Resumo: Este trabalho propõe-se a realizar um estudo qualitativo acerca da desconsideração da personalidade jurídica, com base na doutrina e jurisprudência, utilizando o método de documentação, através de pesquisa bibliográfica e documental, pois a análise de casos concretos (análise de jurisprudência) refletirá a realidade dos problemas atuais a serem discutidos e solucionados. A apresentação do tema será realizada com base na evolução histórica do instituto, abordando os seus aspectos materiais e processuais, a partir do Código de Defesa do Consumidor até a vigência do Código Civil de 2002. No decorrer do trabalho, será feita uma análise dos aspectos negativos e positivos referentes ao Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Este trabalho foi orientado pela Profª. Gisele Mazzoni Welsch.
Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica – Novo Código de Processo Civil – Anteprojeto – Incidente Processual – Contraditório e Ampla Defesa.
Abstract: This paper proposes to conduct a qualitative study about piercing the corporate veil based on the doctrine and jurisprudence, using the method of documentation, through research literature and documents, as analysis of specific cases (analysis of case law) reflects the reality of the current problems to be discussed and resolved. The presentation of the theme will be based on the historical evolution of the institute, addressing the procedural and substantive aspects, from the Code of Consumer Protection to the duration of the Civil Code of 2002. Throughout his work, there will be an analysis of negative and positive aspects regarding the Draft of the New Code of Civil Procedure.
Keywords: Disregard of Legal Personality – New Code of Civil Procedure – Draft – Incident Procedure – Wide contradictory and Defense.
Sumário: Introdução. 1. Da Desconsideração da Personalidade Jurídica. 1.1. Origem Histórica da Disregard Docrtine. 1.2. Análise da previsão legislativa do instituto. 1.3. Teoria Maior e Teoria Menor. 1.4. Comparação dos critérios objetivo e subjetivo à sua aplicação. 2. Questão Processual. 2.1. O Direcionamento da execução para a pessoa dos sócios. 2.2. Natureza. 2.3. Recurso cabível. 2.4. Possibilidade de ser declarada de ofício. 2.4.1.Ponderação da necessidade do contraditório quanto à decisão que determina a desconsideração da personalidade jurídica. 2.4.2. Análise e previsão do instituto no projeto do novo Código de Processo Civil. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Este trabalho propõe-se a realizar um estudo qualitativo acerca da desconsideração da personalidade jurídica, com base na doutrina e jurisprudência, utilizando o método de documentação, através de pesquisa bibliográfica e documental, pois a análise de casos concretos (análise de jurisprudência) refletirá a realidade dos problemas atuais a serem discutidos e solucionados.
Os motivos que levaram à decisão da abordagem desse tema dentro do universo acadêmico incidem, principalmente, pela controvérsia e abrangência da matéria, eis que é muito utilizada pela nossa justiça, na maioria dos processos de execução contra pessoas jurídicas, seja por créditos civis, trabalhistas ou tributários. O estudo ainda se justifica em razão da necessidade de maior tratativa e análise do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Esta pesquisa busca, assim, compreender a teoria da desconsideração, sob seus aspectos materiais e processuais a fim de auxiliar na melhor compreensão do fato, sendo dividida em 02 (dois) capítulos.
No primeiro capítulo será abordada a origem histórica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, com a narração dos principais julgados que tornaram a teoria conhecida no mundo todo.
Em seguida será feita uma análise da previsão legislativa do instituto, com a evolução da teoria, a partir do Código de Defesa do Consumidor, até a vigência do Código Civil de 2002, feito isto, serão abordadas as duas formas de aplicação da teoria, ou seja, a Teoria Menor e Teoria Maior, nesta segunda, a comparação dos critérios objetivos e subjetivos atinentes a sua aplicação.
No segundo capítulo, será analisada a questão processual, a partir do direcionamento da execução para a pessoa dos sócios, sua natureza processual, também será explanado acerca da possibilidade de ser declarada de ofício, bem como o recurso cabível e ponderação da necessidade do contraditório quanto à decisão que determina a desconsideração da personalidade jurídica.
Por fim, será feita uma análise e previsão do instituto, no Projeto do Novo Código Civil, abordando aspectos negativos e positivos.
1. Da desconsideração da personalidade jurídica.
1.1. Origem histórica da disregard doctrine.
A pessoa jurídica é fruto da vontade humana, pois sua constituição é proveniente de um conjunto de atos praticados pelo interessado a fim de criar referidas entidades com finalidades diversas.[1]
Com a aquisição da personalidade, depois de obedecidos os pressupostos formais, como, por exemplo, o arquivamento dos atos no registro público, a sociedade se torna um novo ser, distinto de seus componentes e com um patrimônio próprio e autônomo. A conseqüência imediata da personificação, independe do tipo societário constituído, é a separação patrimonial da sociedade, limitando o risco e a responsabilidade dos sócios.[2]
O conceito de personalidade jurídica, conforme esclarece De Plácido e Silva, é a denominação propriamente dada à personalidade que se atribui ou se assegura às pessoas jurídicas, em virtude do que se investem de uma qualidade de pessoa, que as tornam suscetíveis de direitos e obrigações, com direito a uma existência própria, protegida pela lei.[3]
Ao adquirir personalidade jurídica, as sociedades empresárias passam a ter autonomia patrimonial, ou seja, dispõem de patrimônio próprio, que servirá para adimplir as obrigações sociais. Esse patrimônio é distinto dos patrimônios particulares de seus sócios. A sociedade passa, então, por meio daqueles que a representam, a atuar no mundo empresarial, celebrando contratos com terceiros.[4]
A sedimentação da personalidade jurídica da sociedade em nossos meios empresariais e em decorrência da regra inflexível do art. 20 do Código Civil de 1916[5], o qual estabelecia que as pessoas jurídicas tinham existência distinta de seus membros, e, portanto, patrimônios distintos, despontam aqueles que se utilizam da pessoa jurídica, enriquecendo seu patrimônio pessoal em detrimento da própria sociedade e de seus credores.[6]
Para Fábio Konder Comparato, essa separação patrimonial, é a constituição de um patrimônio autônomo cujos ativos e passivos não se confundem com os direitos e as obrigações dos sócios, essa separação patrimonial é estabelecida para a consecução do objeto social, expresso no contrato ou nos estatutos. A sua manutenção só se justifica pela permanência desse escopo, de sua utilidade e da possibilidade de sua realização.[7]
No entanto, o princípio da personalidade jurídica, deu lugar a indivíduos desonestos que, utilizando-se da mesma, praticassem, em proveito próprio, atos fraudulentos ou com abuso de direito, fazendo com que as pessoas jurídicas respondessem pelos mesmos. Em vista disto, diversos casos foram sido levados freqüentemente aos tribunais, no entanto, os mais famosos, que deram origem ao instituto, ocorreram nos Estados Unidos e na Inglaterra.[8]
A origem do instituto é disputada pela doutrina americana e inglesa, porém, de acordo com a doutrina dominante, a origem da teoria da desconsideração da personalidade jurídica se deu nos Estados Unidos, em 1809, com o caso “Bank of Unites vs. Deveaux”, entretanto, o caso mais famoso, que lançou mundialmente a teoria do “véu da personalidade jurídica” (“piercing the veil of the corporation”) foi, na realidade, Salomon vs. Salomon & Co.(Inglaterra).[9]
No caso “Bank of Unites States v. Deveaux”, o juiz americano, chamado John Marchal manteve a jurisdição das cortes norte-americanas sobre as empresas, desconsiderando, assim, a personalidade jurídica do banco. Explica-se: Nos Estados Unidos, a Constituição Federal (art. 3º, seção 2ª) reserva para as cortes as lides para cidadãos de diferentes Estados. Ao fixar competência para o julgamento da lide, acabou desconsiderando a personalidade jurídica do banco, por não admitir tratar-se de uma sociedade, pessoa jurídica, mas de simples pessoas físicas, na condição de sócios. A superação da personalidade jurídica, neste caso, ocorreu de forma indireta, não para atender os objetivos hoje conhecidos, mas para permitir a fixação de determinada competência judicante.[10]
Portanto, o caso mais famoso acerca da origem da disregard doctrine é Salomon Vs. Salomon & Co., onde Aron Salomon era um empresário que havia constituído uma company, em conjunto com outros seis componentes da sua família, e cedido seu fundo de comércio à sociedade que fundara, recebendo em conseqüência, vinte mil ações representativas de sua contribuição, enquanto que para cada um dos outros membros coube apenas uma ação para a integração do valor da incorporação do fundo de comércio na nova sociedade. Salomon recebeu obrigações garantidas no valor de dez mil libras esterlinas. A Sociedade logo em seguida se revelou insolvável, sendo o seu ativo insuficiente para satisfazer as obrigações garantidas, nada sobrando para os credores quirografários.[11]
O caso foi levado à Justiça, em primeira instância o juiz decidiu que a companhia teria o direito de indenização contra Salomon, pois, na realidade, os demais sócios somente existiram no papel. Na verdade, Salomon utilizara a forma societária não para realizar o objetivo da sociedade, e sim para fraudar os seus credores.[12]
De acordo com Rubens Requião, o juízo de primeira instância, e depois a Corte acolheram essa pretensão, com o fundamento de que a company era exatamente uma entidade fiduciária de Salomon, ou melhor, um seu agent ou trustee, e que ele, na verdade, permanecera como o efetivo proprietário do fundo de comércio. Era a aplicação de um novo entendimento, desconsiderando a personalidade jurídica de que se revestia Salomon & Co.[13]
No caso mencionado ficou sobejamente demonstrado o total controle societário de Aaron Salomon sobre a própria personalidade da sociedade, justificando, assim, a desconsideração da personalidade jurídica desta. Contudo, a decisão em apreço foi reformada pela Casa dos Lords, que acabou por fazer prevalecer a separação patrimonial da sociedade e conseqüentemente irresponsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais.[14]
É certo que na época a tese não chegou a prosperar, em vista da reforma da sentença com fundamento na separação legal entre a pessoa jurídica da sociedade constituída e aquela do seu sócio, porém, com isso, julgou-se válido o contrato abusivo feito por Salomon, quando da transferência de sua indústria, e manteve-se a separação patrimonial. Posteriormente, os princípios estabelecidos neste caso foram retomados, acatando-se a fraude, o abuso ou desvio de poder, a simulação e a defesa do interesse público, dentre outras causas, como razões para afastar a personalidade jurídica.[15]
Como se pode notar, o leading case que deu origem à denominada disregard doctrine não desconsiderou a personalidade jurídica; pelo contrário, manteve a separação entre os entes de direito, a pessoa física e pessoa jurídica, alicerce legal de nosso ordenamento jurídico.[16]
