Justiça restaurativa e crimes vagos: uma análise casuística

Resumo: Diante da ocorrência de uma prática delitiva e da possibilidade de aplicação de medidas restaurativas, é mister identificar a figura ofendido, para que se possa tentar uma conciliação/mediação com fulcro na reparação do dano causado, como solução do conflito intersubjetivo instalado pelo crime. Assim, o objetivo precípuo desta faina é promover breve análise acerca do pólo passivo da relação penal, cotejando-o com alguns delitos em que não seja prévia e determinadamente delimitada  a figura da vítima.


Palavras-chave: Justiça restaurativa; Reparação; Crimes vagos.


Abstract: against the occurrence of a wrongful behavior and possibility of application of restorative justice, identify the party aggrieved is essential, to try conciliation/mediation objecting repair the damage, as solution for intersubjective conflict created by the crime. Therefore, the preciput purpose of the present paper is foment perfunctory research of the defendant in criminal offense relation, comparing with some crimes that is not possible previously indentify the wronged party.


Keywords: Restorative justice; Reparation; Vague crimes


Sumário: 1. Aspectos Introdutórios 2. Reparação da Vítima e Crimes Vagos 2.1 Lei de Drogas (Lei 11.343, de 2006) 2.2. Calúnia e Denunciação Caluniosa 3. Considerações Finais


1. Aspectos Introdutórios


Não é preciso ser um grande estudioso do Direito Penal, ou da Criminologia Crítica, para constatar a presente falência da atual sistemática punitiva, na qual o Estado tem exercido o seu jus puniendi de forma bem ampla sem alcançar resultados minimamente satisfatórios[1]. Diante de tais verificações, imperiosas se fazem modificações para que se possa reajustar a finalidade sancionatória aos seus lídimos objetivos preventivos, como forma de não se deslegitimar o exercício de tal poder pelo ente estatal, efetuando a punição sem que seja alcançada a pacificação do meio social.  É, com esta visão, que se faz necessário o uso de instrumentos outros, como forma de alcançar a tão desejada paz jurídica[2].


Assim, faz-se mister colacionar o entendimento recente e progressivo de uma justiça restaurativa[3], que busca solucionar e abrandar as mazelas causadas por conta do cometimento de uma conduta delituosa, em vez de, unicamente, arquitetar o ideal punitivo, com viés estritamente retribucionista.


Ao fazer uso deste novo instrumento direcionado para uma conciliação[4] e reparação do dano, podem-se alcançar resultados muito mais positivos e menos danosos ao corpo social, obtendo a satisfação não só da vítima, que se sentirá reparada pelo acontecimento sofrido, como, também, pela satisfação social de ser evitado o conflito de interesses intersubjetivos que podem perturbar o bem estar e a paz coletivos. O ofensor, por sua vez, se beneficia em ter que cumprir obrigações resultantes de um acordo, e não uma sanção penal, muitas vezes, coincidente com uma pena privativa de liberdade.


Contudo, devem ser criadas balizas e limites, pois não serão todos e quaisquer delitos que permitirão, satisfatoriamente, que seja posto, em prática, esse novo sistema em que se busca compatibilizar direitos fundamentais do sujeito ativo da conduta delituosa com a possibilidade de preterição dos meios processuais formais corriqueiramente utilizados, tendo-se em vista a finalidade precípua de promover a conciliação dos envolvidos e a reparação do dano causado, como, ainda, consagrar um instrumento processualístico menos gravoso para todos os envolvidos.


Um ponto importante a ser debatido, neste breve estudo, será quais atividades criminosas cabíveis de empreender este trabalho restaurativo, para que se tenha uma melhor, mais efetiva e até “divertida”[5] solução de conflitos, sem, todavia, ressalte-se, ter a pretensão de esgotar o tema.


