Resumo: Este ensaio promove uma reflexão, não exaustiva, sobre o transexualismo, em seus aspectos sociais, médico-legais e bioéticos. Tal debate se revela urgente e necessário, na medida em que o avanço e complexização das relações sociais colocam na ordem do dia temas multidisciplinares que antes eram tidos como verdadeiros tabus ou considerados secundários para o Direito. O transexualismo é um destes temas. O estudo traz à tona discussão de singular importância relativa ao direito à isonomia, uma das matrizes fundamentais do constitucionalismo moderno. Evidencia o quanto esse parâmetro pode ser cruel e o quanto é preciso ir-se além da própria idéia de diferença, observando a multiplicidade de singularidades, de expressões e de formas de ser do sujeito. O percurso dos interessados na mudança de sexo é difícil, repleto dos mais variados óbices, sendo certo que, muitas vezes, o Poder Judiciário se revela como consolidação do sofrimento e legitimação da exclusão social.
Palavras-chave: transexualidade, dignidade da pessoa humana, biodireito.
Abstract: This essay does a reflection not exhaustive, on transsexualism in its medical-legal aspects and bioethical issues. This debate reveals urgent and necessary, to the extent that the advancement of social and cumbersome put on the agenda of multidisciplinary themes that were once held as true taboo or considered secondary to the Law. Transsexualism is one of those issues. The study brings up discussion of singular importance on the right to equal protection, one of the fundamental matrix of modern constitutionalism. Highlights how this parameter can be cruel and how we must go beyond the very idea of difference, noting the multiplicity of singularities, expressions and ways of being of the subject. Pathways of interest in sex change is difficult, full of a variety of obstacles, given that often the judiciary is revealed to be consolidating the legitimacy of the suffering and social exclusion.
Keywords: transsexuality, human dignity, bioright.
Sumário: Introdução; 1. A identidade do transexual – identidade de gênero; 1.1 Paradigmas sexuais: as espécies de diferenciações sexuais; 1.2 Processo de redesignação psicossocial; 1.3 Integridade física e a operação de mudança de sexo; 2. O fenômeno transexual e o biodireito: noções sobre o campo; 3. Alteração do nome civil e da identidade de gênero; 3.1 Os reflexos da alteração da identidade sexual no direito social: uma questão de Ética e Justiça; 3.2 O acesso á terapia para “mudança de sexo” no Sistema Único de Saúde (SUS); Considerações finais; Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A evolução e a complexização das relações sociais faz necessária a discussão de temas que antes eram considerados secundários para o Direito. O transexualismo é um tema que envolve inúmeras áreas de conhecimento, sendo imperioso a analise jurídica aliada a outros ramos da ciência para a efetivação dos direitos fundamentais destas pessoas que, na maioria das vezes, são taxadas de ‘anormais’, vivendo à margem da sociedade.
Importante apontar que transexuais são indivíduos que possuem uma inadequação entre o sexo físico e o psíquico, não tendo perfeita correspondência entre a genitália interna e externa de um único sexo, isto é, não se sente como seu sexo físico, respondendo psicologicamente aos estímulos do sexo oposto. Entretanto, justo esclarecer que isso não pode ser considerado com uma anomalia, apenas não corresponde aos padrões aos padrões de normalidade previamente estabelecidos pela sociedade.
Com ela, surge a idéia de diferença e o direito à diferença. Contudo, a diferença pressupõe uma relação, ou a existência de um parâmetro hegemônico ou mais forte. O tema escolhido como objeto para o presente ensaio cuida da transexualidade e traz à tona uma discussão de singular importância relativa ao direito à isonomia, uma das matrizes fundamentais do constitucionalismo moderno. Evidencia o quanto esse parâmetro pode ser cruel e o quanto é preciso ir-se além da própria idéia de diferença, observando a multiplicidade de singularidades, de expressões e de formas de ser do sujeito.
Ao longo do texto, as autoras fazem reflexões acerca da identidade do transexual e apresentam a distinção relativa ao conceito de identidade de gênero, bem como apontam os paradigmas sexuais sociais estabelecidos, qual seja, as espécies de diferenciações sexuais, para em seguida, abordar a questão do processo de redesignação psicossocial, bem como as diversas posições relativas à integridade física e a operação de mudança de sexo.
Num segundo momento, o estudo aborda o fenômeno transexual num viés próprio ao Biodireito, introduzindo noções sobre o campo que implicam numa necessária apresentação da polêmica jurídica em torno a alteração do nome civil e da identidade de gênero. No entanto, na medida em que se trata de tema multidisciplinar, necessário se fez adentrar aos reflexos da alteração da identidade sexual no direito social, pó se tratar de uma questão de Ética e Justiça. Por fim, o ensaio promove um olhar a respeito do acesso á terapia para “mudança de sexo” no Sistema Único de Saúde (SUS), concluindo pela importância do respeito à condição singular do transexual enquanto ser dotado de dignidade a ser respeitada em todo seu espectro.
Usar o termo singularidade é, propositadamente, um esforço em romper com a existência de parâmetros; Afinal, quando se é diferente, se é diferente em relação a alguma coisa ou alguém; já uma proposta a partir da idéia de singularidade permite uma maior autodeterminação dos sujeitos porque não os vinculam a modelos previamente estabelecidos ou ideais.
O uso de biotecnologia na prática médica promove novas questões para debates tradicionais, modificando perspectivas morais. Igualmente, as conquistas de direitos civis, a solidificação de movimentos sociais, entre outras situações de ordem social, acabam por promover novos olhares sobre a ciência, novas moralidades.
