Resumo: O presente trabalho tem por escopo a apreciação das características principais do Estado de Exceção, segundo os pensamentos de Carl Schimitt e Giorgio Agamben, contextualizando suas ideias no contemporâneo cenário jurídico constitucional brasileiro. O desenvolvimento desta investigação tomará por baliza o sistema de crises que fomenta o uso das medidas de exceção previstas na Constituição Federal do Brasil. Serão adotados, para tanto, o emprego do método dedutivo, bem como a pesquisa bibliográfica de autores que discorrem sobre o tema. Ao final, pretende-se aproximar o leitor do universo, aparentemente conflitante, em que se inserem o respeito ao Estado Democrático de Direito e o chamamento à baila da figura do Estado de Exceção, aprovisionando subsídios teóricos para uma compreensão crítica a respeito de assunto tão intrigante.
Palavras-chave: Estado de Exceção; Constituição Brasileira; Medidas de Exceção.
Abstract: The present work aims at assessing the main features of the state of exception, according to the thoughts of Carl Schmitt and Giorgio Agamben, contextualizing his ideas in the contemporary scene Brazilian constitutional law. The development of this inquiry will take for beacon the system of crises that foments the use of the foreseen measures of exception in the Federal Constitution of Brazil. Are will be adopted, for in such a way, the job of the deductive method, as well as the bibliographical research of authors who discourse on the subject. To the end, it is intended to approach the reader of the universe, apparently conflicting, where if they insert the respect to the Democratic State of Right and evidence the figure of the State of Exception, provisioning theoretical subsidies for a critical understanding regarding so intriguing subject.
Key-words: State of Exception; Brazilian Constitution; Mesures of Exception.
Sumário: Introdução; 1. Estado de Exceção; 1.1 O Pensamento de Carl Schimitt; 1.2 A Visão de Giorgio Agamben; 1.3 O Mundo Hodierno; 1.3.1 Estado de Exceção Constitucional; 2. A Constituição de 1988 e seus Mecanismos de Exceção; 2.1 O Sistema Constitucional das Crises; 2.1.1 Intervenção Federal; 2.1.2 Estado de Defesa; 2.1.3 Estado de Sítio; Considerações Finais; Referência Bibliográfica.
INTRODUÇÃO
Remonta do final do século XVIII, consequência do movimento burguês revolucionário que se opunha ao absolutismo, o surgimento do Estado de Direito, que nasce com o objetivo de subjugar seus governantes à vontade emanada pelas leis. Neste cenário, o poder do Estado passa a ser legitimado pelo direito, que é uma regra derivada do seio social e baseada no que se entendia como a lei moral da época. O direito encontra-se, a partir deste novo modo estatal, diretamente relacionado com uma sociedade organizada, pois é por meio dele que serão edificadas as normas que a disciplinarão.
Dentro do Estado de Direito, as leis têm o condão de regular não só a conduta humana, mas também a ação estatal, sendo, para tanto, imprescindível a presença de dois requisitos básicos, quais sejam, a proteção às garantias individuais e a limitação do arbítrio do poder estatal. Neste sentido, o pensamento de que o Direito não surgiu para oprimir, gerar inseguranças sociais, impor modelos imutáveis a serem seguidos e servir de manipulação de interesses, deve estar sempre evidenciado.
Ocorre, no entanto, que em uma sociedade onde a ordem e a paz social não se fazem presentes harmoniosamente, imperioso se faz o uso de expedientes aptos à implementação destes dois componentes de extrema importância para o bom andamento da organização estatal vigente.
E, nesta esteira de entendimento, faz-se relevante a abordagem que este estudo propõe, tomando como elemento de análise as medidas de exceção, como expedientes com capacidade de restringir as garantias individuais e, ao mesmo tempo, ampliar o arbítrio do poder do Estado, correlacionando-a com o Estado Democrático de Direito, que em seu cerne, não admite abusos contra os direitos e garantias de seus cidadãos.