Desta forma, não se pode afirmar, aprioristicamente, quais seriam os delitos para os quais seria possível fazer uso deste novel instrumento, mas intenta a presente pesquisa perquirir e questionar a aplicação deste sistema a infrações penais em que não se consegue, pelo menos, à primeira vista, identificar o sujeito passivo atingido, de forma determinada e bem delimitada. Destarte, será necessário trabalhar com certos tipos penais presentes no Código Penal e em algumas leis especiais para que se possa chegar à conclusão de ser admissível, ou não, a aplicação de procedimentos de Justiça Restaurativa ao que se convencionou denominar de crimes vagos.


2. Reparação da Vítima e Crimes Vagos


Inicialmente, é necessário trazer à baila o que a doutrina, costumeiramente, tem definido como crime vago, podendo ser considerado, segundo o escólio de Edgard Magalhães Noronha, aquele crime em que “[…] podem ser sujeitos passivos coletividades destituídas de personalidade jurídica, como a sociedade, o público, a família, etc. A tais delitos, os juristas germânicos denominavam vagos.”[6].


Com o hodierno avanço tecnológico e industrial é crescente a necessidade de tutela de bens jurídicos que ultrapassam a esfera do cidadão individualmente considerado, pois grassa no corpo social uma maior insurgência e alcance desses valores transindividuais[7], os quais devem ser objeto de tutela penal, mesmo que não seja fácil a identificação inicial de determinada pessoa que está sendo atingida ou lesada.


Diante de tal conceituação, e ao trabalhar com crimes vagos, constata-se que, em verdade, não se está diante de um crime que possua um sujeito passivo bem delineado, determinado, o que poderia colocar em dúvida a precisão e os possíveis resultados benéficos advindos da não utilização da persecução criminal formal, realizada mediante um processo penal.


 Assim, a insurgente questão seria como  poder-se-ia reparar a lesão ou perigo de lesão às vítimas desses crimes, uma vez que, nem mesmo se pode determinar, especificamente, quem são essas vítimas. Isso não impede, todavia, que seja feita uma breve análise acerca de alguns crimes previstos em legislações especiais, como forma de respaldar a ilação a que se chegará ao fim do presente artigo.


2.1. Lei de Drogas (Lei 11.343, de 2006)


Da nova “Lei de Drogas” serão utilizados, como emblemáticos exemplos, dois delitos apenas: o tráfico de drogas, previsto no art. 33, da referida lei, e a prescrição ou administração medicamentosa culposa da qual o paciente não necessite ou que seja administrada / prescrita em quantidade excedente. O primeiro tipo penal a ser levado em consideração é o seguinte:


“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:


Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.”


Com relação à tipificação criminal de tráfico de drogas, percebe-se que os bens jurídicos tutelado são a incolumidade e saúde públicas. Assim, quando um agente delitivo resolve praticar o tráfico de drogas, em qualquer de suas modalidades típicas, e o faz, não é possível visualizar, identificar, especificar, de forma determinada, quem é a vítima de tal crime.


Com isso, a saúde e a incolumidade pública são atingidas. A sociedade tem um bem jurídico de grande valor lesionado ou exposto a perigo de lesão e o Estado tem suas normas preceptivas desrespeitadas. Não se pode, todavia, selecionar “A Vítima” que sofreu a lesão a ser reparada e sem isso é dificultada a aplicação desta via alternativa para que não seja necessário o uso do aparato punitivo estatal formal. É neste sentido que pode ser apresentada a seguinte proposta:


“A Justiça Restaurativa propõe a participação dos afetados, direta ou indiretamente, na construção de soluções que atendam às necessidades surgidas do ato conflituoso. O agressor, a vítima e a comunidade, a partir de seus sentimentos e necessidades, assumem papeis determinantes na resolução dos conflitos.”[8] (Grifou-se)


Assim, como seria possível aplicar o procedimento restaurativo, o qual pressupõe voluntariedade, participação do agressor, da vítima e da comunidade, o reconhecimento e conscientização[9] do agente delitivo acerca do ato praticado, a demonstração dos sentimentos dos envolvidos[10] e a composição dos danos para que se alcance a reparação do mal que foi causado, se nem será possível identificar o sujeito que foi lesado? Para o caso de um pequeno traficante de drogas, poder-se-ia cogitar da presença de todos os moradores da localidade que se sintam atingidos pela conduta delitiva praticada.