O transexualismo é um exemplo disso – resgata ou promove tanto os questionamentos sobre o direito à diferença e o limite da liberdade quanto os sentidos da saúde e doença. A questão que se mantém é sobre a possibilidade de o sujeito alterar o seu corpo com o propósito de alterar sua identidade sexual, e quais os limites e possibilidades éticos e jurídicos para tanto.
1. A IDENTIDADE DO TRANSEXUAL – IDENTIDADE DE GÊNERO
A demanda das pessoas transexuais por acesso às transformações corporais e à alteração da sua situação legal, capaz de estabelecer a coerência entre o sexo anatômico e o gênero vivenciado, vem, ao longo de poucas décadas, conseguindo se legitimar a partir: a) dos avanços biotecnocientíficos e da oferta destes recursos na prática médica; b) da inserção do fenômeno da transexualidade como doença – transexualismo; c) do estabelecimento de critérios para o diagnóstico; d) da validação de uma terapia considerada capaz de promover o bem-estar do doente afetado; e, e) finalmente, do reconhecimento jurídico do direito da pessoa transexual ao acesso à terapia, fundamentado no direito à saúde, e do direito à alteração de prenome e do sexo na identidade civil, fundamentado no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, à privacidade, à intimidade, e de não ser discriminado em razão de sua especial condição.
Esta inserção pode ser compreendida tanto como discriminação quanto como estratégia para viabilizar o acesso à técnica. De qualquer forma, é o discurso da saúde e da doença que serve como fundamento para justificar as intervenções necessárias em razão da finalidade terapêutica. Assim, os médicos e juristas validaram a demanda dos transexuais como digna do interesse da medicina e do direito (CASTEL, 2001:34).
Assim, o sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e única (FACHIN, 1996:96). Contudo, o reconhecimento da sexualidade não decorre exclusivamente de características físicas exteriores. A problemática da identidade sexual é muito mais ampla do que o sexo morfológico (SZANIAWSKI, 1999 :35). A aparência externa não é a única circunstância para a atribuição do gênero, pois, com o lado externo concorre o elemento psicológico (CHAVES, 1980:16) A mera utilização desse critério de verificação fisiológica despreza as características secundarias e eventuais ambigüidades sexuais. O sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela pessoa e, por isso não admite ambigüidades (SZANIAWSKI, 1999 :264).
Na medida em que o presente ensaio tem por objeto o estudo do transexualismo, em seus aspectos médico-legais, imprescindível se faz abordar a questão relativa à identidade de gênero, já que a problemática do transexual perpassa, necessariamente, por esse ponto, tendo em vista a incompatibilidade do sexo biológico com a identificação psicológica no transexual.
Cumpre, preliminarmente, definir o que é identidade de gênero ou identidade sexual. Entretanto, urge esclarecer que, não obstante serem os termos sinônimos prefere os autores referir-se à identidade de gênero, pois, além da palavra “sexo” apresentar múltiplos significados, como veremos no decorrer do presente trabalho, e estar freqüentemente associada à genitalização, (CHAVES,1980 :33) a palavra gênero é mais abrangente. Segundo SILVA (1997:82), a palavra gênero “(…) inclui componentes genitais, eróticos, sociais e psicológicos associados ao sexo de cada um”.
Dentre uma variada gama de definições, utiliza-se a elaborada pela própria autora retro referida porque enfoca a forma pela qual essa identidade se constitui. Assim, na conceituação da autora: “A identidade de gênero, é um constructo constituído por vários componentes estruturados em diferentes épocas e por várias influências. Perpassa pelo sexo genético, gonádico, hormonal, legal de nascimento e da criação. Não é exclusivamente biológico, mas sim o produto de suas interações”(SILVA, 1997:80).
E mais:
“A identidade sexual ou de gênero, é um conceito extremamente complexo, composto por componentes conscientes e inconscientes. Possuindo elementos altamente associados ao sexo a que se pertence e às características estabelecidas pela estrutura social a cada gênero. Assim a idéia de gênero, não é um constructo mental unitário, pois grande número de diferentes componentes estruturados em diversas épocas do desenvolvimento e advindos de várias influências, formarão a composição final do que se convencionou chamar de identidade de gênero”.
Da análise desses conceitos resultam duas grandes constatações. A primeira é que a identidade de gênero se traduz num sentimento do indivíduo quanto a sua identificação como homem ou mulher. Isso porque a nossa estrutura social consegue conceber o sexo de forma apenas dicotômica, na sua versão masculina ou feminina. Há uma tendência de se classificar tudo e todos como sendo masculino ou feminino, não havendo espaço para o que não se adapta a uma dessas categorias.
Seguindo essa orientação, MONEY e TUCKER (1983:40) sustentam que o ser humano, ao desenvolver sua identidade, terá necessariamente que se identificar como homem ou mulher, não sendo possível a formação dessa identidade sem que se recaia num desses dois modelos (masculino ou feminino). Money14 inclui a orientação sexoerótica no conjunto gênero identidade/papel. De acordo com esse critério, o individuo poderá ser monosexual ou bissexual, sendo que o primeiro caso compreende tanto o homossexual como o heterossexual.
Diz que um ato homossexual pode ser praticado por quem não seja homossexual, desde que a pessoa seja forçada a cometê-lo (MONEY, 1990:3) Nem por isso, após a realização do ato, terá a sua identidade de gênero transformada. Apresenta o apaixonamento como critério último e delimitador da identidade de gênero.
Habitualmente, a identificação sexual resulta do simples exame da genitália externa do recém-nascido. De acordo com o tipo genital revelado aos olhos, será a criança identificada como menino ou menina e assim será designada, no momento de ser efetuado seu registro de nascimento perante o ofício competente.
