A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo)

Resumo: O concessionário tem direito de proceder à suspensão do fornecimento de energia elétrica, pouco importando se a inadimplência decorre de débito novo (relativo à fatura do último mês de consumo) ou débito antigo (decorrente de apuração de consumo não faturado em razão de fraude). As Leis 8.987/95 e Lei 9.427/92 previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira, cuja não satisfação autoriza o corte do fornecimento de energia elétrica. Ao estatuírem o direito à suspensão do serviço na hipótese de inadimplência, não fizeram distinção em relação à natureza do débito que autoriza o corte, não podendo o intérprete (julgador) restringir o alcance dos dispositivos legais. O contrato que o usuário assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. A atual jurisprudência do STJ, que faz distinção entre débito novo (relativo à fatura do último mês de consumo) e débito antigo (decorrente de apuração de consumo não faturado em razão de fraude), admitindo o corte de energia na primeira situação e impedindo-o na segunda, desconsidera o sistema integrado de normas que regulam o setor de distribuição de energia no país, além de estimular o cometimento de crimes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.


Palavras-chave: Corte. Energia elétrica. Débito. Pretérito. Fraude. Consumo. Impactos. Decisões. Judiciais. Economia. Direitos. Fundamentais. Concessionário. Contrato. Medição. Faturamento.    


1. Introdução


O presente estudo procura demonstrar a inexistência de fundamentação suficiente à preservação da jurisprudência que impede o corte de energia elétrica, em caso de fraude na medição do consumo. O entendimento atual no STJ é de que “o corte de energia elétrica pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, em relação aos quais existe demanda judicial ainda pendente de julgamento, devendo a companhia utilizar-se dos meios ordinários de cobrança”[1]. Como o preposto da concessionária (empresa distribuidora de energia) faz a “revisão do faturamento” (recuperação do consumo não faturado), quando constata fraude no medidor (ou de outra natureza), o débito resultante do auto de infração sempre alcança períodos (faturas mensais) anteriores à data de constatação da irregularidade[2]. Embora exista autorização em norma regulamentar[3] e legal[4] para a suspensão imediata do fornecimento nesse caso, na prática o corte se torna inviável diante da posição do STJ.


Sei que parece afoiteza querer confrontar uma jurisprudência que vem se consolidando a cada novo julgado, inclusive com pronunciamentos de diferentes órgãos fracionários da Corte Superior. Mas permaneço com a resoluta idéia de que os julgadores, nessa matéria, elaboraram premissas interpretativas equivocadas e de que a permanência dessa diretriz jurisprudencial além de encorajar o cometimento de fraudes, onera e põe em risco a prestação do serviço (de distribuição de energia elétrica) para toda a coletividade. A prevalecer a tese (por enquanto vencedora) de que não se pode proceder ao corte da energia em caso de fraude, será mais vantajoso para qualquer cidadão ser desonesto e fraudar o consumo, do que ser honesto e eventualmente se tornar inadimplente. Isso porque o fraudador pode continuar recebendo energia sem efetuar o pagamento da conta, enquanto que o cidadão honesto pode ter suspenso o fornecimento sempre que não pagá-la. O que é pior é que o fraudador, além de ter o fornecimento de luz religado por força de decisão judicial, ainda poderá eventualmente ser indenizado a título de danos morais[5].


Acredito que essa jurisprudência que não permite o corte de energia por débitos antigos é o típico caso de intervenção judicial que não atenta para as repercussões econômicas e termina por atingir um determinado setor, prejudicando o seu desenvolvimento. Como se sabe, uma interferência judicial desarrazoada pode impactar negativamente as relações comerciais, repercutindo no desenvolvimento, visto que interfere na expectativa dos agentes econômicos. As partes que se envolvem em um negócio jurídico têm expectativas quanto ao cumprimento das obrigações recíprocas assumidas. Essa é uma das funções do contrato, de assegurar segurança jurídica quanto à satisfação das prestações. Uma indevida ou exagerada interferência judicial posterior nessas relações, desonerando uma das partes de sua obrigação originária ou retirando de uma delas um direito que lhe estava assegurado no momento da contratação, acaba por eliminar essa função dos contratos, aumentando os riscos e custos da atividade econômica. Se as concessionárias de energia elétrica tinham a previsibilidade de poder realizar o corte em casos de fraude, quando se envolveram originalmente no negócio, o impedimento posterior pode prejudicar o modelo de distribuição de energia elétrica, já que aumenta os riscos da atividade. Aumentando os riscos da atividade e, portanto, interferindo no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, a consequência última pode ser o comprometimento do próprio atendimento da demanda dos consumidores que pagam suas contas de luz em dia.


A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que a energia elétrica é um bem destinado a toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Os legisladores levaram isso em consideração, no momento de definir as políticas públicas pertinentes à definição dos agentes provedores, a forma de fazer a distribuição, com que custos e pagos por quem[6]. O setor elétrico foi objeto de uma reformulação estrutural, visando à remoção de obstáculos ao seu desenvolvimento, com a quebra do monopólio estatal. Uma descabida intervenção judicial nesse domínio pode ter o efeito de interferir no seu equilíbrio, notadamente na equação dos custos da distribuição de energia. A perspectiva para o fornecedor de energia elétrica, que decorre da relação contratual estabelecida com o consumidor, de poder realizar o corte do fornecimento em caso de inadimplemento (ainda com mais razão quando o não cumprimento da obrigação decorre de fraude) é uma forma de garantir a continuidade, qualidade e eficiência da prestação do serviço para toda a sociedade. Essa garantia foi dada legalmente ao distribuidor[7] sobretudo para possibilitar a diminuição dos custos de sua atividade e, por decorrência, a modicidade das tarifas do serviço. Portanto, impedir o prestador do serviço de realizar o corte, mesmo quando constatada a fraude, a par de gerar insegurança jurídica, estimular o cometimento de fraudes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, também é medida socialmente injusta.


Por todas essas razões, tenho a ousadia de me manifestar contrário à jurisprudência atual do STJ, na esperança de que possa ser revista, da mesma forma como já ocorreu anteriormente em relação a outros temas de interesse nacional que mereceram a atenção da Corte superior de Justiça. Não é demasiado lembrar que, mesmo em relação ao simples inadimplemento (de conta relativa à última medição do consumo), o STJ começou proibindo o corte de energia, mas depois mudou de posição[8]. A expressividade das normas contidas no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), que permitem o corte do fornecimento da energia em caso de inadimplemento (sem fazer distinção quanto a débito pretérito ou relativo à fatura do último mês de medição), certamente vão forçar o Tribunal Superior a rever novamente sua posição. Diga-se, aliás, que já se pode pressentir uma tendência à alteração jurisprudencial. Um primeiro sinal nesse caminho foi dado recentemente (no dia 07.10.09) pelo Presidente do STJ, Min. Cesar Asfor Rocha, ao deferir suspensão dos efeitos de liminar que havia sido concedida em ação civil pública, esta ajuizada com o objetivo de determinar o religamento da energia para consumidores que tiveram o fornecimento suspenso em decorrência de fraude ou violação do medidor de consumo[9]. Embora o exame de pedido de suspensão de liminar revista-se mais propriamente de um caráter político do que técnico-jurídico – nele é apreciada a repercussão da decisão impugnada em termos do “interesse público” ou de risco de lesão à ordem, segurança ou economia pública[10]-, é fato que o Ministro Presidente não escondeu seu entendimento de que, em se tratando de inadimplência decorrente de fraude em medidores de consumo, ainda com mais razão se justifica o corte, para garantir a viabilidade do modelo do setor elétrico e evitar prejuízos para toda a sociedade[11].   


No presente trabalho, foi feita extensa pesquisa na jurisprudência do STJ sobre o tema do corte de energia por débito pretérito, começando pelos acórdãos mais antigos (que admitiam o corte em caso de fraude), mostrando depois que a tese ao impedimento se desenvolveu sem fundamentos jurídicos convincentes ou de maior solidez e, finalmente, desembocando na mencionada decisão (mais recente) do Ministro Presidente, que parece potencialmente capaz de fazer retornar o entendimento da Corte ao seu estágio inicial. Na tentativa de entender mais profundamente os fundamentos jurídicos invocados para obstaculizar o corte de energia em caso de fraude, descemos à análise dos acórdãos que originaram essa jurisprudência. O estudo chega à conclusão de que as decisões do tribunal superior não satisfazem em termos argumentativos. Ainda no âmbito do estudo jurisprudencial, examinamos algumas decisões sobre o pagamento de dano moral por corte de energia ao consumidor que frauda o consumo, mostrando a contradição em que o STJ se envolveu, de ter que reconhecer a ilicitude do corte nessa hipótese e, ao mesmo tempo, ser obrigado a afastar direito à indenização moral.


No aspecto mais doutrinário, fazemos considerações sobre os estudos que propugnam uma maior preocupação dos magistrados com os reflexos econômicos de suas decisões, que demonstram que esse tipo de abordagem está em consonância com as teorias hermenêuticas que buscam superar a exagerada discricionariedade judicial. Dentro dos objetivos acadêmicos da obra, ainda examinamos as correntes que se opunham ao corte por inadimplência através do enquadramento do serviço de fornecimento de energia como direito social fundamental. Nesse ponto, o trabalho, como se disse, tem finalidade mais acadêmica do que objetivos práticos, já que as próprias cortes judiciárias afastaram a concepção de que o corte por inadimplência seria suficiente a violar direitos fundamentais, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana.  


Em outra parte do estudo, examinamos as normas legais que tratam do assunto (art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 e art. 17 da Lei 9.427/96) e demonstramos que o legislador não fez distinção quanto ao corte de energia por inadimplência, daí que não poderia o intérprete (julgador) impedi-lo em caso de débito pretérito e autorizá-lo apenas quando referente à fatura do último mês de consumo. Mostramos que existe norma regulamentar que também autoriza o corte em caso de débito decorrente de fraude e que o procedimento nela previsto para estimar o consumo não apurado não impede a defesa do usuário, o qual inclusive pode solicitar a realização de perícia por órgão metrológico.


A conclusão do estudo como um todo é a de que os acórdãos atuais do STJ que impedem o corte da energia elétrica a consumidores que fraudam ou violam medidores de consumo foram elaborados em torno de premissas equivocadas. Uma alteração da atual jurisprudência é desejável, tendo em vista os efeitos sociais maléficos que ela vem gerando. Acreditamos que uma mudança de rumo jurisprudencial não seja tão difícil em relação a essa matéria, sabendo-se que os integrantes da Corte Superior têm demonstrado sensibilidade às repercussões de suas decisões e, em função disso, têm alterado até mesmo enunciados sumulados.     


2. A questão do impacto das decisões judiciais na economia


Não é de hoje a discussão sobre o impacto econômico das decisões judiciais. Propiciar decisões judiciais mais seguras, visando à distribuição da Justiça e estabilidade das relações sociais, é um objetivo bem antigo e perseguido constantemente. A busca pela segurança jurídica, a fim de reduzir as incertezas provocadas pela atuação judiciária, que pode levar a decisões predominantemente políticas e ideológicas ou exageradamente impregnadas de subjetivismos, sempre foi, aliás, uma preocupação constante da teoria do direito. O surgimento de novas teorias hermenêuticas, em substituição ao positivismo, embora fomentado pela necessidade de se encontrar outras “fontes de direito” (além do texto da lei) e, dessa forma, impregnar as decisões de um maior conteúdo moral[12], propiciando um maior grau de justeza, também foi impulsionado pela necessidade de se evitar “decisionismos” decorrente do “poder discricionário” do Juiz, com o qual o positivismo se contentava como (único) recurso para solução de casos complexos.