Este trabalho, então, partirá da compreensão de conceitos gerais, como Estado de Exceção e medidas de exceção, bem como as suas aplicações, via de institutos específicos, num Estado de Direito, utilizando, in casu, o que prevê o ordenamento jurídico brasileiro, através de sua Constituição Federal. Para tanto serão utilizadas as linhas de pensamento de Carl Schimitt e Giorgio Agamben, no que tange ao Estado excepcional e suas medidas, e, as lições de José Afonso da Silva, J. J. Gomes Canotilho, dentre outros, acerca da recepção destes institutos por um Estado de Democrático de Direito, para ao final proporcionar delineamentos conclusivos sobre tal problemática.
1 ESTADO DE EXCEÇÃO
O Estado de Exceção conceitua-se, a priori, como um período em que parcelas da ordem jurídica, sobretudo aquelas reservadas à proteção das garantias fundamentais, são suspensas por medidas advindas do Estado, com o objetivo de atender necessidades urgentes e específicas. Tais medidas de cunho excepcional possuem poder normativo, sendo apresentadas, portanto, como parte do Direito, mesmo que, suspendam por um momento, o próprio ordenamento jurídico.
1.1 O Pensamento de Carl Schimitt
Ao optar pelo estudo do Estado de Exceção, impõe que se acoste qualquer compreensão de seus fundamentos em Carl Schmitt, seguramente o seu principal teórico. As suas obras nas décadas de 1920 e 1930 aprovisionam, ainda nos dias de hoje, os alicerces conceituais do tema, cuja atualidade permanece notável.
Para Schmitt a ordem jurídica, tal como toda e qualquer ordem, precisa ancorar-se numa decisão e não em uma norma de consenso. As questões concernentes à ordem e segurança necessitam advir de uma decisão soberana, sendo pautadas por situações de exceção. Assim, quando contradições aparecem no interior de um Estado, é ele próprio, via de seu Governo, que deve resolvê-las, solucionando o conflito instaurado, com vistas a extinguir a inquietação da segurança pública.
A partir desta premissa percebe-se que Schmitt utiliza o texto contido no artigo 48 da Constituição de Weimar, Lei Fundamental alemã, instrutor de que: “Quando um Território não cumpre os deveres que lhe impõe a constituição ou as leis do Reich, o Presidente do Reich pode abrigar-lhe a fazê-lo com as forças armadas”, para abalizar seus ensinamentos acerca do Estado de Exceção. Para ele, com fulcro neste artigo, se a segurança e a ordem públicas se alterassem, colocando em perigo a integridade do Reich, natural seria que seu presidente lançasse mão de medidas rigorosas para o restabelecimento do status quo, não relutando em momento algum em intervir neste sentido, caso fosse preciso, com o apoio de suas forças armadas.
Na visão de Carl Schimitt (2006, p. 7 e 13), em sua obra Teologia Política, o Estado de Exceção caracteriza-se por ser um período onde ocorre a suspensão de toda ordem existente. Entretanto, resta evidente que, em detrimento do Direito, o Estado permanece. Sendo o Estado de Exceção diferente do que se visualiza na anarquia ou em situações caóticas, subsiste, no sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não jurídica. A existência do Estado, nesta situação, mantém uma supremacia deste sobre a norma jurídica, que está, pois, suspensa pela situação excepcional imposta. Em Estado de Exceção, o Estado suspende o Direito por fazer jus a autoconservação. A decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo possível, tornando-se absoluta em sentido real. Segundo o autor citado, vale a definição de que Soberano é aquele que tem o poder de decidir sobre o Estado de Exceção.
A anormalidade de uma situação excepcional para Schimitt é elemento por demais instigante, conforme se pode notar da reflexão acerca da exceção trazida por ele, a qual a transcreve-se ipsis literis a seguir:
“A exceção é mais interessante do que o casal normal. O que é normal nada prova, a exceção comprova tudo; ela não somente confirma a regra, mas esta vive da exceção. Na exceção, a força da vida real transpõe a crosta mecânica fixada na repetição. […] E, quando se quer estudar corretamente o caso geral, somente se precisa observar uma real exceção. Ela esclarece tudo de forma muito mais clara que o geral em si. Com o tempo, fica-se farto do eterno discurso sobre o geral; há exceções. Não se podendo explicá-las, também não se pode explicar o geral. Comumente, não se nota a dificuldade por não se pensar no geral com paixão, porém com uma superficialidade cômoda. A exceção, ao contrário, pensa o geral com paixão enérgica” (SCHIMITT, 2006, p. 15).