A problemática da identidade sexual de alguém é, porém, muito mais ampla do que seu simples sexo morfológico[1]. Deve-se, pois, considerar o comportamento psíquico que o indivíduo tem diante de seu próprio sexo. Daí resulta que o sexo compõe-se da conjunção dos aspectos físicos, psíquico e comportamental da pessoa, caracterizando-se, conseqüentemente, seu estado sexual.
A diferenciação sexual é formada por sete variáveis, sendo que cinco constituem-se em variáveis físicas, a saber: a cromossômica, a gonodal, a hormonal, a morfológica interna e a morfológica externa. Qualquer alteração que venha a ocorrer, em qualquer destas fases, poderá determinar um desenvolvimento sexual anômalo do indivíduo. As outras duas, denominadas de variáveis psicossociais, constituem-se da declaração do sexo, no momento do registro do indivíduo, e da diferenciação de uma identidade psicossexual, como ser masculino ou feminino, a partir do seu nascimento.
Não há que se confundir identidade de gênero com papel sócio-sexual ou papel de gênero[2], pois o papel sócio-sexual é algo externo à pessoa, no sentido de que se liga à formação do comportamento masculino ou feminino em decorrência do ambiente sociocultural, no qual o indivíduo está inserido. Ele refere-se à atuação comportamental da pessoa no papel de homem ou mulher, segundo os moldes preestabelecidos pela família e sociedade.
O papel de gênero, desempenhado pelo indivíduo, está intimamente ligado aos ensinamentos que lhe foram transmitidos pelo corpo social. Daí a expectativa do grupo de que a representação do papel sexual por seus membros se faça em conformidade com as linhas traçadas, para que não haja qualquer tipo de afronta ou desrespeito aos padrões morais prescritos.
Dessa forma, enquanto a identidade de gênero está relacionada com uma questão sentimental, como o indivíduo se sente em relação a sua identidade sexual, o papel de gênero diz respeito à colocação em prática da aprendizagem recebida e tem por objetivo não apenas encenar o papel sócio-sexual como também exteriorizar e retratar a identidade sexual do indivíduo.
Estando a identidade sexual intimamente ligada ao papel de gênero, pelo fato de que o sexo da criação é um dos responsáveis pela sua constituição, as mudanças sociais ocorridas no papel de gênero repercutirão na formação de futuras identidades sexuais.
Igualmente, não há que se confundir identidade sexual com a atividade sexual, uma vez que esta ultima exprime a prática sexual desenvolvida por uma pessoa, ou seja, o ato sexual propriamente dito, o ato físico ou a sua orientação sexual.
1.1 Paradigmas sexuais: as espécies de diferenciações sexuais
A sexualidade das pessoas é matéria complexa e controvertida, não podendo ser tratada de maneira tão singela. Embora, às vezes, sua forma anatômica de relacionamento sexual seja a mesma, a transexualidade difere da homossexualidade, bissexualidade, travestismo, fetichismo e hermafroditismo. A curiosidade científica nos impele a prosseguir e melhor explicitar cada um destes termos.
Homossexualidade – Uma das principais diferenças entre o transexual e o homossexual é que este está satisfeito com o seu sexo, do qual se orgulha. Ambos os vocábulos são utilizados para o gênero masculino e o feminino.
Homossexualidade é a relação amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo. Aplica-se tal terminologia tanto as relações marcadas por contatos físicos e toda forma de coito extragenital quanto às apenas marcadas por sentimentos apaixonados ou termos (DORON e PAROT, :398).
SILVA (1980:91) conclui em estudo psicanalítico acerca do tema que “todo ser humano possuiria certo grau de comprometimento homossexual da personalidade, suscetível ou não, conforme uma série de circunstâncias, de passar da latência para a atividade, na escolha da solução homossexual”.
O homossexual masculino tem no homem o seu objeto de desejo, ou seja, sente-se homem e pratica a relação com outro homem. Com a mulher homossexual ocorre o inverso. O transexual masculino, por sua vez, considera-se mulher e tem como parceiro um homem, vendo, portanto essa relação no plano heterossexual. Enfim, o homossexual não deseja adequar seu sexo, pois se sente feliz com ele, ao contrário do transexual, que possui esta aspiração fundamental.
Pondera PERES (2001:47-50) que a origem da homossexualidade ainda não está esclarecida. As principais correntes indicam que: se inicia no ambiente uterino; se inicia no ambiente extra-uterino; existem influências hormonais importantes; existe algum gene específico responsável pela determinação da orientação sexual; e, para outros, ela ocorre na formação do repertório comportamental da criança através das contingências de reforço (relação existente entre o ambiente de criação e a criança).
Assevera ainda o autor que, “enquanto a ciência não resolve o mistério de qual é a origem da homossexualidade, de algumas questões já temos certeza: ninguém escolhe sua orientação sexual; ser homossexual ou bissexual não é anormalidade nem doença; o que difere um homossexual do heterossexual é, simplesmente, a orientação sexual e nada mais”(PERES,2001:56).
Os transexuais masculinos não são efeminados e sim femininos, enquanto alguns homossexuais são efeminados e não femininos. Os transexuais femininos não são masculinizados, são masculinos.
Hermafroditismo – Hermafrodita é a pessoa que possui órgãos sexuais dos dois sexos. Trata-se de um fenômeno muito raro na natureza. Há quem afirme que o transexual é uma espécie de hermafrodita psíquico, uma vez que nasce com o sexo biológico masculino e com o sexo psicológico feminino (male to female).
Bissexualidade – MIELNIK(19871987:31) observa que, na realidade, a sexualidade humana não parece depender apenas da presença dos órgãos genitais e estímulos hormonais. É a quantidade específica humana do psiquismo que determina a imensa variedade dos padrões comportamentais em resposta à estimulação hormonal. Na criatura humana, a sexualidade é produto da reação do sistema nervoso aos estímulos externos e internos, tornados ainda mais complexos pela interferência de fatores ambientais.
