento da mesma.


É comum dizer que a prescrição é a perda do direito de ação e a decadência, a perda do direito material. Esta conceituação sucinta, contudo, esbarra na discussão doutrinária referente ao efetivo alcance da prescrição, ou seja, se ela realmente atinge o direito de ação ou tão só a pretensão posta pelo autor da demanda ao juízo.


Este trabalho é uma rápida abordagem dessa divergência em relação a prescrição, objetivando apresentar seus principais aspectos e uma posição preliminar sobre a mesma.


Das teorias da ação


Ação é o direito ao exercício da atividade jurisdicional – ou o poder de exigir esse exercício[1] – conceito este resultante de um longo processo doutrinário, fundado numa seqüência evolutiva de teorias, conforme comentado a seguir.


A teoria imanentista (ou civilista, quando se trata da ação civil), formulada numa época em que prevalecia o entendimento de que ação e processo eram tão-só partes do direito substantivo, considerava que a ação é o direito de pedir em juízo o que nos é devido. Dela decorreu a Teoria de Savigni: “não há ação sem direito; não há direito sem ação; a ação segue a natureza do direito”[2],. O direito de ação era tido como complemento do direito subjetivo de cada um.


Já a teoria de Muther, resultante da polêmica entre este doutrinador alemão e seu compatriota Windscheid, diferenciava o direito lesado da ação, resultando dessa diferenciação o direito de tutela jurídica do Estado e o direito do Estado de punir a lesão. Assim, surgiram desta teoria dois direitos de natureza pública, o direito do ofendido à tutela jurídica do Estado e o direito do Estado em trazer a paz social e a eliminação do conflito.


A teoria do Direito Autônomo e Concreto, formulada por Wach, também na Alemanha admitia a ação como um direito autônomo, não havendo necessidade de ter por base um direito subjetivo material violado, pois se pode recorrer ao judiciário apenas para se obter declaração de existência ou não de uma relação jurídica. Chiovenda, formulador do conceito da ação potestativa, era adepto desta teoria, mas dela discordava quanto à natureza pública da ação, por entender que a propositura da ação não deveria ser contra o Estado, mas sim contra o causador da lesão ao direito.


Teoria de Liebman, autor que teve grande repercussão em nosso ordenamento, e sua teoria foi adotada em nosso país. Para ele a ação é um direito autônomo e abstrato, portanto independe da existência do direito material alegado pela parte, bem como independe do resultado do litígio, ocorrendo a ação mesmo nos casos de improcedência do pedido. Entretanto, necessário se faz que estejam presentes as condições da ação, sendo elas: a possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam, não havendo que se falar em ação na ausência de uma delas.


Percebe-se com evolução das teorias, que a princípio não se distinguia ação do direito subjetivo, entendiam que para uma existir necessariamente a outra deveria também existir, assim sendo, a ação era imanente ao próprio direito da pessoa. Com o passar do tempo tornaram-se independentes o direito de ação e o direito material, porém prevalecia o entendimento de que o direito de ação apesar de autônomo em relação ao direito material, aquele somente existiria se ocorresse a procedência do pedido, o que de certo não se coaduna com as ações meramente potestativas. Posteriormente, não mais estavam vinculadas uma a existência da outra, sendo a ação o direito ao exercício da atividade jurisdiciaonal independentemente do resultado da demanda.


A ação é, portanto, uma situação jurídica de que o ofendido desfruta perante o Estado – seja esta situação direito ou poder. Ela é dirigida apenas ao Estado e garantida na Constituição Federal (artigo 5º, Inciso XXXV) não só quanto à resposta ao lesado, mas também ao que se denomina devido processo legal (artigo 5º, Inciso LIV).


Do direito de ação


O direito de ação, segundo Vicente Greco Filho, “é o direito subjetivo público de pleitear ao Poder Judiciário uma decisão sobre uma pretensão”[3] e está dividido em dois planos:


– Plano do direito constitucional, onde o direito de ação funda-se no princípio da inafastabilidade, é abstrato, incondicionado e imprescritível.


– Plano do direito processual, o direito de ação é conexo a uma pretensão, que busca a afirmação de uma situação jurídica substancial.


Isto não significa dizer que há dois direitos de ação – constitucional e processual – pois ele será, sempre, processual, pois é por meio do processo que ele é exercido. Constitucionalmente, há as garantias já citadas, necessárias para que a lei não iniba o Poder Judiciário na correção de lesões a direitos.


Ou seja, direito de ação nada mais é que o direito de pedir ao Estado a prestação de sua atividade jurisdicional analisando o caso concreto.


Da prescrição


Já se referiu, na introdução deste trabalho, que a prescrição é tida como a perda do direito de ação, entendimento este que vem da doutrina clássica para a qual a prescrição ataca a ação e por via de conseqüência prejudica o direito material pleiteado.