Tal decisão, embora não contemplasse o princípio da desconsideração, abriu nova perspectiva, a qual realizou-se através do caso Daimler, cuja fábrica de automóveis era controlada por alemães, durante a guerra de 1914, os quais também exerciam seu controle. Assim sendo, desenvolvida, inicialmente, no sistema de common law, sob o pretexto da necessidade de serem enfrentadas situações que acenavam para uma nova realidade, em que se atribuía à sociedade uma destinação incompatível com seus fins, acabando por encobrir situações ilícitas e antijurídicas, a desconsideração da personalidade jurídica despontava no sistema jurídico vigente, até alcançar o caráter abrangente e prevalecer na atualidade.[17]
Entende-se que quando a personalidade jurídica for utilizada para fazer valer a fraude em detrimento de terceiros, considera-se ineficaz a personificação com relação aos atos praticados de forma abusiva ou fraudulenta, haja vista que as técnicas jurídicas não podem ser utilizadas para encobrir o engodo. Assim, ocorrendo, desconsidera-se a personalidade jurídica, para imputar a responsabilidade pelos atos praticados ao verdadeiro autor da façanha, que, destarte, deverá responder, pessoalmente, com seu patrimônio pelos atos praticados.[18]
Para José Edwaldo Tavares Borba, a partir do momento em que a personalidade jurídica é desvirtuada, por via de situações antijurídicas praticadas pelos seus sócios ou acionistas, abusivamente, em prejuízo de terceiros, pode e deve ser desconsiderada sua personalidade jurídica, responsabilizando os sócios que a compõem. Ainda que, em regra, os patrimônios da sociedade e de seus sócios sejam considerados distintos, sua personalidade será superada, em vista do ato abusivo praticado, havendo manifesta ruptura entre a realidade e a forma jurídica, alcançando o sócio, pois foi ele quem praticou o ato e não a sociedade em si.[19]
Fábio Ulhoa Coelho explica que em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão.[20]
Ainda a esse respeito, nessa mesma corrente, Sérgio Campinho esclarece que em função da autonomia de patrimônio verificável a partir da personificação da sociedade que passa a ser titular de um patrimônio distinto, inconfundível com o patrimônio particular de cada sócio que a compõe, passou a pessoa jurídica da sociedade, em certas circunstâncias, a ser instrumento para a perpetração de fraude contra os credores. Torna-se a pessoa jurídica manipulável por sócios ou administradores inescrupulosos, com vistas à consumação de fraudes ou abusos de direito, cometidos por meio da personalidade jurídica da sociedade que lhe serve de anteparo.[21]
Neste sentido, Ricardo Negrão nos ensina que os atos cometidos abusivamente pelos sócios, na administração da sociedade, podem acarretar o superamento da personalidade jurídica com o fim exclusivo de atingir patrimônio dos sócios envolvidos. Por esta razão a teoria do superamento da personalidade jurídica – disregard of legal entity – é também conhecida como teoria da penetração.[22]
Acrescenta Deonísio Koch, que é importante que se registre que essa doutrina não vem para combater o consagrado instituto da personalidade jurídica, pelo contrário, tem como propósito moralizá-lo, criando uma maior confiabilidade entre os credores, sabedores que são de que, havendo fraude, desvio de conduta ou abuso de direito, o capital particular dos sócios responderá pelas obrigações sociais da organização. Essa flexibilização na autonomia cria, na verdade, um maior credibilidade no instituto da pessoa jurídica.[23]
Segundo De Plácido e Silva, entende-se por fraude o engano malicioso, ou a ação astuciosa, promovidos de má-fé, para ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever.[24]
Esclarece Deonísio Koch, que a fraude é o elemento principal na formação do pressuposto da desconsideração da personalidade jurídica, devendo restar comprovada pela parte que pretende socorrer-se do patrimônio particular do agente delinqüente no uso da pessoa jurídica.[25]
A fraude, normalmente, consiste em expediente utilizado para iludir ou ludibriar um terceiro, causando-lhe prejuízo e, muitas vezes, não é perceptível imediatamente. Trata-se de uma manobra engendrada por alguém para o fim de causar prejuízo a outra pessoa, utilizando-se de artifícios que mascaram a antijuridicidade da conduta. É o meio ardiloso através do qual o sócio ou administrador da pessoa jurídica cria uma situação de prejuízo ao credor e vantagem para si, de modo que o prejudicado acredita estar celebrando negócio com garantia ou sem determinado grau de risco, quando, na realidade, encontra-se em situação exatamente oposta.[26]
O abuso de direito está ligado ao exercício irregular do direito, onde o seu titular extrapola os limites da licitude, utilizando-se de um direito que supõe ter, para legitimar condutas irregulares que tencionam prejudicar terceiros, em proveito próprio. Assim, o abuso de direito pode ter, numa visão superficial, uma aparência de legalidade, através da qual o titular tenta proteger seu ato ilícito sob o manto da norma positivada. Revela a tentativa de justificar um ato lesivo a terceiros com a defesa de seu direito particular.[27]
De acordo com Guilherme Calmon Nogueira da Gama, configura-se o abuso de direito sempre que a conduta de um dos contratantes revela-se como contrária ao princípio da boa-fé.[28]
Explica Fábio Ulhoa Coelho, que o objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e a sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.[29]
O ponto mais curioso da doutrina é que sempre os Tribunais que lhe dão aplicação declaram que não põem dúvida na diferença de personalidade entre a sociedade e os seus sócios, mas no caso específico de que tratam, visam a impedir a consumação de fraudes e abusos de direito cometidos através da personalidade jurídica, como, por exemplo, a transmissão fraudulenta do patrimônio do devedor para o capital de uma pessoa jurídica, para ocasionar prejuízo a terceiros.[30]
1.2. Análise da previsão legislativa do instituto.
Assim como há controvérsia na doutrina sobre a exata conceituação da disregard doctrine, entendendo alguns que qualquer responsabilização de uma pessoa pelas obrigações sociais de uma pessoa jurídica pode ser motivo para a desconsideração, enquanto outros, numa visão mais restrita, atrelam o conceito à pressuposta fraude e abuso de direito, com manipulação da pessoa jurídica para lesar terceiros, também a doutrina não se harmoniza no que se refere ao ingresso da superação da personalidade jurídica no Direito brasileiro.[31]
Até meados da década de 90, não havia qualquer diploma legal tratando da desconsideração da personalidade jurídica, nem mesmo o Código Civil de 1916, o qual estabelecia apenas a existência distinta da pessoa jurídica e seus membros.[32]
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o instituto foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 28, mais precisamente no seu parágrafo 5º, conforme segue:
“Art. 28 O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
[…]
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”[33]
Devido a essa inovação, os Tribunais passaram a adotar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não apenas em relações de consumo, mas nos processos de execução, em geral.
Da leitura do artigo 28 do código de Defesa do Consumidor, conclui-se que os dispositivos transcritos são auto-explicativos, e dimensionam a preocupação do texto com a situação de absoluta vulnerabilidade dos consumidores em razão de sociedades cujos sócios, muitas vezes deliberadamente, praticam toda sorte de fraudes e manobras com o objetivo de causar prejuízos à custa de um locupletamento ilícito.[34]
Com efeito, entre os fundamentos legais da desconsideração em benefício dos consumidores, encontram-se hipóteses caracterizadoras de responsabilização de administrador que não pressupõem nenhum superamento da forma da pessoa jurídica. Por outro lado, omite-se a fraude, principal fundamento para a desconsideração. A dissonância entre o texto da lei e a doutrina nenhum proveito traz à tutela dos consumidores, ao contrário, é fonte de incertezas e equívocos.[35]
Marcelo M. Bertoldi, critica este dispositivo, tendo em vista as hipóteses ensejadoras do superamento da autonomia da pessoa jurídica. Se, por um lado, correta a referência legal quanto ao abuso de direito, que se corresponde com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, as alusões feitas ao excesso de poder, à infração da lei, ao fato ou ato ilícito ou à violação dos estatutos ou do contrato social, à falência, ao estado de insolvência e à má administração, por serem causas que permitem a responsabilização direta do administrador ou do sócio sem a necessidade da desconsideração da personalidade jurídica, não deveriam constar do texto legal, não se tratando de hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, mas sim de responsabilização direta do causador do eventual dano.[36]
De acordo com Fábio Ulhoa Coelho[37], o segundo dispositivo do direito brasileiro a fazer menção à desconsideração da personalidade jurídica é a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, que dispõe sobre a repressão às infrações contra a ordem econômica, em seu art. 18, conforme segue:
“Art. 18 A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração.”[38]
Acrescenta ainda o professor Fábio Ulhoa Coelho, que inexistem, portanto, dúvidas quanto à pertinência da aplicação da teoria da desconsideração no campo da tutela do livre mercado, mas, como o legislador de 1994 praticamente reproduziu, no art. 18 da Lei Antitruste, a redação infeliz do dispositivo equivalente do Código de Defesa do Consumidor, acabou incorrendo nos mesmos desacertos. Desse modo, a segunda referência legal à desconsideração no direito brasileiro também não aproveitou as contribuições da formulação doutrinária, perdendo consistência técnica.[39]
O terceiro dispositivo que trata da desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro é a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto nº 3.179, de 21 de setembro de 1999, que se refere a tutela do meio ambiente, e, em seu art. 4º dispõe:
“Art. 4 Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”[40]
Desta feita, na composição dos danos à qualidade do meio ambiente, a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial não poderá impedir a responsabilização de seus agentes. Se determinada sociedade empresária provocar sério dano ambiental, mas, para tentar escapar à responsabilidade, os seus controladores constituírem nova sociedade, com sede, recursos e pessoal diversos, na qual passem a concentrar seus esforços e investimentos, deixando a primeira minguar paulatinamente, será possível, por meio da desconsideração das autonomias patrimoniais, a execução do crédito ressarcitório do patrimônio das duas sociedades.[41]
Tendo entrado em vigor, em 2002, o Novo Código Civil, a Disregard Doctrine, amplamente aceita pela doutrina e pela jurisprudência, passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio, nos termos do art. 50 do CCB:
“Art. 50 Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.[42]
Com a edição do Código Civil de 2002, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica passa a ser recepcionada em nosso ordenamento jurídico não somente em situações específicas, como é o caso do abuso da utilização da pessoa jurídica nas relações de consumo, tutela do livre mercado ou do meio ambiente, mas em todas as relações jurídicas indistintamente.[43]
Efetiva-se com isso a possibilidade de ser descaracterizada a pessoa jurídica, retirando dela o véu de sua personalidade, nas circunstâncias previstas, do desvio de finalidade, ou confusão patrimonial, mas quando sobrevier pedido da parte interessada ou do próprio Ministério Público.[44]
