Resumo: O presente trabalho analisa a incorporação dos tratados de direitos humanos ao ordenamento jurídico pátrio, com vistas a esclarecer a questão do status normativo, bem como as demais implicações trazidas pela Emenda Constitucional n° 45∕ 2004, que erigiu os tratados de direitos humanos a emendas constitucionais. Através de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, primeiramente, discorre-se sobre os direitos humanos na Constituição de 1988. Em seguida, examina-se o trâmite de incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico pátrio antes da referida emenda, assim como a controvérsia acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. Por fim, avaliam-se as implicações trazidas pelo novo sistema, procurando propor soluções para as questões surgidas após a mudança constitucional.
Palavras-chave: Direito Internacional, Direitos Humanos, Tratados Internacionais de Direitos Humanos, Status Normativo, Emenda Constitucional 45.
Abstract: The present work examines how the International Human Rights Treaties are incorporated into the Brazilian legal system, with a view to clarify the hierarchic status of these treaties as well as other implications brought by the 45th Constitutional Amendment. According to this innovation, the International Human Rights Treaties will be regarded as equivalent to a constitutional amendment, provided a special procedure is followed in parliament. Through a bibliographical research, first and foremost, the paper sets off by giving a brief view of the human rights in the Brazilian Constitution of 1988. Subsequently, the procedure of incorporation of international conventions before the so-called 45th Amendment is shown as well as the controversy on the hierarchic status of the human rights treaties. Last but not least, some implications brought by the new system are evaluated and plausible solutions to the questions raised after the change are proposed.
Keywords: International Law. Human Rights. International Human Rights Treaties. Hierarchic status. 45th Constitutional Amendment.
Sumário: 1.Introdução; 2. A Incorporação dos Tratados Internacionais ao Ordenamento Jurídico Brasileiro. 3. A Polêmica Acerca do Status Normativo dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos: o cenário anterior a Emenda Constitucional 45. 3.1. Da Supraconstitucionalidade; 3.2 Da Natureza Constitucional; 3.3 Do Status de Lei Ordinária; 3.4 O caráter supralegal; 4.O cenário após a EC n.45∕2004: Questionamentos e Possíveis Soluções.4.1 Há Discricionariedade do Congresso em Submeter os Tratados?;4.2. A Nova Ordem Retroage Alcançando os Tratados Já Ratificados?4.3 De quem é a Competência para Promulgar? 4.4 Cabe denúncia?;4.5 Equivalência de Emenda Constitucional Significa Status Constitucional?4.6 O §3° é Inconstitucional?4.7 Qual a Posição Hierárquica dos Tratados de Direitos Humanos após a EC 45?; 4.8 Fim da Prisão Civil do Depositário Infiel? 5.Considerações Finais; 6. Referências Bibliográficas.
A EMENDA CONSTITUCIONAL N.45∕ 2004 E OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS: SERÁ O FIM DA CONTROVÉRSIA?
1.Introdução
Seguindo a universalização do respeito à dignidade humana, a Constituição Brasileira de 1988, em resposta ao regime totalitário, partiu do pressuposto de que todo ser humano tem a mesma natureza e, portanto, o mesmo valor, devendo ter sua dignidade assegurada, pois essa precede qualquer direito estatal. Destarte, a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade humana, conforme dispõe o art. 1°, III, da CF∕ 88.
Com efeito, a Constituição de 1988, elevou a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos a serem princípios norteadores da Lei Maior. Daí o extenso rol de direitos humanos do art. 5°, inseridos em local de destaque no texto e considerados cláusulas pétreas (art.60, § 4). O art. 4º, por sua vez enumerou os princípios que regem as relações exteriores, ou seja, o compromisso que o Brasil tem com a efetividade do direito internacional.
Outrossim, o §1° do art.5°, prescreve a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. Por fim, mas não menos importante, destaca-se o § 2° do mesmo artigo, cuja leitura leva a crer que o rol de direitos e garantias enumerados na Constituição é apenas exemplificativo, advindo não só dos princípios nela contidos, assim como, dos tratados internacionais.
Em face do exposto acima, aduz Gilmar F. Mendes que o Brasil adotou um sistema aberto de direitos fundamentais (MENDES et al 2008, p.270). Esses, conforme ensinamentos de Ingo Sarlet,(SARLET 206,p. 93) podem ser tanto formalmente, como materialmente constitucionais. Os primeiros encontram-se positivados no texto constitucional por decisão do legislador constituinte, enquanto os últimos, apesar de restarem fora do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância, podem ser equiparados aos direitos formalmente fundamentais.