Travestismo – O transexual na maioria das vezes é erroneamente confundido com o travesti. Mas existem diversidades, pois este indivíduo tanto pode ter comportamento homossexual quanto heterossexual, embora faça uso de roupagem tipicamente conhecida pela sociedade como pertencente ao sexo oposto. Seu comportamento pode se alterar entre o masculino e o feminino. Trata-se, portanto, de alguém de um sexo com fortes impulsos eróticos para utilizar roupas do outro sexo, co as quais se veste para obter satisfação sexual. Não é o caso do transexual, pois se vestir com roupas que a sociedade atribui ao sexo oposto, ao seu sexo genético lhe é natural.
Fetichismo – No fetichismo os indivíduos manifestam desejos sexuais que se relacionam, sobretudo, à vista ou toque de certos objetos ou de determinadas partes do corpo que não as sexuais, constituindo os objetos, comumente, símbolos da pessoa amada. Portanto, é fetichismo uma espécie de culto a objetos materiais, consistindo em amar não a pessoa, mas uma parte dela ou um objeto de seu uso. Não é o caso do transexual.
Transexualismo – O termo transexualismo foi ouvido pela primeira vez em 1953, quando o médico norte-americano Henry Benjamin (endocrinologista) referiu-se ao caso da divergência psico-mental do transexual (MIELNIK,1987:32). O sufixo ismo é aplicado na Medicina geralmente para designar uma doença, sendo ainda empregado, no caso em tela, por constar do CID 10 – Classificação Internacional de Doenças como uma anomalia (F 64.0), um transtorno de identidade de gênero. O transtorno de identidade de gênero é um transtorno de ordem psicológica e médica, segundo a maioria dos autores, sendo uma condição em que a pessoa nasce com o sexo biológico de um sexo, mas se identifica com os indivíduos pertencentes ao gênero oposto, e considera isso como desarmônico e profundamente desconfortante. É um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Geralmente, é acompanhado de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação ao seu sexo anatômico, manifestando desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica e a tratamento hormonal, com o intuito de adequar seu corpo ao sexo almejado.
Dizer que todos são iguais perante a lei não é suficiente. É preciso fazer valer o ideal de justiça, com a satisfação dos anseios e interesses individuais e sociais. O juiz e o promotor são considerados pessoas observadoras das necessidades sociais, emitindo pareceres e julgando como pessoas atualizadas e informadas, não se prendendo a preceitos do passado, já superados pelas novas descobertas. O reconhecimento desse direito está em conformidade com as tendências do direito civil atual, mais preocupado com as aspirações individuais que com a manutenção de constrangimentos sociais, os quais não servem a ninguém, muito menos à sociedade.
1.2 Processo de redesignação psicossocial
Toda a probelmática psico-social da transexualidade coloca o Direito diante de um dos mais instigantes temas jurídicos a reclamar regulamentação, pois diz com a identidade do individuo e se reflete em sua inserção no contexto social. Existe uma ruptura entre o corpo e a mente do transexual, que se sente como tivesse nascido no corpo errado, como se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita. Assim as tentativas de psicoterapia aplicadas em transexuais são ineficazes, uma vez que ele não deseja adaptar seu sexo psíquico ao seu sexo biológico, mas ao contrario. Também não darão certas as terapias que objetivarem trazer equilíbrio emocional pela aceitação de sua condição pessoal (MENIN,2005:21).
O transexual se considera pertencente ao sexo oposto, entalhado com o aparelho sexual errado, o qual quer ardentemente erradicar. O transexual masculino tem ego corporal e psíquico femininos. O transexual feminino é, evidentemente, o contrário (VIREIRA, 2008:221). O que define e caracteriza a transexualidade é a rejeição do sexo original e o conseqüente estado de insatisfação. A cirurgia apenas corrige esse defeito de alguém ter nascido homem num corpo de mulher ou ter nascido mulher num corpo de homem (COUTO, 1999:28).
Não a pessoa transexual ficar totalmente desprotegida, ridicularizada em seu sofrimento e à margem da sociedade, sem possibilitar-lhe a alteração de seu nome e de seu sexo em virtude de um preconceito e de uma fobia social que, ao negar proteção aos seus direitos fundamentais, visam a punir a pessoa transexual por algo que ela não tem culpa, por algo que não é mera opção, mas necessidade psicológica imutável (VASSILIEFF, 2005:9).
Psicanalistas norte-americanos consideram a cirurgia corretiva do sexo como a forma de buscar a felicidade ao que denominam um invertido condenado pela própria anatomia (GRAÑA, 1996:11). Eventual não coincidência entre o sexo anatômico e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de profundo conflito Individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com relação a ele (OLAZÁBAL, 2001:169)
Ainda que reúna em seu corpo todos os caracteres orgânicos de um dos sexos, seu psíquico se prende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo aparentemente normal, nutre profundo inconformismo com o seu sexo biológico. O intenso desejo de modificá-lo leva à busca de adequar a externalidade à sua alma. O processo de redesignação começa com o vestir-se como o outro sexo, passa por tratamento hormonal e terapêutico e impõe a realização de inúmeras cirurgias. Não é um processo passageiro. È a busca consistente de integração física, emocional, social, espiritual e sexual, conquistada com muito esforço e sacrifícios por pessoas que vivem infelizes e muitas vezes depressivas quanto ao próprio sexo (COUTO,1999:20).
A posição jurídica da pessoa no seio da coletividade constitui um dos mais importantes atributos da personalidade (LUCARELLI, 1991:220). A proteção do transexual precisa resguardar o direito à intimidade, quando constatada sua situação e a dificuldade de vivenciá-la ou não.