No estágio atual do desenvolvimento social, a discussão sobre os efeitos das decisões judiciais sobre a economia ganha ainda mais contorno. A busca pela segurança jurídica a fim de reduzir as incertezas nas relações contratuais passou a ser um mantra de economistas e representantes do empresariado e, talvez por decorrência, preocupação de renomados juristas e pensadores do Direito. De fato, existe uma constatação científica de que a atividade do Judiciário influencia diretamente a economia, no sentido de que, quanto maior a imparcialidade e previsibilidade (e, portanto, confiança no sistema), maior o desenvolvimento econômico e social. As transações e negócios econômicos são regulados por meio de contratos, que funcionam como fórmula para alocação de riscos entre os agentes econômicos. Uma indevida ou exagerada interferência judicial posterior nessas relações acaba por eliminar essa função dos contratos, aumentando os riscos e custos da atividade econômica. Como a essência dos contratos é a assunção (promessa) de obrigações recíprocas (entre os contratantes), para possibilitar o pleno potencial das trocas, uma ruptura do trato inicial (ainda que em parte) por meio da intervenção judicial elimina a previsibilidade que um dos contratantes tinha ao envolver-se originalmente no negócio. Essa possibilidade repercute no desenvolvimento econômico, já que aumenta os riscos da atividade de um dos contratantes. Quanto maior o grau de previsibilidade e estabilidade nas relações contratuais, no sentido de que as partes cumpram com suas promessas (voluntariamente ou forçadas), também será proporcionalmente maior o número de investimentos e negócios a serem realizados. Se, ao contrário, o grau de interferência judicial, no sentido de alteração das cláusulas contratuais, desobrigando uma das partes da prestação originalmente assumida, é exagerado ou ocorre por opções pessoais dos juízes, numa avaliação subjetiva e calcada em elementos ideológicos na interpretação das normas vigentes, tal situação pode efetivamente aumentar os custos associados a um determinado setor da economia, prejudicando o desenvolvimento econômico[13].


A falta de garantias ou previsibilidade quanto ao efetivo cumprimento das obrigações contratuais pode prejudicar ainda mais acentuadamente os investimentos de longo prazo. A atividade empresarial em determinados setores da economia, a exemplo de produção e distribuição de energia, telecomunicações, indústria de medicamentos, tecnologia da informação e atividade bancária (só para citar alguns), exige profunda especialização, investimento maciço e planejamento de longo prazo. Estudos recentes demonstram que a qualidade do sistema Judiciário é um fator preponderante no momento de decidir pela alocação de recursos para empreendimentos nessas áreas. Um sistema judicial imparcial e eficiente incentiva os investidores a atuarem de maneira coordenada na produção de bens, fazendo investimentos e planejando atuação a longo prazo, já que ficam eliminados (ou atenuados) os riscos associados a futuras rupturas das promessas (contratos) originalmente celebrados (muitas vezes contratos de concessão com o Poder Público).


A exigência de previsibilidade nos negócios aumenta em razão da competitividade empresarial cada vez maior, proporcionada pelo fenômeno da globalização. Esse processo, explica Castelar Pinheiro[14], provoca uma maior exigência por regulamentação, acentuando a dependência do contrato como instrumento regulador das transações transnacionais e evidenciando ainda mais a relação entre direito e economia. A globalização exige uma maior integração entre as nações, no que tange às trocas e transações econômicas, e aqueles países que não dispuserem de sistemas e instituições políticas eficientes, no sentido de garantir a regularidade dessas operações comerciais, distanciam-se e perdem espaço nesse processo global, deixando de produzir riquezas e promover o desenvolvimento social e econômico. Em outras palavras, o fortalecimento das instituições internas (aí incluído o sistema Judiciário) é condição indispensável para que os países (em especial aqueles com economias menos robustas) participem como atores integrados ao processo de globalização, para que possam se beneficiar dos efeitos da economia em escala mundial. Em outras palavras, o modelo globalizante exige dos países a melhoria e reformas de suas instituições políticas, sob pena de não integração na economia mundial. Como afirma Castells, a competitividade na nova economia global parece depender muito da capacidade política das instituições nacionais, para impulsionar a estratégia de crescimento de um país frente aos outros, sendo premente a necessidade das reformas necessárias para obter a eficiência do sistema judicial[15].   


O fato é que, no mundo atual, caracterizado pela rapidez nas informações e trocas comerciais (proporcionadas por redes de comunicação informatizadas), a eficiência dos sistemas judiciários, para que funcionem de forma imparcial, segura e eficiente, é uma exigência social cada vez maior. Os sistemas políticos internos das nações (sobretudo as menos desenvolvidas) devem procurar acompanhar as mudanças que se dão a nível mundial, como requisito essencial para o desenvolvimento econômico. Os sistemas judiciários, nesse sentido, têm que proporcionar, para não servirem como empecilho ao desenvolvimento econômico, maior confiabilidade e previsibilidade.


O problema da imprevisibilidade das decisões judiciais é mais acentuado no Brasil, onde a constância de decisões contraditórias parece abalar a confiança dos jurisdicionados no sistema político-judiciário. O “ativismo judicial” recente, verificado em decisões da Suprema Corte e mesmo em outras instâncias inferiores, parece ser hoje uma das marcas[16] do nosso Judiciário (ao lado da morosidade). Nos últimos anos, “uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral”[17]. Se o “ativismo” judiciário tem um lado positivo, já que a atitude proativa dos juízes, na determinação de direitos que se encontram apenas em estado latente ou de forma nem sempre clara na Constituição e nas leis, resulta na concretização de políticas públicas e consagração de “promessas não cumpridas de modernidade”, não se pode deixar de perceber o risco dessa postura judicial, pelo menos quanto à expectativa em relação à titularidade de direitos que partes de um processo judicial possam ter (ou não), em determinadas circunstâncias.


Somado a isso, ainda temos o problema da excessiva “judicialização das relações sociais”, fenômeno que revela a transferência do poder político e decisório para o Judiciário, para resolver questões antes afetas a outras instâncias de poder ou a grupos socialmente organizados. Além da posição claramente ativista que o Judiciário brasileiro tem assumido, em algumas circunstâncias, existe na nossa sociedade uma tendência a se levar todo e qualquer tipo de conflito para ser resolvido por juízes, órgãos que exercem a jurisdição estatal. Segundo Luís Roberto Barroso, essa característica do atual momento político e social brasileiro tem causas múltiplas, algumas revelando uma tendência mundial, mas outras especificamente relacionadas com o nosso modelo institucional. Para ele, a constitucionalização abrangente de direitos, o aumento da demanda por justiça por parte dos cidadãos e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram essa intensa judicialização das relações políticas e sociais[18]. A constitucionalização abrangente fez com que inúmeras matérias que antes eram deixadas para a legislação inferior fossem içadas à categoria de mandamentos e princípios constitucionais e, na medida em que um direito individual, uma prestação estatal, um fim ou política pública é disciplinado no nível constitucional, abre-se a possibilidade de os interessados ingressarem em juízo a fim de obter, pelas mãos do Judiciário, ações concretas omitidas pelos administradores públicos[19]. Uma vez que a Constituição consagrou tantos direitos, as pessoas redescobriram a cidadania perdida e se conscientizaram em relação aos próprios direitos, o que também funcionou aumentando consideravelmente o número de demandas judiciais. E, por fim, a promulgação da Constituição de 1988, ao atribuir garantias funcionais aos juízes, também promoveu uma reafirmação do Poder Judiciário como poder político. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, o Judiciário passou a desempenhar suas funções institucionais com altivez e independência, ocupando o espaço político a ele reservado ao lado do Executivo e do Legislativo. Essa afirmação institucional, obviamente, modificou a relação da sociedade com o Poder Judiciário, que passou a ser visto com mais confiabilidade e como desaguadouro natural dos anseios pela efetividade de direitos[20].   


Ainda podemos elencar outros fatores que fomentaram esse fenômeno da demasiada judicialização das relações sociais. Além da criação de novos direitos no texto constitucional, nas últimas décadas houve uma significativa renovação dos serviços judiciários, cujo exemplo maior consistiu na criação dos “Juizados de Pequenas Causas” (depois substituídos pelos Juizados Cíveis), instituídos para funcionar regulados por procedimento simplificado e despojado de formalidades, possibilitando uma maior abertura da ordem processual para a defesa dos interesses individuais e coletivos[21]. Tendo por pano de fundo um procedimento centrado em três aspectos fundamentais – a isenção de taxas e custas, a desnecessidade de representação por advogado e a celeridade processual -, favoreceu a universalização da jurisdição, permitindo o acesso à Justiça de parcelas cada vez maiores da sociedade, em especial dos menos favorecidos pela fortuna, e possibilitando que pequenos litígios que, antes, não eram levados ao conhecimento dos juízes, passassem a fazer parte do dia-a-dia das cortes judiciárias, revelando o efeito do que se convencionou chamar de “litigiosidade contida”[22]. Esses órgãos judiciários especializados, aliados a outras iniciativas de política processual, que vingaram sob a influência das teorias da efetividade do processo e introduziram novos tipos de ações e ampliaram a legitimação para a tutela de interesses, terminaram também por promover a excessiva judicialização dos fatos sociais. Se antes falava-se em “litigiosidade contida”, por falta de instrumentos de acesso à Justiça, talvez hoje já se possa perceber uma “litigiosidade desenfreada”. A possibilidade de se ingressar em juízo sem qualquer ônus processual inicial ou possibilidade de responsabilização, promove a multiplicidade de lides temerárias[23]. Também a nossa cultura, refratária ou pouco habituada a qualquer outra forma alternativa de solução de disputas, favorece a que toda sorte de conflito termine sendo decidido no Judiciário. A Lei da Arbitragem[24] ainda não se mostrou capaz de popularizar entre nós esse instituto, deixando que possíveis usuários continuem recorrendo à tutela processual estatal para resolver suas controvérsias. “O Poder Judiciário deixou de ser a ultima ratio. Ao invés, é o primeiro passo na resolução de conflitos de interesses que vão desde o pequeno entrevero entre vizinhos até as grandes demandas societárias”[25].


Todo esse conjunto de fatores leva a uma crescente intervenção judiciária na vida dos brasileiros, fazendo com que toda e qualquer matéria, mesmo aquelas originadas de construções sociais mais simples e aparentemente incapazes de gerar conflito, terminem sendo decididas num tribunal. A judicialização excessiva num país de grande extensão territorial com uma complexa organização judiciária, reforçada pela atual tendência ao ativismo judicial, oferece as condições para o surgimento de decisões contraditórias (ainda que em casos idênticos), demasiadamente impregnadas de cunho político e ideológico e sem qualquer respeito aos precedentes e a uma visão integracionista do sistema de normas. Sem que se tenha alguma coerência sistêmica, em termos de segurança jurídica quanto ao resultado das decisões judiciais, tal situação corrói a confiabilidade no Poder Judiciário. As incertezas provocadas pela atuação judiciária, em termos de imprevisibilidade das decisões dos juízes (mesmo em casos semelhantes), arranham a imagem do Poder Judiciário, como alerta Lenio Streck, que cunhou a expressão de “Justiça lotérica” para diagnosticar a profusão de decisões conflitantes e, muitas vezes, sem qualquer possibilidade de harmonização teórico-hermenêutica, que caracteriza o funcionamento do Judiciário brasileiro. Essa prejudicial “criatividade” decisional dos juízes brasileiros, explica o mencionado jusfilósofo, “é causada pela ânsia do juiz de ir além do que diz a lei e fazer prevalecer a sua consciência”[26]


Ora, se é um dos maiores jusfilósofos brasileiros que reconhece a excessiva “subjetivação” de muitos julgados produzidos por tribunais e juízes brasileiros, não é demasiado exigir – como de fato o faz Lenio Streck – uma maior responsabilidade (accountability) dos juízes no momento da fundamentação da decisão, de forma a torná-la mais adequada com a integridade e a coerência do Direito (sistema de leis e a Constituição). Nesse sentido, parece razoável a reclamação de alguns setores produtivos quanto à exigência de decisões mais previsíveis, baseadas nas normas vigentes, evitando decisões alternativas ou predominantemente políticas. Obter decisões judiciais seguras, visando à realização de negócios e investimentos econômicos, é uma reivindicação tão legítima quanto qualquer outra, afinal os princípios relacionados à atividade econômica encontram-se condensados na Constituição Federal[27] e se apóiam na forma econômica capitalista, fundamentados na liberdade da iniciativa privada e apropriação privada dos meios de produção[28]. Reclamar que os magistrados prestem mais atenção às conseqüências econômicas de suas decisões, por conseguinte, equivale de modo indireto a exigir respeito aos princípios e regras que regulam a atividade econômica[29]. Se um dos objetivos da nossa república é a erradicação da pobreza, isso só se faz com desenvolvimento econômico, para suprir as necessidades coletivas de emprego, alimentação, saúde, saneamento e outros serviços públicos essenciais. Se o cumprimento das promessas constitucionais depende do desenvolvimento econômico, o Juiz tem o dever de examinar se sua decisão pode de qualquer forma afetá-lo. Por isso, o magistrado, no momento de decidir um caso, deve estar atento às múltiplas variáveis que o compõem, não podendo se cingir a apenas um único interesse envolvido. Como adverte o Desembargador Rogério Gesta Leal, “é preciso haver uma sensibilização da magistratura brasileira para a complexidade das relações sociais, marcadas hoje por variados fatores. Um tema que aparentemente é jurídico, no sentido de ser tratado e regulado por lei, tem implicações de natureza econômica, social e política. Essas dimensões extra-normativas precisam ser consideradas pelo julgador”[30].