Contudo, o mesmo não pode ser dito com relação a um grande mercador de tóxicos, que tenha atuação em todo o território nacional. Seria possível convocar todos os ofendidos para que assumam papeis determinantes na solução do conflito “a partir de seus sentimentos e necessidades”? A resposta a este questionamento mostra-se negativa. Com isso, resta flagrantemente dificultada a aplicação de procedimentos restaurativos a um delito de tal monta, pois não será possibilitado o diálogo, conforme se faz mister para que se possa ter:


“[…]um espaço de conversa que facilita às partes identificarem seus interesses e suas necessidades, para que, juntas, consigam encontrar maneiras criativas de lidarem com seus conflitos, favorecendo a transformação na forma como vêem o conflito e, conseqüentemente, a relação existente entre elas.”[11]


Desta forma, além de não ser possível efetuar a conciliação[12]. Poder-se-ia cogitar o uso de representantes estatais para que pudessem atuar no procedimento restaurativo. Todavia, este argumento resta enfraquecido diante da constatação de que tal comportamento iria terminar por trazer o foco do procedimento persecutório ao agente delitivo, de um lado, e o Estado, de outro, afastando-se, novamente, a vítima, a qual tem um papel de grande relevância para que se possa considerar que a medida restauradora possa ser considerada minimamente satisfatória.


Sobre o afastamento e falta de direito da vítima, ilustrativas são as palavras da Professora Doutora Selma Pereira de Santana[13]:


“[…] vale a pena chamar a atenção, ainda, para a circunstância de o Direito Processual Penal ter se preocupado, tradicionalmente, com os direitos de defesa do acusado, ficando renegados a um segundo plano os direitos da vítima.


De forma idêntica, o processo penal, desde as suas origens e em suas etapas de desenvolvimento, orbitou-se em torno da pessoa do delinquente e ateve-se, tão-somente aos direitos fundamentais do mesmo. No entanto, a vítima do delito precisa que se lhe reconheçam direitos, ao se ver envolvida num processo penal […]”. (Grifou-se)


Assim, seria colocado em um  segundo plano um dos aspectos positivos da Justiça Restaurativa, qual seja, o de  promover o que se denomina de “renascimento da vítima”, revendo a grande falha anterior de se alijar completamente esse sujeito que tem grande interesse no que se está a solucionar.


Com o uso de tal medida restauradora a crimes vagos, pode-se enfraquecer, novamente, este valor que está sendo duramente trazido à baila nesta nova forma de proceder e encarar as conseqüências da pratica delitiva. Como o sujeito passivo é indeterminado, somente fica visível e idealizado o sujeito passivo constante que é o Estado. Com isso, tem-se um temeroso retorno à anterior sistemática, onde a lide penal volta a ficar restrita ao sujeito ativo da conduta criminosa e o ente estatal, o quê desprestigia um dos aspectos positivos que se pretende ser introduzido pela via reparadora.


A conclusão que se pode chegar é a de que a justiça para a vítima e sua proteção devem ser pontos fulcrais que não podem ser negligenciados, jamais, para que não retorne ao procedimento comum que se está tentando evitar, para que seja possível minorar as conseqüências do ato delituoso, com o fim de restaurar a pacificação social, de forma menos gravosa possível.


Por fim, não se poderia deixar de referir que o delito de tráfico de drogas tem cominação abstrata de pena relativamente elevada, restando demonstrado que há uma grave lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico que merece uma tutela que não poderia ser afastada pelo mero pedido de desculpas, o reconhecimento do erro pelo infrator ou a reparação à vítima pelo pagamento de valores, ou outros expedientes já previstos e idealizados na justiça reparadora. Portanto, diante de todo o exposto, fica demonstrado que as práticas restaurativas não seriam cabíveis para crimes que tenham a mesma objetividade jurídica do tráfico de drogas ou que a ele seja assemelhado.