1.3 Integridade física e a operação de mudança de sexo
Tratar da possibilidade da operação para a alteração do sexo físico de um indivíduo é adentrar e um terreno muito árido. Esta cirurgia implica na discussão de vários princípios de viés jurídico-constitucional que podem via a entrar em conflito.
Inicialmente, a cirurgia era chamada de mutiladora, não sendo permitida no ordenamento jurídico brasileiro. Discutia-se sobre o direito à vida, ao corpo e à integridade, se estes eram bens disponíveis ou não. Questionava-se sobre a possibilidade de dispor do próprio corpo, o que para uma corrente doutrinária, não era permitido. A esse respeito, BUENO (1987:69) reportando-se ao posicionamento de GEDIEL sustenta que o homem não tem o domínio do próprio corpo por existir uma indissocialidade corporal, o que, por conseguinte, cria uma impossibilidade de existir relações jurídicas que tenham como objeto o corpo humano.
Com a evolução das técnicas cirúrgicas, tornou-se possível mudar a morfologia sexual externa para encontrar a identificação da aparência com o gênero desejado. Esse avanço no campo médico não foi acompanhado pela legislação, inexistindo qualquer previsão legal a esse respeito. A omissão regulamentadora acabou levando a classe médica a uma problemática ético-jurídica sobre a natureza das intervenções cirúrgicas e a possibilidade de sua realização[3].
As cirurgias para mudanças de sexo sempre foram mais comuns na América do norte e na Europa. No Brasil, havia impedimento formal, não apenas pela lesão corporal que representava a retirada de estruturas essenciais à função reprodutora, mas porque o Código de Ética Médica em vigor (arts. 12 e 13) incluía tais procedimentos entre as práticas que ensejavam processos ético-disciplinares contra os médicos. Em face desta restrição, os interessados em se submeter à cirurgia passaram a se socorrer da via judicial. O pedido de autorização era formulado por meio de ação de jurisdição voluntária. Como o Ministério Público não atuava nessas demandas, a matéria só chegava aos tribunais quando eventualmente o pedido era rejeitado.
Tal circunstância, somada a falta de publicidade das sentenças dos juízes de primeiro grau, rotina difícil aferir como a questão vinha sendo decidida e escassa é a jurisprudência disponível sobre o tema.
Recurso datado de 1980, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, deferiu o pedido de alvará para a realização de cirurgia, sob o funcionamento de que os órgãos jurisdicionais não podem se eximir de dar solução controvérsia sob o fundamento de que apenas ética médica competiria resolver a questão[4].
Felizmente, em 1997, Resolução do Conselho Federal de Medicina regulamentou a realização da cirurgia que restabelece o equilíbrio psicofísico dos transexuais. A atual normatização, que substituiu a resolução anterior, autoriza, a título experimental, a realização de cirurgia de redesignação sexual[5]. Considerando ser o paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo, reconhece que a transformação é terapêutica in anima nobili São fixados critérios estritos para a intervenção.
O paciente deve, pelo período de dois anos, submeter-se a acompanhamento de equipe interdisciplinar formada por médico psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social.
Somente após o diagnóstico médico é que a cirurgia pode ser realizada, mas somente em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa. O surgimento de transexuais femininos tem aumentado tanto na prática médica como psiquiátrica.
A paciente exige mastectomia, histerectomia, oforectomia e também hormônios androgênios para alterar sua voz e obter uma aparência mais masculina. Ela pode querer um pênis artificial, feito pela cirurgia plástica. Tais pacientes devem ser selecionadas cuidadosamente, porque os resultados anatômicos da cirurgia são freqüentemente menos satisfatórios do que no procedimento masculino para o feminino (CHOERI, 2004:30) É estabelecida a idade de 21 anos para a cirurgia transgenital. Porém, como houve a redução da maioridade para os 18 anos, nada justifica manter o limite etário fixado em momento anterior à vigência do Código Civil, que alterou o marco da plena capacidade civil.
2 O FENÔMENO TRANSEXUAL E O BIODIREITO: noções sobre o campo
Os trabalhos de MONEY e STOLLER[6] sobre transexualismo introduziram na psicanálise e na medicina o conceito de gênero, possibilitando que fossem separados os conceitos de sexo e gênero, em uma perspectiva biomédica e psicológica e, conseqüentemente, separar também identidade sexual, identidade de gênero, orientação e práticas sexuais. A elaboração destes conceitos tornou mais claras as diferenças entre homossexuais, travestis e transexuais: os homossexuais teriam uma orientação sexual dirigida para o mesmo sexo; os travestis desejariam ser do sexo oposto, vestindo-se e comportando-se como tal; e os transexuais afirmariam ser do sexo oposto.
Os conflitos teóricos e ideológicos sobre transexualismo ainda não estão solucionados dentro da área médica. Um exemplo é o que ocorre com a compreensão sobre a própria cirurgia: para alguns, ela teria um caráter mutilador de um genital normal em favor de uma instância psíquica patológica; para outros, tem um caráter morfológico em favor de uma realidade psicossocial que se impõe.
Conforme aduz. ZAMBRANO(2003:57):
“o discurso médico, com todas as suas dúvidas, se reproduz no discurso jurídico, oferecendo-lhe a base biológica sobre a qual se dão as definições atuais na nossa cultura do que significa ser um homem e uma mulher e, do mesmo modo, oferecendo-lhe a definição de transexualismo” .
Porém a relação entre estes dois discursos também se dá com conflitos, ocorrendo, às vezes, de a medicina realizar a troca de sexo cirúrgica e o Judiciário negar a troca do estado civil, deixando o sujeito transexual em uma situação mais grave do que a anterior. Conflito este que é fruto de uma valorização do biológico para a classificação das pessoas, como homens ou mulheres, e da sobreposição do gênero e do sexo biológico – masculino/homem/macho, feminino/mulher/fêmea – feita pelos sistemas legais.
