Resumo: O presente trabalho consiste na análise da prática administrativa da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária pelo descumprimento da função social da propriedade no seu aspecto ambiental, aqui nominada de função socioambiental, adotada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, órgão federal executor da reforma agrária, e dos avanços jurisprudenciais alcançados até o momento. Chegou-se à conclusão de que o princípio da função social da propriedade, mormente em seu aspecto ambiental, antes discutido somente no meio acadêmico, vem sendo adotado como fundamentação para decretação, pelo Poder Executivo, de imóveis rurais que, mesmo considerados produtivos do ponto de vista meramente economicista – alcance dos índices de produtividade – não utilizam de forma adequada os recursos naturais e não preservam o meio ambiente, o que tem sido corroborado pelo Poder Judiciário.
Palavras-chave: Desapropriação. Reforma agrária. Princípio da função socioambiental da propriedade. Prática administrativa. Jurisprudência.
Sumário: 1. Introdução. 2. A propriedade e sua função social. 2.1 Noções gerais. 2.2 Incorporação do princípio da função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. 3. O princípio da função social da propriedade na disciplina atual. 4. A fiscalização da função socioambiental pelo INCRA. 5. Aplicação no âmbito administrativo e judicial do princípio da função socioambiental. 6. Conclusões. 7. Referências.
1. Introdução
O presente trabalho consiste na análise da prática administrativa da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária pelo descumprimento da função social da propriedade no seu aspecto ambiental, aqui nominada de função socioambiental, adotada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, órgão federal executor da reforma agrária, e dos avanços jurisprudenciais alcançados até o momento. Para tanto, foi estruturado da seguinte forma: o primeiro capítulo apresenta noções gerais acerca do conceito de propriedade e da delimitação do princípio da função social da propriedade, seu surgimento e incorporação no ordenamento jurídico brasileiro. No capítulo segundo é analisado o princípio dentro da atual disciplina e, no terceiro, a efetividade da aplicação do princípio pelo órgão federal executor da reforma agrária. No último capítulo são apresentados casos em que o Poder Executivo e o Judiciário aplicaram o princípio da função socioambiental, declarando, via decretação, como de interesse social, imóveis que não atendiam o princípio da função socioambiental, ou julgando-os aptos à desapropriação sob este mesmo fundamento. Por fim, são apresentadas as conclusões decorrentes do presente trabalho.
2. A propriedade e sua função social
Na primeira parte deste capítulo apresentou-se uma noção geral acerca do instituto da propriedade e do surgimento do princípio da sua função social e, após, a sua incorporação no ordenamento jurídico brasileiro.
2.1 Noções gerais
A propriedade da terra, que aqui nos interessa, surgiu com o desenvolvimento da agricultura e da domesticação de animais, sendo, a princípio, coletiva, não importando o bem em si, mas tão somente os frutos por ele produzidos. Segundo Carlos Frederico Marés “a terra não era objeto de propriedade excludente, mas sim as coisas produzidas pelo ser humano ou por ele colhidas. A terra como objeto de direito de propriedade independente de criação ou uso é criação do capitalismo.” [1]
Muitos pensadores escreveram sobre a propriedade, suas limitações e sua superação, resultando nas mais diferentes escolas filosóficas. O princípio da função social, por sua vez, foi desenvolvido pelo filósofo Leon Duguit (1859-1928), inspirado no positivismo de Augusto Comte (1798-1857), para ser aplicado não somente à propriedade, mas também ao indivíduo[2]. Acerca do assunto, Guilherme Purvin de Figueiredo explicou:
“(…) Duguit sustenta que a propriedade não tem mais um caráter absoluto e intangível. O proprietário, pelo fato de possuir uma riqueza, deve cumprir uma função social. Seus direitos de proprietário só estarão protegidos se ele cultivar a terra ou não permitir a ruína de sua casa. Caso contrário, será legítima a intervenção dos governantes no sentido de obrigarem o cumprimento, do proprietário, de sua função social”.[3]
Esclareceu ainda que, a partir da segunda metade do Século XX, o conceito de função social de propriedade já havia sido alterado, em virtude, sobretudo, da influência do constitucionalismo de Weimar e da doutrina social da Igreja Católica. Sobre esta última, registrou:
“(…) Não há, porém, que se ignorar que a doutrina social católica ocupava-se, não de aspectos jurídicos ou econômicos relativos ao direito de propriedade, mas de valores morais, voltados à consciência do proprietário. Esta visão, de caráter ético ou metafísico, contribuiria tanto para a efetividade de um ordenamento positivo que cuidasse da regulamentação de um sistema que tivesse como base o princípio da função social da propriedade como também para desestruturar as articulações de forças sociais que visassem politicamente a redução de desigualdades sociais não resolvidas satisfatoriamente pela jurisdição.” [4]
Assim, temos que o princípio da função social da propriedade serve a dois propósitos aparentemente contraditórios, pois, ao mesmo tempo em que critica o caráter absolutista da propriedade privada, reafirma a garantia desse direito, na medida em que foi desenvolvido não para extinguir a propriedade, e sim para tornar possível a sua sustentação, num mundo em que os bens devem servir não somente ao seu proprietário, mas sobretudo à sociedade.