À guisa de conclusão, o mesmo raciocínio que foi desenvolvido para o delito de tráfico de drogas, acima abordado, pode ser utilizado para que se afaste o uso de Justiça Restaurativa a delitos como lavagem ou branqueamento de capitais, previstos na Lei 9.613, de 1998[14], ou para os crimes ambientais, tipificados na Lei 9.605, de 1998[15], às infrações penais tipificadas na Lei 10.826, de 2003 (Estatuto do Desarmamento), de alguns tipos penais presentes no Código Penal, dos quais podem ser utilizados como mero exemplo os Crimes contra a Paz Pública (art. 286: incitação ao crime; art. 287: apologia de crime ou de criminoso; e art. 288: quadrilha ou bando), dentre tantas outras condutas delituosas que poderiam ser aqui colacionadas, mas que não se coadunam com esta novel forma de pacificação social, por estar ausente a delimitação precisa da figura passiva que sofreu as conseqüências da prática criminosa.


Serão diversas as ilações ao analisar o tipo penal previsto no art. 38, da Lei de Tóxicos:


“Art. 38. Prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:


Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos) dias-multa.


Parágrafo único. O juiz comunicará a condenação ao Conselho Federal da categoria profissional a que pertença o agente”.


Como se pode perceber, além de, reflexivamente, lesar a incolumidade ou saúde públicas e descumprir uma norma positivada pelo ente estatal, fica evidenciado que há um sujeito passivo secundário determinado, que é o indivíduo / paciente que fez uso ou teve a ele administrada, pelo médico ou profissional da saúde[16], uma dose excessiva de medicamento, de forma culposa.


Fica evidenciado, pois, que os anteriores problemas e dificuldades apresentadas na tipificação do tráfico de drogas ficam superados, porque se pode, facilmente, concluir que, diante de um sujeito passivo secundário delimitado, seria possível trazê-lo a um encontro conciliador, onde seria possibilitado ao médico ou profissional de saúde tentar restaurar a conduta criminosa anteriormente praticada.


Ao proceder de tal forma, pode-se considerar que estariam sendo relativizados os interesses do sujeito passivo constante – o Estado – que foram atingidos pela prática da infração penal. Assim, ao oferecer tal tratamento, estar-se-ia tornando disponível tal interesse com a conseqüente mitigação da persecução penal formal. Contudo, ao proceder de tal forma, estaria sendo privilegiado o telos, a finalidade precípua para a qual a justiça reparadora tem sido idealizada: buscar o reequilíbrio das relações intersubjetivas lesadas pela conduta criminosa, praticada de forma mais benéfica a todos os envolvidos, sem que seja imposta uma pena stricto sensu. “Neste contexto, vislumbra-se a justiça com ênfase na reparação do mal proporcionado pelo crime, compreendido como uma violação às pessoas e aos relacionamentos coletivos, e não como uma ruptura com o Estado.”[17] (grifos no original)


Assim, o indivíduo que teve, para si, prescrita a medicação, poderá fazer parte das práticas restaurativas, sendo, claro e efetivamente possível que se promova uma conciliação e retorno ao status quo ante mediante dispositivos outros que não a instância punitiva formal pelo processo criminal.


Esta possibilidade de aplicação restauradora justifica-se, ainda, por se estar diante de uma conduta culposa, em que o agente não atuou com consciência e vontade de atingir um fim proibido, mas sim pelo mero descumprimento do dever de cuidado objetivo que a todos é imposto.


Isto não quer dizer que deva ficar sem ser alvo de reprimenda penal, mas a possibilidade de minorar as conseqüências de tal prática delitiva será de suma importância para que se possa impor uma obrigação sem que este gravame seja desproporcional ao que foi causado. Neste caso, até mesmo um mero pedido de desculpas ou o pagamento das despesas médicas e hospitalares decorrentes do ato culposo de prescrição medicamentosa – de ocorrência facilmente vislumbráveis e possíveis em um procedimento restaurativo –, terão eficácia e efetividade muito maiores do que a mera imposição da pena de detenção e a cobrança dos dias-multa legalmente previstos.