A idéia de sistema aberto, ou seja, de que há direitos materialmente constitucionais, foi aceita pelo STF ao apreciar a ação direta de inconstitucionalidade envolvendo a criação do IPMF. Na ocasião decidiu-se que o princípio da anterioridade (art. 150, III, b da CF) constitui um direito ou garantia fundamental.
Tendo em vista que a Constituição Federal nada dispôs sobre a hierarquia dos tratados internacionais, surgiram correntes doutrinárias acerca da matéria. Em virtude dessa celeuma doutrinária e jurisprudencial, a Emenda Constitucional n°45, de 8 de dezembro de 2004, inseriu o §3° do art. 5°, que reza: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”
Todavia, outras questões têm sido levantadas, após a inserção do referido parágrafo e, por conseguinte, mister se faz analisar o assunto, com vistas a esclarecer a questão do status normativo, assim como as demais implicações trazidas pela EC n.45.
2. A Incorporação dos Tratados Internacionais ao Ordenamento Jurídico Brasileiro.
É da leitura conjunta dos arts. 49, I e 84, VIII da CF∕ 88 que se depreende a sistemática de incorporação dos tratados internacionais, que envolvem matéria ordinária, ao ordenamento jurídico pátrio.
Conforme prescreve o art. 84, VIII cabe exclusivamente ao Presidente da República celebrar tratados internacionais, haja vista ser ele o responsável pela dinâmica das relações exteriores e pela defesa da nação no plano internacional.
Contudo, o tratado não passa a produzir efeitos internamente, sem passar por outras fases. Primeiramente, cabe à Câmara dos Deputados apreciar a matéria, após essa já ter passado pela Comissão de Relações Exteriores e Comissão de Constituição e Justiça. Posteriormente, a matéria vai a Plenário, necessitando, para ser aprovada, da maioria dos votos, presentes a maioria absoluta dos deputados. Em seguida, se aprovado, o projeto de decreto legislativo é enviado ao Senado Federal para aprovação ou rejeição. No plenário, a aprovação também se dá por maioria simples, após haver um novo controle prévio pelas comissões.
Em suma, O Congresso Nacional, poderá aprovar o texto que fora convencionado, não sendo possível nenhuma interferência em seu conteúdo, ou rejeitá-lo. Caso haja rejeição, apenas comunica-se a decisão ao Chefe do Executivo. Em se tratando de aprovação, expede-se um decreto legislativo, devidamente promulgado pelo Presidente do Senado e publicado. Haja vista ser esse decreto da competência exclusiva do Congresso Nacional, não está, também, sujeito à sanção presidencial, mas apenas à promulgação do Presidente do Senado Federal.
Apesar de o texto constitucional dizer que compete exclusivamente ao Congresso Nacional “resolver definitivamente” sobre tratados, o Congresso Nacional só resolve quando rejeita o acordo internacional. Com efeito, a decisão definitiva cabe, somente, ao Chefe do Poder Executivo, que está habilitado a ratificar tratados internacionais. Cumpre ressaltar, ainda, que o abono do Congresso também não obriga o Presidente a ratificar o tratado. Posteriormente, o Presidente expede um decreto, promulgando o tratado ratificado na ordem jurídica interna, que será publicado no Diário Oficial da União.
A par da sistemática da incorporação de tratados que envolvem matéria ordinária, há o procedimento de incorporação automática dos tratados referentes a direitos humanos. Com fundamento na interpretação conjugada do §2° do art. 5° com o princípio orientador da prevalência dos direitos humanos (art.4°,II) da CF de 88, defende-se que os tratados prescindem do decreto executivo, para sua vigência interna.
Nessa linha de pensamento, esclarece Mazzuoli (MAZZUOLI 2008. p.5) que:
“O procedimento geral de incorporação de tratados internacionais no ordenamento brasileiro vale tanto para os tratados comuns como para os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, sendo a única diferença que estes últimos dispensam, por terem aplicação imediata no ordenamento jurídico pátrio, a promulgação executiva do seu texto.”
Em igual sentido, PIOVESAN (2003, p 83) diferencia a incorporação dos tratados de direitos humanos, da dos tratados tradicionais, aduzindo que, no Brasil, há um sistema jurídico misto.