Portanto, o referido artigo silencia-se a respeito da possibilidade de uma ação autônoma de pedido de desconsideração de personalidade jurídica, o que, em tese, é possível. O argumento para embasar a afirmativa da possibilidade de terceiros intentarem um pedido autônomo de desconsideração é bastante simples, haja vista que no Direito brasileiro, como se bem sabe, tudo o que não é defeso, é permitido. Assim, é parte legítima qualquer pessoa, inclusive terceiros, para propor o levantamento do véu de uma pessoa jurídica com base no Código Civil, uma vez que seu art. 50 não proíbe essa possibilidade.[45]
Observa-se, contudo, que não há nenhuma disposição legal sobre os aspectos processuais desse instituto. As leis existentes que dispõe sobre a desconsideração da personalidade jurídica, bem como o Código de Processo Civil, não trazem normas regulamentando o procedimento a ser adotado na sua aplicação.[46]
No entanto, se de um lado essas normas encorajam a aplicação da superação da autonomia da pessoa jurídica, por outro, podem levar á idéia restritiva da sua aplicabilidade, induzindo os magistrados a somente utilizarem a medida quando a lei expressamente autorizar. Haverá uma tendência neste sentido. Contudo, devemos lembrar que a disregard doctrine é uma construção jurisprudencial que visa negar a autonomia absoluta da personalidade jurídica quando esta serve de meio para fraudar terceiros. Dispensável é a lei autorizadora da medida. Exige-se apenas a presença de seus pressupostos jurídicos.[47]
Admite-se a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária para coibir atos aparentemente lícitos. A ilicitude somente se configura quando o ato deixa de ser imputado à pessoa jurídica da sociedade e passa a ser imputado à pessoa física responsável pela manipulação fraudulenta ou abusiva do princípio da autonomia patrimonial.[48]
Ao aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente ao depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação, sempre com muita cautela.[49]
Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a possibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz, nessas situações (quer dizer, especificamente no julgamento do caso), não respeitar esse princípio, desconsidera-lo. Desse modo, como pressuposto da repressão de certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária.[50]
Não se pode deixar também de registrar certos exageros, em alguns julgados, na aplicação da teoria. Há alguns julgados em que o magistrado, diante de uma mera dificuldade de obter a cobrança do crédito da pessoa jurídica, simplesmente redireciona a cobrança para os sócios, ou um dos sócios, considerando autor de atos suspeitos com relação ao uso da pessoa jurídica. Não se exaure a possibilidade de cobrança de crédito da pessoa jurídica. Ressalte-se que a aplicação da teoria deve ser uma medida extrema, de exceção, cabendo a sua aplicação somente depois de exaurida a possibilidade de obter a liquidação do débito pela pessoa jurídica.[51]
Nesta corrente, afirma Eduardo Lessa Bastos, que se tem notado abusos na aplicação da teoria, tanto por parte dos legisladores, como pela própria jurisprudência[52], o que nem de longe serve para a proteção dos credores, pois o empresário mal intencionado camufla seu patrimônio de varias outras maneiras.[53]
Destarte, pode-se dizer que a melhor interpretação judicial dos artigos de lei sobre desconsideração (isto é, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC/2002) é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica.[54]
É pacífico na doutrina e na jurisprudência[55] que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude.[56]
Deste modo, os institutos jurídicos devem possuir uma função social, no sentido de contribuir para o bem-estar da sociedade, regulando as relações entre indivíduos para propiciar a paz social, devendo servir de instrumento para o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico de uma nação. No momento que a sua função for desviada por interesses escusos, servindo de artifício ardiloso para fins ilícitos, com o objetivo de melhor adequar a norma às necessidades sociais contemporâneas.[57]
Portanto, para a aplicação da teoria da desconsideração, deve haver a má utilização da pessoa jurídica, não podendo se desconsiderar a personalidade jurídica, apenas por estarem caracterizadas a insolvabilidade e a impontualidade, salvo quando se tratar de relação de consumo ou direito ambiental com a aplicação da teoria menor, apesar de haver um desvirtuamento do instituto, conforme se verificará adiante.[58]
1.3. Teoria maior e teoria menor
Na doutrina pátria, existem duas formulações referentes à teoria da desconsideração, que se dividem em “Teoria Maior” e “Teoria Menor”. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, a maior é a qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela, e a menor, em que o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a autonomia patrimonial. [59]
Em ambas as teorias não se questiona a personificação enquanto instituto de Direito Civil e Comercial, e, sim, tenta-se relativizar um de seus efeitos. Dessa maneira, pode-se afirmar que ambas as teorias são aprimoramentos do instituto da personalidade jurídica, pois nas duas está espelhada a evolução do Direito brasileiro e mundial, flexibilizando a autonomia patrimonial.[60]
A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam.[61]
De acordo com esta teoria, a sua aplicação deve ser excepcional e, para tanto, é necessária a demonstração inequívoca do comprimento de fraude ou abuso de direito, tendo como instrumento a própria sociedade.[62]
Para Fábio Ulhoa Coelho, a teoria maior da desconsideração é mais exigente, por ser mais elaborada e com maior consistência e abstração, pois condiciona o afastamento da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização de manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto.[63]
Nesta corrente, Alex Perozzo Boeira, aduz que a teoria maior oferece maior segurança ao sistema, permitindo a regular utilização da pessoa jurídica e, simultaneamente, meios coercitivos de prospecção sobre o acervo patrimonial dos sócios do ente moral.[64]
De outra forma, é possível a aplicação da teoria menor da desconsideração, toda vez que o juiz deparar-se com uma situação em que se verifique a insatisfação de um crédito titulado, haja vista o disposto no §5º, do art. 28 do CDC,[65] conforme pode-se verificar através da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[66].
Vale dizer que para a aplicação desta teoria, e consequentemente desconsideração da personalidade jurídica, não há análise sobre a existência de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial (pressupostos para a aplicação da teoria maior), basta que o credor não obtenha o crédito pretendido.[67]
O simples fato de uma pessoa jurídica não dispor de fundos suficientes para saldar obrigações sociais é indicação para a aplicação da disregard doctrine, sem necessidade de perquirir se houve uso de fraude ou abuso de direito por parte de um dos sócios na gestão da empresa, visando lesar terceiros. Os sócios são chamados a assumir a responsabilidade pelos encargos sociais com seu patrimônio particular.[68]
No entanto, é equivocada a exegese literal do §5º, do art. 28 do CDC, porque implicaria na absurda negação do instituto da pessoa jurídica na seara do direito do consumidor. Por isso, a sua leitura deve ser conjugada com o “caput”, que despreza a autonomia patrimonial somente no caso de fraude e de abuso de direito por meio da pessoa jurídica, em consonância com a disregard doctrine, que representa, por sua vez, um aperfeiçoamento daquele instituto da pessoa jurídica e não a sua negação.[69]
Tanto no §5º, do art. 28 do CDC, quanto no art. 4º da lei 9.605 de 1998, que tratam dos prejuízos causados ao consumidor e ao meio ambiente, não há necessidade de demonstração do desvio de finalidade e confusão patrimonial. Por essa razão, a desconsideração da personalidade jurídica não deve, como regra, basear-se somente em um desses dispositivos.[70]
Ao adotar a regra dos artigos acima referidos, a simples insolvência da empresa já serve de requisito para a desconsideração da personalidade jurídica, com o argumento de proteger os interesses do consumidor, ente hipossuficiente na relação de consumo. Desta forma, a aplicação da teoria menor representa um desestímulo para a captação de recursos populares, reunindo-os em entidades personalizadas, para a criação de riquezas. Criando, assim, insegurança para os aplicadores.[71]
É nesse sentido que Fábio Ulhoa Coelho, afirma a teoria menor da desconsideração ser menos elaborada, tendo em vista que se refere à desconsideração em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio do sócio por obrigação social, cuja tendência é cada vez mais condicionar o afastamento do princípio da autonomia da pessoa jurídica.[72]
A teoria menor, não se ajusta aos contornos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na sua acepção clássica. É uma simples forma de responsabilização de pessoas, geralmente os sócios, fora dos limites da responsabilidade da sociedade, expressa em norma e por ela alcunhada de desconsideração da personalidade jurídica, com o objetivo de garantir direitos de terceiros.[73]
Há que se salientar que existe entendimento contrário, ao acima exposto, pois, a uma primeira vista, fazendo um exame superficial, pode-se concluir pela não-importância e pela inaplicabilidade da teoria menor, pois demais extremista. Porém, ao contrário do anteriormente narrado, e do até presente entendido, a teoria menor verdadeiramente é muito mais complexa do que a maior, e de aplicabilidade muito mais abrangente, mas de difícil sistematização, motivo esse, provavelmente, manancial de seu “esquecimento” doutrinário.[74]
A teoria menor da desconsideração é baseada na oneração patrimonial dos sócios por simples inadimplência de obrigação devida pela entidade societária. Desse conceito, emerge o seu escopo, de proteger o patrimônio dos credores da pessoa jurídica. Deste modo, defende-se, ao conceituar-se essa teoria, que não são precisos os argumentos doutrinários a respeito de ela ser uma negação da personalidade jurídica, ou, ainda, um questionamento de sua pertinência. Sustenta-se essa posição uma vez que nela não “mata-se” a personalidade da empresa, pois esta se perpetua no tempo. O que se faz, é “levantar seu véu personificante”, como na teoria maior.[75]
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[76] ainda não está consolidada em favor da “teoria maior” ou “teoria menor”, muito embora a maioria de seus julgados se incline em prol da primeira.[77]
Embora haja julgados neste sentido nos tribunais brasileiros, aplicando o chamado redirecionamento da ação, buscando os bens particulares dos sócios sempre que faltam recursos da pessoa jurídica para pagar credores, o fato é que esta teoria vem contrariar todo o postulado da doutrina da superação, por olvidar simplesmente a principal característica da pessoa jurídica, que é a sua autonomia em relação aos seus sócios.[78]
Conclui Fábio Ulhoa Coelho, que devido a evolução do tema na jurisprudência brasileira, não permite-se mais falar-se em duas teorias distintas, razão pela qual esses conceitos de “maior” e “menor” mostram-se, agora, felizmente, ultrapassados.[79] Para esse doutrinador, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, nada mais é do que aplicação incorreta do instituto.