Estudos mostram que, em diversos casos, decisões judiciais podem impactar negativamente as relações econômicas no Brasil, repercutindo no desenvolvimento, visto que interfere na expectativa dos agentes econômicos. Essa realidade justifica que os magistrados devam ter o cuidado, por decorrente de sua responsabilidade funcional de fundamentar adequadamente suas decisões, de examinar detidamente as repercussões econômicas de seus julgados, o que contribui para a integridade e eficiência do sistema e da segurança jurídica. A obtenção de decisões judiciais seguras possibilita negócios e investimentos, diminuindo o “risco jurídico” que os torna pouco atrativos, fazendo com que cumpram sua função social, impulsionando o desenvolvimento. Portanto, nas situações que comportem mais de uma solução plausível, nada impede que o Juiz busque a que seja mais correta à luz dos reflexos econômicos de sua decisão.


É importante deixar claro que, com essa afirmativa, não se está advogando uma “auto-contenção” do Judiciário ou uma volta ao conservadorismo existente antes do processo de redemocratização, quando juízes e tribunais, premidos pela falta de garantias funcionais, atuavam mais à semelhança de um “departamento técnico especializado”, sem desempenhar qualquer papel político. Nem tampouco se cuida de pretender um direito de feitio vazio de valores[31], sem qualquer conteúdo, cuja atividade resume-se a chancelar as relações de fato criadas pelos agentes econômicos. Apenas se defende que, “em uma perspectiva de análise econômica do direito, a opção por uma norma e não pela outra, deve se dar a partir da escolha da norma que seja mais eficiente, economicamente. Significa, pois, analisar a demanda sob o aspecto de eficiência. Ao juiz cabe avaliar o impacto que as decisões ocasionarão”[32].


Uma avaliação legal completamente neutra, que desconsidere o fator econômico, é que significa um retrocesso. O que se quer é que o Juiz ou intérprete desperte para a extrema importância que as decisões judiciais representam para o desenvolvimento sócio-econômico do país. O que se pretende é que, para propiciar previsibilidade, estabilidade e integridade (em relação ao sistema normativo), o Juiz tenha também uma perspectiva de análise econômica do direito. Se fatores econômicos estão envolvidos desde a criação e elaboração das leis, porque não se levá-los também em consideração quando se trata de reduzir o texto legal à norma do caso concreto? Não se trata, portanto, “de substituir critérios de justiça por critérios econômicos, mas de perceber que os agentes econômicos mudam as estratégias à medida que a justiça se demonstra ineficiente e a economia injusta”[33].


Claro que, quando se está diante de direitos fundamentais da pessoa humana, ou outros valores constitucionais de maior realce, o critério da eficiência econômica não pode prevalecer. Só poderá prevalecer fator econômico se estiver ligado também a outro princípio constitucional de igual peso, se sua prevalência significar a preservação de outro valor constitucional fundamental. Quando se depara com situações de colisão de princípios, o intérprete deve, à luz dos elementos do caso concreto, proceder a uma ponderação dos valores e interesses em jogo. “Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral”[34].


 Analisando a questão sob esse prisma, a consideração aos impactos econômicos da decisão judicial está em consonância com o pós-positivismo e com as teorias hermenêuticas que buscam superar a exagerada discricionariedade judicial. Se o que se quer é evitar a insegurança jurídica, proporcionada pelo subjetivismo decisional, isso significa sem sombra de dúvidas estar em linha de adequação ao pós-positivismo. Se o que se defende é que o Juiz, diante de um caso complexo, faça uma condensação de valores, preocupado com a unificação e integridade do sistema de normas, para formular decisão que evite o risco de “efeitos sistêmicos” na economia, tal proceder se coaduna com as premissas das teorias hermenêuticas pós-positivistas[35].


2.1. Os impactos econômicos no setor elétrico em razão do impedimento judicial ao corte de energia do usuário fraudador


No caso específico do embaraço judicial ao corte de energia elétrica por débito pretérito do usuário que frauda o sistema de medição do consumo, parece não se ter levado em consideração os aspectos econômicos do problema. Se as concessionárias de energia elétrica tinham a previsibilidade de poder realizar o corte em casos de fraude, quando se envolveram originalmente no negócio, o impedimento posterior pode prejudicar o modelo de distribuição de energia elétrica, já que aumenta os riscos da atividade. Aumentando os riscos da atividade e, portanto, interferindo no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão[36], a consequência última pode ser o comprometimento do próprio atendimento da demanda dos consumidores que pagam suas contas de luz em dia.


A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que a energia elétrica é um bem destinado à toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Os legisladores levaram isso em consideração, no momento de definir as políticas públicas pertinentes à definição dos agentes provedores, a forma de fazer a distribuição, com que custos e pagos por quem. Como lembra Rogério Gesta Leal, “no que tange à viabilidade econômica destes serviços, não optou a norma constitucional vigente por prever a sua gratuidade universal, como princípio informativo das prestações, até porque isto implicaria impactante resultado no processo da concessão/permissão de tal atividade por parte do Estado, quiçá afastando dela qualquer interesse da iniciativa privada”[37]. Daí que a própria Lei de concessões e permissões vigentes no país (Lei n. 8.987/95) prevê a existência de uma política de tarifa pública remuneratória à prestação dos serviços. A Lei 9.427/96 (que disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), por sua vez, estabelece que o regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço (art. 14, I). 


Como se observa, o regime econômico e financeiro da concessão do serviço de energia elétrica previu a contraprestação do usuário, representada em termos do pagamento de um preço pelo consumo. Para garantia do equilíbrio econômico-financeiro das concessões, as leis específicas (Lei 8.987/95 e Lei 9.427/92) previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira[38]. O contrato que assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. Sem a satisfação de sua própria e específica obrigação, prevista em lei e assumida em negócio jurídico contratual, consistente na prestação positiva de realizar o pagamento do preço, o usuário não pode pretender a execução da prestação da outra parte. Em outras palavras, a empresa distribuidora de energia não pode ser compelida a continuar fornecendo o serviço se não recebe a compensação prestacional da outra parte.   


Uma descabida intervenção judicial nessa equação pode ter o efeito de interferir no equilíbrio do setor elétrico, notadamente nos custos da distribuição de energia. A perspectiva para o fornecedor de energia elétrica, que decorre da relação contratual estabelecida com o consumidor, de poder realizar o corte do fornecimento em caso de inadimplemento (ainda com mais razão quando o não cumprimento da obrigação decorre de fraude) é uma forma de garantir a continuidade, qualidade e eficiência da prestação do serviço para toda a sociedade. Essa garantia foi dada legalmente ao distribuidor[39] sobretudo para possibilitar a diminuição dos custos de sua atividade e, por decorrência, a modicidade das tarifas do serviço.


A possibilidade de suspensão do serviço (corte do fornecimento de energia) é uma garantia legal e que foi atribuída ao prestador, no caso de inadimplemento do consumidor (quer por simples impontualidade no pagamento ou pela utilização de mecanismos para subtrair o faturamento). Impedir o prestador do serviço de realizar o corte, mesmo quando constatada a fraude, a par de gerar insegurança jurídica, estimular o cometimento de crimes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, é também medida socialmente injusta. Pode inviabilizar o sistema de distribuição de energia elétrica, tal qual foi pensado e deliberado politicamente, pelos representantes eleitos do povo. Ao se impedir o corte de energia elétrica do fraudador, está-se subvertendo a ordem econômica do setor. Não existindo qualquer norma constitucional ou infraconstitucional obrigando a que o prestador privado (concessionário de serviço de fornecimento de energia elétrica) garanta o fornecimento quando não ocorre o pagamento da contraprestação do usuário, o impedimento do corte da energia elétrica do consumidor fraudador (inadimplente por ter fraudado o faturamento do consumo) representa uma interferência indevida na economia do setor.  


Não se pode dizer que o Judiciário esteja completamente insensível a esse problema, já havendo manifestações do STJ reconhecendo que o impedimento ao corte (quando inadimplente o usuário) pode comprometer as receitas do sistema elétrico e, por decorrência, a economia pública, afetando o atendimento da demanda dos consumidores adimplentes. Veja-se, a respeito, ementa de acórdão proferido no AgRg na SLS n. 216/RN:


 “ENERGIA ELÉTRICA. CORTE POR INADIMPLÊNCIA. MUNICÍPIO. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL. 1. A interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento não configura descontinuidade da prestação do serviço público. Precedentes. 2. O interesse da coletividade não pode ser protegido estimulando-se a mora, até porque esta poderá comprometer, por via reflexa, de forma mais cruel, toda a coletividade, em sobrevindo má prestação dos serviços de fornecimento de energia, por falta de investimentos, como resultado do não recebimento, pela concessionária, da contra-prestação pecuniária. 3. Legítima a pretensão da Concessionária de suspender a decisão que, apesar do inadimplemento, determinou o restabelecimento do serviço e a abstenção de atos tendentes à interrupção do fornecimento de energia. 4. Agravo Regimental não provido”[40] (grifo nosso).


O relator do acórdão, Min. Edson Vidigal, então Presidente do STJ, destacou em seu voto o seguinte:


Ao celebrar o contrato de concessão com a União, a COSERN não o fez para fornecer energia gratuitamente a quem quer que fosse. Assumiu a obrigação de fornecer regular, adequada e eficientemente energia elétrica aos consumidores residentes nas municipalidades a que atende, e estes, em contrapartida, têm a obrigação de pagar pontualmente a energia consumida, sejam entes públicos ou não.


Impõe-se, portanto, um perfeito equilíbrio na equação fornecimento/pagamento, pois o contrário acarretará descompasso financeiro no contrato de concessão, comprometendo, de resto, todo o sistema de fornecimento de energia” (grifo nosso).


Mais recentemente, apreciando pedido de suspensão (SLS n. 1.136-SP) de liminar concedida em ação civil pública ajuizada com o objetivo de impedir o corte de energia por débitos pretéritos apurados com constatação de fraude do medidor, o atual Presidente do STJ, Ministro Cesar Asfor Rocha, repetiu os argumentos utilizados no acórdão antes transcrito, quanto aos efeitos nefastos sobre a economia do sistema de distribuição de energia elétrica e comprometimento da equação financeira do setor, acrescentando que no caso de fraude a situação é muito mais grave, daí que com mais razão não se pode impedir a suspensão do fornecimento:


Na hipótese presente, a situação é mais grave do que a verificada no precedente acima, tendo em vista que a liminar deferida inviabiliza o corte no fornecimento de energia elétrica independentemente do pagamento dos valores exigidos para reposição das perdas decorrentes de fraude. Não se está diante, em princípio, de simples inadimplência, mas de possíveis fraudes em medidores de consumo de energia elétrica.


Assim, a parte final da liminar deferida, que afasta a obrigatoriedade de pagamento das perdas vinculadas à fraude para efeito de restabelecimento do serviço pela concessionária, pode causar grave lesão à ordem e à economia públicas.


Ante o exposto, defiro o pedido para permitir o corte do fornecimento de energia elétrica quando não efetuado o pagamento dos valores exigidos para reposição das perdas decorrentes de fraude, apuradas conforme as normas editadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL[41].


Esses dois precedentes foram construídos no âmbito de pedidos de suspensão de liminar/sentença[42], instrumento processual onde o julgador faz uma apreciação mais de conteúdo político do que meramente técnico-jurídico[43], mas representam, como se disse, as primeiras manifestações da Corte Superior de Justiça Superior reconhecendo a interferência judicial indevida na economia do setor elétrico. Tudo leva a crer que a preocupação econômica refletida nesses julgados se transfira para o leito de outras ações, pela razão de que a proibição ao corte do fornecimento de energia por débito pretérito do fraudador contraria direta e frontalmente a legislação do setor de energia elétrica, pois retira a força coativa de normas preordenadas para afastar e coibir as situações de fraude, como veremos adiante.   