3. A Polêmica Acerca do Status Normativo dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos: o cenário anterior a Emenda Constitucional 45.
Com a promulgação da Constituição de 1988, surgiu uma polêmica no tocante à hierarquia dos tratados que versam sobre direitos humanos. Essa controvérsia doutrinária e jurisprudencial pode ser sistematizada em quatro vertentes, a seguir:
3.1. Da Supraconstitucionalidade
A corrente que advoga a favor do status supraconstitucional dos tratados de direitos humanos em face à Constituição Federal objetiva o progresso das relações internacionais e o cumprimento das normas internacionais compactuadas.
No Brasil, cita-se Celso Albuquerque de Melo como árduo defensor da idéia de que nem mesmo emenda constitucional seria capaz de revogar tratados internacionais de direitos humanos.
Todavia, como bem salienta Gilmar Ferreira Mendes et al (MENDES et al 2008,p. 692) essa tese encontra dificuldade de ser aceita por sistemas regidos pelo princípio da supremacia da Constituição. Alegam que, no Brasil, a Constituição é a norma máxima do ordenamento jurídico pátrio e, por conseguinte, serve de fundamento de validade para todas as demais espécies normativas. Ademais, insta ressaltar, que a própria constituição em seu art. 102, III, b prevê a possibilidade de controle de constitucionalidade dos tratados.
3.2 Da Natureza Constitucional.
Com a promulgação da Constituição de 1988, doutrinadores como Flávia Piovesan e Cançado Trindade defenderam a tese de que o art. 5°,§ 2° era o fundamento legal para colocar os tratados de direitos humanos no mesmo nível hierárquico das normas constitucionais. Nesse diapasão, numa interpretação conjunta com o § 1° do referido artigo, o procedimento de aprovação dos tratados de direitos humanos diferiria dos demais tratados, pois teriam aplicabilidade imediata no plano nacional e internacional, a partir do ato de ratificação, dispensando qualquer intervenção legislativa, desde que o Brasil fosse signatário.
Inclusive o §2° foi da autoria de Cançado Trindade, que, na época, expressou-se dizendo que
“O propósito do disposto nos parágrafos 2° e 1° do art. 5° da Constituição não é outro que o de assegurar a aplicabilidade direta pelo Poder Judiciário Nacional da normativa internacional de proteção, alçada a nível constitucional (…)A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação infraconstitucional- tal como ainda seguida por alguns setores em nossa prática judiciária não só representa um apego sem reflexão a uma tese anacrônica, já abandonada em alguns países.” (TRINDADE apud MENDES 2008, p 694-695)
Do exposto acima, vale salientar que a tese da constitucionalidade dos tratados internacionais só cabe para aqueles que versam sobre direitos humanos. Ademais, pela leitura que se faz desses parágrafos é plausível interpretar que, de fato, a Constituição Federal deu abertura à incorporação de direitos humanos provenientes de tratados internacionais, colocando-os no mesmo patamar dos direitos e garantias expressos na Lei Maior.
Apesar dos convincentes argumentos em favor dessa tese, o STF, ao decidir sobre o HC 72.131, que se tornou jurisprudência, rejeitou a tese da constitucionalidade, ao argumento de que ela permitiria mudança constitucional, sem o procedimento de elaboração previsto no art. 60 da CF; 88. (MENDES et al 2008, p.697)
É de bom alvitre ressaltar que, ao se erigir os direitos advindos dos tratados internacionais ao status de norma constitucional, esses direitos também passam a ser parte do escopo de proteção das cláusulas pétreas, como dispõe o art. 60 §4°, IV, não podendo ser objeto de modificação nem mesmo por emenda constitucional. Assim, frisa Mazzuoli (MAZZUOLI: 2000, p-114-117)que, ainda que seja o tratado denunciado, o Estado brasileiro continua obrigado a cumpri-lo no plano interno.
3.3 Do Status de Lei Ordinária.
A partir de 1977, o STF adotou o sistema paritário, segundo o qual tratado têm o mesmo status de lei ordinária. Justifica-se o entendimento da paridade com base na interpretação do art. 102, III,”b”,CF∕88 que dispõe “que compete ao STF, julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida “declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.A conjunção alternativa “OU” implica em dizer que lei infraconstitucional e tratado encontram-se num mesmo patamar hierárquico.