A teoria Schmittiana, sob tal aspecto é combatida de forma veemente por Giorgio Agamben, que se recusa a ofertar qualquer natureza jurídica às chamadas medidas de exceção, cujo desígnio, passa a ser a negação do próprio Direito.
De forma bastante crítica, Agamben destaca o que identifica como incoerências nas teses de Schmitt, situações estas que o presente trabalho pretende trazer ao leitor nas linhas que se seguem.
1.2 A visão de Giorgio Agamben
Segundo a obra de Giorgio Agamben, as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas, as quais não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal (AGAMBEN, 2003, p.12).
Para tanto, parte da análise de alguns aspectos identificados na obra do autor alemão, especialmente na parcela em que este se dedica a demonstrar a possibilidade de coexistência entre o estado de exceção e a ordem jurídica constituída.
A argumentação de Agamben se inicia com a afirmação de que, para Carl Schimitt, o Estado de Exceção traz em si uma ordem, ainda que não jurídica, tratando-se, em verdade, de medidas que acarretam a suspensão do Direito. A finalidade, contudo, seria a de criar condições para que o Direito, e, deste modo, a Constituição possa voltar a ser aplicada em sua plenitude, com a derrubada das barreiras que impunham sua momentânea suspensão (AGAMBEN, 2003, p. 55).
As manobras de Schmitt, buscando incluir o Estado de Exceção no ordenamento jurídico, tratando-o como um modo de exteriorização deste, na perspectiva de Agamben, constituem, indubitavelmente um mote que não encontra qualquer amparo, afinal:
“Se o que é próprio do estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica?” (AGAMBEN, 2003, p. 39)
Na defesa de sua doutrina sobre o Estado das medidas excepcionais, Giorgio Agamben busca o diálogo com outros autores que vão além de Carl Schmitt, buscando, pois, os sustentáculos de suas conclusões em fronteiras que se estendem além do preconizado na literatura européia, pautando-se em situações assemelhadas colhidas no que fora praticado durante o Império Romano. Este arcabouço de idéias permite a alegação de que a realidade estabelecida em momentos onde predominam as medidas excepcionais, contrárias ao sistema de garantias firmado nas Constituições, não pode, de forma alguma, ser adotada como parte de qualquer ordenamento jurídico. Pelo contrário, mesmo que revestidas de normatividade e procedentes de autoridades constituídas de forma legítima, institutos com semelhante teor não podem ser reconhecidos como pertencentes ao Direito. E, com o apoio de suas próprias palavras: “O estado de exceção não é uma ditadura […], mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas estão desativadas” (AGAMBEN, 2003, p. 78).
E, ainda assevera o autor que:
“Falaciosas são as doutrinas que, como a de Schimitt, tentam inscrever indiretamente o estado de exceção num contexto jurídico, baseando-o na divisão entre normas de direito e normas de realização do direito, entre poder constituinte e poder constituído, entre norma e decisão. O estado de necessidade não é um “estado do direito”, mas um espaço sem direito.” (AGAMBEN, 2003, P. 79).
Realizadas as ponderações acerca dos pensamentos de Carl Schimitt e Giorgio Agamben, é forçoso reconhecer que medidas de caráter excepcional usualmente têm sido impostas às populações como forçosas alternativas a serem lançadas perante as sólidas ameaças que se colocam aos Estados. O que merece atenção são as elegantes capas de legalidade que acompanham as medidas de exceção, as caracterizando como males imprescindíveis à resolução de problemas não só apenas referentes à segurança interna ou externa, mas, notadamente, como garantidoras da ordem sócio-econômica estatal.
