A imutabilidade do nome da pessoa natural


O tema da dissertação é fruto do Iluminismo Oitocentista que possuía, entre seus valores dogmáticos fundamentais, o da preservação da segurança jurídica, mesmo que suprimisse outros direitos e garantias, hoje considerados fundamentais. A idéia de imutabilidade, ou seja, de impossibilidade de alteração do nome da pessoa natural, visando proteger mais as relações econômicas de terceiros do que a dignidade do titular, estava espelhada no artigo 58 da Lei dos Registros Públicos com a sua redação originária.


É bom deixar assentado que, muito embora o artigo 58 diga respeito ao prenome, a imutabilidade irradia em todas as partes do nome, como regra geral, até por força da mesma redação dada pelo Regimento 18.542 de 1928. Com o desenvolvimento histórico e com a adoção de novos paradigmas constitucionais, entre os quais, o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), além da nova visão sobre os valores fundamentais imateriais (art. 5º, caput, CF), passou o nome a ser protegido, não mais tanto por sua irradiação a terceiros, mas sim, pela própria proteção conferida ao seu titular.


O nome, sem sombra de dúvida, é dos mais importantes direitos da personalidade pois tem a função de individuar e identificar a pessoa, garantindo lastro histórico, cultural, familiar e social, tornando a pessoa realmente um indivíduo uno e senhor de suas próprias relações jurídicas. Os próprios valores, as qualidades, atributos, em suma, o caráter da pessoa, acaba por incorporar o seu nome. Tanto que a palavra ou conjunto de palavras que expressa o chamamento a pessoa aponta aspectos morais, físicos, ou seja, um conjunto de potencialidades do ser humano.


Na Antiguidade, o nome tinha a grande finalidade de identificar o caráter da pessoa, tanto que para os judeus todo nome era revelador de uma qualidade primordial da pessoa. Naquele período, mais precisamente desde 1.600 aC, por ocasião do Pentateuco (Cinco Livros Sagrados), o próprio Deus interagindo com os seres humanos modificava os nomes ao longo da vida das pessoas, na medida em que ocorria uma transformação no caráter das mesmas. Assim foi com Abrão que se transformou em Abraão, porém, das mais significativas mudanças foi a de Jacó (“enganador”) para Israel (“vencedor”), aliás, este último nome acabou incorporando à denominação de toda a Nação, mesmo antes da divisão das Doze Tribos.


Com o passar do tempo e com o sincretismo cultural, outros valores acabaram incorporando ao nome, mas em nossas tradições judaico-cristãs nunca se perdeu a importância e a seriedade do instituto em questão referente à pessoa natural, de sorte que o próprio Estado tem hoje a incumbência de tutelar o nome evitando, por meio do Oficial de Registro Civil e dos demais operadores do Direito, o aviltamento de um elemento tão essencial à pessoa humana.


Nessa linha de raciocínio, o Código Civil de 2002 foi extremamente feliz ao contextualizar o nome no artigo 16 dentro dos direitos da personalidade, gozando das prerrogativas de pessoalidade, inalienabilidade, imprescritibilidade, além da proteção econômica dada ao mesmo, conforme determina o comando do artigo 12 do mesmo Diploma legal.


Mesmo ainda gozando de definitividade, por força da Lei 9.708/98, o nome no que tange ao prenome passou a ser definitivo, admitindo-se algumas situações de mutabilidade, sendo a mais importante de todas, sem dúvida, a da troca por apelido público e notório. Muito embora o alcance da norma tenha sido a do prenome, a definitividade ou a imutabilidade relativa do prenome abarca também a do sobrenome, conforme se observará a seguir.


O nome, enquanto componente da integridade moral da pessoa, é protegido pelo sistema jurídico ao lado do pseudônimo, ou seja, da designação criada pela pessoa para proteger da exposição do nome, isto é, para garantir o anonimato (art. 19, CC). O nome, de acordo com o Código Civil, compreende prenome e sobrenome (art. 16, CC). Porém, para muitos juristas, o título, agnome (parte do nome que distingue de outros membros da mesma família) e a partícula (preposição) também são partes integrantes do nome, mas que não foram tutelados porque são totalmente mutáveis, não gozando da referida definitividade.