2.2 Incorporação do princípio da função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro
O princípio da função social da propriedade foi consagrado na legislação brasileira pela Lei n. 4.504/64, denominada “Estatuto da Terra”, que constituiu um marco no regime jurídico pátrio, por traçar toda a disciplina das relações jurídicas agrárias, ensejando o desenvolvimento deste ramo do direito no país, que até então só contava com a Lei de Terras, de 1850.
Os elementos que compõem a função social da propriedade da terra, quais sejam, o bem-estar dos trabalhadores e proprietários, a observância das leis trabalhistas, a produtividade e, o que será o foco do presente estudo, o seu aspecto ambiental, foram já elencados pela lei de 1964, que assim dispôs:
“Art.2º. É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam.”
A função social da propriedade alcançou status constitucional em 1967, sendo incluída como princípio da ordem econômica e social, in verbis:
“Art.157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: (…)
III – função social da propriedade.”
A Constituição de 1967 foi submetida à Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que alterou profundamente o diploma original, resultando praticamente na promulgação de uma nova Carta Política. Após a reforma constitucional, o direito de propriedade restou assegurado no art.153, § 22, ao tempo em que a função social foi transferida para o art.160, com uma pequena alteração no anterior texto do art.157, ficando com a seguinte redação:
“Art.160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento social e a justiça social, com base nos seguintes princípios: (…)
III – função social da propriedade.”
Apesar da edição de outras 26 (vinte e seis) Emendas Constitucionais no período compreendido entre 1974 e 1985, o art.160, acima transcrito, foi mantido até o fim do regime militar e a promulgação da Carta de 1988, pela Assembléia Nacional Constituinte.
3. O princípio da função social da propriedade na disciplina atual
A Constituição Federal de 1988 consolidou os princípios da propriedade e da função social da propriedade, incluindo-os nos Títulos II e VII, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” (art.5º, incisos XXII e XXIII) e “Da Ordem Econômica e Financeira” (art.170, incisos II e II), respectivamente. A inserção do princípio da função social dentre os direitos e garantias individuais representou uma inovação, uma vez que as Constituições precedentes tratavam-no apenas nos capítulos referentes à ordem econômica.
Mesmo estando assegurado no art. 5º da Constituição Federal, no capítulo intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, o direito à propriedade não pode mais ser tratado simplesmente como instituição do direito privado, em razão da subordinação do instituto ao cumprimento da sua função social.
Nessa perspectiva, José Afonso da Silva[5] registrou a importância da inclusão de tais princípios também no art.170, incisos II e III, porque, embora prevista entre os direitos individuais, a propriedade teve seu conceito e significado relativizado, não podendo mais ser considerado puro direito individual, uma vez que os princípios da ordem econômica são preoordenados visando atingir o objetivo traçado no caput do art.170: “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social“. A propriedade privada, dessa forma, tem que atender a sua função social, ficando vinculada à consecução deste princípio.
Neste sentido, temos que o diploma constitucional alterou o regime jurídico da propriedade privada ao subjugá-la ao cumprimento da função social. Porém, ao prever a indenização pela desapropriação em razão do descumprimento da função social (Títulos da Dívida Agrária para a terra nua e em dinheiro para as benfeitorias), reforçou o caráter patrimonial do direito de propriedade.
A Carta Política de 1988 inseriu também os elementos que perfazem a função social da propriedade rural, incluindo-os nos incisos do art.186, a conferir:
“Art.186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância dos disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
Os incisos deste dispositivo trazem os quatro elementos que, atendidos simultaneamente pela propriedade rural, indicam o cumprimento da função social. Assim, para se perfazer a função social — e ser assegurada a propriedade privada, de modo a impedir a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária — deve haver a presença de cada um desses quatro fatores: o primeiro ligado à produtividade (inc.I), o segundo ao meio ambiente (inc.II), o terceiro às relações de trabalho (inc.III) e o quarto ao bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (inc.IV). Estes elementos são considerados subfunções da propriedade e, presentes simultaneamente (exigência não prevista anteriormente pelo Estatuto da Terra), formam a função social da propriedade rural.
Com efeito, a redação do artigo 185, inc.II, ao estabelecer que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, aparentemente teria esvaziado o conteúdo do princípio da função social, uma vez que, nestes termos, a propriedade produtiva (que atendesse, portanto, somente ao inc. I do art.186) estaria imune à desapropriação-sanção, ainda que não cumprisse as demais especificações elencadas no artigo 186.