O julgamento do RE 80.004.∕SE é exemplo clássico do entendimento que passou a ser adotado, desde a década de 70, pelo STF, de que os tratados internacionais seriam concebidos em posição hierárquica equivalente às leis ordinárias. Entendeu-se que tratado internacional, naquele caso em questão, a Convenção de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, poderia ser modificado por lei nacional posterior. Por conseguinte, o critério utilizado para resolver um conflito de normas do mesmo nível hierárquico seria: lex posterior derrogat legi priori.
Posteriormente, em 1995, o STF novamente apreciou a matéria no HC 72.131∕ RJ, onde se discutiu a prisão civil do devedor como depositário infiel na alienação fiduciária em garantia. Em suma, concluiu-se que o art. 7° do Pacto de San José da Costa Rica, em se tratando de norma geral, não revogava a legislação ordinária de caráter especial, como o Decreto- Lei 911∕ 69, que equipara o devedor – fiduciante ao depositário infiel para fins de prisão civil. Concluiu-se que a norma internacional estava prejudicada, por se tratar de norma geral em relação à norma especial (lex specialis derogat legi generali).
Portanto, para o STF, até meados de 2008, entendia-se que os tratados internacionais, quer versassem sobre direitos humanos ou não, gozariam do status de lei ordinária. Nessa esteira de pensamento, em eventual conflito entre lei e tratado, ora adotava-se o caráter cronológico (lei posterior derroga lei anterior), ora o da especialidade (lei especial derroga lei geral.) Contudo, essa jurisprudência tornou-se defasada, pois não diferenciava a natureza do tratado internacional, não se coadunando com os fundamentos e os princípios da Constituição Federal de 1988.
3.4 O caráter supralegal.
Longe de restar pacífica a discussão acerca da hierarquia dos tratados internacionais, Gilmar Ferreira Mendes propôs o status de supralegalidade, situando, os tratados de direitos humanos acima de uma lei infraconstitucional, sendo, contudo, sujeitos ao controle de constitucionalidade. Em outras palavras, para o referido autor, em se tratando de direitos humanos, tais instrumentos devem receber um tratamento diferenciado em relação aos demais, mas estarem num patamar infraconstitucional, não afrontando, assim, a supremacia da constituição. Como bem salienta Gilmar F. Mendes et al (MENDES et al 2008, pp 702-703) no Brasil adotou-se o princípio da supremacia da constituição sobre o ordenamento jurídico. Destarte, a própria Constituição Federal, em seu art. 102, III, b prevê a possibilidade de controle de constitucionalidade dos tratados.
Cumpre ressaltar que, curiosamente, no Direito Tributário Brasileiro, o direito internacional prevalece sobre o direito interno infraconstitucional, como prescreve o art. 98 do Código Tributário Nacional. Com efeito, resta paradoxal conferir caráter especial e hierarquicamente superior aos tratados que versam sobre matéria tributária, mas, em se tratando de direitos humanos, dar tratamento de lei ordinária.
4. O cenário após a EC n.45∕2004: Questionamentos e Possíveis Soluções.
4.1 Há Discricionariedade do Congresso em Submeter os Tratados?
Questão polêmica diz respeito ao caráter compulsório ou facultativo da adoção do procedimento mais rigoroso, já que a Constituição dispõe no art. 49, I sobre o rito ordinário. A redação do § 3° (“os tratados que forem incorporados”) tem levado alguns a entender que o procedimento mais dificultoso seja opcional.
Alexandre de Moraes (MORAES 2005, p.306) assevera que a escolha no processo de ratificação do tratado de direitos humanos é uma discricionariedade do Congresso, podendo optar tanto pelo rito ordinário, resultando na equivalência de lei ordinária, quanto pelo rito de emenda constitucional, garantido-lhe tal status.
Em contrapartida, Ingo Sarlet (SARLET 2006, p.150) defende a compulsoriedade do novo sistema.
“Com efeito, tendo em mente que a introdução do novo §3° teve por objetivo (…) resolver- ainda que remanescentes alguns problemas- de modo substancial o problema da controvérsia sobre a hierarquia dos tratados em matéria de direitos humanos, antes incorporados por decreto legislativo e assegurar aos direitos neles consagrados um status jurídico diferenciado, compatível com sua fundamentabilidade, poder-se-á sustentar que a partir da promulgação da emenda n. 45∕ 2004 a incorporação desses tratados deverá ocorrer pelo processo mais rigoroso das reformas constitucionais.”