Ao utilizar as conclusões de Herbert Tingsten acerca do emprego do Estado de Exceção como paradigma governamental, Agamben afirma que o autor parece dar-se conta de que, embora um uso provisório e controlado dos plenos poderes seja teoricamente compatível com as constituições democráticas, “um exercício sistemático e regular do instituto leva necessariamente à liquidação da democracia” (TINGSTEN, apud AGAMBEN, 2003, p. 19).
Nas linhas posteriores pretende-se contextualizar a utilização das medidas excepcionais na contemporaneidade.
1.3 O Momento Hodierno
As políticas de segurança representam a faceta atual do Estado De Exceção, apresentadas a todos como incômodos necessários para assegurar os valores que garantem a sobrevivência dos Estados e do Direito.
As constituições contemporâneas, refletindo as intensas transformações globais ocorridas nos últimos dois séculos, escoltaram e incentivaram o processo de remodelamento dos Estados, desaguando em uma realidade na qual a proteção da dignidade é a grande prioridade.
Destarte a viabilização da máxima realização desta premissa protetiva, reputada como essencial para a satisfação das necessidades humanas mínimas, torna-se a pedra angular que confere validade às políticas públicas. Afirma-se, então, a salvaguarda do ser humano como a finalidade basilar da ação do Estado. Neste sentido, o respeito aos ditames constitucionais, e, de maneira especial à sua pauta de direitos fundamentais, recebe ímpar relevância, afinal, conforme a observação de Konrad Hesse:
“Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.” (HESSE, 1991, p.19)
A compreensão de um Estado que, por seu turno, se balize no ideal de proteção e promoção dos direitos fundamentais, raras vezes encontra-se perfeitamente conectado com a realidade observada em países com processos de desenvolvimento tardios, v.g, o Brasil, ocorrendo, em muitos casos, situações onde o sistema constitucional recebe críticas ou contestações, com a negação explícita ou implícita da validade de seu catálogo de garantias.
O momento é oportuno para a lembrança de que em nome de necessidades contingentes, a plena expressão das garantias fundamentais da sociedade resta frustrada, abrindo espaço para que a fundamentação do uso de expedientes de exceção encontre fulcro tanto na ocorrência de calamidades externas, como guerras de variadas proporções, quanto por ocasião de problemas internos, notadamente de ordem econômica, ou ainda em face de ameaças não muito evidentes.
1.3.1 Estado de Exceção Constitucional
O Estado de Exceção não é uma criação do Direito Constitucional. Desde o direito romano se tem a presença de um jus estremae necessitatis ou de um salus rei publica lex esto para apregoar a existência de um direito aplicável em situações de crise do Estado.
A delimitação dos contornos de um Estado de Exceção, considerado em sua essência como um Estado Constitucional, recebe acolhida no Estado Democrático de Direito, pois as situações de anormalidade retro citadas carecem de uma disciplina jurídico-constitucional diferente daquele modelo jurídico consagrado para os estados dotados de normalidade. Assim, segundo a lição de J.J. Gomes Canotilho:
“O direito de necessidade do Estado só é compatível com o Estado Democrático, constitucionalmente conformado, quando na própria Lei Fundamental se fixarem os pressupostos, as competências, os instrumentos, os procedimentos e as conseqüências jurídicas da Constituição de Excepção.” (CANOTILHO, 1998, p.1083)
Cumpre sublinhar a situação limítrofe que pode ser observada entre as figuras do Estado Democrático de Direito e do Estado de Exceção. Aquele se caracteriza pela apresentação de um conteúdo constitucional, que resguarda em si um conjunto de valores, reconhecendo, nesta esteira, a presença inequívoca de direitos. Já, este, em suas prerrogativas age via da suspensão das garantias e da participação popular, concebendo o direito como um elemento negativo.