A partir das pesquisas, o que se observa é que, se os transexuais, em geral, partem da idéia que possuem uma corporeidade equivocada em relação a sua identidade de gênero, assim a terapia, por meio de transformações corporais, permite harmonizar este equívoco entre sexo e gênero.
Mas esta terapia só terá efeito se a ordem jurídica a recebê-la; caso contrário, as experiências discriminatórias e estigmatizantes que vivenciam não serão alteradas. Ou seja, se cabe à medicina intervir por meio de um processo terapêutico para “mudar os documentos”, este só se completa com a decisão judicial que o reconhece.
A nova tensão trazida por esta questão repousa no abalo que causa no modelo normativo dos dois sexos ou de dois gêneros que devem se corresponder – mulher/feminino homem/masculino – e na necessidade de se considerar possibilidades como a não adoção do critério biológico para a identificação civil e para o acesso a uma série de outros direitos.
As situações de ambigüidades sexuais (hermafroditismo, intersexualidade) não são novas para o direito, igualmente as injustiças decorrentes das classificações relacionadas ao gênero e à sexualidade, já que, ao classificar, a lei passou também a discriminar, como discutem e demonstram as pesquisadoras feministas acerca das causas e dos efeitos dessas discriminações. O que é interessante de se observar é que, apesar de todas as transformações estabelecidas moderadamente nos ordenamentos jurídicos e da intensa ação jurídica e política das feministas, homossexuais, transexuais, travestis e bissexuais, permanecem relativamente intocados os fundamentos do “natural” modelo dos dois sexos e a classificação sexual construída sobre a diferença anatômica entre os sexos e sua configuração biológica.
Na questão específica dos transexuais, a ação jurídica e política desses grupos vem consolidando o entendimento jurisprudencial de que o estado civil das pessoas não é um elemento indisponível, permitindo desde a mudança de nome, a troca de estado civil e, passando pela intervenção cirúrgica, o direito assume a identidade sexual como elemento preeminente do livre desenvolvimento da personalidade, e de alguma forma reconhece a autonomia sexual, permitindo pensar a adoção de novos paradigmas.
O ponto central do tema do transexualismo é a existência de uma possibilidade técnica de alteração do corpo, e a compreensão, a valoração ou o julgamento, em relação ao desejo e a demanda da pessoa para tanto. Para alguns, é o terceiro sexo; para outros, a denúncia de que as identidades rígidas não servem para a garantia da dignidade, ou seja, são desnecessárias. E há os que consideram ser um desvio, doença genética, problema psíquico; ou, para os mais simplistas. “pouca vergonha”. Neste artigo, não se vai responder questões, mas formulá-las como estratégia para compreender a complexidade do tema.
3 Alteração do nome civil e da identidade de gênero
O registro civil serve para fixar os principais fatos da vida humana, por meio de um conjunto de atos autênticos, tendentes a fazer prova segura e inconteste do estado da pessoa, status que consiste no seu modo particular de existir (LUCARELLI, 1991:220). O nome é identificador essencial da pessoa. O art. 16 do Código Civil, dispõe que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.
A sociedade tem interesse em não confundir seus membros entre si, e a esse interesse público se soma o interesse privado do indivíduo em se identificar e não ser confundido com outrem[7]. Assim, o nome deve refletir o âmago da personalidade individual, condizer com seu estado pessoal e social, bem como deve estar consorte com o seu psiquismo, sua honra, imagem pessoal e social, não podendo ser ridículo ou vexatório (VIEIRA, 2008:48).
Após o processo de transformação a que se submetem os transexuais, por meio de hormônios e intervenções cirúrgicas, para adaptar o sexo anatômico à identidade psicossocial, questão de outra ordem se apresenta. Inquestionavelmente aflitiva a situação de quem, com características de um gênero, tem documentação que o declara como pertencente ao sexo corporal em que foi registrado.
O nome deve existir para identificar a pessoa e não para expô-la ao burlesco. Aliás, se há estranhamento nos casos de transexualidade este muito se relaciona à patente desconformidade da aparência física e psíquica do indivíduo com o exarado em sua documentação legal.
No entanto, muitas são as objeções para negar a mudança da identidade. Um dos fundamentos é de natureza registral. É que o Código Civil proíbe vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.[8] Como o registro foi levado a efeito consignado corretamente o sexo aparente, a alegação é de que não teria havido qualquer erro, o que serve de justificativa ao indeferimento do pedido de retificação. Olvida-se quem assim pensa que o direito à identidade tem assento constitucional. Está inserido na sua norma de maior relevância, que proclama o princípio de respeito à dignidade humana.[9] Trata-se de uma espécie do direito de personalidade inalienável, irrenunciável, imprescritível e impenhorável.
Na busca da alteração, merece ser invocado o art. 6. da Constituição Federal de 1988 que, entre os direitos sociais, assegura o direito à saúde, encargo que é imposto ao próprio Estado, a saber: CF/88, art 6: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta”.
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS): Saúde é o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social. A falta de identidade do transexual provoca desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar físico, psíquico ou social. Assim, o direito à adequação do registro é uma garantia à saúde, e a negativa de modificação afronta imperativo constitucional, revelando severa violação aos direitos humanos.
Nenhuma justificativa serve para negar a mudança, não se fazendo necessária sequer alteração de dispositivos legais para chancelar a pretensão. Os direitos de personalidade, segundo FERNANDES (2004:131), são direitos subjetivos num duplo sentido. Além de pertencerem a cada pessoa, também são direitos cujo conteúdo e respeito, dependem de maneira importante, da vontade de cada um. E conclui o autor que cabe a cada um definir sua personalidade. Imposta do exterior, a noção de personalidade perde seu sentido[10].