O pronome relativo ‘que’ é restritivo e não explicativo, ensejando que nem todos os tratados atingirão o quorum exigido. Contudo, não vemos aí a discricionariedade no tocante à deliberação, devendo todos ser submetidos ao novo procedimento.
Com efeito, a discricionariedade está em erigir ou não o direito humano ali inserido à hierarquia de emenda constitucional. Ora, da mesma forma que compete ao Congresso expedir decreto legislativo em se tratando de matéria ordinária (como prescreve o art. 49, I, CF), deverá o Congresso Nacional submeter os tratados de direitos humanos ao procedimento mais dificultoso, para que àqueles direitos sejam atribuídas naturezas materialmente e formalmente constitucionais. Assim, entendemos que deixar a deliberação ao livre arbítrio das Casas Parlamentares seria criar uma competência não prevista no ordenamento jurídico pátrio, inclusive de cunho subjetivo, pois que critérios poderiam ser utilizados para distinguir qual direito humano seria merecedor de deliberação ou não?
4.2. A Nova Ordem Retroage Alcançando os Tratados Já Ratificados?
Conforme se depreende da leitura do §3°, do art.5°, o legislador reformador não incluiu qualquer ressalva no tocante aos tratados internacionais de direitos humanos assumidos anteriormente à inovação constitucional.
Paulo Ricardo Schier (SCHIER 2008,p. 4-5) defende a tese da incidência do tempus regit actum, eis que essa não constitui novidade no Supremo Tribunal Federal. O citado autor explica que esse entendimento fora utilizado pelo Supremo quanto às normas gerais de direito tributário disciplinadas no CTN (Código Tributário Nacional) em 1966. Ocorre que, após o advento da Constituição de 1967, apenas lei complementar poderia definir normas gerais. Ao ser provocado, o STF aplicou o tempus regit actum para afirmar que as normas gerais de direito tributário seriam recepcionadas com status de lei complementar.
Em face do exposto acima, aduz o autor que seria coerente esperar que o Supremo adotasse idêntico posicionamento, declarando que os tratados de direitos humanos anteriores à EC 45, produzidos sob a égide do procedimento válido à época passassem a gozar de status constitucional.
Ingo Sarlet, em contrapartida, não vê a possibilidade de recepção dos tratados anteriores, mesmo havendo compatibilidade material, pois foram esses aprovados por maioria simples do Congresso Nacional, e não pela maioria de três quintos dos votos (incompatibilidade formal).
“(…) não há como aplicar neste caso o argumento da recepção quando se trata de procedimentos legislativos distintos, ainda que haja compatibilidade material, como se fosse possível transmutar um decreto legislativo aprovado pela maioria simples do Congresso Nacional em emenda constitucional que exige uma maioria reforçada de três quintos dos votos, sem considerar os demais limites formais das emendas à Constituição.” (SARLET 2006, p. 150)
Contudo, é de bom alvitre ressaltar que submeter os tratados anteriormente ratificados à nova sistemática não seria vantajoso. Ora, para quem já defendia que os tratados de direitos humanos, por força do §2° do art.5°, já gozavam de estatura constitucional, uma nova votação, com um quorum de emenda, seria um retrocesso.
Outrossim, cumpre ressaltar que, mesmo diante de tal possibilidade seria um desserviço à sociedade ocupar as Casas Parlamentares com inúmeros processos de cunho meramente formal. Se não raro leva-se anos entre a assinatura de um tratado e sua posterior ratificação, imagina-se quanto tempo levaria para o Congresso Nacional rever todos os tratados de direitos humanos já ratificados. Por conseguinte, vemos o fenômeno da recepção desses tratados com hierarquia supralegal (posição atual do STF) ou constitucional (posição doutrinária) a saída mais viável, muito embora Ingo Sarlet tenha alertado para a questão da incompatibilidade formal, como exposto acima.
4.3 De quem é a Competência para Promulgar?
Como visto alhures, depois de aprovado pelo Congresso, o tratado no rito ordinário do art. 49, I segue à promulgação pelo Presidente da República. Contudo, em se tratando de emenda constitucional, cabe ao Congresso Nacional promulgá-la, sem precisar passar pelo crivo do Presidente da República (art. 60,§3°, da CF∕ 88). Destarte, diante da nova sistemática do § 3° do art. 5°, a quem cabe promulgar o tratado?