Pode-se, em torno das conceituações acima, concluir que, nesse sentido, não há uma total incompatibilidade entre os dois termos, uma vez que Estado de Direito, buscando a manutenção da ordem constitucional, traz em sua Constituição a previsão do Estado de Exceção, sempre reservado aos momentos especialíssimos nos quais faz-se imprescindível o uso da manobra suspensiva de parte dos direitos de seus cidadãos.
As autoridades competentes, assim, diante de graves perigos ou de situações de crise atentatória contra a ordem democrática, poderão, com acosto na Constituição recorrer à utilização de medidas de exceção, corroborando o que se convencionou nomear de direito constitucional de necessidade.
Destarte, a delimitação normativo-constitucional de um regime extraordinário para situações excepcionais “significa que se pretende não apenas uma causa de justificação excludente de culpa por factos ou medidas praticadas para defender a ordem constitucional, mas uma causa justificativa que exclua a ideia de ilicitude dos mesmos factos” (CANOTILHO, 1998, p. 1069).
E, nesta esteira, para Giorgio Agamben (2003, p.22) um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Estados ocidentais mostra uma divisão entre ordenamentos que regulamentam o Estado de Exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que preferem não regulamentar explicitamente o problema. A França, berço do Estado de Exceção moderno, entra no primeiro grupo juntamente com a Alemanha; ao segundo grupo, pertencem a Itália, Suíça, Inglaterra e os Estados Unidos.
Este trabalho tomará a situação brasileira como ponto de análise, conforme será explicitado a seguir.
2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SEUS MECANISMOS DE EXCEÇÃO
A Constituição Brasileira de 1988, conhecida como a Carta Democrática, acompanhando as disposições já referendadas neste trabalho, insere dentre suas disposições a previsão de medidas de cunho excepcional, que somente se aplicam em situações de crise e emergência.
2.1 O Sistema Constitucional das Crises
José Afonso da Silva, em sua obra, leciona que a defesa das instituições democráticas, via do chamado equilíbrio constitucional é um dos postulados máximos do Estado de Direito. Neste sentido é que citando a definição de Aricê Moacyr Amaral Santos, traz a conceituação de sistema constitucional de crise como sendo “O conjunto ordenado de normas constitucionais, que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, tem por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou restabelecimento da normalidade constitucional” (SANTOS, apud SILVA, 2000, p.739).
Neste turno, o entendimento sobre o socorro das medidas de exceção no Estado brasileiro recebe o apoio da teoria em tela, substituindo a legalidade consubstanciada na normalidade, por uma extraordinária legalidade reguladora do Estado de Exceção.
A exposição de José Afonso da Silva ainda destaca que:
“Sem que se verifique a necessidade, o estado de exceção configurará puro golpe de estado, simples arbítrio; sem atenção ao princípio da temporariedade, sem que se fixe tempo limitado para vigência da legalidade extraordinária, o estado de exceção não passará de ditadura.” (SILVA, 2000, p. 740)
Para ilustrar o mau uso, ou utilização desviante das medidas de exceção constitucionais no Brasil, Silva ancora sua lição em Diego Valadés quando este leciona que “quase sempre o estado de exceção funciona como instrumento de preservação do domínio de uma classe dominante” (VALADÉS, apud SILVA, 2000, p. 740).
Assim, resta evidente que em situações passadas, os mandatários do poder no país em nome de um aleivoso rompimento da ordem, fizeram da exceção, uma regra, v.g, o período compreendido entre os anos de 1964 e 1978, onde os chamados Atos Institucionais (AI’s), sobretudo o mais cruel e maior supressor de direitos e garantias, o AI nº 5, instauraram um regime de exceção, sem bases emergenciais claras e que não continha em si o requisito da temporariedade, tornando-se, de fato, uma ditadura.
O cuidado que deve se tomar nos dias atuais reside na observância dos pressupostos da necessidade e da urgência, no intuito de não se permitir que os abusos de outrora possam voltar a serem praticados no Estado Democrático Brasileiro.