3.1 Os reflexos da alteração da identidade sexual no direito social: uma questão de Ética e Justiça
No Brasil, a alteração do nome e do sexo no documento de identidade só é possível por meio de uma decisão judicial. Não há uma lei específica que regule a questão e permita que a pessoa faça essa alteração sem a intervenção do Poder Judiciário. Em geral, as demandas judiciais são de dois tipos: 1. A de pessoas que já se submeteram ao tratamento hormonal e cirúrgico para a “mudança de sexo” (os transexuais operados); 2. Pessoas que realizaram transformações parciais, mas não desejam realizar ou ainda não tiveram a oportunidade de fazer a cirurgia de genitália (transgenitalização).
Independentemente de ter ou não realizado a cirurgia de transgenitalização, os requerentes vivem uma identidade de gênero diversa da identidade legal admitida para seu sexo biológico. Nesse sentido, pleiteiam a alteração do nome e do sexo nos documentos de identificação para evitar constrangimentos sociais e pessoais resultantes da divergência entre os documentos de identificação e sua aparência e comportamento (VENTURA, 2007:87).
As decisões judiciais favoráveis ou não à alteração do sexo legal apresentam um ponto em comum: o desejo de viver uma identidade de gênero diversa da admitida socialmente para o seu sexo biológico é considerado como um transtorno psíquico, ou seja, um tipo de doença.
Os julgados divergem, basicamente, sobre duas questões: a) se o tratamento hormonal e cirúrgico é capaz de restabelecer a saúde psíquica da pessoa transexual e, portanto, legalmente admissível a terapia para “mudança de sexo”, em razão de sua natureza terapêutica – razões médicas ou de saúde; e b) se é possível reconhecer juridicamente um “sexo”, ou uma identidade de gênero (feminina ou masculina), que não seja determinada exclusivamente por fatores biológicos (ou “naturais”) – razões morais e jurídicas.
Atualmente, a maioria das decisões judiciais considera que a terapia disponível (hormonal e cirúrgica) é necessária e eficaz para o restabelecimento da saúde psíquica da pessoa transexual. Sendo assim, admitem, em caráter excepcional, a alteração da identidade civil fundamentada, principalmente, no direito á saúde, como um aspecto do direito da pessoa à vida digna.
Apesar de a mudança do nome e do sexo nos documentos ser considerada uma etapa indispensável para o êxito do tratamento da pessoa transexual, as decisões favoráveis só vêm admitindo esta alteração após a realização da cirurgia de transgenitalização, ou seja, após a adequação anatômica da genitália do requerente à nova identidade requerida.
A única decisão judicial identificada na pesquisa promovida ao longo da feitura do presente ensaio, que admitiu, em caráter excepcional, a alteração de identidade civil sem que a genitália estive adequada ao “novo sexo” requerido foi exarada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O caso envolvia um pedido de pessoa nascida no sexo feminino e que vivenciava a identidade de gênero masculino. O argumento central do julgado é que se pode admitir a alteração do sexo legal antes da cirurgia de transgenitalização quando esta implicar risco para a integridade física do requerente (risco de agravamento do estado de saúde física). A decisão levou em conta, ainda, as dificuldades que envolvem as técnicas atualmente utilizadas para a construção de um pênis e a natureza irreversível das transformações já ocorridas na aparência geral e no comportamento sexual do requerente.
Foram também identificadas decisões judiciais que não admitem a alteração civil do sexo e do nome, mesmo após todas as transformações corporais. O argumento principal é de que o versíveis e que a terapia disponível para os transexuais apenas altera sua aparência física, mas não seu sexo biológico ou sua saúde mental.
Sendo assim, mesmo que realizadas todas as adequações corporais para outro sexo, esses julgados não admitem a possibilidade de alterar a identidade civil, quer seja para prevenir discriminações e outras violações de direitos, quer como medida terapêutica. Interessante é que recomendam nas decisões que o requerente utilize outros recursos jurídicos disponíveis para que não seja discriminado, como leis que proíbem qualquer tipo de discriminação contra pessoas.
Observa-se que os argumentos dessas decisões desfavoráveis são fortemente motivados por convicções pessoais e de ordem moral-religiosa.
Uma das decisões do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais é exemplar desse tipo de motivação não jurídica quando afirma que:
“harmonia social depende da maneira como os sexos convivem a complementação, a necessidade e o apoio mútuos. O direito é a organização da família e da sociedade. Não pode fazê-lo para contrariar a natureza. Ainda que a aparência plástica ou estética seja mudada, pela mão e pela vontade humana, não é possível mudar a natureza dos seres. Pode-se-ia admitir um conceito analógico, como o da personalidade moral em relação à personalidade natural. Mas neste caso, a lei haveria de defini-lo” (Apelação Cível n. 1.0672.04.150614-4/001)
Assim, é possível concluir que, o Judiciário brasileiro só admite excepcionalmente a identidade de gênero diversa do sexo biológico de nascimento para fins de identificação civil: a) as decisões judiciais não admitem pura e simplesmente o direito á identidade de gênero como construção social ou da subjetividade pessoal, ou, ainda, como um direito de escolha da pessoa; b) adotam como principal critério para definir a identidade civil – feminina e masculina – o dimorfismo sexual (diferença anatômica entre os sexos), com especial destaque para a genitália. Isso significa que não se admite a possibilidade jurídica de a pessoa alterar, exclusivamente por decisão pessoal, seu nome e sexo legal. Os julgados exigem como condição necessária para esta alteração o diagnóstico psiquiátrico, a indicação médica para o tratamento médico preconizado para o caso e que a genitália do requerente já tenha sido adequada ao sexo requerido.