Com isso, será possível minorar as conseqüências da prática delituosa, sendo a restauração muito menos gravosa, pois não irá ocorrer ou, pelo menos, será evitada a estigmatização do autor da conduta criminosa, e mais benéfica ao sujeito passivo, uma vez que poderá sentir-se recompensado por ter sido feito o uso da via restaurativa, o quê não ocorreria pela aplicação da vetusta sistemática punitiva formal.


 A ilação a que se pode chegar é que, por meio dessa mudança de racionalidade, a qual se mostra extremamente benévola, trazendo possibilidades não previstas anteriormente, atinge-se melhor os fins preventivos do Direito Penal, que é tido como a forma mais violenta de intervenção estatal na esfera de direitos dos cidadãos.


Desta maneira, resolvem-se conflitos criminais, de forma mais vantajosa, não só para o infrator, mas, também, para o Estado – inclusive, com uma grande redução de custos de despesas que se fariam presente, caso fosse efetuada a processualística formal penal –, incluindo um maior foco na compensação e composição, reposição, retorno ao status quo ante daquele que teve a sua esfera de bens lesionada pela ocorrência do delito. Resolve-se, portanto, a lide criminal de uma forma vantajosa ao criminoso, ao Estado e ao ofendido, que passa a figurar como importante sujeito de direitos, não sendo mais esquecido ou desrespeitado na sua dignidade humana.


2.2 Calúnia e Denunciação Caluniosa


Como forma de respaldar o raciocínio que está sendo aqui desenvolvido, pode-se trazer o diferente tratamento dispensado, pelo ordenamento jurídico, a delitos que atinjam os interesses estatais, no caso de uma calúnia e de uma denunciação caluniosa, para comprovar e apresentar a distinção efetuada pelo legislador do Código Penal, ao menos, no que tange a possibilidade de retratação.


A calúnia – tendo em vista a posição topográfica e o tipo de ação penal que deve ser iniciada para a solução do conflito – está prevista em um capítulo dos crimes cometidos contra a pessoa, do Código Penal, onde estão presentes os crimes cometidos contra a honra do sujeito passivo. Por ser um crime comum, em regra, qualquer pessoa física[18] capaz poderá ser atingida pela prática de um ato caluniador. Diante de tal conduta criminosa e relevando o interesse majoritariamente privado que cerca o tema, o Código Penal possibilitou o uso, não só, da exceção da verdade (exceptio veritatis), como, também, da retratação do querelado.


Caso o caluniador se retrate, cabalmente, da calúnia, ficará isento de pena. Não é o foco aqui discutir acerca da natureza jurídica de tal instituto, mas, somente, relevar que o codificador pátrio possibilitou ao autor da conduta delituosa desdizer o que anteriormente afirmou, extinguindo a punibilidade, sem que seja necessária a concordância do ofendido. Faz-se mister salientar que tal retratação deverá ser cabal, ou seja, “[…] não significa apenas negar ou confessar a prática da ofensa. É muito mais. é escusar-se, retirando do mundo o que afirmou, demonstrando sincero arrependimento.”[19].


Tratamento diverso, e muito mais gravoso, é dispensado ao indivíduo que pratica uma denunciação caluniosa, o qual comunica às autoridades um crime que tem ciência da não ocorrência ou imputando a uma pessoa que saiba inocente, dando causa à instauração de algum procedimento persecutório formal.


O fato de ser um delito disposto nos capítulo dos crimes contra a Administração da Justiça, demonstra a maior gravidade de tal comportamento, recebendo uma sanção punitiva muito mais rigorosa. Além disso, não há a possibilidade de retratação praticada pelo sujeito ativo, o que releva o maior interesse estatal em promover os atos persecutórios, não dependendo de qualquer manifestação do ofendido, uma vez que constitui crime de ação penal pública incondicionada.