Mas este entendimento, aparentemente é equivocado, pois o direito de ação é abstrato e autônomo, todos têm direito de levar a juízo qualquer pedido a fim de que seja dado provimento judicial e, mesmo que não acatado o pedido, houve necessariamente o direito de pleitear ao Estado a tutela jurisdicional.


De fato, ao ser violado o direito, nasce para o credor o poder jurídico de coercibilidade que deve ser exercido dentro do prazo prescricional que está descrito na lei, e este poder chama-se pretensão[4], e é sobre esta que, verdadeiramente, recai a prescrição.


Pretensão nada mais é que o bem jurídico que o autor deseja alcançar por meio da via judicial, uma vez não obtida a satisfação da obrigação extrajudicialmente. Ela nasce quando um direito a prestação é violado e morre no último dia da prescrição.


A expressão pretensão foi utilizada pela primeira vez na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), na disposição de seu artigo 27|:


“Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”. (Grifou-se).


Comentando a revisão do Código Civil de 1916, disse Humberto Theodoro que


“O novo Código tomou posição no debate travado no direito comparado e optou por conceituar a prescrição como perda da pretensão (art. 189), idéia que se aproxima da posição romana (actio) e que é a atual do direito alemão e suíço. Com isso, facilitada restou a configuração dos casos de decadência (art. 207), aos quais se dedicou regulamentação separada (arts. 207 a 211)” (Grifou-se)


Observou, também, que para se dar a prescrição é necessário que:


 “a) exista o direito material da parte a uma prestação a ser cumprida, a seu tempo, por meio de ação ou omissão do devedor;


“b) ocorra a violação desse direito material por parte do obrigado, configurando o inadimplemento da prestação devida;


“c) surja, então, a pretensão, como conseqüência da violação do direito subjetivo, isto é, nasça o poder de exigir a prestação pelas vias judiciais; e, finalmente;


“d) se verifique a inércia do titular da pretensão em fazê-la exercitar durante o prazo extintivo fixado em lei” (Grifou-se)


Foi, portanto, em decorrência das considerações acima que o artigo 189 do Código Civil de 2003 estabeleceu que.


 “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. (Grifou-se)


Como notamos no texto de lei, a prescrição recai apenas nos direitos a uma prestação e opera do inadimplemento ou da lesão da obrigação, por ser instituto de direito material e não processual.


Conclusão


Pelo que foi aqui exposto, fica evidenciado o entendimento de que a prescrição atinge a pretensão do ofendido (que nasce com a violação de um direito) e não o seu direito de ação. Esta discussão já deixou o âmbito das discussões doutrinárias e está firmado na própria legislação vigente. Ou seja, a “perda do direito de ação”, hoje em dia, é um conceito ultrapassado.


Portanto, é mais coerente dizer que a prescrição extingue a pretensão e não a ação, pois o que realmente a prescrição obsta é a pretensão de exigibilidade de um direito que não foi perseguido no prazo estabelecido em lei. De fato, na medida que o juiz profere a sentença alegando a existência do lapso temporal e, portanto, admitindo a prescrição, o direito de ação já foi devidamente exercido, não se tendo mais, o credor a possibilidade de se exigir a obrigação pleiteada. Mais ainda, por ser direito público, abstrato e indisponível, em razão do principio da inafastabilidade da jurisdição, o direito de ação não prescreve.


Concluí-se que a prescrição afeta diretamente a pretensão de exigir a satisfação da obrigação e por via de conseqüência a ação, pois o lapso temporal, definido em lei não tem eficácia extintiva do direito, tendo em vista que o devedor pode pagar dívida prescrita, que passa a ser tida como obrigação natural.


 


Referências bibliográficas:

BRASIL. Código Civil. 7ª ed. Editora RT: São Paulo, 2005

BRASIL. Código de Processo Civil. 12ª ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2006

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35ª ed. Editora Saraiva: São Paulo, 2005

DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Alda Pelegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 18ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2002

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 16a. ed. 1º e 2º Volumes. Editora Saraiva: São Paulo, 2002

THEODORO JÚNIOR, Humberto, da prescrição e da decadência no novo Código Civil brasileiro. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira César; ROSAS, Roberto (orgs.). Aspectos controvertidos do novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

 

Notas:

[1] DINAMARCO, 2002. p. 250

[2] Idem, p. 250

[3] GRECO FILHO, 2002. p. 75

[4] Segundo definição do Dicionário Houaiss, pretensão é a “solicitação ou reivindicação que é objeto de ação judicial” 


Informações Sobre o Autor

Karin Maria Montenegro Marques

Advogada, Pós-graduada em Direito Processual Civil.


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