De fato, como exposto, há muito, uma forte corrente doutrinária, defende a incorporação automática dos tratados de direitos humanos, prescindindo de decreto executivo. Portanto, nada mais lógico que, após a aprovação do tratado pelo procedimento de emenda, seja despicienda a ratificação presidencial. Agindo assim, estar-se-á corroborando com a celeridade do trâmite de incorporação da norma internacional.
4.4 Cabe denúncia?
No que concerne à denúncia dos tratados que atingirem o quorum exigido pelo novel sistema, a Emenda Constitucional n° 45 nada dispôs. Cabe, portanto, à doutrina especular sobre essa possibilidade.
Consoante ensinamento de Flávia Piovesan (PIOVESAN 2005.p.72) apenas os tratados materialmente constitucionais podem ser denunciados. Devido ao processo de aprovação dificultoso e à conseqüente condição de cláusula pétrea, os tratados material e formalmente constitucionais não podem ser objeto de denúncia.
“(…) embora os direitos internacionais sejam alcançados pelo art. 60, § 4°, e não possam ser eliminados via emenda constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos materialmente constitucionais são suscetíveis à denuncia por parte do estado signatário.(…) Já os tratados materialmente e formalmente constitucionais não podem ser objeto de denuncia. Isto porque os direitos neles enunciados receberam assento no texto constitucional, não apenas pela matéria que veiculam, mas pelo grau de legitimidade popular contemplado pelo especial e dificultoso processo de sua aprovação, concernente à maioria de três quintos dos votos dos membros, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação.”
De igual entendimento comunga Valério de Oliveira Mazzuoli (MAZZUOLI 2005, p. 324-325). O autor descarta a possibilidade de esses tratados serem passíveis de denúncia, visto que o valor de emenda constitucional que os mesmos adquirem os deixa protegidos pelo manto das cláusulas pétreas. Já aqueles de cunho meramente material podem ser denunciados. Todavia, esse ato só surtirá efeito no âmbito internacional, e não na seara do direito interno.
Alexandre Nery de Oliveira (OLIVEIRA 2008, p.2), ao tecer comentários sobre a questão, menciona a semelhança exigida pela Constituição Argentina. Explica o autor que, no modelo Argentino, é possível a denúncia pelo poder Executivo a qualquer dos tratados, desde que aprovada pelo Congresso mediante o mesmo quorum qualificador. Nessa esteira, o autor sugere que no Brasil se siga o disposto no direito alienígena supracitado.
Ora, por mais tentador que seja fazer uso do direito comparado para suprir a lacuna existente em nossa legislação, data vênia, não nos parece, no caso em comento, a posição mais acertada. É bem verdade que a exigência de um quorum pelo Congresso Nacional daria maior legitimidade à denúncia, que não ficaria restrita ao ato único e exclusivo do Chefe do Executivo. Contudo, não há como não concordarmos com a idéia de que, ao passar pelo quorum de aprovação do Congresso Nacional de 3∕ 5 de seus membros, os direitos humanos enunciados nos tratados internacionais incorporam-se ao ordenamento jurídico pátrio, tornando-se cláusulas pétreas. Consequentemente, esses só poderão ser modificados pelo poder constituinte originário. Destarte, filiamo-nos a posição defendida por Piovesan e Mazzuoli quanto à não possibilidade de denúncia dos tratados materialmente e formalmente incorporados.
4.5 Equivalência de Emenda Constitucional Significa Status Constitucional?
Prescreve o §3°, do art.5° que “os tratados que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, passarão a equivaler às emendas constitucionais”. De fato, da leitura do parágrafo pode-se interpretar que equivaler às emendas constitucionais significa passar a ter status de norma constitucional.
Entretanto, para Luiz Flávio Gomes e Valério Mazzuoli (GOMES & MAZZUOLI 2007, p.1) há diferença entre ter status de norma constitucional e dizer que os tratados são equivalentes às emendas constitucionais. Aduzem os autores que:
“Falar que um tratado tem status de norma constitucional é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material(e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele é equivalente a uma emenda constitucional, o que significa que esse mesmo tratado já integra formalmente (além de materialmente) o texto constitucional. Perceba-se que, nesse último caso, o tratado assim aprovado será além de materialmente constitucional, formalmente constitucional.”