3. A previsão legislativa da suspensão de fornecimento de energia elétrica em caso de inadimplemento do consumidor


O direito à continuidade do serviço público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 do CDC (bem como no § 1o do art. 6o, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento, mesmo na hipótese de inadimplência do consumidor. A continuidade, aqui, tem outro sentido, significando que, já havendo execução regular do serviço, a Administração ou seu agente delegado (concessionário ou permissionário) não pode interromper sua prestação, sem um motivo justo, a exemplo das excludentes de força maior ou caso fortuito. O dispositivo nem sequer obriga a Administração a fornecer o serviço, mas, desde que implantado e iniciada sua prestação, não poderá ser interrompida se o consumidor vem satisfazendo as exigências regulamentares, aí incluído o pagamento da tarifa ou preço público[44]. O art. 6o, par. 3º, inc. II, da Lei 8.987/95 (“Lei das Concessões dos Serviços Públicos”), deixa isso bem claro, ao dizer que “não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio”, em caso de “inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade”[45]. Por sua vez, a Lei n. 9.427, de 26 de dezembro de 1996 (que disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica) autoriza inclusive o corte de energia ao consumidor que preste serviço público, apenas subordinando-o à comunicação prévia ao Poder Público, nos seguintes termos:


“Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual”.


Como se vê, o corte de energia elétrica é um direito que assiste ao Poder Público ou a seu concessionário, no caso de inadimplência do usuário. Decorre de disposição legal e, por isso mesmo, jamais poderia ser considerado um expediente constrangedor ou qualquer tipo de ameaça ou infração a direitos do consumidor. Em se tratando de consumidor pessoa privada (física ou jurídica) não prestadora de serviço público, a concessionária tem direito de proceder à suspensão diante de inadimplemento, sendo suficiente a notificação prévia, pois em tal situação o corte (em regra) não tem relação com nenhum direto interesse da coletividade[46]. As Leis, ao estatuírem o direito ao corte na hipótese de inadimplência, não fizeram distinção em relação a débito novo ou antigo (decorrente da medição de faturamento não apurado em razão de fraude no consumo). Assim, não especificando a lei a natureza do débito que autoriza o corte, não poderia o intérprete restringir o alcance dos dispositivos legais, em atenção ao princípio hermenêutico Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, ou seja, onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir. Se a lei não menciona que o corte só pode acontecer na hipótese de inadimplemento de conta regular, relativa ao mês de consumo, não poderia o julgador restringi-lo em relação a débitos antigos.  


A Resolução n. 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL, que estabeleceu as condições gerais de fornecimento de energia elétrica, também previu a possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica nos casos de irregularidades que provoquem faturamento inferior ao correto. Nos seus artigos 72, 73, 74 e 90, a referida Resolução prevê que, constatada a utilização de qualquer procedimento irregular que provoque faturamento inferior ao correto ou ausência de faturamento (por exemplo, através de ligação clandestina ou fraude em medidor), a concessionária fica autorizada a proceder à revisão do faturamento[47], a cobrar o custo administrativo correspondente[48] e a proceder à suspensão do fornecimento de energia[49].     


4. A jurisprudência que impede o corte de energia elétrica em caso de fraude: sua origem e desdobramentos


Diante da literalidade dos dispositivos contidos na Lei das Concessões dos Serviços Públicos (Lei 8.987/95) e na Lei das Concessões dos Serviços Públicos de Energia Elétrica (Lei n. 9.427/96), não seria desarrazoado imaginar que os tribunais admitissem o corte por inadimplência, sem distinção quando se tratar de simples atraso no pagamento da fatura mensal ou de débito decorrente de “revisão do faturamento” (realizada quando constatada irregularidade na medição do consumo de energia). Mas o fato foi que a jurisprudência seguiu caminhos opostos, admitindo o corte para hipóteses de simples inadimplência (de conta regular, relativa ao mês do consumo) e impedindo-o quando se trata de débitos pretéritos gerados em razão de fraude (diferenças entre os valores efetivamente faturados e os que seriam devidos se não tivesse havido o emprego de procedimentos irregulares). Com efeito, o posicionamento atual do STJ é no sentido de considerar legítimo o corte diante do simples inadimplemento do usuário[50], ao entendimento de que, nessa hipótese, não há violação ao princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais (art. 22 do CDC) e nem tampouco o corte pode ser visto como um expediente constrangedor (não havendo, portanto, violação ao art. 42 do CDC, que veda a utilização de expedientes constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores). Já em relação a débitos pretéritos, não pode haver corte, visto como um procedimento constrangedor e sua utilização uma afronta ao art. 42 do CDC. O acórdão mais representativo dessa última jurisprudência e que influenciou sua consolidação nos diversos órgãos fracionários do STJ[51], resultou de julgamento ocorrido perante a 1a. Turma, em 17 de março de 2005, e está assim ementado:


“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. (…). CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CABIMENTO NO CASO DO ART. 6º, § 3º, II, DA LEI Nº 8.987/95. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE EXIGÊNCIA DE DÉBITO PRETÉRITO. CARACTERIZAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO E AMEAÇA AO CONSUMIDOR. CDC, ART. 42. DISSÍDIO PRETORIANO NÃO-COMPROVADO. 1. Agravo regimental contra decisão que desproveu agravo de instrumento. 2. O acórdão a quo entendeu pela proibição do corte no fornecimento de energia elétrica por débitos antigos, em face da essencialidade do serviço, uma vez que é bem indispensável à vida, além do que dispõe a concessionária e fornecedora dos meios judiciais cabíveis para buscar o ressarcimento daqueles. 3. Argumentos da decisão a quo que se apresentam claros e nítidos. (…). 4. Com relação ao fornecimento de energia elétrica, o art. 6º, § 3º, II, da Lei nº 8.987/95 dispõe que “não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando for por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade”. Portanto, havendo o fornecimento de energia elétrica pela concessionária, a obrigação do consumidor será a de cumprir com sua parte, isto é, o pagamento pelo referido fornecimento, sendo possível, verificando-se caso a caso, uma vez não realizada a contraprestação, o corte. 5. Hipótese dos autos que se caracteriza pela exigência de débito pretérito, não devendo, com isso, ser suspenso o fornecimento, visto que o corte de energia elétrica pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, em relação aos quais existe demanda judicial ainda pendente de julgamento, devendo a companhia utilizar-se dos meios ordinários de cobrança, não se admitindo qualquer espécie de constrangimento ou ameaça ao consumidor, nos termos do art. 42 do CDC. 6. (…). 7. Agravo regimental não provido” (AgRg no Ag 633173/RS, rel. Min. José Delgado, 1a. Turma, j. 17.03/05, DJ 02/05/05).


Em julgamento proferido no ano seguinte (2006)[52], o mesmo relator fez referência aos fundamentos do julgado anterior. Parece que, a partir daí, a tese de que o corte não pode alcançar débitos pretéritos se consolidou na 1.a Turma e dela para o restante dos órgãos fracionários do STJ[53]. Representativos dessa consolidação jurisprudencial são os seguintes arestos, que fazem menção ao precedente inicial:


 “ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO. HIPÓTESE DE EXIGÊNCIA DE DÉBITO PRETÉRITO. AUSÊNCIA DE INADIMPLEMENTO. CONSTRANGIMENTO E AMEAÇA AO CONSUMIDOR. CDC, ART. 42. 1. A Primeira Turma, no julgamento do REsp n.º 772.489/RS, bem como no AgRg no AG 633.173/RS, assentou o entendimento de que não é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica por diferença de tarifa, a título de recuperação de consumo de meses, em face da essencialidade do serviço, posto bem indispensável à vida. 2. É que resta cediço que a “suspensão no fornecimento de energia elétrica somente é permitida quando se tratar de inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, restando incabível tal conduta quando for relativa a débitos antigos não-pagos, em que há os meios ordinários de cobrança, sob pena de infringência ao disposto no art. 42 do Código de Defesa do Consumidor. Precedente: AgRg no Ag nº 633.173/RS, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ de 02/05/05.” (REsp 772.486/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 06.03.2006). 3. Concernente a débitos antigos não-pagos, há à concessionária os meios ordinários de cobrança, sob pena de infringência ao disposto no art. 42, do Código de Defesa do Consumir. 4. In casu, o litígio não gravita em torno de inadimplência do usuário no pagamento da conta de energia elétrica (Lei 8.987/95, art. 6.º, § 3.º, II), em que cabível a interrupção da prestação do serviço, por isso que não há cogitar suspensão do fornecimento de energia elétrica pelo inadimplemento. 5. Recurso especial improvido.” (REsp 756591/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/05/2006, DJ 18/05/2006 p. 195)”


“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLEMENTO. DÉBITOS ANTIGOS E JÁ CONSOLIDADOS. FRAUDE NO MEDIDOR DE CONSUMO. 1. A “concessionária não pode interromper o fornecimento de energia elétrica por dívida relativa à recuperação de consumo não-faturado, apurada a partir da constatação de fraude no medidor, em face da essencialidade do serviço, posto bem indispensável à vida. Entendimento assentado pela Primeira Turma, no julgamento do REsp n.º 772.489/RS, bem como no AgRg no AG 633.173/RS” (AgRg no REsp 854002/RS, 1ª Turma, Min. Luiz Fux, DJ de 11.06.2007). 2. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 819.004/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/03/2008, DJe 17/03/2008).


Como se observa, em relação a débito apurado em “revisão de faturamento”, não cabe a suspensão do serviço, mas se provier de simples atraso no pagamento da fatura mensal de consumo, aí pode ser realizado. Como fica evidente, essa jurisprudência gera a gritante incongruência de o bem (energia elétrica) ser considerado essencial (e, assim, impedido o corte) em um determinado momento e em outro, não. Se a essencialidade do bem serve de fundamento para obstaculizar a suspensão de seu fornecimento, então em toda e qualquer situação não poderia haver corte. Se o bem é essencial para manutenção de necessidades básicas do consumidor, a sua fruição não pode ser interrompida. O que não pode é ora o bem ser essencial e ora não sê-lo. A postura da Corte de Justiça, por conseguinte, é incompreensível. O mais grave é que a distinção é feita em prejuízo do consumidor honesto, que não se utiliza de meios fraudulentos para burlar a medição regular do consumo[54]. A jurisprudência atual, portanto, além de tudo representa um incentivo à fraude.


O STJ já afastou o argumento da essencialidade do bem para os casos de (simples) inadimplência do usuário[55], mas parece continuar a utilizá-lo para obstaculizar o corte de energia em relação ao fraudador, o que é inexplicável. A continuidade do serviço para o fraudador, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa.


A jurisprudência atual que impede o corte de energia do fraudador também coloca o STJ em outra posição dúbia – a de ter de reconhecer o contrangimento que deriva do corte e, ao mesmo tempo, não conferir indenização por dano moral. Se o fundamento para impedimento do corte é o reconhecimento de que representa um expediente ilegítimo, que causa constrangimento indevido (em violação ao art. 42 do CDC), então é óbvio que gera a possibilidade de o fraudador requerer indenização por danos morais, toda vez que a distribuidora realizar a suspensão. O TJRN declarou a ocorrência de dano moral nessa hipótese, mas o STJ, em grau de recurso, afastou a possibilidade de indenização, com o seguinte fundamento:


“Conquanto o usuário tenha resguardado o seu direito ao fornecimento de energia por se tratar de débito pretérito, mesmo na hipótese de ter ele fraudado o aparelho medidor, não se pode, por outro lado, prestigiá-lo com o recebimento de indenização por um suposto dano moral sofrido em razão de suspensão do serviço que se operou em decorrência de sua má-fé. Ou seja, o simples fato de a jurisprudência desta Corte afastar a possibilidade do corte de energia em recuperação de consumo não-faturado não tem o condão de outorgar ao usuário, que furtou energia elétrica, o direito a reclamar a responsabilização da companhia fornecedora pelos danos morais eventualmente suportados” (STJ-2ª. Turma, REsp 1070060-RN, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 19.02.09, DJe 25.03.09).  


Como se observa, a Corte Superior, por força da sua jurisprudência equivocada, está se vendo na incômoda posição de declarar que “o corte configura constrangimento ao consumidor”[56] (nos caso de dívidas decorrentes de fraude no consumo de energia elétrica) e ao mesmo tempo ter que afastar a configuração do dano moral.        