A principal forma de aquisição do nome, sem sombra de dúvida, é a filiação. É  o modo mais puro de sua aquisição, tendo sido prevista a hipótese tanto na Lei dos Registros Públicos como no Provimento 25/05, sendo relevantíssima a função do Oficial de Registro Civil. Isso porque compete ao Estado, na figura do Oficial registrador a incumbência de jurisdicizar os direitos da personalidade por meio da lavratura do assento e certidão de nascimento, ocasião em que o Oficial não só deverá impedir a aposição de nomes que exponham a pessoa humana ao ridículo (item 35 da NSCGJ), bem como, orientar os pais a respeito do significado dos nomes, tendo incumbência, ainda, de procurar evitar a homonímia (item 35.1 da NSCGJ), posto que cada pessoa deve ser singularmente reconhecida no sistema jurídico. Hoje não há mais uma ordem formal para colocação dos sobrenomes (item 35.2 da NSCGJ), porém, dever-se-á sempre ter o cuidado de garantir a vontade de ambos os pais na hora de efetuar a lavratura do registro. Na dúvida, o nome constante da DNV será mantido no registro.


Mais importante do que considerar hipótese de aquisição do nome é tratar das formas de mutabilidade, ou seja, de mudança, posto que, em princípio, deve o nome ser mantido tal qual foi adquirido. Temos as seguintes hipóteses de modificação:


1ª) Nomes ridículos. Certamente houve falha do Oficial de Registro Civil que jamais poderia ter deixado ocorrer o aviltamento da pessoa humana. Caso a parte venha a se insurgir, é possível a aposição de dúvida para fins de registro. Porém caso tenha sido dado nome que exponha a pessoa ao ridículo, será possível sua modificação a qualquer tempo.


2ª) Adoção. De acordo com o artigo 47, § 5º do ECA e artigo 1.627 do Código Civil é possível a modificação integral do nome por parte do adotante para que incorpore valores de família ou pessoa do adotante.


3ª) Naturalização. De acordo com a lei especial que rege a matéria, o naturalizado pode adaptar seu nome às regras gramaticais vigentes no Brasil, inclusive convertendo nomes que possuam significado próprio no território nacional. Dessa sorte, James poderá ser convertido em Tiago, assim como em vários outros casos.


4ª) Apelido público e notório. Com o avanço do artigo 58 da Lei dos Registros Públicos, o apelido poderá substituir o prenome, não mais precisamente apenas incorporá-lo. Dessa sorte, transexuais podem modificar o nome junto ao Registro, entre vários outros casos.


5ª) Proteção à testemunha. De acordo com a Lei 9.807/99 é possível a alteração do nome toda vez que a pessoa tiver colaborado na apuração de um crime, dependendo a hipótese de determinação judicial.


6ª) Casamento. O novo Código Civil flexibilizou a modificação do nome em virtude do casamento, podendo qualquer dos cônjuges não somente acrescer o sobrenome do contraente ao seu, mas modificar o seu sobrenome em virtude de casamento, alterando, inclusive, a ordem seqüencial dos nomes. Ademais, o item 130.5 da NSCGJ estabelece que quando houver alteração do nome do cônjuge em assento de casamento, deve ser procedida à averbação no assento de nascimento daquele cujo nome sofreu alteração.


7ª) Erro gráfico. Caso o erro gráfico não seja evidente, deverá ocorrer a retificação judicial. Porém, caso o erro seja simples e evidente deverá ser processada a retificação pela própria unidade de serviço onde se encontra o assentamento (item 131 da NSCGJ). De qualquer maneira não pode em nenhum caso, o Oficial, retificar de ofício o erro. Daí a relevância e o cuidado que deve ter na hora de proceder ao primeiro registro.


8ª) Anulação de casamento. Em caso de declaração de nulidade ou anulação de casamento a pessoa que usa o nome deverá deixar de fazê-lo, a não ser que o juiz verifique prejuízo para a própria prole.


9ª) União estável. O artigo 57, §§ 3º e 4º, da Lei dos Registros Públicos, por força do artigo 226, § 3º da Constituição Federal, recebeu uma nova leitura, posto que o companheiro, ou companheira, pode requerer ao Juiz competente a averbação do patronímico do outro companheiro no Registro de Nascimento, desde que não tenha impedimento legal para o casamento, fora a condição de separado de fato e desde que comprove a vida em comum.


Diante desse quadro, é possível concluir que os novos paradigmas constitucionais irradiados no sistema infraconstitucional registral, visando evitar a coisificação das relações jurídicas e dignificando a figura da pessoa, implicaram, entre outras coisas, em novos rumos para o tratamento do nome, abrindo, de certa forma, mão do velho dogma da segurança para garantir alterabilidade em situações exigidas para os novos tempos, de forma que o Registrador, cônscio do seu papel em todo esse processo, auxilia na efetividade dos referidos princípios constitucionais.



Informações Sobre o Autor

Vitor Frederico Kumpel

Magistrado. Doutor em Direito pela USP. Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ) e da Escola Paulista de Direito (EPD).


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