Tendo por escopo a defesa da ordem política e jurídica do Estado brasileiro, o constituinte de 1988 implantou na Lei Maior, mecanismos que possibilitam este mister. Nesse viés, a Intervenção Federal, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio consistem nas medidas excepcionais hodiernas, incumbidas de restaurar a normalidade constitucional, uma vez que trazem consigo, a capacidade de suspenderem, temporariamente, como já fora mencionado, os direitos e garantias individuais, ampliando o poder repressivo do Estado, sob a justificativa da iminente gravidade da perturbação da ordem pública.
2.1.1 Intervenção Federal
O instituto da intervenção federal é majoritariamente concebido como uma ação política que supõe, por sua nomenclatura, atos de ingerência. A intervenção federal é, neste sentido, um mecanismo excepcional onde a União atua limitando a autonomia de um de seus Estados. Tem por desígnio a preservação da soberania nacional, do pacto federativo e dos princípios constitucionais sobre os quais se erige o Estado Democrático de Direito (BARROSO, 2004, p. 249).
Em princípio, via de regra, não se admite no direito brasileiro qualquer atuação de intervenção da União em suas unidades federadas; porém, a excepcionalidade das situações autoriza tal ato nos Estados-membros e no Distrito Federal nas hipóteses enumeradas pelo artigo 34 da Constituição Federal de 1988, in verbis:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I – manter a integridade nacional;
II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III – por termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”
A iniciativa da intervenção federal pode ser do próprio Presidente da República, de ofício, de modo espontâneo e discricionário, cabendo a ele avaliar a conveniência e a oportunidade do ato, indo de encontro, guardadas as devidas limitações constitucionais, com o pensamento de Carl Schimitt, que preconizava, conforme o exposto em linhas anteriores, que Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção.
Merecem pontuação especial os casos da Carta Magna pátria, no qual a iniciativa da intervenção irá depender de solicitação do Poder Legislativo, Executivo coacto, requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral ou ainda, mediante provimento do STF, em virtude de representação oferecida pelo Procurador-Geral da República, conforme se depreende da interpretação literal do artigo 36, I da Constituição Brasileira:
“Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:
I – no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário;
II – no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral;
III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal.”
A intervenção federal, portanto, é efetivada por decreto do Presidente da República, nos moldes do § 1º do artigo 36 da Magna Carta:
“O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas”.
O caráter constitucional da medida em tela determina que cessados os motivos que ensejaram a intervenção, o status quo é reativado, e, as autoridades afastadas de seus cargos a eles voltarão, salvo impedimento legal conforme o artigo 36, parágrafo 4º da Constituição Brasileira.
2.1.2 Estado de Defesa
Para José Afonso da Silva (2000, p. 741) a expressão “estado” possui sentidos diversos nas expressões “Defesa do Estado” e “estado de defesa”. Na primeira acepção, recebe o significado de “uma ordenação que tem por fim específico e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros de uma dada população sobre um dado território”, sendo escrita com a letra inicial maiúscula precisamente para distinguir de outros sentidos comuns do termo, como o de “situação”, “circunstância”, “conjuntura”, entre tantos, cuja precisão depende de qualificações. Assim, Estado de Defesa é uma situação onde medidas destinadas a debelar ameaças à ordem pública ou à paz social são organizadas.
Pode-se conceber, então, o Estado de Defesa como uma situação emergencial ou de legalidade extraordinária, na qual o Presidente da República, dotado de poderes especiais, suspende algumas garantias individuais asseguradas pela Constituição, justificando tais atos para que a ordem em conjunturas de crise institucional e nas guerras possa ser restabelecida.
Os objetivos, as consequências, as formas de controle, bem como as limitações e procedimentos da medida excepcional em análise são aprovisionados pelo artigo 136 da Carta Constitucional:
“Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
§ 1º – O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I – restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;
II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
§ 2º – O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.
§ 3º – Na vigência do estado de defesa:
I – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;
II – a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;
III – a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;
IV – é vedada a incomunicabilidade do preso.
§ 4º – Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.
§ 5º – Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.
§ 6º – O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.
§ 7º – Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.”