Ao invés de ficar dando explicações para justificar mais essa contradição, o mais conveniente seria eliminar o equívoco originário, de permitir o corte no caso de simples inadimplemento e não permiti-lo no caso de débito apurado em vistoria que constata a utilização de expediente fraudulento (alteração do medidor). Se a essencialidade do bem serve de fundamento para impedir o corte de usuário desonesto, que se utiliza de artifício fradulento (alteração do medidor) para encobrir seu débito, com mais razão serviria para impedir essa medida na hipótese de simples inadimplência. O que não pode é o bem ser considerado essencial para o fraudador e não sê-lo para o devedor. Para o consumidor honesto que, por razões de dificuldades financeiras momentâneas não teve como pagar a conta, a energia elétrica não é considerada bem essencial, podendo haver o corte como expediente legítimo a ser utilizado pela concessionária. Já nos casos em que é constatada fraude e realizada a apuração do consumo não faturado, invoca-se a essencialidade de bem para se impedir o corte, o que é evidentemente absurdo. A dívida decorrente de consumo não faturado (por fraude no medidor) ensejaria, ao contrário, a possibilidade não somente da suspensão do fornecimento como a adoção de medidas adicionais. Não se trata, no caso, de simples inadimplência, mas de um inadimplemento decorrente da utilização de métodos ilícitos.  


Essa jurisprudência, de que o corte somente não se considera descontinuidade do serviço e abuso dos meios de cobrança quando se trata de dívida nova (última prestação mensal), não pode realmente continuar por ser absurda e proporcionar efeitos sociais nefastos. O pior de tudo é que gera uma espécie de imunidade judiciária antecipada para o fraudador, já que não mais se discutem as especificidades de cada caso. Antes da consolidação dessa jurisprudência, a discussão em juízo nas demandas com o objetivo de reativar o fornecimento de energia girava em torno da prova da irregularidade. Discutia-se, por exemplo, a realização ou adequação da perícia técnica, a observância do procedimento previsto na norma regulamentar da Aneel (notificação do consumidor e concessão de oportunidade para defesa), a correta consolidação material das evidências indicadas pelo fiscal (documentação da irregularidade), as evidências decorrentes do histórico de leituras anteriores, enfim, questões de uma forma ou de outra ligadas à produção de prova para atestar as condições de medição de energia do aparelho instalado na unidade consumidora. Já agora não mais se discutem essas questões, pois o fraudador tem o anteparo preexistente do precedente jurisprudencial, que impede o corte nos casos de fraude, bastando invocá-lo. 


Na prática, a situação gerada pela jurisprudência atual do STJ é essa: o fraudador tem uma espécie de salvo-conduto; não paga e não pode, em hipótese alguma, ter suspenso seu fornecimento de energia. Essa situação, obviamente, precisa ser alterada urgentemente.     


5. O problema da prestação de serviço público (de fornecimento de energia elétrica) no Brasil enquanto direito social fundamental e sua contraprestação


Houve quem defendesse que o fornecimento de energia elétrica não poderia ser suspenso, por falta de pagamento, ao argumento de que a energia elétrica é um bem jurídico que se afigura como indispensável à manutenção e desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. Invocava-se, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no inc. III do art. 1º. da CF, como obstáculo ao corte de energia do usuário inadimplente. A idéia era de que, como o Estado deve garantir recursos materiais mínimos para a sobrevivência de todo indivíduo, não poderia deixar faltar o fornecimento de energia elétrica, pois sem essa provisão a própria dignidade da pessoa humana ficaria comprometida.


Essa concepção foi rejeitada desde cedo, a partir do momento em que as cortes judiciárias admitiram o corte de energia por inadimplemento; além disso, ela também errava ao enxergar no vínculo da concessionária com o consumidor uma relação regida pelo direito público (e não de natureza contratual, regulada pelo direito privado), desconsiderando a contraprestação pecuniária a cargo deste último como condição para o recebimento do serviço. De qualquer maneira, e tendo em visto o caráter acadêmico do presente trabalho, reputamos interessante retomar a discussão apenas para demonstrar a inviabilidade dessa teoria.


O princípio da dignidade da pessoa humana, implantado na Constituição, assegura um mínimo de segurança social. Aqui assoma a ideia do chamado mínimo existencial, no sentido de que o Estado deve garantir a todo indivíduo os recursos materiais mínimos, pois sem essa garantia é a própria dignidade da pessoa humana que fica comprometida. “A garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e obrigações”[57].   


O comprometimento da dignidade da pessoa humana, por falta de condições materiais mínimas, justificaria inclusive a intervenção do Poder Judiciário, definindo políticas públicas, nos casos de omissão do Poder Executivo. Em doutrina já se admitia que o plexo de garantias constitucionais imputadas à responsabilidade estatal necessita advir de políticas públicas concretizadoras, as quais, se não implantadas diretamente pelo Executivo, justifica a intervenção judicial. Como explica Rogério Gesta Leal, em caráter excepcional e tendo em vista situações “condizentes a direitos indisponíveis e da mais alta importância e emergência comunitárias”, o que faria exigir “imediata materialização ao máximo possível” dos direitos sociais, “sob pena de comprometer a dignidade humana e o mínimo existencial dos seus carecedores”, o Judiciário pode ser chamado a intervir[58]


Em julgamento proferido no ano de 2006, da relatoria do Min. Celso de Mello, a Corte Suprema brasileira chegou a reconhecer essa possibilidade de ação judiciária para implementação de políticas públicas exigidas como implementação de direitos sociais básicos:


“A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. (…) Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam sesta implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade dos direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional”[59]


O mínimo existencial, portanto, serve como um dos parâmetros de dosimetria e densificação material da pessoa humana, autorizando inclusive a intervenção judicial para sua preservação na hipótese de omissão do Poder Executivo. Não se pode descurar, todavia, que as prestações positivas a cargo do Estado estão sujeitas à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. Essa teoria impossibilita exigências acima de certo limite básico social[60], porquanto tem que se levar em conta “não somente o direito individual ou coletivo propriamente dito, mas sua contextualização em face dos demais sujeitos de direitos potencialmente impactados pelo atendimento do seu interesse, notadamente sob a perspectiva do mínimo fisiológico, aqui entendido como as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção contra necessidades de caráter existencial básico”[61]. “Um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental em nível de mínimo existencial quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte, ou sofrimento grave, ou toca o núcleo essencial da autonomia”[62].


O reconhecimento de que a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana redunda na obrigação estatal de garantir um mínimo de condições materiais ao indivíduo não implica necessariamente na exigência à empresa concessionária de fornecer energia elétrica sem que haja a respectiva contraprestação remuneratória pelo serviço. Isso porque não existe qualquer norma constitucional ou infraconstitucional obrigando o prestador privado (concessionário de serviço de energia elétrica) a garantir o fornecimento independentemente de pagamento do preço do serviço. Não existe um direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e sem qualquer custo ao fornecimento de energia elétrica.


Os legisladores levaram isso em consideração, no momento de definir as políticas públicas pertinentes à definição dos agentes provedores, a forma de fazer a distribuição, com que custos e pagos por quem. Por isso que a Lei de concessões e permissões vigentes no país (Lei n. 8.987/95) prevê a existência de uma política de tarifa pública remuneratória à prestação dos serviços. A Lei 9.427/96 (que disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), por sua vez, estabelece que o regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço (art. 14, I). 


Portanto, o regime econômico e financeiro da concessão do serviço de energia elétrica previu a contraprestação do usuário, representada em termos do pagamento de um preço pelo consumo. Para garantia do equilíbrio econômico-financeiro das concessões, as leis específicas (Lei 8.987/95 e Lei 9.427/92) previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira[63]. Em assim sendo, uma política pública de caráter social no setor elétrico pode ser viabilizada no sentido de prever tarifas mais baixas para determinadas categorias de usuários, mas nunca isentando completamente (e sem qualquer critério) o usuário do pagamento de sua contraprestação.


A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que é um bem destinado a toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Por isso, todos os que consomem esse bem escasso devem pagar por ele, nos termos das previsões legais. As parcelas mais pobres da sociedade, ou seja, os consumidores de baixa renda, são beneficiados através de desconto na tarifa da energia elétrica. Com efeito, a “Lei da Tarifa Social de Energia Elétrica” (Lei 12.212/10) beneficia todas as famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), com renda mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo, através de desconto de tarifa na conta de luz[64]. A Lei teve uma preocupação especial em relação às famílias que tenham entre seus membros portador de doença ou patologia cujo tratamento ou procedimento médico pertinente requeira o uso continuado de aparelhos, equipamentos ou instrumentos que, para o seu funcionamento, demandem consumo de energia elétrica, prevendo que, nesse caso, o limite da renda mensal familiar se estende até 3 (três) salários mínimos (§ 1º. do art. 2º.).


Como se observa, já existe lei estabelecendo as bases da política social para o setor de distribuição de energia elétrica, fincada na previsão de tarifas reduzidas para os consumidores de baixa renda, sem desmantelar o regime constitucional da concessão desse serviço, que prevê a contraprestação do usuário mediante pagamento do preço. O que não se admite é uma intervenção judicial que desconsidere todo o sistema integrado de normas para dispensar um consumidor qualquer de sua contrapartida remuneratória, sem exigência de qualquer ordem e sem levar em conta sua classe social e capacidade econômica[65].


6. Relação obrigacional regida pelo direito privado


Na verdade, a invocação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana pode ter sido incentivada a partir de uma visão distorcida da relação entre o fornecedor e o consumidor de energia elétrica. É que alguns enxergaram nessa relação um vínculo regido exclusivamente pelo direito público, o que impediria a concessionária (fornecedor) de suspender unilateralmente a prestação do serviço, já que não teria a seu dispor a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus)[66].


Todavia, o contrato que o consumidor assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. Sem a satisfação de sua própria e específica obrigação, prevista em lei e assumida em negócio jurídico contratual, consistente na prestação positiva de realizar o pagamento do preço, o usuário não pode pretender a execução da prestação da outra parte. Em outras palavras, a empresa distribuidora de energia não pode ser compelida a continuar fornecendo o serviço se não recebe a compensação prestacional da outra parte.


Como se sabe, as concessionárias de serviço público podem ser de direito público ou de direito privado[67]. Adquirem o direito à prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica quando vencem licitação aberta pela Administração para o fim de outorga desse serviço. O vencedor da licitação celebra com o Poder público um contrato de concessão de serviço público. Esse contrato de concessão tem a natureza de contrato tipicamente administrativo, regido, portanto, pelas normas do Direito Público. Mas, paralelamente a ele, o concessionário estabelece, por força da execução dos serviços concedidos, outros contratos com os usuários finais dos serviços (consumidores), estes de natureza privada[68]. Assim, o serviço prestado em forma de concessão pública dá lugar a duas relações contratuais distintas: de um lado, a que envolve o próprio contrato de concessão, em que são partes o Poder concedente e a concessionária, relação esta submetida ao regime de direito público, e, de outro, o liame contratual que se estabelece entre o usuário e a concessionária, sujeito ao direito privado.


A própria Lei das Concessões (Lei 8.987/95) deixa entrever que, à exceção da relação direta entre o Poder concedente e o concessionário (contrato administrativo), todas as demais relações contratuais que este termine envolvido por conta da execução do contrato de concessão são regidas pelo direito privado. Com efeito, prescreve o parágrafo único do seu artigo 31:


“As contratações, inclusive de mão-de-obra, feitas pela concessionária serão regidas pelas disposições de direito privado e pela legislação trabalhista, não se estabelecendo qualquer relação entre os terceiros contratados pela concessionária e o poder concedente”.


O contrato de fornecimento de energia elétrica, já que se estabelece entre o concessionário e outro particular (usuário final), é essencialmente privado, apenas com os condicionamentos decorrentes do poder regulamentar que Administração exerce sobre a atividade transferida. O poder regulamentar da Administração fica revelado pela circunstância de que: a) os reajustes e revisões das tarifas dos serviços obedecem a prescrições legais e parâmetros e diretrizes específicas determinadas pelo órgão fiscalizador e regulador competente; b) o Poder concedente pode fiscalizar permanentemente a prestação do serviço concedido, aplicar penalidades ao concessionário e intervir na prestação do serviço, dentre outros poderes (art. 29 da Lei 8.987/95).


A presença de uma regulamentação do Poder Público sobre a prestação do serviço concedido não implica em desnaturar a relação contratual do concessionário com o usuário. Mesmo quando privados, estabelecidos entre particulares, certos contratos sofrem, em diferentes graus, a influência do poder regulamentar estatal, limitando a liberdade contratual das partes. Assim ocorre em função do interesse social que acompanha esses contratos, dos quais são exemplos marcantes os contratos de trabalho, os contratos de locação e os contratos de consumo em geral (contratos de planos de saúde, de prestação de serviços educacionais, de serviços de telefonia), só para citar alguns, que recebem uma estrita regulamentação legal, limitando a liberdade dos contraentes a um campo bastante reduzido. Tal fenômeno, apropriadamente chamado de dirigismo contratual, surgiu em contraposição ao princípio clássico da plena autonomia da vontade dos contratantes, que já não oferecia respostas satisfatórias à nova realidade social pós-revolução industrial.