A Teoria Maior da desconsideração da personalidade jurídica apresenta duas vertentes: Teoria Maior Subjetiva e Teoria Maior Objetiva. A primeira tem como requisitos para a aplicação da teoria o abuso de direito e a fraude, ao passo que a segunda prevê como requisito para aplicação da teoria a confusão patrimonial.[80]
1.4. Comparação dos critérios objetivo e subjetivo à sua aplicação
Para que se possa aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, há de se ter critérios. Nesse sentido, existem dois grupos de pressupostos de sua aplicabilidade: os critérios objetivo e subjetivo.[81]
A teoria da desconsideração elegeu como pressuposto para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária o uso fraudulento ou abusivo do instituto. Cuida-se, desse modo, de uma formulação subjetiva, que dá destaque ao intuito do sócio ou administrador, voltado à frustração de legítimo interesse de credor. Não se pode, entretanto, deixar de reconhecer as dificuldades que essa formulação apresenta no campo das provas quando ao demandante se impõe o ônus de provar intenções subjetivas do demandado, isso muitas vezes importa a inacessibilidade ao próprio direito, em razão da complexidade de provas dessa natureza.[82]
Entende-se por pressupostos subjetivos da desconsideração, aqueles atinentes à vontade do praticante do ato em nome da pessoa jurídica. Nesses casos, em virtude da subjetividade quanto à intenção do praticante, é de grande dificuldade a produção de prova por parte do credor para a desconsideração da personalidade jurídica. Em face disso, preocupa-se em, muitas vezes, inverter o ônus da prova e positivar presunções legais para servirem de instrumento possibilitador ao exercício de direitos.[83]
Na aplicação subjetiva da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, há exigência de que haja utilização abusiva da pessoa jurídica, no sentido de que a mesma seja utilizada com a intenção de escapar à obrigação legal ou contratual, ou mesmo fraudar terceiros.[84]
Nas palavras de Fabio Ulhoa Coelho, a formulação subjetiva da teoria da desconsideração, deve ser adotada como o critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é mais ajustada à teoria da desconsideração.[85]
Existem ocasiões em que a desconsideração ocorre de forma inversa, em casos onde o sócio delinqüente passa a usar a sociedade para esconder o seu patrimônio particular. Nestas situações, a pessoa jurídica sofre ocultação porque recebe transferência de recursos, à revelia da lei, com a intenção de esvaziar o patrimônio particular, tentando lesar terceiros.[86]
Em outras palavras, conforme leciona Eduardo Viana Pinto, é o caso do devedor que se vale da pessoa jurídica, na qual é sócio majoritário ou acionista, incorporando ao seu acervo patrimonial bens pessoais de sua titularidade. Como detém absoluto controle nessa sociedade, continua a desfrutar desses bens assim transferidos, que, embora não sejam mais de sua propriedade, integram o ativo imobilizado da pessoa jurídica que está sob o seu controle e administração.[87]
Explicando mais claramente, a inversão da desconsideração tem lugar quando o devedor transferir seus bens para a pessoa jurídica com o intuito de não adimplir dívidas com seus credores. Salienta-se que, via de regra, as quotas ou parcelas de capital social de cada sócio são penhoráveis, somente sendo impenhoráveis as quotas ou parcelas de capital social de sociedade limitada de pessoas. O instituto da inversão é mais adequado aos casos que envolvam pessoa jurídica sob forma associativa ou fundacional, pois a seu instituidor ou a seu integrante não se atribui bens que correspondam à sua participação na entidade fundada.[88]
A desconsideração invertida ampara, de forma especial, os direitos de família, haja vista que na desconstituição do vínculo de casamento ou de união estável, a partilha de bens comuns pode resultar fraudada. Se um dos cônjuges ou companheiros, ao adquirir bens de maior valor, registra-os em nome de pessoa jurídica sob seu controle, eles não integram, formalmente, a massa partilhar. No entanto, ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo desvio ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, associado ou instituidor.[89]
Na formulação objetiva, o pressuposto da desconsideração se encontra, fundamentalmente, na confusão patrimonial. Se, a partir da escrituração contábil, ou da movimentação de contas de depósito bancário, percebe-se que a sociedade paga dívidas do sócio, ou este recebe créditos dela, ou o inverso, então, não há suficiente distinção, no plano patrimonial, entre as pessoas.[90]
Fábio Konder Comparato, ensina que a pessoa jurídica nada mais é do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeita-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente patrimonial.[91]
A eleição da confusão patrimonial como pressuposto objetivo da disregard doctrine facilita a tutela dos interesses dos credores, uma vez que a produção de provas de pressupostos objetivos é mais acessível. Mas, devemos lembrar que a presença de um pressuposto objetivo não anula a possibilidade de prova em contrário por parte do devedor, uma vez que se trata de presunção relativa.[92]
Sustenta, Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, que, se, por meio da pessoa jurídica, oculta-se o fato de que as partes envolvidas no negócio, são, em verdade, o mesmo sujeito, é possível desconhecer-se a autonomia da pessoa jurídica, devendo ser aplicada a norma baseada sobre a efetiva diferenciação, não podendo ser admissível a extensão de tal entendimento à diferenciação ou identidade apenas jurídico-formal.[93]
A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude.[94]
Importa ressaltar que a confusão patrimonial não consiste por si só em pressuposto da desconsideração, a indistinção do patrimônio só é relevante para a desconsideração quando ela é conseqüência de um abuso na utilização da sociedade ou quando esta é utilizada como meio de fraudar a lei, obrigações contratuais ou credores.[95]
Portanto, pode-se dizer que a formulação subjetiva, vincula a caracterização do abuso de direito à intenção do agente de causar prejuízo à terceiro, posto que a formulação objetiva admite o abuso de direito quando o direito for exercido de forma contrária às finalidades sociais da organização, sem perquirir sobre a intenção do agente.[96]
Assim, para facilitar a tutela de alguns direitos, preocupa-se a ordem jurídica, ou mesmo a doutrina, em estabelecer presunções ou inversões do ônus probatório. No campo da teoria da desconsideração, essa preocupação revela-se na formulação objetiva proposta.[97]
O entendimento majoritário da doutrina é de que se deve sempre utilizar a formulação subjetiva de pressupostos, pois mais ajustados à desconsideração, figurando, o pressuposto objetivo, como auxiliar daquela. Derradeiramente, mister se faz salientar que os pressupostos não se anulam e sobrevivem isolada ou conjuntamente enquanto instrumentos de produção de provas em ações de conhecimentos por meio do procedimento de desconsideração da personalidade jurídica.[98]
2. Questão processual
2.1. O direcionamento da execução para a pessoa dos sócios
Quando tratamos a desconsideração da personalidade jurídica, algumas questões merecem ser abordadas. Isso porque, na hipótese de afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, deve-se pensar na extensão da responsabilidade da sociedade ao sócio que, ordinariamente, não figura como devedor da obrigação. Assim, para que haja aludida extensão da responsabilidade e se adentre na esfera patrimonial do sócio, é imprescindível que a existência dos requisitos que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica seja devidamente comprovada.[99]
Destarte, a desconsideração da personalidade jurídica somente terá sentido diante das hipóteses de responsabilidade limitada dos sócios. Numa firma individual, por exemplo, em que o patrimônio da empresa e do titular se confundem, não há que se falar em disregard doctrine, porque não há limitação de responsabilidade a ser rompida. Da mesma forma, não faz sentido falar em superação da personalidade jurídica numa sociedade em comum, assim denominada a sociedade irregular ou de fato, pelo Código Civil de 2002, pois aí a responsabilidade dos sócios já é ilimitada.[100]
No caso do empresário individual, inexiste um patrimônio distinto. Os bens particulares e os bens negociais formam um patrimônio único. Assim, na eventualidade de dívidas contraídas em decorrência da atividade negocial, tanto os bens particulares quanto os destinados ao exercício do comércio responderão pelo cumprimento das obrigações existentes. O mesmo ocorre com as chamadas sociedades irregulares ou de fato, e as sociedades em comum.[101]
Em virtude de sua importância fundamental para a economia capitalista, o princípio da personalização das sociedades empresarias, e sua repercussão quanto à limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios, não pode ser descartado na disciplina da atividade econômica. Em conseqüência, a desconsideração deve ter necessariamente natureza excepcional, episódica, e não pode servir ao questionamento da subjetividade própria da sociedade.[102]
No que tange a responsabilidade dos sócios, o art. 1.001 do Código Civil de 2002 dispõe:
“Art. 1.001 As obrigações dos sócios começam imediatamente com o contrato, se este não fixar outra data, e terminam quando, liquidada a sociedade, se extinguirem as responsabilidades sociais”.[103]
Ademais, o referido artigo, repete quase literalmente, o que dispunha o agora revogado art. 329 do Código Comercial:
“Art. 329 As obrigações dos sócios começam na data do contrato, ou da época nele designada; e acabam depois que, dissolvida a sociedade, se acham satisfeitas e extintas todas as responsabilidades sociais”.[104]
Desta forma, a redação dada ao dispositivo legal, levou vasta corrente doutrinária a sustentar a tese de que o sócio que ingressa na sociedade não tem qualquer responsabilidade pelas dívidas sociais anteriores.[105]
Partindo do ponto de vista de Iolanda Lopes de Abreu, se a responsabilidade do sócio começa da data do contrato, e se para o novo sócio a data do contrato é a da alteração respectiva, a partir desta data é que seu patrimônio estará comprometido em relação às dívidas sociais.[106]
Por outro lado, Rubens Requião, afirma que o novo sócio, ao ingressar na sociedade já constituída, deve ponderar sobre todas as vantagens e riscos do ato que irá realizar. Nesse contexto, deverá investigar sobre o ativo e o passivo da sociedade, e assim como gozará dos benefícios e reflexos financeiros dos negócios realizados anteriormente, é justo que se sujeite, também, aos respectivos riscos.[107]
Para André Gustavo Salvador Kauffman, o sócio é mero responsável patrimonial, devendo a penhora de seus bens ocorrer antes de sua intimação.[108]
Esclarece Amador Paes de Almeida, que no direito societário brasileiro, existem duas espécies de sócios: os que tem responsabilidade limitada, e os que possuem responsabilidade solidária.[109]
De acordo com o que ensina De Plácido e Silva, a responsabilidade exprime a obrigação de responder alguma coisa. Significa, assim, a obrigação de satisfazer ou executar o ato jurídico, que se tenha convencionado, ou a obrigação de satisfazer a prestação ou de cumprir o fato, atribuído ou imputado à pessoa por determinação legal.[110]
A responsabilidade dos sócios solidários, conquanto ilimitada, é subsidiária, conforme pode-se observar no disposto no art. 1024 do Código Civil de 2002[111]:
“Art. 1.024 Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.[112]
Idêntica é a regra contida no art. 596 do Código de Processo Civil:
“Art. 596 Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade”.[113]
Nas sociedades em que há sócios de responsabilidade ilimitada e de responsabilidade limitada, como nas sociedades em comandita simples, a responsabilidade limitada compreende a fixação da responsabilidade dos comanditários ao valor do contingente de capital com que se obrigaram na comandita. É a limitação de sua obrigação perante a sociedade, que se cinge à mera contribuição da parte do capital, com que se obrigou. É igualmente, indicativa da responsabilidade dos acionistas das sociedades anônimas, quando a sua obrigação acerca das ações subscritas, restringe-se ao valor delas.[114]