Aqui também se demonstra a preocupação do constituinte de 1988 em limitar o instituto do Estado de Defesa, com o intento de equilibrar a relação entre o Estado de Exceção, concebido em seus moldes schimittianos e o Estado Democrático de Direito, tal qual a Constituição pátria preconiza em seu artigo 1º.
Neste contexto é que pode se dizer, sem qualquer temor, que o Estado de Defesa possui demarcações de ordem constitucional, estando sujeito ao controle político e jurisdicional, conforme o artigo 136 acima transcrito elucida.
2.1.3 Estado de Sítio
A terceira das medidas excepcionais contidas na ordem constitucional brasileira recebe a denominação de Estado de Sítio, tendo sua matéria disciplinada nos dispositivos 137, 138 e 139 da Constituição do país.
Seguindo a lição de José Afonso da Silva (2000, p.744-745), as causas do Estado de Sítio são situações críticas que indicam a necessidade de correspondente legalidade de exceção (extraordinária) para fazer frente à anormalidade manifestada, constituindo-se em pressupostos ou condições de fato, sem as quais tal medida toma corpo de um abuso injustificado.
Tomando como referência as medidas já analisadas, os requisitos da temporariedade e da necessidade, supra mencionados, também precisam se fazer presentes aqui.
E, no tangente às causas que José Afonso da Silva destaca como “situações críticas”, o artigo 137 da Carta Magna as estabelece com o seguinte teor:
“O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II – declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira.”
Vê-se, portanto, que o Estado de Sítio é decretado objetivando preservar ou restaurar a normalidade constitucional, perturbada pelos fatos enumerados pelo dispositivo constitucional acima, sendo, pois, aplicável no todo ou em parte do território nacional.
Ainda de acordo com a Constituição Federal do Brasil, o seu artigo 139 determina que, no Estado de Sítio decretado por comoção grave ou onde haja a comprovação da ineficácia do Estado de Defesa, restam como consequências: a obrigação de permanência em localidade determinada; a detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade de correspondência, ao sigilo de comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; a suspensão da liberdade de reunião; a busca e apreensão em domicílio; a intervenção nas empresas de serviços públicos e a requisição de bens. Já no Estado de Sítio decretado no estado de guerra ou em resposta à agressão armada estrangeira todas as garantias constitucionais poderão ser suspensas.
A questão relativa ao controle dos atos sob a égide da medida excepcional em tela também merece destaque. Assim, pelo exposto no retro mencionado artigo 137, no Estado de Sítio o Presidente da República necessita de prévia autorização do Congresso Nacional, além dos pareceres não-vinculados dos Conselhos da República e da Defesa Nacional. Neste ponto, José Afonso da Silva (2000, p. 747) ensina que tanto quanto o Estado de Defesa, esta medida não é, nem pode ser, uma situação de arbítrio, uma vez que é regrada constitucionalmente, ficando por esta razão sujeita a controles político e jurisdicional.
Em regra o Estado de Sítio deverá durar o mesmo tempo do estado de defesa, não ultrapassando o período de trinta dias, porém, são acolhidas prorrogações de até trinta dias, uma por vez. Na situação de estado de guerra ou em resposta a agressão armada estrangeira, poderá ainda ser decretado pelo tempo que durarem tais situações, conforme se depreende do estudo do parágrafo 1º do artigo 138 da Constituição Brasileira.
Para evitar atos assemelhados aos de cunho ditatoriais, o texto constitucional determina, como o já visto em relação à Intervenção Federal e ao Estado de Defesa, a necessidade imperiosa de se informar o prazo de duração, as normas de execução e as exatas garantias que serão subtraídas pela medida de exceção imposta. Isto é observado facilmente quando se faz a leitura do caput do artigo 138, reproduzido abaixo:
“Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.” (grifo nosso)
Finalizando esta etapa, traz-se, novamente, o comentário de José Afonso da Silva (2000, p. 748) que, de forma elucidadora, sublinha o fato de que qualquer pessoa prejudicada por medidas ou providências do Presidente da República ou de seus delegados, executores ou agentes, com inobservância das prescrições constitucionais, tem o direito de recorrer ao judiciário para a responsabilização e reparação de eventual dano que lhe tenha sido causado.