Concordamos com os referidos autores, visto que se não houvesse essa diferença, o § 3° não teria sido necessário. Ora, como aludido acima, os §§ 1° e 2° do art. 5°, por si só, já conferiam aos tratados de direitos humanos o status de norma materialmente constitucional. Percebe-se que ao tentar resolver a polêmica quanto ao status normativo dos tratados internacionais, o constituinte derivado não se contentou apenas com a constitucionalidade material desses tratados de direitos humanos, mas com a formalidade processual.
4.6 O §3° é Inconstitucional?
Advogam alguns doutrinadores em favor da inconstitucionalidade do §3°, do art.5°, da CF∕ 88, alegando que o novo dispositivo contradiz o disposto nos §§ 1°e 2° do mesmo artigo, que, por si só, já concebem aos direitos humanos advindos dos tratados internacionais hierarquia materialmente constitucional. Entende-se que a exigência de um quorum de emendas limita a proteção aos direitos humanos, entrando em conflito com as cláusulas pétreas do art. 60, § 4°. Nesse sentido, posiciona-se Luiz F. Scarbossa aduzindo que o §3° colide com o teor do §§ 1° e 2°, pois esses incluem, automaticamente, os direitos e garantias constantes de instrumentos internacionais no rol dos direitos e garantias assegurados, sendo o § 3° limitador de tal proteção. (Scarbossa 2005)
Parece-nos que uma saída para driblar uma futura declaração de inconstitucionalidade seria fazer uso da distinção doutrinária entre “materialmente constitucional” e“formalmente constitucional”. Assim, deve-se entender que o § 3° é a exigência para que os direitos humanos constantes nos tratados internacionais adquiram hierarquia formalmente constitucional, através do procedimento exigido.
4.7 Qual a Posição Hierárquica dos Tratados de Direitos Humanos após a EC 45?
Após a inserção do §3° do art.5°, a doutrina, em geral, classificou os tratados em duas espécies. Pedro Lenza, por exemplo, (LENZA 2008,p. 387) os classificou em. a) tratados sobre direitos humanos e b) tratados que não versam sobre direitos humanos, que se dividem em: a.1) tratados sobre direitos humanos aprovados pelo quorum e observância de turnos das emendas constitucionais; a.2) os que não seguiram essa formalidade, guardando estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias, segundo o entendimento do STF, desde a década de 70.
Contudo, a posição hierárquica dos tratados de direitos humanos, em dezembro de 2008 sofreu mudanças, após a vitória da tese da supralegalidade defendida pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes no RE 466.343-(SP).O ministro Menezes Direito filiou-se à tese defendida pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, concedendo aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos a que o Brasil aderiu um status supralegal, porém admitindo a hipótese do nível constitucional delas, quando ratificados pelo Congresso de acordo com a EC 45 (parágrafo 3º do artigo 5º da CF).
No mesmo sentido se manifestaram os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, além de Menezes Direito. Foram votos vencidos, parcialmente, defendendo o status constitucional dos tratados sobre direitos humanos os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie.
Em face do exposto acima, é possível propor que os tratados de direitos humanos encontram-se subdividos em: a) tratados sobre direitos humanos aprovados pelo disposto no §3° do art.5° (gozando de hierarquia constitucional; b) tratados de direitos humanos que não atingirem o quorum exigido e aqueles já ratificados pelo Brasil. (Pela nova posição do STF esses possuem hierarquia supralegal, estando acima da lei ordinária.); c) Tratados que se incorporam ao Direito interno brasileiro com hierarquia constitucional, por força do §2°, do art 5°. (Posição doutrinária defendida por Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, entre outros)
4.8 Fim da Prisão Civil do Depositário Infiel?
Conforme se depreende do art. 5°, LXVII não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. A segunda hipótese encontra guarida ainda na legislação infraconstitucional, mais precisamente no artigo 652 do Código Civil.
Todavia, ocorre que o Brasil ratificou o Pacto de San José da Costa Rica (1992), tendo esse sido recepcionado como Decreto, ou seja, abaixo do nível da Constituição. Em seu art. 7°, § 7° reza que: “ninguém deve ser detido por dívidas”, não admitindo, por conseguinte, a prisão civil do depositário infiel.