O limite da responsabilidade limitada é fixado pelo art. 1.052 do Código Civil de 2002 que dispõe:
“Art. 1.052 Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todas respondem solidariamente pela integralização do capital social”.[115]
Desta forma, cada sócio cotista é responsável pela integralização total do capital da sociedade, Sua responsabilidade, portanto, é limitada a esta integralização, além de ser responsável pelo pagamento de sua cota. Depois que o capital da sociedade é integralmente pago por todos os sócios, sua responsabilidade restringe-se à cota já resgatada ou paga.[116]
Assim, a superação da personalidade jurídica alcança os sócios cuja sociedade goza de responsabilidade limitada, podendo os credores reivindicar seus direitos somente até o limite do patrimônio da sociedade, sem cogitar o patrimônio particular dos sócios.[117]
Neste sentido, quando o sócio assume responsabilidade pela sua quota-parte, subsidiariamente, permanecerá responsável pelo total do capital social, na ausência da sua integralização ou desfalque.[118]
Os sócios solidários, ao revés do que ocorre com os sócios de responsabilidade limitada, respondem, ainda que em caráter subsidiário, ilimitadamente pelas obrigações sociais.[119]
No entanto, para que se possa aplicar o que até agora foi dito, há que se ter discernimento. Fazer com que o sócio ou o administrador responda com seu patrimônio pessoal por dívidas da sociedade, sem que se desconsidere a personalidade desta em procedimento próprio, seria, aí, sim, relegar à extinção da personalidade jurídica.[120]
Importante se faz ressaltar acerca da temática sobre a responsabilidade do ex-sócio, que deixou de integrar os quadros sociais da empresa. Neste particular, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul adota três diferentes posicionamentos. De acordo com o primeiro entendimento[121], se houve a constituição do título após a retirada regular da sociedade, não se autoriza a desconsideração.[122]
O segundo entendimento[123] remete à época de ajuizamento da ação ordinária, desta forma, se ajuizada quando o interessado ainda era sócio da empresa, deve responder pelo título executivo e pela execução posteriormente promovida, com base na desconsideração reconhecida. Em suma, nessa situação, responde o ex-sócio pela sociedade quando ainda a integrava.[124]
Por fim, importa mencionar o entendimento jurisprudencial[125] que, afasta a inclusão automática do ex-sócio em execução, uma vez que não demonstrada prática de abuso ou fraude.[126]
Importa salientar, que não é admissível o simples redirecionamento da ação para os sócios da empresa, diante da insuficiência de fundos desta, sem provar a ocorrência de fraude ou abuso de direito. A não-comprovação da intenção do sócio não credencia o juiz a desconhecer a limitação da responsabilidade da sociedade e buscar recursos do patrimônio particular.[127]
Contudo, importante se faz referir, que incumbe ao credor o ônus de comprovar a ocorrência dos requisitos que acarretam a desconsideração da personalidade jurídica.[128]
Nesse sentido, pode-se dizer que o ônus da prova acerca dos pressupostos para aplicação da teoria da desconsideração pertence àquele que requer a aplicação da teoria, como regra, o que poderá ser mitigado em determinadas hipóteses quando se admite a isenção de tal ônus, como nas relações de consumo.[129]
A defesa exercida pelos sócios ou administradores diretamente na execução, apesar de versar sobre questões aparentemente de direito material, tenciona-se, em verdade, contra a sua condição de legitimados passivos extraordinários, sendo a ilegitimidade da parte questão passível de argüição no contexto do procedimento executório, por via de simples petição, através das denominadas “exceções de pré-executividade”. Ao mesmo tempo, também há lugar para o exercício do contraditório a respeito dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica por meio de impugnação ao cumprimento de sentença, na hipótese do art. 475-L, IV do Código de Processo Civil:[130]
“Art. 475-L A impugnação somente poderá versar sobre:
[…]
IV – ilegitimidade das partes;”[131]
No entanto, se o juiz, após apreciar requerimento do exeqüente, defere o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, mandando intimar os sócios ou administradores para pagar o débito exeqüendo em quinze dias, nos conformes do art. 475-J do CPC[132], integrando-os como parte na execução, caberão aos novos executados, caso queiram questionar a decisão, impugnar o ato decisório mediante simples petição nos autos do procedimento executivo, independente de prazo, argüindo, inclusive, se for o caso, a existência de bens suficientes em nome da pessoa jurídica devedora, conforme dispõe o art. 596, §1º do CPC:
“Art. 596 Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.
[…]
§ lº Cumpre ao sócio, que alegar o benefício desse artigo, nomear bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres e desembargados, quantos bastem para pagar o débito.”[133]
Caberá também aos executados, caso queiram, promover o incidente de impugnação ao cumprimento de sentença, em cujo âmbito se autoriza o debate sobre a legitimidade das partes. Ao impugnar a decisão que decreta previamente a desconsideração da personalidade jurídica, mesmo que o executado o faça através de simples petição, estará exercendo seu direito de defesa, devendo o magistrado considerar e apreciar seus argumentos e, se for o caso, revogar sua decisão.[134]
É preciso lembrar, por último, que, na desconsideração da personalidade jurídica não é válida a idéia de que deve ser penhorado o patrimônio do sócio que primeiro for encontrado, porque, como se sabe, a responsabilidade de todos os sócios é igual. Esse argumento reforça o entendimento de que é imprescindível a citação de todos os sócios, porque, ante a presença de todos, a responsabilidade pode ser diluída em partes iguais, para que não ocorra nenhuma injustiça decorrente da oneração excessiva de apenas parte dos sócios.[135]
2.2. Natureza
Na terminologia jurídica, o termo “natureza”, assinala, notadamente, a essência, a substância, ou a complexão das coisas. Assim, ela se revela pelos requisitos ou atributos essenciais e que devem vir com a própria coisa.[136]
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica é um tema que pertence ao campo do direito material. Contudo, é inegável que o mesmo gera reflexos importantes na seara do direito processual.[137]
A decisão que desconsidera a personalidade jurídica tem natureza de decisão interlocutória.[138]
A desconsideração caracteriza-se pela não aplicação do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em determinados casos concretos e, na verdade, o que se busca ao utilizar a teoria da desconsideração é a ineficácia da pessoa jurídica, para aquele determinado caso, e não a invalidade daquela sociedade.[139]
Tendo em vista que a disregard doctrine tem por finalidade a desconsideração da personalidade jurídica apenas quanto a efeitos determinados dentro de um caso concreto, não acarretando, conforme já abordado, na extinção do instituto da pessoa jurídica, sua aplicação não exige o ajuizamento de ação autônoma. Dessa forma, a existência dos requisitos que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aferida como incidente, em processo já em curso.[140]
Acerca da desnecessidade de ação autônoma, pode-se ter como exemplo, o julgado abaixo:
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA SUJEITA À LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL NOS AUTOS DE SUA FALÊNCIA. POSSIBILIDADE. A CONSTRIÇÃO DOS BENS DO ADMINISTRADOR É POSSÍVEL QUANDO ESTE SE BENEFICIA DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. – A desconsideração não é regra de responsabilidade civil, não depende de prova da culpa, deve ser reconhecida nos autos da execução, individual ou coletiva, e, por fim, atinge aqueles indivíduos que foram efetivamente beneficiados com o abuso da personalidade jurídica, sejam eles sócios ou meramente administradores. – O administrador, mesmo não sendo sócio da instituição financeira liquidada e falida, responde pelos eventos que tiver praticado ou omissões em que houver incorrido, nos termos do art. 39, Lei 6.024/74, e, solidariamente, pelas obrigações assumidas pela instituição financeira durante sua gestão até que estas se cumpram, conforme o art. 40, Lei 6.024/74. A responsabilidade dos administradores, nestas hipóteses, é subjetiva, com base em culpa ou culpa presumida, conforme os precedentes desta Corte, dependendo de ação própria para ser apurada. – A responsabilidade do administrador sob a Lei 6.024/74 não se confunde a desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração exige benefício daquele que será chamado a responder. A responsabilidade, ao contrário, não exige este benefício, mas culpa. Desta forma, o administrador que tenha contribuído culposamente, de forma ilícita, para lesar a coletividade de credores de uma instituição financeira, sem auferir benefício pessoal, sujeita-se à ação do art. 46, Lei 6.024/74, mas não pode ser atingido propriamente pela desconsideração da personalidade jurídica.Recurso Especial provido.”[141]
Em outras palavras, a decisão que desconsidera a autonomia da pessoa jurídica apenas declara a ineficácia episódica da personalidade jurídica, isto é, apenas com relação ao episódio a ser analisado pelo judiciário. Tem, dessa forma, prosseguimento a sociedade com relação a seus outros atos e fins legítimos.[142]
Neste sentido, a natureza jurídica da desconsideração da PESSOA JURÍDICA deve ser interpretada como forma de recusa aos efeitos do ato constitutivo societário, para aquele caso concreto especificamente, mantendo-se, no mais e ante aqueles que não têm relação com o fato, perfeitamente válido e plenamente eficaz, tendo em vista que somente irá tornar relativamente ineficaz a pessoa jurídica.[143]
Portanto, discussão que ganha relevo no que se refere ao aspecto processual da desconsideração da personalidade jurídica é de que forma deve ocorrer a sua decretação. Se existe a necessidade de instauração de um processo de conhecimento para legitimar sua aplicação ou se basta uma simples decisão interlocutória, no próprio processo, para aplicar a medida.[144]
Neste sentido, parte da doutrina entende que a desconsideração exige ação própria de conhecimento, não admitindo a Teoria Maior da desconsideração por despacho judicial em execução de sentença. Se o título é apenas em desfavor da pessoa jurídica, haveria a necessidade de manejar ação própria contra os sócios, para demonstrar a fraude ou abuso da personalidade jurídica.[145]
Em se admitindo a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica por simples decisão na fase de execução, uma vez constatada sua insolvabilidade, com a determinação de penhora ou arresto de bens pertencentes ao sócio ou administrador, estar-se-ia encampando a teoria menor da desconsideração, além de haver afronta ao devido processo legal, admitindo-se apenas a propositura dos embargos à execução ou dos embargos de terceiro, além de possível recurso de agravo de instrumento.[146]
Pode, perfeitamente, o sócio interpor agravo de instrumento contra a decisão que ordenou a penhora de seus bens sem sua prévia oitiva. Igualmente, o mesmo sócio pode manejar a denominada exceção de pré-executividade quando tratar de matéria de ordem pública cuja demonstração independer de prova. Um bom exemplo é a prescrição, muitas vezes despercebida pelo juiz ao acolher o requerimento de desconsideração. Enfim, ulteriormente, poderá vir o mesmo sócio a propor embargos de terceiro para suscitar ser impenhorável a conta-salário constrita no mesmo processo. Apesar disso, prática reprovável é o uso dessas três vias para a discussão do mesmíssimo tema, no intuito evidente de postergar o andamento do processo.[147]
2.3. Recurso cabível
O Art. 162 do Código de Processo Civil estabelece quais os possíveis pronunciamentos do juiz no processo:
“Art. 162 Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
§1º Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei. (Redação dada pela Lei n.º 11.232/2005)
§2º Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente.