A vantagem desta interpretação judicial é que ela admite a possibilidade de se reconhecer juridicamente, mesmo que de forma restrita, uma possibilidade de que a identidade sexual civil não seja determinada biologicamente. A desvantagem é que obriga a pessoa que vive identidade de gênero diversa a do seu sexo biológico a realizar transformações corporais nem sempre desejadas ou necessárias para viver sua sexualidade apenas para alterar seus documentos civis.
Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI n. 4275)[11] para que seja reconhecido o direito de transexuais alterarem seu nome e sexo no registro civil mesmo para os que não fizeram a cirurgia para mudança nas características da genitália (transgenitalização). A ação tem como argumento principal o fato de que o não reconhecimento do direito de transexuais à troca do prenome e da definição de sexo (masculino ou feminino) no registro civil leciona preceitos fundamentais da Constituição, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação à discriminação odiosa, da igualdade, da liberdade e da privacidade.
3.2 O acesso á terapia para “mudança de sexo” no Sistema Único de Saúde (SUS)
No ano de 2001, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul interpôs uma ação civil pública requerendo a inclusão, no SUS, dos procedimentos necessários para a “mudança de sexo”.
O direito da pessoa transexual ao tratamento no SUS foi inicialmente negado pelo juiz, mas reconhecido posteriormente pelo Tribunal Regional Federal daquele estado[12].
A União Federal recorreu da decisão favorável para o Superior Tribunal Federal (STF), e a ministra Ellen Gracie, do STF entendeu que o Judiciário não pode determinar a inclusão de procedimentos médicos no SUS, de forma genérica, pois isso implicaria aumento de despesas e alteração do orçamento federal do setor, com possíveis prejuízos para outras ações e programas de saúde. Mesmo reconhecendo como legítima a demanda das pessoas transexuais em ter acesso á terapia hormonal e cirúrgica na rede pública de saúde, a decisão do STF entendeu que o Judiciário deve apreciar caso a caso a necessidade do requerente de ter acesso ao tratamento no SUS.
As decisões apresentadas apontam para um dos principais desafios para o reconhecimento do direito da pessoa transexual adotar legalmente sua identidade de gênero, qual seja, a construção de novos argumentos jurídicos não baseados no determinismo biológico ou anatômico, ou em uma condição patológica, ou mesmo em uma moralidade sexual dominante.
Em geral, as fundamentações que vêm sendo utilizadas são motivadas por convicções pessoais, ou de natureza moral-religiosa, ou médicas, mas ambas impedem que se considerem igualmente as diversas escolhas e condições sexuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que a tendência da jurisprudência seja assegurar o direito á alteração do nome e da identidade de gênero, há decisões que insistem em rejeitá-lo. É alegado que o princípio da imutabilidade relativa do nome não chancela qualquer pretensão do transgênero à mudança. Mas o tradicional princípio da indisponibilidade do estado das pessoas não pode ser um obstáculo à mudança de sexo no registro civil. Não se trata de desestruturar o sistema, mas de adequar a complexidade da ordem jurídica à complexidade da ordem natural.
Assim, indispensável atenuar certas exigências legais. A própria Lei dos Registros Públicos diz que o prenome é definitivo, mas pode ser substituído. Igualmente é admitida sua alteração, a pedido do interessado, contanto que não prejudique o sobrenome da família.
Um Estado democrático deve ter como princípio básico a tolerância, atentar para a multiplicidade de vontades e respeitar as diferenças.
O transexual diferencia-se dos padrões da dita normalidade que a sociedade elegeu, mas nem por isso permite-se que seja considerado um anormal. Ao contrário, trata-se de um sujeito de direito e obrigações como outra pessoa qualquer, tentando adaptar-se, de modo a poder desenvolver ser óbices suas reais potencialidades, vez que apresenta um sexo psicológico diferente do sexo biológico. Sente-se como seu sexo psicológico, ojeriza sua genitália e a vontade de mudar seu sexo físico é inerente à sua pessoa.
Na cirurgia redesignadora tem-se a única solução para minorar o sofrimento em que vive um transexual. Este direito não pode ser negado.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade que englobam o direito à integridade física e moral, á intimidade, á privacidade e ao próprio corpo, incluindo o direito a orientação sexual, são consagrados pela Constituição Federal, atribuindo ao transexual o direito de viver como quer ser. O Estado deve assegurar o respeito aos seus direitos, bem como promover a felicidade de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
É com base nessas garantias constitucionais que o transexual tem o direito de fazer a operação de mudança de sexo, bem como, após, deve ter seu registro alterado, para que possa viver de forma integrada e feliz.
O transexual que se submeteu á cirurgia tem o direito ao esquecimento de seu estado anterior, precisa poder assumir sua nova vida sem ser rotulado, discriminado. Eventual prejuízo a terceiro, deve ser alegado em processo próprio , sem que o transexual tenha que levar para o resto da vida a marca de seu passado que tanto o fez sofrer.
Todos os direitos inerentes ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como o de ter uma vida normal, integrada á sociedade, como direito a se casar, direitos relativos à filiação, precisam e devem ser garantidos. Todo ser humano tem de ter garantida sua liberdade de buscar a própria felicidade, sendo da forma como escolheu, exatamente como todos aqueles considerados normais querem e merecem ser felizes.
Informações Sobre os Autores
Edna Raquel Hogemann
Doutora e mestre em Direito pela Universidade Gama Filho/RJ. Especialista em Ética de la Investigación en Seres Humanos, da Red Latinoamericana y del Caribe, da UNESCO. Professora de Direitos da Personalidade do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, da Universidade Estácio de Sá/RJ. Professora de Direito e Bioética do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá
Marcelle Saraiva de Carvalho
Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, da Universidade Estácio de Sá/RJ.