Esta polêmica foi muito bem tratada por Marcelo Dias Varella[6] (1998) que, utilizando-se das regras ensinadas por Noberto Bobbio, explicou os critérios para a superação da incompatibilidade entre os dois dispositivos constitucionais (art.185, inc. II e art.186). Desta feita, na linha da doutrina de Varella, adotamos o entendimento pelo qual as normas constitucionais devem ser interpretadas de forma a coexistirem no ordenamento jurídico, mantendo-se a aplicabilidade de ambos os artigos, o que resultaria numa antinomia apenas aparente. Assim, para ser considerada produtiva (na forma do art.185, inc. II), a propriedade deve, além de ser produtiva (no sentido puramente economicista – inc. I, do art.186), observar os outros três critérios impostos para o cumprimento da função social da propriedade, atendendo ao meio ambiente, possuindo boas relações de trabalho e promovendo o bem-estar social.
A Lei nº 8.629/93, a par de regulamentar os artigos 184 a 191 do atual texto maior, implementou as regras que são observadas pelo Poder Público para instruir o processo administrativo de desapropriação, denominado na doutrina de “fase declaratória“, que se encerra com a publicação do Decreto Presidencial que declara o interesse social sobre o bem, sendo a “fase executória“, geralmente judicial, regida pela Lei Complementar nº 76, de 06 de julho de 1976 (alterada pela Lei Complementar nº 88, de 21/12/1996), que instituiu o rito sumário de que trata o §3º, do art.184 da CF/88.
Em relação à legislação infraconstitucional, é interessante registrar também que o Código Civil de 2002, ao tratar do direito de propriedade, apesar de manter no artigo 1228 o clássico civilista “usar, gozar e dispor“ (substituindo o “direito de“, do art. 524 do diploma de 1916, pela “faculdade de“), inseriu no seu parágrafo primeiro, que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de acordo com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada poluição do ar e das águas”.
Desta maneira, o novo diploma civil, mesmo não se referindo expressamente à função social, vinculou o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais, combinada com a preservação do meio ambiente, com observância do quanto estabelecido em lei especial — no caso, a legislação ambiental.
Tal dispositivo tem uma enorme significação no regime jurídico brasileiro por ter sido incluído dentro da legislação civilista, que tradicionalmente exalta o caráter privatista do direito de propriedade, tornando explícita a subordinação do direito de propriedade à preservação ambiental e ao equilíbrio ecológico, em clara obediência à função socioambiental da propriedade prevista no art. 186, inc. II, da Carta Política vigente.
4. A fiscalização da função socioambiental pelo INCRA
Mesmo com a excelente doutrina formada acerca da função social da propriedade rural após a promulgação da Carta de 1988, tradicionalmente a averiguação da produtividade era o único critério utilizado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), autarquia federal responsável pela execução da reforma agrária, para definir o cumprimento da função social da propriedade rural, sendo objeto da ação de desapropriação, de regra, o imóvel considerado improdutivo pelo não alcance dos índices de Grau de Utilização da Terra – GUT e Grau de Eficiência na Exploração – GEE, na forma estabelecida no art. 6º da Lei n 8.629/93[7].
Os demais critérios para o cumprimento da função social da propriedade rural, dentre eles o da função socioambiental, não eram tratados de maneira relevante no Laudo de Vistoria e Fiscalização do INCRA – LAF, identificando-se aí o início da dificuldade de fazer valer os dispositivos constitucionais e legais que tratam da matéria.
O LAF é resultante do “levantamento de dados e informações” mencionado no § 2º do art.2º da Lei nº 8.629/93, sendo realizado por técnicos do INCRA que ingressam no imóvel rural mediante comunicação prévia ao seu proprietário, preposto ou representante. Utilizando-se os dados levantados na vistoria preliminar, é efetuada, então, a atualização cadastral do imóvel, pela qual o mesmo vai receber a respectiva classificação fundiária: pequena, média ou grande propriedade (de acordo com a sua dimensão) e produtiva ou improdutiva (a depender do alcance, ou não, dos índices GUT e GEE exigidos na Lei).
No entanto, esse Laudo concluía pelo descumprimento da função social da propriedade somente quando não eram atingidos esses índices de produtividade, deixando de levar em consideração os demais aspectos que perfazem a função social da propriedade que, como já sabemos, devem ser atendidos simultaneamente.
Atualmente, com a vigência da Norma de Execução Incra nº 95/2010, normativo que regulamenta o procedimento de obtenção de terra, a Autarquia caminha no sentido da implementação de todos os aspectos do princípio da função social, deixando de compreende-la como sinônimo simplesmente de produtividade.