§3º São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de oficio ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma.
§4º Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário. (Acrescentado pela Lei 8.952/94)”.[148]
As duas primeiras espécies previstas no referido artigo (sentença e decisão interlocutória), o Código de Processo Civil associa um recurso cabível, para tanto, utiliza-se os arts. 513 e 522 do CPC:
“Art. 513 Da sentença caberá apelação (arts. 267 e 269).
Art. 522 Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento. (Redação dada pela Lei n.º 11.187/2005)”.[149]
Relativamente aos despachos, uma vez que constituem pronunciamentos do juiz, em princípio desprovidos de conteúdo decisório, são irrecorríveis[150], conforme disposto no art. 504 do Código de Processo Civil:
“Art. 504 Dos despachos não cabe recurso. (Redação dada pela Lei n.º 11.276/2006)”.[151]
Nas palavras de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, não é possível afirmar-se genericamente, que determinado ato é despacho. É preciso verificar quais as conseqüências processuais por ele provocadas. Se a decisão causar prejuízo, é inviável negar-se à parte da possibilidade de interposição de recurso, em função das conseqüências processuais por ele provocadas.[152]
Conforme ensina Araken de Assis, não caberá agravo dos despachos, pois, por definição, não produzem gravame às partes, falta-lhes conteúdo decisório mínimo. Desta forma, se algum ato erroneamente designado de despacho traz gravame, quiçá por contamina-lo erro flagrante do órgão judiciário, assim, a decisão deixa a categoria de “despacho”, no sentido próprio do termo, e adquiri a qualidade de decisão interlocutória, recorrível por via de agravo.[153]
Destarte, também são irrecorríveis os atos de que trata o §4º do art. 162 do CPC, já que, em princípio, não devem causar lesão a qualquer das partes. Em termos práticos, este último texto esvaziou os atos ordinatórios que, procedentemente à sua edição eram praticados pelo juiz. Mas, seja ato praticado pelo juiz, com base no art. 504 do CPC, seja, ato “revisto” pelo juiz, conforme dispõe o §4º do art. 162 do CPC, se causarem gravame, comportam recurso de agravo. Nesse caso, consistirão em verdadeiras decisões interlocutórias.[154]
Nessa linha de entendimentos, uma vez desconsiderada a personalidade jurídica, emerge o interesse do sócio em recorrer, eis que seu patrimônio deverá responder, nessa hipótese, pela obrigação da pessoa jurídica. Com efeito, o sócio que terá seu patrimônio executado terá interesse em recorrer contra a decisão interlocutória de desconsideração de personalidade jurídica, na medida em que seu patrimônio estará prestes a sofrer os efeitos da penhora. Sobrevêm, nessa linha, o inequívoco interesse na interposição do recurso de agravo de instrumento.[155]
Nesse sentido, acrescenta Gilberto Gomes Bruschi, que pelo simples fato de que o juiz de 1º grau tomara posição favorável sobre o pedido de desconsideração, responsabilizando o réu pela obrigação e, como a próxima etapa é a penhora de seus bens, torna-se possível, como remédio preventivo, utilizar-se do agravo de instrumento para tentar fazer com que o tribunal reforme a decisão proferida no juízo monocrático, contando-se o prazo a partir da intimação da decisão ou, caso não seja intimado desse pronunciamento, a contar da intimação da penhora.[156]
Segundo Eduardo Arruda Alvim e Daniel Willian Granado, a regra hoje é a da interposição do agravo sob a forma retida. No entanto, o art. 522 do Código de Processo Civil estabelece três exceções expressas a essa regra: casos de risco de lesão grave e de difícil reparação, inadmissão de apelação, e quando a decisão agravada disser respeito aos efeitos em que a apelação tiver sido recebida.[157]
O rigor da lei poderá, no entanto, ser afastado, em homenagem ao principio básico da eficiência no processo, se no caso concreto o agravo pela forma retida não se apresentar, de forma alguma, como capaz de impedir o dano processual grave que a parte fundadamente alegue lhe haver sido imposto pela decisão, ou que desta decorra.[158]
Assim, sempre que o recurso de agravo retido se mostrar inadequado, como no caso de denegação de intervenção de terceiro e em outras hipóteses congêneres, a impugnação deve ser feita por agravo de instrumento. Desse modo, diante da inutilidade do agravo retido na hipótese de haver sido desconsiderada a personalidade jurídica, bem como diante da urgência premente do sócio em ter seus bens penhorados, mostra-se imperioso o cabimento do recurso de agravo, sob forma de instrumento nessa hipótese.[159]
É claro que a modalidade retida não poderá ser admitida, uma vez que, no processo de execução, não existe sentença propriamente dita, razão pela qual devem os sócios, no momento oportuno, interpor agravo de instrumento contra a decisão que desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade. Na fase de cumprimento de sentença, então, nem há que se falar em sentença.[160]
É importante ressaltar que a pessoa jurídica não tem legitimidade e interesse para recorrer da decisão que decretou a desconsideração da personalidade, eis que os efeitos da desconsideração atingirão o patrimônio do sócio ou do administrador responsável pela fraude ou pelo abuso de direito, e não o patrimônio social. No entanto, pode-se cogitar da possibilidade de outros sócios, que não praticaram a fraude ou o abuso de direito, em nome da sociedade, recorrer contra decisão que negou a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.[161]
Desconsiderar a personalidade jurídica significa a possibilidade de atacar o patrimônio dos sócios. Só isso e nada mais. Não existe, destarte, prejuízo algum para a pessoa jurídica. Portanto, tendo em vista a inexistência de prejuízo para a sociedade, não poderia ela recorrer de tal decisão, por ausência clara e evidente de interesse de recorrer. Neste sentido, ao admitir-se o recurso da pessoa jurídica, e não dos sócios atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica, está-se violando duas normas processuais de uma só vez, ou seja,as normas do art. 6º, bem como do art. 499 do Código de processo civil:[162]
“Art. 6º Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.
Art. 499 O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público.”[163]
Sendo assim, uma vez que a pessoa jurídica não tem bem algum afetado pela execução consumada, resta cristalino que ela não tem interesse de recorrer da decisão que aplica a desconsideração da personalidade jurídica, cabendo o manejo do agravo de instrumento, na devida oportunidade, exclusivamente aos sócios cujos patrimônios individuais serão atingidos.[164]
2.4. Possibilidade de ser declarada de ofício.
Na linguagem forense, a expressão “de ofício”, ou “por ofício”, entende-se como o que se faz ou se executa por iniciativa própria, sem pedido de alguém, somente por que se está a obrigação ou no dever legal de assim proceder.[165]
A questão da aplicação ex officio da teoria da desconsideração da personalidade jurídica recebe tratamento distinto nos artigos 28 do Código de Defesa do Consumidor e 50 do Código Civil de 2002, eis que neste somente se admite a aplicação da teoria quando houver requerimento do interessado ou do Ministério Público, quando couber sua intervenção no processo. No âmbito das relações de consumo, não há a mesma exigência, mesmo porque as normas constantes do CDC são de ordem pública e, portanto, o juiz poderá aplicar a teoria da desconsideração mesmo quando não houver requerimento do interessado ou do Ministério Público. Tal distinção se justifica devido à vulnerabilidade do consumidor.[166]
Parte da doutrina entende, que a desconsideração da personalidade jurídica, na busca pelos bens dos sócios, exige ação própria de conhecimento, não admitindo a Teoria Maior da desconsideração por despacho judicial em execução de sentença. Portanto, se o título é apenas em desfavor da pessoa jurídica, haveria a necessidade de manejar ação própria contra os sócios, para demonstrar a fraude ou abuso da personalidade jurídica.[167]
Segundo Fábio Ulhoa Coelho, simples despachos em processos de execução movidos contra a sociedade, determinando a penhora de bens dos sócios importam flagrante desobediência ao direito constitucional ao devido processo legal. Desta forma, com base no direito constitucional ao devido processo legal do sócio da sociedade limitada, deverá o credor social, promover a prévia ação de conhecimento, cita-lo, provar o pressuposto de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (fraude ou abuso de direito), obter sentença condenatória transitada em julgado para, somente depois, postular a penhora dos bens do patrimônio do membro da pessoa jurídica.[168]
O Judiciário não pode simplesmente dispensar o prévio título executivo judicial, para fins de tornar efetivo qualquer tipo de responsabilização contra sócio ou administrador de sociedade empresaria. Ainda que o pressuposto da teoria da desconsideração não fosse a fraude, mas a mera insatisfação do credor social, isso não alteraria em nada a discussão dos aspectos processuais da aplicação da teoria.[169]
De outro lado, há corrente doutrinária na linha de que a desconsideração da personalidade jurídica prescinde de ajuizamento de uma nova ação. Isso não quer dizer, todavia, que o contraditório daquele em detrimento do qual houve a desconsideração não deva ser exercido.[170]
Nesta corrente, alguns doutrinadores entendem que, em busca de uma maior celeridade processual e conseqüente efetividade jurídica, em se demonstrando a existência de fraude ou abuso por parte de sócios, administradores ou diretores de uma sociedade, deveria o magistrado desconsiderar a personalidade jurídica no próprio processo, por intermédio de uma decisão interlocutória simples.[171]
Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, não se deve restringir a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ao processo de conhecimento. Deve-se, obviamente, dar oportunidade ao possível atingido pela aplicação da teoria da desconsideração, de produzir sua defesa com os recursos a ela inerentes, assegurando o contraditório. Assim, o raciocínio deve ser muito parecido com o tratamento normativo dado à fraude à execução, inclusive em razão da natureza jurídica de ambas ser idêntica no que tange à atuação no plano da eficácia.[172]
Desta forma, não há que se falar em violação do contraditório ao desconsiderar a personalidade jurídica por decisão interlocutória, já que este será postergado para o momento em que o terceiro se rebele contra tal pronunciamento judicial.[173]
Para Deonísio Kosh, instaurar outro processo de conhecimento seria fomentar as razões protelatórias da prestação jurisdicional, porque, nesse caso, o processo principal ficaria aguardando o resultado da decisão com relação à legalidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, para somente então dar-se-lhe prosseguimento. Porém, se o argumento para instaurar esse processo incidental for a obrigatoriedade de oferecer ao acusado o direito à ampla defesa, deve-se lembrar que o direito ao contraditório é um primado do nosso sistema jurídico e deve ser ofertado ao acusado sempre que contra ele pesar uma acusação, de modo que, mesmo que a decretação da desconsideração da personalidade jurídica ocorra no processo, será oportunizado, à parte chamada ao processo, o direito ao contraditório.[174]
Tal se justificaria, pois, se o juiz determinasse a propositura de uma ação cognitiva própria para que se pudesse decidir pela desconsideração, estaria proporcionando mais tempo útil para a prática de novos atos ilícitos, prejudicando, conseqüentemente, o rápido andamento processual, o próprio princípio da instrumentalidade do processo e, por fim, o terceiro de boa fé, prejudicado pelo mau administrador.[175]
Conforme explica o doutrinador Amador Paes de Almeida, a desconsideração da personalidade jurídica, diante do preceituado pelo Código Civil de 2002, assume o caráter de natureza incidente e, como tal, é resolvida por decisão interlocutória, portanto, esse característico não implica, por si só, desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório, do devido processo legal e outros, mas a sua aplicação prática demanda estrita obediência a tais princípios.[176]
Ademais, muitos entendem que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser invocada a qualquer tempo, como meio de defesa autônoma ou não, desde que obedecidos os seus pré-requisitos legais.[177]
A desconsideração da personalidade pode, ainda, ser aplicada como incidente na execução. Cuida-se de incidente no curso do processo, resguardando o devido processo legal em defesa da segurança jurídica, sem desrespeitar, da mesma forma, os princípios processuais da celeridade e instrumentalidade.[178]
Como já é sabido, o pressuposto da fraude pode não ser conhecido pelo credor no momento da propositura da ação de conhecimento. Assim, é provável que somente com o desenvolvimento do processo seja descoberta a fraude ou o abuso praticado, momento em que deve ser admitido o pedido para aplicação da teoria da desconsideração. Para tanto, será imprescindível a citação do sócio ou do administrador responsável pela fraude ou pelo abuso, seja em processo cognitivo autônomo ou em incidente processual no interior da fase de execução, assegurando-lhe a ampla defesa com todos os meios a ela inerentes.[179]
Não há, até agora, regulação processual da matéria. Da falta resultou, em muitos casos, a violação do princípio do devido processo, com determinação, às vezes de ofício, de “redirecionamento” da execução contra o sócio, chamado a opor os seus embargos, sobre ele recaindo o ônus da prova. Não raro, desconsideraram-se os pressupostos legais e doutrinários da desconsideração, decretada pela simples constatação de não haver a sociedade indicado bens à penhora.[180]
2.4.1 Ponderação da necessidade do contraditório quanto à decisão que determina a desconsideração da personalidade jurídica.