Em ambos os crimes anteriormente referidos – calúnia e denunciação caluniosa – malgrado possa ser identificada certa aproximação entre a conduta praticada pelo sujeito ativo, constata-se que o interesse lesado no primeiro é, primariamente, do particular e, no segundo, majoritariamente, do Estado, sem olvidar que este é sujeito passivo constante nos dois casos. Com isso, pode-se cogitar da não possibilidade de aplicação de procedimentos de justiça restaurativa ao crime que lesa a administração da justiça, uma vez que o sujeito passivo primário é o Estado, não sendo possível colocá-lo em uma mesa de conciliação para que sejam alcançados os misteres da prática restauradora, além de o interesse do particular atingido somente ocorrer, de forma secundária.


Assim, seria possível cogitar de certa aproximação entre o que ocorre com o crime de denunciação caluniosa e a prática do tráfico de drogas, onde o procedimento restaurativo não terá aplicação satisfatória, uma vez que não será possível atingir os objetivos, diante dos problemas anteriormente analisados.


De forma diversa, para o crime de calúnia, pode-se, facilmente, identificar e delimitar o sujeito passivo que sofre com a conduta delituosa praticada, sendo possível, em tese, haver a restauração e reparação do dano causado pela novel via reparadora, em vez de lançar mão dos procedimentos persecutórios penais formais, que terão não só uma eficácia menor, mas que não irá restaurar, de forma tão ampla, a paz social anteriormente atingida pela prática delituosa.


O tratamento diverso a ser dado aos dois delitos mostra-se comprovado pela possibilidade idealizada pelo codificador criminal ao possibilitar a este crime o instituto extintivo da punibilidade da retratação, o que não se mostra expressamente consagrado em caso de uma conduta criminosa de denunciação caluniosa. Isto comprova que o próprio Estado e legislador dão tratamentos diversos para crimes que tenham atingido bens diferentes, viabilizando uma via alternativa, somente, quando seria possível identificar, delimitar, determinar o sujeito passivo primário.


O mesmo raciocínio será empreendido quando se cogitar da prática do movimento de justiça restaurativa, sendo necessário perquirir casuisticamente da viabilidade, ou não, do procedimento, de acordo com a possibilidade, ou não, de determinação do sujeito passivo, para que seja plausível efetuar tais expedientes de reparação, o que não se mostrará minimamente viável quando se estiver diante de crimes vagos ou que atinjam, apenas, secundariamente interesses particulares.


3. Considerações Finais


Diante de tudo quanto foi exposto, pode-se chegar às seguintes ilações:


A. Restou devidamente comprovado que não será viável ou possível aplicar procedimentos de Justiça Restaurativa aos crimes definidos como vagos, uma vez que a ausência de delimitação na subjetividade passiva coloca em dúvida os resultados que possam vir a ser atingidos com o uso de tal via, deixando-se de aplicar e fazer uso da sistemática persecutória penal formal. Será mister a perquirição casuística e concreta, sem a qual não se pode visualizar, minimamente bem definido, um sujeito passivo determinado que tenha sofrido a atuação delituosa.


Como forma de comprovação, pode-se citar a ausência de determinação da subjetividade passiva no crime de tráfico de drogas e a identificação do ofendido no delito de prescrição/administração medicamentosa; além disso, pode-se aventar o respaldo legislativo do que se está a propor, identificando a existência da retratação no caso da calúnia e a impossibilidade de tal expediente na denunciação caluniosa, pois há um dano a um bem maior, coletivo, que transborda a pessoalidade, o indivíduo, lesando e onerando uma coletividade, o que não possibilita a reparação individualmente considerada.


B. A identificação do sujeito passivo determinado é conditio sine qua non para que se possa intentar o uso da via restauradora, sendo mister a análise tópica e casuística de cada delito, para que se possa intentar o uso desta via, da forma correta e adequada, à conduta delituosa que tenha sido praticada.