 Ainda, é importante registrar que a eventual presença de uma pessoa jurídica de direito público, na condição de usuário dos serviços de fornecimento de energia elétrica, também não desnatura a natureza privada do contrato. Nessa hipótese, ela assume posição de simples consumidor, destinatário final dos serviços contratados em relação (privada) de consumo[69]. Como se sabe, nem sempre uma pessoa jurídica de direito público celebra contratos tipicamente administrativos. Em boa parte de suas relações contratuais, vincula-se despida da potestade estatal, do poder de império que caracteriza a sua atuação, igualando-se ao particular. É o que ocorre quando adquire bens e serviços de consumo, a exemplo de energia elétrica, posicionando-se em relação ao concessionário (fornecedor) como simples consumidor.


Em sendo privada a relação entre o concessionário e o usuário, é admissível por aquele o recurso a faculdades próprias das partes em contratos regidos pelo direito privado, especificamente a da exceção de contrato não cumprido (art. 476 do C.C.), que permite a um dos contraentes deixar de cumprir com sua obrigação quando haja descumprimento da do outro[70].


A suspensão do fornecimento de energia, em razão do inadimplemento do usuário, é ato de mera gestão negocial. O direito do concessionário ao corte (suspensão do serviço), nessa hipótese, não decorre do poder de polícia que lhe é transferido pelo Estado, mas tem origem no contrato (privado) que assina com o particular (consumidor), por força da exceptio non adimpleti contractus, que autoriza a qualquer contratante deixar de adimplir sua obrigação quando o outro deixa de cumprir com a sua própria prestação. Não é ato que decorra do poder de polícia público. O ato do corte no fornecimento de energia, em razão do inadimplemento do usuário, não corresponde a uma ação administrativa de efetuar condicionamentos à propriedade da pessoa (o consumidor final dos serviços delegados). Não se confunde com um ato de fiscalização ou ato repressivo e nem muito menos é um ato jurídico expressivo de poder público[71]. Cobranças de débito (aos consumidores) e todos os atos que o concessionário esteja legitimado a fazer, não porque imbuído do poder de polícia, mas por decorrência de direitos originados de contratos celebrados com terceiros, estranhos à relação contratual de concessão (do serviço público), configuram apenas atos de gestão da sua atividade, regidos pelo direito privado. 


7. Conclusões:


1a. O regime econômico e financeiro da concessão do serviço de energia elétrica previu a contraprestação do usuário, representada em termos do pagamento de um preço pelo consumo. Especificamente as Leis 8.987/95 e Lei 9.427/92 previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira, cuja não satisfação autoriza o corte do fornecimento de energia elétrica. Em se tratando de consumidor pessoa privada (física ou jurídica), a concessionária tem direito de proceder à suspensão diante de inadimplemento, sendo suficiente a notificação prévia, pois em tal situação o corte (em regra) não tem relação com nenhum direto interesse da coletividade.  


2a. O contrato que o usuário assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. Sem a satisfação de sua própria e específica obrigação, prevista em lei e assumida em negócio jurídico contratual, consistente na prestação positiva de realizar o pagamento do preço, o usuário não pode pretender a execução da prestação da outra parte. Em outras palavras, a empresa distribuidora de energia não pode ser compelida a continuar fornecendo o serviço se não recebe a compensação prestacional da outra parte. Em sendo privada a relação entre o concessionário e o usuário, é admissível por aquele o recurso a faculdades próprias das partes em contratos regidos pelo direito privado, especificamente a da exceção de contrato não cumprido (art. 476 do C.C.), que permite a um dos contraentes deixar de cumprir com sua obrigação quando haja descumprimento da do outro.


3a. As Leis (8.987/95 e Lei 9.427/92), ao estatuírem o direito ao corte na hipótese de inadimplência, não fizeram distinção em relação a débito novo ou antigo (decorrente da medição de faturamento não apurado em razão de fraude no consumo). Assim, não especificando a lei a natureza do débito que autoriza o corte, não poderia o intérprete restringir o alcance dos dispositivos legais, em atenção ao princípio hermenêutico Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, ou seja, onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir. Se a lei não menciona que o corte só pode acontecer na hipótese de inadimplemento de conta regular, relativa ao mês de consumo, não poderia o julgador restringi-lo em relação a débitos antigos.  


4a. A atual jurisprudência do STJ, que faz distinção entre débito novo (relativo à fatura do último mês de consumo) e débito antigo (decorrente de apuração de consumo não faturado em decorrência de fraude), admitindo o corte de energia na primeira situação e impedindo-o na segunda, desconsidera o sistema integrado de normas que regulam o setor de distribuição de energia no país, além de gerar a gritante incongruência de o bem (energia elétrica) ser considerado essencial (e, assim, impedido o corte) em um determinado momento e em outro, não. O STJ já afastou o argumento da essencialidade do bem para os casos de (simples) inadimplência do usuário, mas continua a utilizá-lo para obstaculizar o corte de energia em relação ao fraudador, o que é inexplicável. Se a essencialidade do bem serve de fundamento para obstaculizar a suspensão de seu fornecimento, então em toda e qualquer situação não poderia haver corte. Se o bem é essencial para manutenção de necessidades básicas do consumidor, a sua fruição não pode ser interrompida. O que não pode é ora o bem ser essencial e ora não sê-lo. A postura da Corte de Justiça, por conseguinte, é incompreensível. O mais grave é que a distinção é feita em prejuízo do consumidor honesto, que não se utiliza de meios fraudulentos para burlar a medição regular do consumo. A jurisprudência atual, portanto, além de tudo representa um incentivo à fraude.


5a. O corte de energia elétrica é um direito que assiste ao Poder Público ou a seu concessionário, no caso de inadimplência do usuário. Decorre de disposição legal e, por isso mesmo, jamais poderia ser considerado um expediente constrangedor ou qualquer tipo de ameaça ou infração a direitos do consumidor. A permanência do serviço para o fraudador, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa.


6a. A perspectiva para o fornecedor de energia elétrica de poder realizar o corte do fornecimento em caso de inadimplemento (ainda com mais razão quando o não cumprimento da obrigação decorre de fraude) é uma forma de garantir a continuidade, qualidade e eficiência da prestação do serviço para toda a sociedade. Essa garantia foi dada legalmente (nas Leis 8.987/95 e Lei 9.427/92) ao distribuidor, sobretudo para possibilitar a diminuição dos custos de sua atividade e, por decorrência, a modicidade das tarifas do serviço. Uma descabida intervenção judicial nessa equação pode ter o efeito de interferir no equilíbrio do setor elétrico, notadamente nos custos da distribuição de energia. Pode inviabilizar o sistema de distribuição de energia elétrica, tal qual foi pensado e deliberado politicamente, pelos representantes eleitos do povo. Ao se impedir o corte de energia elétrica do fraudador, está-se subvertendo a ordem econômica do setor.


7a. Impedir o prestador do serviço de realizar o corte, mesmo quando constatada a fraude, a par de gerar insegurança jurídica, estimular o cometimento de crimes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, é também medida socialmente injusta. Não existindo qualquer norma constitucional ou infraconstitucional obrigando a que o prestador privado (concessionário de serviço de fornecimento de energia elétrica) garanta o fornecimento quando não ocorre o pagamento da contraprestação do usuário, o impedimento do corte da energia elétrica do consumidor fraudador (inadimplente por ter fraudado o faturamento do consumo) representa uma injustiça para com o restante da comunidade, formada por consumidores honestos e que procuram pagar suas contas em dia.


8a. Não existe um direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e sem qualquer custo ao fornecimento de energia elétrica. Daí que uma política pública de caráter social no setor elétrico pode ser viabilizada no sentido de prever tarifas mais baixas para determinadas categorias de usuários, mas nunca isentando completamente e sem qualquer critério o usuário do pagamento de sua contraprestação. A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que é um bem destinado a toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Por isso, todos os que consomem esse bem escasso devem pagar por ele, nos termos das previsões legais. As parcelas mais pobres da sociedade, ou seja, os consumidores de baixa renda são beneficiados através de desconto na tarifa da energia elétrica. Já existe lei estabelecendo as bases da política social para o setor de distribuição de energia elétrica (Lei 12.212/10), fincada na previsão de tarifas reduzidas para os consumidores de baixa renda, sem desmantelar o regime constitucional da concessão desse serviço, que prevê a contraprestação do usuário mediante pagamento do preço. O que não se admite é uma intervenção judicial que desconsidere todo o sistema integrado de normas para dispensar um consumidor qualquer de sua contrapartida remuneratória, sem exigência de qualquer ordem e sem levar em conta sua classe social e capacidade econômica.


 


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ZYLBERSZTAJN, Décio. Rachel Sztajn. Direito & Economia. Análise Econômica do Direito e das Organizações.Rio de Janeiro: Elsevier 2005.

 

Notas:

[1] Representativos desse entendimento podem ser citados os seguintes acórdãos: STJ: AgRg no Ag 886502/RS, DJ de 19/12/2007; REsps nºs 756591/DF, DJ de18/05/06; 772486/RS, DJ de 06/03/06; e 772781/RS, DJ de 10/1005.  

[2] O procedimento de “revisão do faturamento”, para o caso de identificação de conduta irregular (do usuário) que provoque faturamento inferior ao correto ou mesmo ausência de faturamento, está previsto no inc. IV do art. 72 da Resolução n. 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica. Os critérios para realizar a “revisão do faturamento”, ou seja, para o preposto da concessionária poder estimar a diferença entre os valores faturados a menor (por causa da irregularidade) e os que deveriam ter sido regularmente apurados, estão descritos nas alíneas “a”, “b” e “c” do inciso IV.

[3] O inc. I do art. 90 da Resolução n. 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL, permite que a concessionária suspenda de imediato o fornecimento de energia quando verifica a fraude no consumo. Na verdade, além da cobrança da diferença apurada (em razão do erro de medição causado pelo emprego de procedimentos irregulares), a Resolução 456 da ANEEL autoriza a distribuidora de energia a cobrar do usuário o custo administrativo adicional pela revisão do faturamento (art. 73, caput) e a proceder a suspensão do fornecimento de energia elétrica (arts. 73, parágrafo único, 74 e 90). 

[4] As normas contidas no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica) permitem o corte do fornecimento da energia em caso de inadimplemento, sem fazer distinção quanto a débito pretérito ou se relativo à fatura do último mês de medição.

[5] O impedimento ao corte vai gerar a possibilidade de o fraudador requerer indenização por danos morais, toda vez que a distribuidora realizar a suspensão. Foi o que ocorreu em julgamento do TJRN, que reconheceu a configuração de dano moral nessa hipótese. Em recurso especial, tendo como relator o Min. Mauro Campbell Marques, o STJ reformou o acórdão do tribunal estadual, mas se colocou na incômoda posição de ter que reconhecer a ilicitude do corte de energia em relação a débito pretérito (estimado em razão de fraude no medidor) e, por outro lado, ter que afastar a configuração do dano moral (REsp 1070060-RN). Dissecaremos mais adiante esse e outros julgados sobre a questão do dano moral por corte de energia em caso de fraude no consumo, em item específico deste trabalho.

[6] Não existe norma constitucional prevendo a gratuidade universal, como princípio informativo da atividade dos concessionários, daí que a própria Lei de concessões e permissões vigente no país (Lei n. 8.987/95) prevê a existência de uma política de tarifa pública remuneratória à prestação dos serviços de distribuição de energia elétrica. A Lei 9.427/96 (que disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), por sua vez, estabelece que o regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço (art. 14, I). 

[7] No art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e no art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica).

[8] Diante do inadimplemento do consumidor, parte da jurisprudência inclinou-se por inadmiti-lo, ao argumento da essencialidade do bem em questão e da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse entendimento (ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ 17.08.98). Posteriormente, essa jurisprudência ficou superada, por ter a Corte passado a entender que o direito à continuidade do serviço público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1o do art. 6o, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento na hipótese de inadimplência do consumidor. Para maiores detalhes sobre o assunto, sugerimos a leitura de nosso artigo “Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica – alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las”, publicado no site Jus Navigandi, disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5215>.