Diante disso, se a Constituição Federal permite a prisão civil do depositário infiel, poderia o Pacto de San José da Costa Rica invalidar as disposições infraconstitucionais (Código Civil 2002)sobre esta prisão?
Cumpre ressaltar que, com o advento da EC n. 45∕ 04 e com o atual posicionamento do STF, o Pacto de San José da Costa Rica foi elevado ao nível supralegal, invalidando as normas infraconstitucionais. Nesse caso, embora as leis (Código Civil etc) que a prevêem estejam de acordo com a CF/88, estão em desacordo com o Pacto de San José da Costa Rica, que a proíbe. Por isso, as normas que versam sobre prisão civil do depositário infiel, embora vigentes no ordenamento, são inválidas.
Em suma, para que as leis vigentes no território nacional sejam válidas, devem estar de acordo com a Constituição Federal e com o Tratado Internacional de Direitos Humanos (dupla compatibilidade vertical das leis). Haverá, assim, tanto um controle de constitucionalidade, como de convencionalidade das leis.
Nessa esteira, vale citar a lição de Luiz Flavio Gomes.(GOMES 2008, p.2)
“(…)em matéria de direitos humanos quando os tratados internacionais conflitam com a constituição brasileira (esse é o caso da prisão civil do depositário infiel) a solução não pode ser buscada no princípio da hierarquia. Não funciona (no conflito entre os tratados e a constituição) a hierarquia, sim, o princípio pro homine, que significa o seguinte: sempre prepondera a norma mais favorável ao ser humano. Não importa a hierarquia da norma, sim o seu conteúdo. (…). Não há que se falar em revogação da norma constitucional que conflita com o tratado. Todas as normas continuam vigentes. Mas no caso concreto será aplicada a mais favorável.”
5.Considerações Finais
Mesmo diante da consagração dos direitos humanos pelo constituinte originário, a Suprema Corte, por longos anos, sustentou o tratamento paritário entre tratado e lei ordinária. Só, em dezembro de 2008, o STF, finalmente, se posicionou quanto à hierarquia dos tratados internacionais já ratificados pelo Brasil, a tese da supralegalidade, defendida pelo Ministro Gilmar Mendes. Os referidos instrumentos devem gozar de hierarquia supralegal, estando, por conseguinte, num patamar superior à lei ordinária, mas sujeitos ao controle de constitucionalidade.
Apesar de advogarmos em favor do status constitucional dessas normas, visto que elas já são materialmente constitucionais, a decisão do STF já foi um grande avanço, se comparada à posição de outrora. Certamente, agora deve restar claro para todos os aplicadores do direito que uma lei ordinária não tem o condão de revogar tratado internacional de direito humano. É de bom alvitre ressaltar que, na prática, a decisão do STF, foi de suma importância, visto que pôs fim a prisão civil do depositário infiel, situação arcaica que tanto contrariava nosso entendimento sobre direitos humanos.
Indubitavelmente, ambas as teses da constitucionalidade e da supralegalidade, colocam o instrumento internacional que versa sobre direito humano em posição superior à lei ordinária. Contudo, a tese da supralegalidade reforçou a distinção entre direito materialmente constitucional e direito formalmente constitucional, ao exigir um procedimento formal de emenda para que um direito humano inserido em tratado internacional pudesse atingir status constitucional. Aliás, acreditamos que essa seja a única saída possível para se esquivar de uma declaração de inconstitucionalidade da citada norma.
Apesar do avanço, o ideal seria que o §3° não estivesse na Constituição. Ora, o novo parágrafo reflete um certo receio em aceitar à consagração dos direitos humanos, em detrimento à supremacia da Constituição. Outrossim, pode-se argumentar a falta de conhecimento ou mesmo o desprezo do constituinte derivado quanto à interpretação doutrinária sobre o “bloco de constitucionalidade”. Ademais, deve-se compreender que, em um mundo globalizado, é preciso efetivar direitos humanos, algo que não pode ser concretizado com meras formalidades.
Informações Sobre o Autor
Vitória dos Santos Lima Queiroga
pós-graduanda em Direito Público (Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG), especialista em Direito Constitucional (UNISUL/LFG/IDP), mestra em Línguística Aplicada (Universidade de Birmingham- Inglaterra), graduada em Direito (UNIPÊ) e em Letras (UFPB),ex-conciliadora da Justiça Federal –seccional da Paraíba.