O contraditório, conforme dispõe o art. 5º, inciso LV da Constituição Federal de 1988[181], é um princípio constitucional que assegura a toda pessoa, uma vez demandada em juízo, o direito de ampla defesa da acusação ou para proteção do seu direito.[182]
Importante referir, que em uma sociedade democrática, deve prevalecer a idéia de que processo é instrumento para busca da verdade e garantia de decisões justas. Para tanto, as partes envolvidas no litígio devem ter o direito de que suas pretensões sejam analisadas de forma igualitária, para que tenham chances iguais de satisfação.[183]
Nesse contexto, todo aquele que alegar fatos constitutivos de seu direito tem o dever de prová-los. Caso contrário, sua pretensão deduzida em juízo será fatalmente repelida por absoluta ausência de provas.[184]
O Supremo Tribunal Federal, exercendo o papel de concretizador dessas garantias, tem admitido em sua jurisprudência[185] que o princípio do contraditório envolve não apenas o direito de intimação e de manifestação da parte no nosso processo, mas também o direito de ter argumentos contemplados pelo órgão judicial.[186]
Para Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, o conteúdo mínimo do princípio do contraditório não se esgota na ciência bilateral dos atos do processo e na possibilidade de contradita-los, mas faz também depender a formação dos provimentos judiciais da efetiva participação das partes.[187]
Leciona Nelson Nery Júnior, que, todos aqueles que tiverem alguma pretensão de direito material a ser deduzida no processo têm direito de invocar o princípio do contraditório em seu favor. Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis.[188]
Segundo explica Rafael Lovato, mais cautelosamente do que na Teoria Maior, deverá, sempre, a desconsideração da personalidade jurídica por meio da Teoria Menor, ser precedida de processo judicial de conhecimento. Sendo assim, não se pode cogitar a desconsideração, seja qual for, sem antes amplamente se por à disposição do devedor o direito à ampla defesa e ao contraditório, direitos esses de cunho constitucional.[189]
A grande questão que se coloca é quando o juiz, após requerimento do exeqüente ou do Ministério Público, decide pela desconsideração da personalidade jurídica, sem antes abrir espaço para a participação em contraditório dos sócios ou administradores. Porém, mesmo nessa hipótese, não há, necessariamente, ofensa à garantia do contraditório, que somente estaria configurada em caso de recusa ou omissão do juiz em apreciar a defesa do executado.[190]
Ao executado, sendo cientificado do seu ingresso na execução através da intimação para o cumprimento da sentença, será possível, se assim o preferir, através de simples petição nos autos do procedimento, expor e demonstrar ao juiz que os requisitos da desconsideração da personalidade não estariam presentes. A petição assim formulada pelo sócio ou administrador da pessoa jurídica constitui uma das formas do exercício da pretensão à tutela jurídica e precisará ser apreciada pelo juiz da execução, em conformidade com o art. 5º, LV da Constituição Federal de 1988. A defesa exercida nesses moldes constitui modalidade de exercício do contraditório.[191]
Importa ressaltar que o devido processo legal representa garantia fundamental de extrema importância para os cidadãos, abrangendo o direito ao procedimento adequado que deve ser conduzido sob o influxo dos princípios do contraditório e da ampla defesa.[192] Conforme podemos verificar no julgado abaixo:
“EMBARGOS À EXECUÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA. DESCONSIDERAÇÃO DAPERSONALIDADE JURÍDICA PARA ATINGIR EMPRESA QUE NÃO FOI PARTE NAAÇÃO ANTERIOR. IMPOSSIBILIDADE. Nula, a teor do artigo 472, CPC, a decisão que estende a coisa julgada a terceiro que não integrou a respectiva relação processual. A desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que reclama o atendimento de pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros, o que deve ser demonstrado sob o crivo do devido processo legal. Recurso especial conhecido e provido”.[193]
O devido processo legal que se espera, impõe que o juiz , ao receber as alegações de um determinado credor de que deve ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica normal ou inversa, profira decisão muito bem fundamentada a esse respeito, acolhendo ou rejeitando tal pedido. Se rejeitar, cabe ao credor a interposição de agravo de instrumento, mas, se aceitar, deverá mandar citar os terceiros para que, na qualidade de responsáveis executivos secundários, venham integrar o pólo passivo do processo de execução.[194]
Portanto, se ao exeqüente é permitido suscitar, na fase de cumprimento de sentença, a questão da responsabilidade patrimonial dos sócios ou administradores da pessoa jurídica como decorrência da disregard doctrine, nada impede que o magistrado ouça parte contrária antes de proferir sua decisão e, em assim sendo, não estará desnaturando o procedimento executório, que prosseguirá, após a resolução do incidente, com a prática de atos materiais destinados a satisfazer o crédito do exeqüente, atingindo bens da pessoa jurídica, ou, se acolhida argüição da parte ou do Ministério Público, atingindo também os bens dos sócios ou administradores.[195]
Nesse sentido, o contraditório e a ampla devesa devem ser oferecidos, considerando que a superação da personalidade jurídica implica em acusação contra pessoa uma física que teria se utilizado da pessoa jurídica para praticar fraudes ou abuso de direito, com o objetivo de lesar terceiros. Desta forma, em se tratando de acusação, necessário se faz oferecer a oportunidade de ampla defesa.[196]
O fato de o contraditório ser postergado, ou seja, primeiro o juiz desconsidera a personalidade e somente depois o novo executado se defende, não significa eliminação da garantia constitucional. Apenas o exercício da ampla defesa diferido para um momento imediatamente posterior ao da prolação da decisão. Como o ato decisório não ostenta as marcas definitivas, sendo, ao contraditório, revogável a qualquer tempo, nada impede que o juiz leve em consideração e aprecie os argumentos da parte adversa depois de tomar sua decisão em juízo de cognição sumária, apreciando os fundamentos apresentados pelo executado, se convença da necessidade de revogar a decisão que desconsiderou a personalidade jurídica.[197]
É nestes termos que não se pode dizer, categoricamente, que a decisão sobre a desconsideração da personalidade jurídica, tomada sem prévia ouvida da parte interessada (sócios ou administradores da pessoa jurídica) na execução, esteja sempre e necessariamente em contraposição à garantia constitucional do contraditório.[198]
2.4.2 Análise e previsão do instituto no Projeto do Novo Código de Processo Civil.
Um dos grandes problemas atinentes à desconsideração da personalidade jurídica, é no que diz respeito às regras sobre o seu procedimento.
Vale lembrar, que dos principais dispositivos que tratam do instituto da desconsideração, diga-se, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC/2002, o mais antigo possui vigência desde 1990. No entanto, o Código de Processo Civil vigente, foi instituído em 1973, e por óbvio está desatualizado no que tange à regulação da aplicabilidade da teoria da desconsideração.
Talvez esse seja um dos principais motivos de tamanha divergência da doutrina e jurisprudência a respeito do assunto.
Neste sentido, reiteradas decisões do STJ sufragam a desnecessidade da propositura de ação autônoma com o fim de que se declare a extensão da responsabilidade pelas obrigações da pessoa jurídica ao sócio[199]. Oportuno mencionar que o STJ também perfilha o entendimento de que a desconsideração da personalidade jurídica, ainda que efetivada dentro de um único processo, não prescinde do regular exercício do contraditório[200]. Parece ser essa inclusive, a diretriz adotada no Projeto de Lei n. 166 de 2010, do Senado Federal, também conhecido como o Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil.[201]
O referido projeto de lei regula o procedimento, exigindo iniciativa da parte, ou do Ministério Público, quando necessário, cabendo ao juiz, verificando a ocorrência dos pressupostos legais, decretar a extensão da responsabilidade aos bens dos administradores ou dos sócios.[202]
Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em demanda autônoma, representa traço marcante da segurança jurídico-processual, objetivando comprovar os requisitos autorizadores da superação da autonomia patrimonial, preservando e assegurando a aplicação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.[203]
De acordo com o que nos ensina Fábio Ulhoa Coelho, será sempre inafastável a exigência de processo de conhecimento para que participe, no pólo passivo, aquele cuja responsabilização se pretende, seja para demonstrar sua conduta fraudulenta (se prestigiada a formulação doutrinária da teoria), seja para condena-lo, tendo em vista a insolvabilidade da pessoa jurídica (pressuposto dos que aplicam incorretamente a teoria).[204]
Segundo Jose Maria Tesheiner, para se desconsiderar a personalidade jurídica, existem dois modelos processuais básicos: o da fraude contra credores e o da fraude de execução. O primeiro exige ação, recaindo sobre o autor o ônus da prova do suporte fático, isto é, dos fatos constitutivos. O segundo dispensa ação e supõe comprovação de plano de fatos certos. O Anteprojeto adota uma forma simplificada do primeiro modelo. Exige ação, mas incidental, e a citação obedece às formalidades das intimações. Para responder, o prazo é de 15 dias.[205]
Neste sentido, o Anteprojeto do novo Código de Processo Civil, adota expressamente o regime do Código Civil de 2002, para a desconsideração da personalidade jurídica, que deverá ser declarada incidentalmente no processo de conhecimento, de modo que possa viabilizar o alcance patrimonial dos sócios na fase de cumprimento de sentença. No entanto, antes de qualquer ato constritivo, deverá ser assegurado o direito ao contraditório.