Tal lição corrobora o exposto até aqui neste estudo, qual seja o fato de que as medidas de exceção previstas pelo Estado Democrático de Direito brasileiro recebem as devidas proteções contra arbitrariedades, que, se cometidas e não refutadas, ensejariam os perigos de um Estado de Exceção “puro”, ou, similar ao que idealizou Carl Schimitt em suas teorias dos anos de 1920.
Considerações Finais
Ante todo o exposto, um pensamento pode prevalecer na mente do leitor incutindo a idéia de que em pleno Estado Democrático de Direito há legalmente ou constitucionalmente, espaço para um Estado de Exceção que coloca direitos e garantias de seus cidadãos num estágio suspensivo.
Tal premissa não é totalmente inválida, mas, ao aprofundar o exame desta temática, deve-se acautelar o contexto em que ocorre a inserção da excepcionalidade na normalidade advinda do respeito à ordem jurídica, e, se formular duas ordens de raciocínios conclusivos acerca desta matéria.
Sob um primeiro prisma, o Estado de Direito e o Estado de Exceção apesar de, conceitualmente, numa primeira percepção, se repelirem, acabam por se completar, uma vez que em situações especialíssimas torna-se de suma importância a suspensão de garantias constitucionais para o restabelecimento da ordem política.
Nesse fulcro, com a ameaça à própria existência do Estado Democrático, o soberano, na contemporaneidade dos Estados de Direito, representante da vontade de seus nacionais, levanta-se e, nos moldes do que Carl Schimitt previa em suas lições, “decide sobre o estado de exceção”, porém, hodiernamente é abalizado pelos mandamentos constitucionais que legitimam tal prática, evitando os arbítrios de outrora.
Em um segundo plano de idéias, prevalece o pensamento defensor de uma teoria preconizadora de que nada autorizaria o Estado a atuar sob a égide de medidas excepcionais, afirmando que a tarefa de defender os direitos mais essenciais da sociedade não pode ser afastada, nem mesmo diante de ocasiões onde se percebe a extrema necessidade. Ao Estado, segundo esta corrente, incumbe a proteção da sociedade, preservando a integridade e assegurando a máxima expressão de seus direitos fundamentais, não os suspendendo em hipótese alguma.
O modo de pensar esposado pelos defensores da segunda posição encontra respaldo na resistência à utilização das medidas de exceção como técnicas de governo, e, possui seguidores notadamente na Europa, v.g, consubstanciados nas decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, por certo, aquele de jurisprudência mais influente no cenário europeu e em boa parte do mundo, de reconhecida postura intransigente na defesa dos direitos fundamentais.
A despeito das duas correntes trazidas nesta etapa, e, muito longe de esgotar os debates sobre o tema, é importante sublinhar que o constitucionalismo, que desde suas raízes é merecedor de aplausos no que se refere às conquistas, notadamente na seara dos direitos fundamentais, não pode desvirtuar-se de suas fileiras iniciais, abrindo o perigoso campo para a prática de atos arbitrários e degradantes frutos de um Estado de Exceção ilimitado.
A análise de figuras constitucionais excepcionais, como as enumeradas em linhas anteriores, proporciona o sentimento de que o combate aos males que afligem as sociedades em torno do globo pode realizar-se com o respeito aos valores humanos essenciais.
Neste diapasão, toma-se por certo, ao menos um princípio com função norteadora, qual seja, o respeito às constituições democráticas e aos ordenamentos jurídicos, em detrimento dos mandamentos de teor autoritário, que atentam contra os direitos e garantias fundamentais. É com fulcro em suas disposições que se ancoram as bases conceituais e normativas para que se plantem os limites dentro dos quais o Estado pode atuar diante das inúmeras turbações e ameaças a que cotidianamente encontra-se afrontado.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Cogo
Mestrando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e docente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade de Paranaíba, MS