A utilização, na presente pesquisa, dos delitos de tráfico de drogas, prescrição medicamentosa culposa, calúnia e denunciação caluniosa, apenas, servem como baluartes do raciocínio que terá de ser desenvolvido, em cada caso concreto posto, para que seja possível a aplicação desta nova via para a solução de conflitos intersubjetivos de interesse que tenham violado preceitos penais.


C. A análise deverá ser efetuada de forma cuidadosa, casuística e bem acurada para que possa ser eficaz e devidamente utilizada esta nova via de Justiça, buscando-se a pacificação social, com conseqüências menos drásticas e gravosas para ofensor e com a reparação e inúmeros benefícios ao ofendido, sem que o Estado tenha de exercitar o jus puniendi, resguardando o poder punitivo estatal para as condutas que realmente tenham de ser séria e duramente reprimidas.




Referências bibliográficas:

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro V.1 – Parte Geral. 6ª edição. São Paulo: RT, 2006.


Notas:
[1] “Em nossos dias, converteu-se num autêntico lugar comum a alusão de que o Sistema da Justiça Penal se encontra em crise. A duração excessiva do processo penal, por exemplo, constitui uma das razões da atual insatisfação da opinião pública com o funcionamento do Sistema.” (SANTANA, Selma Pereira de. Justiça Restaurativa: A reparação como conseqüência jurídico-penal autônoma do delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 154)

[2] “No nosso entender, o direito penal não pode ter outra meta que não a de prover a segurança jurídica, posto que este deve ser o objetivo de todo o direito. […] A função de segurança jurídica não pode ser entendida, pois, em outro sentido que não o da proteção de bens jurídicos (direitos), como forma de assegurar a coexistência”. (grifos no original) (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro V.1 – Parte Geral. 6ª edição. São Paulo: RT, 2006. p 84)

[3] “Atualmente, […], surge uma nova proposta, consistente na justiça restaurativa, fundada basicamente na restauração do mal provocado pela infração penal. Essa vertente, parte da seguinte premissa: o crime e a contravenção penal não necessariamente lesam interesses do Estado, difusos e indisponíveis. Tutela-se com maior intensidade a figura da vítima, historicamente relegada a um segundo plano no Direito Penal.” (grifos no original) (MASSON, Cleber, Direito Penal Parte Geral Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Método, 2009. p. 527)

[4] “[…] entendemos Conciliação como uma prática que se desenvolve por meio de um terceiro, capacitado para tanto, o qual atua com o intuito de ajudar as pessoas a resolverem suas questões. O papel do conciliador é o de oferecer às partes possibilidades de soluções para seus conflitos. Sob esta nova concepção, a interferência do conciliador não se dá  sobre a vontade das partes, nem como julgamento de suas atitudes, mas como possibilidade de abertura de perspectivas.” (AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa: A Humanização do Sistema Processual como forma de Realização dos Princípios Constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 85 e 86)

[5] “Numa perspectiva de política criminal, diversão significa a eleição de uma ou mais opções que se destinem a prosseguir uma via exclusivamente desviada ao sistema de Justiça “oficial”, na prevenção, gestão e resolução de determinados factos penalmente relevantes. Significa que apesar de nos depararmos com a existência de condutas que perigam ou lesam determinados bens jurídicos fundamentais à convivência humana e donde resultam violações ao Direito constituído, o aparelho judiciário não perseguirá os suspeitos ou condenará os culpados e, como tal, não determinará penas nem reconhecerá direitos ou imporá deveres. Diversão surge, pois, como sinónimo de desjurisdicionalização em sentido amplo, abrangendo não só a transferência de competências de resolução de litígios para instâncias não judiciais, mas também a não submissão para estas últimas de questões que se mantenham à sua margem. (grifos no original) (FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: natureza finalidades e instrumentos. Coimbra editora: 2006. p. 27-28)

[6] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: 1º Volume – Introdução. Parte Geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 109.