[9] A Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública (Processo n. 576.01.2009.049673-1) com pedido de antecipação de tutela na 2ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto – SP, objetivando, essencialmente, que fosse determinado à Companhia Paulista de Força e Luz – CPFL o imediato religamento da energia para os consumidores que tiveram seu fornecimento suspenso em decorrência de fraude ou violação de medidor de consumo. O Juízo de 1º grau deferiu o pedido de antecipação de tutela e determinou, para todos os consumidores, “o imediato restabelecimento do fornecimento de energia,” ou a não-interrupção, “nos casos de débitos pretéritos e estimados em decorrência de suposta fraude ou violação de medidores”. Inconformada, a CPFL interpôs recurso de agravo de instrumento (Processo n. 990.09.251986-7) no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O Desembargador relator recebeu o recurso apenas no efeito devolutivo, daí o pedido de suspensão de liminar (SLS n. 1.136-SP) apresentado no STJ.

[10] O instrumento da suspensão da execução de liminar é previsto no art. 4º. da Lei n. 8.437, de 30.06.02, o qual prediz que o Presidente do tribunal poderá suspender a execução de liminar ou sentença contra o Poder Público, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

[11] Em item específico deste trabalho, examinaremos mais detalhadamente os termos dessa decisão do Presidente do STJ (SLS 1.136-SP).

[12] Tendo em vista a co-originariedade entre direito e moral, de certa forma abandonada pelo positivimo.

[13] Décio Zylbersztajn e Rachel Sztajn. Direito & Economia. Análise Econômica do Direito e das Organizações.Rio de Janeiro: Elsevier 2005.p.103-104. 

[14] Armando Castelar Pinheiro. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto. Disponível: www.an.org.br/arquivo/destaques/armando_castelar_pinheiro.pdf.Acesso em 09.out.2007. Apud  

[15] Manuel Castells. A sociedade em rede. 2 ed.v.1 São Paulo: Paz e Terra, 1999, p 12-18. 

[16] O ativismo judiciário, ao invés de configurar propriamente um problema, revela um lado positivo da atuação dos juízes brasileiros, em uma sociedade carente da concretização de direitos fundamentais. De fato, o “ativismo” geralmente se manifesta quando o Poder Legislativo se mostra incapaz para suprir as demandas sociais pela concretização de direitos, daí o surgimento da atitude mais avançada do Judiciário, como protagonista de decisões que implicam em escolhas morais e implementação de políticas públicas e, portanto, preenchendo espaços políticos antes reservado aos outros poderes. Como explica Luís Roberto Barroso, “o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva” (em Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, artigo publicado no site Conjur, em 22.12.08). Mas, como alerta o citado constitucionalista, “decisões ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados”, pois “não há democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade”.

[17] Luís Roberto Barroso, ob. cit.

[18] Em Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, artigo publicado na Revista de Direito Administrativo n °240, 2005.

[19] “Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas” (Luís Roberto Barroso).

[20] Esse último fator de “judicialização” das relações sociais é descrito por Luís Roberto Barros como “ascensão institucional do Poder Judiciário”. Descreve esse fenômeno na seguinte passagem de sua obra:

“Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal circunstância acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes” (em Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito).

[21] Demócrito Reinaldo Filho. Comentários à Lei 9.099/95. Editora Saraiva. 1995.

[22] Demócrito Reinaldo Filho. Ob. cit.

[23] As penas previstas para a litigância de má-fé, no art. 14 e seguintes do CPC, parecem não ser suficientes para desestimular as lides temerárias. Isso ocorre pela dificuldade de cobrança posterior da multa aplicada e até mesmo pela exagerada parcimônia que os juízes revelam na aplicação dessas sanções processuais.

[24] Lei n.º 9.307/96.

[25] Pedro Câmara Raposo Lopes faz considerações sobre aspectos sociológicos de nossa formação cultural, que levam os brasileiros a preferirem a solução estatal a qualquer outra forma de solução de conflitos, comprometendo o passivo judicial. Diz ele: “Sociologicamente, explica-se a morosidade pela formação ibérica do povo brasileiro, que recebe com suspeita todo ato que não conte, de alguma forma, com o sufrágio estatal. Confia-se mais no terceiro imparcial do que na contraparte que, assim como o interessado, conhece a fundo a raiz do negócio comum. Avulta a cultura do carimbo, da “cartorização”, da jurisdição graciosa como meio de oficialização de atos particulares absolutamente inanes à ordem jurídica justa. O Poder Judiciário deixou de ser a ultima ratio. Ao invés, é o primeiro passo na resolução de conflitos de interesses que vão desde o pequeno entrevero entre vizinhos até as grandes demandas societárias. Esta peculiar característica da formação da personalidade do homem brasileiro, tomada de empréstimo do homem ibérico por sua gênese, amesquinha as tentativas mais bem intencionadas de reduzir o passivo judicial, como, verbi gratia, as medidas paraestatais de solução de conflitos (mediação, arbitragem e quejandos) que não encontraram no solo brasileiro terreno virente, justamente pela carência do elemento judicial a lhe conferir a chancela estatal (absolutamente desnecessária nos povos de tradição oriental ou anglo-saxã).” (em Judiciário deve refletir sobre os impactos das decisões, artigo publicado no site Conjur, em 14.01.09, acessível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-14/poder_judiciario_refletir_impactos_economicos_decisoes ).

[26] Ele explica que essa “criatividade” é ainda uma herança do período de ditadura pelo qual passou o Brasil. Na explicação de Streck, como o cidadão quase não tinha direitos antes da Constituição de 1988, os juízes tinham de usar de todo conhecimento e imaginação para encontrar brechas e contornar o autoritarismo legal. Vinte anos depois, os juízes ainda não se acostumaram com a lei prevendo tantos direitos para o cidadão. “Os juízes, que agora deveriam aplicar a Constituição e fazer a filtragem das leis inconstitucionais, passaram a achar que sabiam mais do que o constituinte. Saímos da estagnação para o ativismo” (entrevista para o site Consultor Jurídico, intitulada “Justiça Lotérica – Ativismo judicial não é bom para a democracia”, publicada no dia 15.03.09, podendo ser acessada no seguinte link: http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entrevista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul ).

[27] No art. 170, mas também dispersos por outros dispositivos.

[28] Claro que, mesmo focados na economia de mercado, o conjunto de princípios que regem a atividade econômica consagram importantes institutos de proteção ao ser humano.

[29] A Constituição está impregnada de uma série de valores e princípios que visam à realização da democracia econômica, por meio da regulação do mercado e da atividade econômica. O Estado deve garantir as condições para o crescimento econômico como condição para erradicar a pobreza, promovendo o crescimento justo e equitativo para suprir as necessidades de emprego, alimentação, energia, água e saneamento. O Estado apóia os agentes econômicos nacionais, na sua relação com o resto do mundo e, de modo especial, os agentes e atividades de contribuam positivamente para a inserção dinâmica do nosso país no sistema econômico mundial. O Estado incentiva e apóia, nos termos da lei, o investimento externo que contribua para o desenvolvimento econômico e social do país. É garantida, nos termos da lei, a coexistência dos setores público e privado na economia. Enfatiza-se, como deveres do Estado, em democracia econômica, os de assegurar uma concorrência sã, a fiscalização da atividade econômica para verificação do cumprimento das leis e regulamentos, a qualidade, regularidade e acessibilidade a bens de consumo e a serviços públicos fundamentais (água, electricidade, telecomunicações, etc.), a qualidade e o equilíbrio ambientais, o ordenamento territorial e o planeamento urbanístico equilibrados.

[30] Repercussões econômicas de decisões judiciais preocupam magistrados, entrevista do Des. Rogério Gesta Leal para o portal do STJ, publicada no dia 29.03.09, no seguinte endereço:


[31] Ressaltando que não se trata de defender um Judiciário completamente neutro diante de questões sociais que se lhe apresentam, notadamente quando se trata de conferir proteção contra a violação de direitos fundamentais, Rogério Gesta Leal alerta para o risco da “substituição de um dirigismo sempre estatal centrado no Executivo para um focado no Judiciário”  (ob. cit., p. 90). 

[32] Josilene Hernandes Ortolan e Norma Sueli Padilha, em “O Impacto Econômico do Direito: em busca de uma economia mais justa e de um direito mais eficiente”, trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF, nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

[33] Josilene Hernandes Ortolan e Norma Sueli Padilha, ob. cit.

[34] Josilene Hernandes Ortolan e Norma Sueli Padilha, ob. cit.

[35] Para saber mais sobre a questão dos impactos econômicos das decisões judiciais e as teorias hermenêuticas pós-positivistas, recomendamos a leitura do nosso artigo “A PREOCUPAÇÃO DO JUIZ COM OS IMPACTOS ECONÔMICOS DAS DECISÕES – Uma análise conciliatória com as teorias hermenêuticas pós-positivistas”, publicado na Revista Eletrônica Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2299, 17 out. 2009, disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13707>.

[36] Sobre a cláusula da garantia do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, Rogério Gesta Leal explica que esta garantia econômica “coloca a realização do serviço público por pessoa de direito privado em uma situação segura no sentido de ter resguardada a saúde orçamentária de tal mister, haja vista que tal cláusula contratada em regime público não se submete às mutações unilaterais da Administração, sob pena de inviabilizar a própria concessão ou permissão, quando lhe onera o ofício de forma insuportável” (Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil, Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 142).

[37] Ob. cit., p. 141.

[38] A tarifa de energia elétrica é o preço definido pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica que deve ser pago pelos consumidores finais de energia elétrica. Pelo regime tarifário do Preço-Teto, a Aneel avalia os custos gerais e a receita requerida por uma determinada concessionária e define os níveis tarifários a serem cobrados dos consumidores residenciais (população em geral) e das demais classes de consumidores.

[39] No art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica).

[40] STJ, Corte Especial, acórdão unânime, j. 20.03.06, DJ 10.04.06. 

[41] Essa decisão monocrática do Ministro Cesar Asfor Rocha foi proferida no dia 10.02.10 e publicada no DJe de 18.10.02. Contra ela foi interposto agravo regimental, que se encontra pendente de julgamento pela Corte Especial. 

[42] O pedido de suspensão da eficácia de decisão contrária ao Poder Público é endereçado ao presidente do tribunal competente para conhecer do respectivo recurso. Diversas leis atualmente disciplinam os pedidos de suspensão de liminares no âmbito de diferentes demandas envolvendo o Poder Público. Com efeito, o pedido de suspensão pode ser formulado contra liminar ou sentença proferidas: (a) em mandados de segurança (art. 4º, da Lei 4.348/64), (b) em ações civis públicas (art. 12, § 1º, da Lei 7.347/85 c/c art. 4º, § 1º, da Lei 8.437/92), (c) em ações cautelares (art. 4º, caput e § 1º, da Lei 8.437/92), (d) em ações populares (art. 4º, caput e § 1º, da Lei 8.437/92) e (e) em ações no âmbito das quais tenha sido deferida tutela antecipatória ou tutela específica (art. 1º da Lei 9.494/97 c/c art. 4º da Lei 8.437/92). O incidente de suspensão também será cabível para sustar a eficácia da sentença que conceder o habeas data (art. 16 da Lei 9.507/97).

[43] O art. 4º. da Lei 8.437/92 estabelece que o presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, pode suspender a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, “em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.

[44] O princípio da continuidade do serviço público essencial apenas impõe para o prestador (Poder Público ou seu delegatário) a obrigatoriedade de prosseguir em sua exploração, depois que implantá-lo em uma determinada área e para um grupo delimitado de usuários, não podendo, posteriormente, simplesmente deixar de prestá-lo, segundo suas próprias conveniências. A respeito dos serviços públicos essenciais, Hely Lopes Meirelles já explicava que: “estes serviços, desde que implantados, geram direito subjetivo à sua obtenção por todos aqueles que se encontram na área de sua prestação ou fornecimento, e satisfaçam às exigências regulamentares” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 265). Para o Prof. Caio Tácito, o princípio da continuidade do serviço público impõe ao concessionário o dever de prosseguir na exploração do mesmo, ainda que tal atividade seja ruinosa, pois à Administração incumbe, correlatamente, partilhar das cargas extraordinárias, restaurando a economia abalada e a eficácia da execução do contrato (TÁCITO, Caio. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 209. Apud LEAL. Rogério Gesta. Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2009). No mesmo sentido, o Prof. Mário Masagão ensina que “a continuidade significa que as necessidades públicas, a cuja satisfação se destina o serviço, não devem ser atendidas esporadicamente, mas de forma ininterrupta e constante” (MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 254. Apud LEAL. Rogério Gesta. Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2009). Assim, por exemplo, se uma determinada concessionária resolve levar sua rede de distribuição elétrica a uma comunidade longínqua do interior de um Estado, e os membros dessa comunidade passam a se servir desse serviço, não pode em momento posterior, verificando que a expansão não teve o retorno econômico desejado, simplesmente deixar de prestar o serviço. O princípio da continuidade implica na obrigação da permanência da disponibilização do serviço, a não ser em caso de caso fortuito ou força maior. O que ele não significa é que o prestador esteja obrigado a prestar o serviço, mesmo não cumprindo o consumidor com sua obrigação de pagamento do preço.