Conforme os artigos 62 a 65 do aludido Projeto de Lei, que serão elencados a seguir, a desconsideração da personalidade jurídica dispensará o ajuizamento de ação autônoma, de modo que também deverá ser respeitado o regular exercício do contraditório:[206]
“Art. 62 Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica.
Art. 63. A desconsideração da personalidade jurídica obedecerá ao procedimento previsto nesta Seção.
Parágrafo único. O procedimento desta Seção é aplicável também nos casos em que a desconsideração é requerida em virtude de abuso de direito por parte do sócio.
Art. 64. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.
Art. 65. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.”[207]
De acordo com Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, é positiva a previsão pelo Projeto do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, pois trata-se de medida que visa a resguardar o direito ao contraditório daqueles que podem ter as suas esferas jurídicas afetadas por decisão judicial a cujo respeito não tiveram a oportunidade de influir na formação.[208]
Com relação ao artigo 62, pode-se dizer que o alcance da teoria da desconsideração da personalidade jurídica sofre uma redução. Isto porque prescreve a aplicação do referido artigo apenas aos casos de abuso da personalidade jurídica quando, segundo a legislação brasileira, nem todos os casos em que a teoria é aplicada decorrem de abuso da personalidade.[209]
Desta forma, pode-se dizer que o anteprojeto silencia no que diz respeito aos pressupostos da fraude e da confusão patrimonial, bem como da insatisfação de créditos de terceiros.
O parágrafo único do artigo 63 determina a observância do mesmo procedimento nos casos da chamada desconsideração inversa, em que o patrimônio da sociedade é que passa a responder por dívida do sócio. Isso ocorre, por exemplo, no Direito de Família, quando um dos cônjuges utiliza o biombo de uma sociedade para distrair bens da comunhão.[210]
Assim, é notório que em qualquer das hipóteses há abuso de direito cometidos pelo sócio ou administrador, a diferença entre as duas acepções reside no fato de que, na modalidade inversa o sócio ou administrador se utiliza da pessoa jurídica para se esquivar de obrigações próprias, confundindo seu patrimônio pessoal com o social. Na segunda hipótese, o sócio ou administrador torna-se credor da sociedade com o objetivo de se beneficiar caso a pessoa jurídica venha a se tornar insolvente.[211]
Evidente é a preocupação do novo diploma processual, em garantir o contraditório prévio aos sócios no próprio processo satisfativo, adotando um incidente prévio para a manifestação dos sócios antes da constrição dos bens.[212]
No entanto, o parágrafo único do artigo 63 do anteprojeto, nada mais é do que a repetição do dispositivo anterior. Melhor seria se a redação fosse no sentido de estipular diretamente que o incidente de desconsideração também é aplicável nos casos de desconsideração inversa. De qualquer forma, louvável é o objetivo do legislador ao estender aplicação do incidente também aos casos de desconsideração inversa.[213]
No tocante ao artigo 64, ao utilizar o termo “intimação” ao invés de “citação, nota-se que o legislador objetiva dar maior efetividade e celeridade ao processo, uma vez que ao se falar em citação, o processo obrigatoriamente deve ser suspenso até que a parte citada seja encontrada. Contudo, melhor seria se as partes não integrantes no feito fossem citadas, de tal forma que se permita garantir o direito ao devido processo legal às partes e ao mesmo tempo buscar a efetividade e celeridade do processo.[214]
Finalmente, no que diz respeito ao artigo 65, o anteprojeto coloca um fim a uma longa discussão doutrinária que divergia entre a necessidade de uma ação autônoma ou um incidente processual para que se opere a desconsideração. Como o próprio título já diz, trata-se de um incidente, logo não necessitará de ser autuado de forma apartada dos autos principais, devendo ser decidido , via de regra, por decisão interlocutória, impugnável através de agravo de instrumento.[215]
O referido projeto foi entregue ao Senado em junho de 2010. Após analisar 106 emendas de senadores, 667 sugestões populares recebidas pela internet, 58 projetos de lei que tramitavam no Senado visando modificar o atual código, e, documentos enviados por universidades, tribunais e outras instituições de direito, foi aprovado pela comissão especial, em novembro de 2010, o relatório do senador Valter Pereira sobre o novo texto do Código de Processo Civil. O documento recebeu alterações, aumentando o número de artigos para 1008, contra os 970 artigos existentes no Anteprojeto originariamente apresentado. O relatório apresentado como o substitutivo ao projeto foi apreciado pelo Plenário do Senado Federal e votado em três turnos. Na noite do dia 15 de dezembro de 2010, foi aprovado o projeto de lei que altera o código de processo civil. Como não houve apresentação de emendas, a matéria foi automaticamente considerada aprovada no turno suplementar que foi realizado na mesma noite, uma vez que os interstícios foram dispensados.[216]
Com a nova alteração, os dispositivos referentes ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, compreendem os arts. 77 a 79, conforme segue:
“Art. 77 Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.
Parágrafo único. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica:
I – pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio;
II – é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial.
Art. 78. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão citados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.
Art. 79. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.”[217]
O Projeto de Lei, que recebeu o nº 8046/10[218], que disciplina o Código de Processo Civil, aguarda votação na Câmara dos Deputados. O último despacho proferido pela Mesa Diretora da Câmara foi no sentido de enviar cópias do Projeto de Lei para os Deputados analisarem e tomarem conhecimento do mesmo, para que em futura sessão possa ser discutido.[219]
Referente a esta última alteração, Misael Montenegro filho, explica que a comissão responsável pela elaboração do novo CPC importou para a lei adjetiva normas presentes no Código Civil de 2002. No entanto, não há novidade no que toca ao instituto, que originariamente pertence ao direito material, haja vista que a definição de sua natureza jurídica e da sua processabilidade são fundamentais do ponto de vista processual, contribuindo para dissipar divergências doutrinárias e jurisprudenciais. [220]
O referido Projeto de Lei, desta forma, tornará lei expressa aquilo que já vem sendo decidido pelos tribunais. Salutar, nesse sentido, a inclusão do procedimento da desconsideração da personalidade jurídica no corpo do Projeto de Lei do Novo Código de Processo civil.[221]
Conclusão
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica é um tema que tem gerado bastante polêmica, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
Devemos lembrar que a disregard doctrine é uma construção jurisprudencial que visa negar a autonomia absoluta da personalidade jurídica quando esta serve de meio para fraudar terceiros.
No entanto, ao contrário do que muitos pensam, o instituto da desconsideração não vem para acabar com o princípio da autonomia patrimonial, e sim fortalece-lo, haja vista que algumas sociedades, ou pessoas se aproveitando da condição de sócios majoritários daquelas, agem de má fé, em nome da pessoa jurídica, na intenção de buscar o enriquecimento ilícito, e muitas vezes agindo de forma abusiva com relação aos seus credores.
No entanto, para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica existem algumas regras, que, inclusive, divergem na doutrina.
Alguns doutrinadores classificam a teoria por “teoria maior” e “teoria menor”. Os que são adeptos da teoria maior, dividem esta em duas partes: Teoria maior subjetiva e Teoria maior objetiva.
Na teoria maior subjetiva, os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, são a fraude e o abuso de direito.
De outra forma, na teoria maior objetiva, o pressuposto para a desconsideração estaria ligado à confusão patrimonial. Neste sentido, a teoria maior objetiva seria muito parecida com o que é chamado pela doutrina de “teoria da desconsideração inversa”, que é aplicada geralmente em casos de separação e divórcio, onde um dos cônjuges usa a pessoa jurídica para camuflar seus bens, não deixando de ser também uma confusão patrimonial, mas nesse caso, a desconsideração ocorre de maneira inversa.
Cabe referir, que na teoria maior da desconsideração, na sua aplicação, usa-se como dispositivo legal, o artigo 50 do Código Civil Brasileiro de 2002.
Por outro lado, a teoria menor da desconsideração, parte da idéia de que a simples insolvência por parte da pessoa jurídica, já seria motivo da desconsideração da personalidade jurídica.
Também existe uma grande parte da doutrina que acredita ser, a teoria menor a mais adequada ao nosso ordenamento jurídico, para tanto, utilizam como dispositivo principal para sua aplicação, o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, mais precisamente em seu parágrafo 5º. A aplicação da teoria nesta forma, se justifica pelo fato da existência de uma fragilidade por parte do consumidor, na idéia de que a lei serve para proteger os mais fracos.
É nesse sentido que parte da doutrina classifica a teoria menor como sendo a aplicação incorreta da desconsideração da personalidade jurídica, com a justificativa de que se deve ter mais cautela na aplicação da mesma, no intuito de dar maior proteção ao princípio da autonomia patrimonial.
Cabe salientar, que ambas as teorias surgiram em nosso ordenamento jurídico a fim de preservar o instituto da pessoa jurídica, na tentativa de coibir atos fraudulentos.
Portanto, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não resolve o problema da insolvência, mas ajuda na garantia dos créditos processuais em situações onde a empresa devedora age utilizando-se de fraude e, ou abuso de direito.
Parte da doutrina entende que se faz necessária ação autônoma para a discussão acerca da desconsideração, haja vista que devem ser garantidos os princípios do contraditório e da ampla defesa, por outro lado, alguns doutrinadores acreditam ser melhor a desconsideração por via de decisão interlocutória, pelo fato de dar mais agilidade ao processo, inviabilizando, assim, a chance do devedor camuflar ainda mais seus bens, tendo ainda garantido a possibilidade do contraditório e da ampla defesa através do recurso de agravo de instrumento.
Este segundo entendimento é o que está mais adequado ao Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, haja vista que este prevê a possibilidade de se instaurar o incidente de desconsideração, cuja decisão tem caráter interlocutório, recorrível por via de agravo de instrumento.
Com isso, pode se concluir que se faz necessário um tratamento legislativo específico do aspecto processual deste instituto, uma vez que a Pessoa Jurídica necessita, também, de segurança jurídica, e, portanto, deverá ser respeitado o princípio constitucional referente ao contraditório e ampla defesa, assegurado pelo art 5º, LV da Constituição Federal.
Informações Sobre o Autor
José Mogar Ferreira Júnior
Estudante de Direito.