[7] “Tendo-se como ponto de partida o critério da titularidade, […], os bens jurídicos podem ser individuais ou metaindividuais. Dos primeiros é titular o indivíduo, o particular que o controla e dele dispõe, conforme sua vontade. Têm caráter estritamente pessoal. Já os segundos – metaindividuais – são característicos de uma titularidade de caráter não pessoal, de massa ou universal (coletiva ou difusa); estão para além do indivíduo – afetam um grupo de pessoas ou toda a coletividade –; supõem, desse modo, um raio ou âmbito de proteção que transcende, ultrapassa a esfera individual, sem deixar, todavia, de envolver a pessoa como membro indistinto de uma comunidade.” (RÉGIS PRADO, Luiz. Curso de Direito Penal Brasileiro: Volume I – Parte Geral (arts. 1º a 120). 7ª edição. São Paulo: RT, 2007. p. 262)

[8] AGUIAR, Carla Zamith Boin. Op cit. p. 114.

[9] “A consciencialização implica numa mudança de atitudes, valorizando a participação activa dos sujeitos na busca de uma solução ao conflito” (FERREIRA, Francisco Amado. Op cit. p. 43) (grifou-se)

[10] “O processo restaurativo acontece por meio de encontros mediados por um ou mais facilitadores capacitados para tanto, que ajudam as pessoas a conversarem sobre seus sentimentos.” (AGUIAR, Carla Zamith Boin. Op cit. p. 115)

[11] Idem p. 99.

[12] “[…] conciliar significa uma ação  desenvolvida visando ao acordo, à harmonia, ao congraçamento.” (AGUIAR, Carla Zamith Boin. Op cit. p.85)

[13] SANTANA, Selma Pereira de. Op cit. p. 22.

[14] Os delitos de “Lavagem de Ativos”, branqueamento ou lavagem de capitais, seguem a sistemática de selecionar alguns delitos antecedentes para que possa ser possível o enquadramento nesta figura delituosa, aplicando uma pena relativamente alta em conseqüência da violação em cadeia do ordenamento jurídico: a prática criminosa anterior e a utilização dos proveitos de forma a dá-los aparência de licitude, o que confere uma maior gravidade a tal comportamento, o que afasta, de pronto, a possibilidade de uso da Justiça Restaurativa, como forma de solucionar os conflitos dele decorrente.

[15] Malgrado os crimes previstos na Lei 9.605, de 1998, em regra, não apresentem elevada cominação de penas, onde seria possível visualizar, em tese, a aplicação da via restaurativa, é importante salientar que o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável é um direito fundamental de terceira dimensão/geração, tendo destinatário transindividuais, não possibilitando o encontro e determinação especificada do sujeito passivo para que possam ser aplicados procedimentos restaurativos com a presença da vítima.

[16] Faz-se mister salientar que uma grande vantagem desta nova tipificação decorrente da Lei 11.343, de 2006, foi por fim às discussões acerca do sujeito ativo desta prática criminosa, que na legislação anterior possibilitava inúmeras discussões e dissensos doutrinários e jurisprudenciais, pois o art. 15, da Lei 6.368, de 1976, trazia um rol de profissionais que podiam praticá-la.

[17] MASSON, Cleber. Op cit p. 527.

[18] Não convém para o presente trabalho desenvolver teses e discussões acerca da possibilidade ou não da prática de uma conduta criminosa pela pessoa jurídica e o conseqüente cabimento de tal pessoa como sujeito passivo do crime de calúnia. Portanto, restringir-se-á a análise à pessoa física culpável, sobre a qual não recaem tais dúvidas e imprecisões doutrinárias e jurisprudenciais.

[19] CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: Parte Especial – Coleção Ciências Criminais V.3. Coord. Luiz Flávio Gomes; Rogério Sanches Cunha. 3ª edição rev., atual.e ampl. São Paulo: RT, 2010. p 99.


Informações Sobre o Autor

Daniel Melo Garcia

Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito


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