[45] O artigo em questão tem a seguinte redação:

“Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. (…)

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I – motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II – por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade”.

[46] O interesse da coletividade, que impede a suspensão do fornecimento de energia, pode excepcionalmente ficar configurado mesmo na hipótese de consumidor privado (pessoa física ou jurídica), caracterizado por circunstâncias peculiares que o distinguem da comunidade dos usuários. Seria o caso, e.g., da hipótese em que o corte tivesse de recair sobre um consumidor submetido a tratamento de doença, e que dependesse do funcionamento de um determinado aparelho elétrico para manutenção de sua vida. Nesse caso, haveria um interesse superior de preservação da vida do consumidor de energia elétrica, que justificaria o impedimento ao corte. Fora desses casos excepcionais, onde o corte poderia inclusive conflitar com direitos de base constitucional, não há impedimento.

[47] Os critérios para revisão do faturamento estão dispostos nas alíneas a, b e c do inc. IV do art. 72 da Res. 456, com a seguinte redação:

Art. 72. Constatada a ocorrência de qualquer procedimento irregular cuja responsabilidade não lhe seja atribuível e que tenha provocado faturamento inferior ao correto, ou no caso de não ter havido qualquer faturamento, a concessionária adotará as seguintes providências: (…)               

IV – proceder a revisão do faturamento com base nas diferenças entre os valores efetivamente faturados e os apurados por meio de um dos critérios descritos nas alíneas abaixo, sem prejuízo do disposto nos arts. 73, 74 e 90:

a) aplicação do fator de correção determinado a partir da avaliação técnica do erro de medição causado pelo emprego dos procedimentos irregulares apurados;

b) na impossibilidade do emprego do critério anterior, identificação do maior valor de consumo de energia elétrica e/ou demanda de potência ativas e reativas excedentes, ocorridos em até 12 (doze) ciclos completos de medição normal imediatamente anteriores ao início da irregularidade; e

c) no caso de inviabilidade de utilização de ambos os critérios, determinação dos consumos de energia elétrica e/ou das demandas de potência ativas e reativas excedentes por meio de estimativa, com base na carga instalada no momento da constatação da irregularidade, aplicando fatores de carga e de demanda obtidos a partir de outras unidades consumidoras com atividades similares”.

[48] A possibilidade de cobrança do custo administrativo pelo procedimento de revisão do faturamento está disciplinada no art. 73 da Resolução, que tem a seguinte redação:

 “Art. 73. Nos casos de revisão do faturamento, motivada por uma das hipóteses previstas no artigo anterior, a concessionária poderá cobrar o custo administrativo adicional correspondente a, no máximo, 30 % (trinta por cento) do valor líquido da fatura relativa à diferença entre os valores apurados e os efetivamente faturados.

Parágrafo único. Sem prejuízo da suspensão do fornecimento prevista no art. 90, o procedimento referido neste artigo não poderá ser aplicado sobre os faturamentos posteriores à data da constatação da irregularidade, excetuado na hipótese de auto-religação descrita no inciso II, art. 74.”

[49] A possibilidade de corte de energia, nesses casos, está prevista em diversos dispositivos, mas é tratada de maneira mais completa no art. 90, assim redigido;

“Art. 90. A concessionária poderá suspender o fornecimento, de imediato, quando verificar a ocorrência de qualquer das seguintes situações:

I – utilização de procedimentos irregulares referidos no art. 72;

II – revenda ou fornecimento de energia elétrica a terceiros sem a devida autorização federal;

III – ligação clandestina ou religação à revelia; e

IV – deficiência técnica e/ou de segurança das instalações da unidade consumidora, que ofereça risco iminente de danos a pessoas ou bens, inclusive ao funcionamento do sistema elétrico da concessionária”.

[50] Ver, e.g., o acórdão proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03, DJ de 01.03.04.

[51] A jurisprudência anterior permitia o corte por débito do fraudador. Nesse sentido: AgRg no REsp 969.928/RS, 1ª. Turma, rel. Min. Francisco Falcão, j. 02.10.2007, DJ 12.11.2007 p. 196; EDcl no REsp 956.172/SP, 1ª. Turma, rel. Ministro Francisco, j. 02.10.07, DJ 22.11.2007, p. 206; EDcl no REsp 786165 / SP, 2ª. Turma, rel. Min. Castro Meira, j. 15.08.06, DJ 25.08.06, p. 328;  REsp 631843 / MG, 2ª. Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. 28.06.05, DJ 15.08.05; REsp 41557/SP, 1ª. Turma, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 23.05.94, DJ 20.06.94. 

[52] No AgRg no REsp 820665/RS, rel. Min. José Delgado, 1a. Turma, j. 18/05/06, DJ 08/06/06.

[53] Representativos dessa linha de pensamento, ainda podem ser citados os seguintes acórdãos: REsp 772.486/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 06.03.2006; AgRg no REsp 854002/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, 1a. Turma, julgado em 15.05.2007, DJ 11.06.2007, p. 282; AgRg no Ag 752292/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, 1a. Turma, julgado em 21.11.2006, DJ 04.12.2006, p. 268; REsp 834.954/MG, Rel. Ministro Castro Meira, 2a. Turma, julgado em 27.06.2006, DJ 07.08.2006, p. 213; REsp 914828/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2a. Turma, julgado em 08.05.2007, DJ 17.05.2007, p. 232; REsp 975.314/RS, Rel. Ministro Castro Meira, 2a. Turma, julgado em 20.09.2007, DJ 04.10.2007 p. 229.

[54] O Des. Cândido Saraiva, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, adverte que a essencialidade do bem (energia elétrica) pode até ser invocada em favor do consumidor honesto (simples inadimplente), mas jamais em favor do fraudador: “Não se pretende repudiar o caráter de essencialidade do serviço de fornecimento de energia elétrica. Tal característica, no entanto, deve ser considerada em relação àqueles que pagam regularmente o serviço recebido. Pensar de forma diversa encoraja a inadimplência e – o que é tanto ou mais relevante – onera e põe em risco a prestação do serviço para toda a coletividade, o que, por si só, é razão suficiente para caracterizar o direito da Agravante”. (TJPE- 2ª. Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 89503-6, rel. Des. Cândido Saraiva).

[55] A jurisprudência do STJ inclinou-se inicialmente por inadmitir o corte, ao argumento da essencialidade do bem em questão e da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse entendimento (ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ 17.08.98). Mas depois houve a reversão desse entendimento inicial, por ter a Corte reconhecido que o direito à continuidade do serviço público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1o do art. 6o, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento, mesmo na hipótese de inadimplência do consumidor. A continuidade, aqui, tem outro sentido, significando que, já havendo execução regular do serviço, a Administração ou seu agente delegado (concessionário ou permissionário) não pode interromper sua prestação, sem um motivo justo, a exemplo das excludentes de força maior ou caso fortuito. O dispositivo nem sequer obriga a Administração a fornecer o serviço, mas, desde que implantado e iniciada sua prestação, não poderá ser interrompida se o consumidor vem satisfazendo as exigências regulamentares, aí incluído o pagamento da tarifa ou preço público. O art. 6o, par. 3º, inc. II, da Lei 8.987/95 (“Lei das Concessões dos Serviços Públicos”), deixa isso bem claro, ao dizer que “não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio”, em caso de “inadimplemento do usuário, considerado o interesse público”. O novo posicionamento do STJ considera legítimo o corte no caso de inadimplemento do usuário, não caracterizando descontinuidade do serviço essa hipótese (ver, e.g., o acórdão proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03, DJ de 01.03.04).

[56] STJ-2ª. Turma, REsp 1026639-SP, rel. Min. Carlos Fernando Mathias, j. 17.04.08, DJe 13.05.08.

[57] Rogério Gesta Leal, invocando o ensinamento de Ingo Scarlet e Mariana Figueiredo. Ver “Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil”, Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 81. 

[58] Ob. cit., p. 97. Mas o próprio Rogério Gesta Leal destaca que esse papel do Judiciário é muito controvertido, havendo razoável crítica dessa iniciativa. 

[59] Recurso Extraordinário n. 410715/SP, publicado no DJ de 03.02.2006.

[60] Rogério Gesta Leal adverte que o argumento da reserva do possível tem que ser examinado dentro do contexto factual de determinado caso concreto, sob pena de condicionar a realização de direitos fundamentais a questões orçamentárias, o que “reduziria sua eficácia a zero”, sabendo-se da inexorável escassez de recursos para atender demandas de massa. Ob. cit., p. 105.

[61] Rogério Gesta Leal. Ob. cit. p. 101.

[62] Ob. cit., p. 103.

[63] A tarifa de energia elétrica é o preço definido pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica que deve ser pago pelos consumidores finais de energia elétrica. Pelo regime tarifário do Preço-Teto, a Aneel avalia os custos gerais e a receita requerida por uma determinada concessionária e define os níveis tarifários a serem cobrados dos consumidores residenciais (população em geral) e das demais classes de consumidores.

[64] A Lei n. 12.212, de 20 de janeiro de 2010, prevê um desconto de 100% para as famílias indígenas e quilombolas inscritas no CadÙnico com renda familiar mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo ou que tenha entre seus moradores quem receba o benefício de prestação continuada da assistência social (previsto nos  arts. 20 e 21 da Lei no 8.742/93). 

[65] Mesmo o consumidor de baixa renda, beneficiado pela Tarifa Social, pode ter suspenso seu fornecimento de energia em caso de inadimplemento. O art. 9º. da Lei n. 12.212/10 estabelece que resolução da Aneel deve definir os critérios para a interrupção do fornecimento e o parcelamento da dívida.     

[66] A exceção de contrato não cumprido – exceptio non adimpleti contractus – se acha consagrada pelo art. 476 do atual Código Civil (correspondente ao art. 1092, caput, 1a parte, do Código Civil de 1916), nos seguintes termos: “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.

[67] Art. 2o. da Lei 8.987/95.

[68] No regime legal da concessão de serviço público de energia elétrica, é previsto que o concessionário se remunere através da cobrança de um preço pago pela prestação do serviço ao consumidor final (art. 14 da Lei 9.427/96). É a sua contraprestação pela execução dos serviços, que resulta na necessidade de se envolver em outras relações contratuais (de ordem privatística) com os destinatários finais do serviço. Essa característica privatística do contrato de fornecimento de energia tem origem, em princípio, na própria Constituição Federal, quando admitiu a prestação de serviço público por particular, em colaboração ao Poder Público, em regime de concessão ou permissão (art. 175). 

[69] O art. 2o. do CDC (Lei 8.078/90), ao definir consumidor, inclui também as pessoas jurídicas adquirentes de produtos e serviços na qualidade de destinatário final. Como a lei não restringe, é de se concluir que também as pessoas jurídicas de direito público podem assumir a posição de consumidor em relação contratual de consumo.

[70] Em decisão monocrática proferida em Agravo de Instrumento, o Des. Cândido Saraiva, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, reconheceu a natureza privatística do contrato entre a distribuidora de energia e o usuário, autorizando aquela a se utilizar da faculdade prevista no art. 476 do C.C., nesses termos: “… trago à baila os preceitos do diploma adjetivo civil para ressaltar o caráter contratual do referido serviço. Com fulcro no artigo 476 do Código Civil, nenhum dos contratantes, antes de cumprida sua obrigação, poderá exigir do outro o seu implemento – é o princípio da exceptio non adimpleti contractus. Assim, mesmo possuindo a Recorrente outros meios para perseguir o adimplemento da obrigação, a suspensão da energia elétrica por falta de pagamento caracteriza-se como uma extinção, mesmo que temporária, do contrato de fornecimento e não, como muitos defendem, uma forma de coerção para efetuação do pagamento” (TJPE- 2ª. Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 89503-6, rel. Des. Cândido Saraiva).

[71] Para uma melhor diferenciação entre os atos do delegado (concessionário) do serviço público de fornecimento de energia elétrica que podem ser enquadrados como atos de gestão e atos de polícia, sugerimos a leitura do nosso artigo “Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica – alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las”, publicado na Revista Eletrônica Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 309, 12 maio 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5215


Informações Sobre o Autor

Demócrito Reinaldo Filho

Magistrado em Pernambuco.


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