Tal normativo foi inspirado no “Parecer Conjunto da Coordenação Geral Agrária de Processos Judiciais e de Pesquisas Jurídicas e da Coordenação de Processos Agrários, Legislação, Normas e Pesquisas Jurídicas/Nº011/2004“, de 28 de junho de 2004, da lavra do Valdez Adriani Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior, que foi aprovado pelo então Ministro do Desenvolvimento Agrário, tornando sua observância obrigatória para os órgãos e entidades vinculados àquela pasta ministerial, a teor do artigo 42 da Lei Complementar nº73/93.
Referido estudo teceu um apanhado da doutrina acerca dos elementos que compõem a função social da propriedade, analisou a legislação aplicável à espécie e colacionou os julgados em que o Supremo Tribunal Federal refere-se ao tema, alcançando as seguintes conclusões (2005: p.48 e 49):
“a) Deflui da ordem jurídica positivada que no conceito de função social está contido o conceito de produtividade, mas que no conceito de produtividade também estão contidas parcelas dos conceitos de função ambiental, função trabalhista e função bem estar, isto é, que a função social é continente e conteúdo da produtividade.
b) A vedação do art. 185 da CF/88 não pode excepcionar ipso facto o comando do art. 184, senão nos casos em que a produtividade provenha de atividades não contrapostas a vedações legais, e, pois, não pode ser invocada para tutelar os casos em que a produtividade derive de descumprimento de preceitos de regime ambiental ou trabalhista, já que, em essência, esses ilícitos, além de impedirem o aperfeiçoamento da função social, viabilizam desincorporação dos ganhos de produtividade correspondentes, expondo o imóvel à desapropriação-sanção inclusive por improdutividade ficta, ou produtividade irracional.
c) No contrário senso da expressão “exploração racional”, preceituada no caput do art. 6º da Lei nº 8.629/93 se desenham todas as situações de ilícito possíveis, entre elas cada qual que vier a configurar vulneração dos incisos II a IV do art. 186 da CF/88, na tipificação a eles dada pelos parágrafos 2º a 5º do art. 9º da Lei nº 8.629/93.
d) Em casos nos quais o descumprimento da função social da propriedade possa ser objetivável de plano e demonstrado por simples operação de conta e conferência, cabe autonomamente ao órgão federal executor da política e reforma agrária proceder à objetivação, mediante fiscalização em que se assegure ao proprietário o devido processo legal administrativo.
e) Nos demais casos, cabe ao órgão federal executor da política e reforma agrária, em conjunto com os demais órgãos executores da políticas conexas às funções ambiental e trabalhista, a elaboração de norma técnica e adoção de medidas administrativas conjuntas de fiscalização, com vistas a conferir efetividade às normas constitucionais previstas no art. 186 da CF/88, e incisos II a IV do art. 9º, da Lei nº 8.629/93.
f) Nos casos das alíneas anteriores, a propriedade, embora produtiva do ponto de vista economicista , suscetibiliza-se à desapropriação-sanção de que cuida o art. 184 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, se flagrada como descumpridora das outras condicionantes da função social elencadas no art. 186, II, III, IV da CF/88, (II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores)[8].
Para explicitar o raciocínio desenvolvido, os autores valeram-se da seguinte equação: PP = EE + ER, onde PP = Propriedade Produtiva, EE = Exploração Econômica e ER = Exploração Racional, sendo a EE composta pelos índices GUT e GEE e a ER pelos demais elementos que formam a função social da propriedade (aspectos trabalhista e bem estar, além do ambiental). Com isso, a equação final foi assim sintetizada: PP = (GUT + GEE) + (FA + FT + FBE).
Apesar de concordarmos com as proposições alcançadas neste excelente trabalho, entendemos que esta equação não expressa corretamente o raciocínio nele desenvolvido. A nosso ver, a exploração econômica e a racional não constituem conjuntos isolados um do outro, que somados levam à propriedade produtiva.
Para se calcular a exploração econômica, devem ser levados em consideração os elementos que formam a exploração racional, para que os índices GUT e GEE sejam atingidos de forma lícita, de modo que não seja contrariada a legislação trabalhista e, em especial, a ambiental. Ou seja, não basta ao proprietário alcançar os graus de produtividade. Ele deve atingir os índices estabelecidos em lei (exploração econômica), atendendo à função social da propriedade, em todos os seus aspectos (exploração racional).
Essa idéia é desenvolvida pelo professor Carlos Marés, principalmente na sua obra referência, “Função Social da Terra“, na qual explica que a interpretação de que no conceito de produtividade está embutido o conceito de função social contém duas razões muito fortes:
“Confirma todo o sistema constitucional que protege o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações e está sugerida no parágrafo único do próprio artigo 185, que determina a emanação de uma lei estabelecendo “tratamento especial à propriedade produtiva, onde estarão fixadas as normas para o cumprimento dos requisitos relativos à função social”. Tratamento especial há de ser incentivo e proteção e, inclusive, o estabelecimento de normas, partindo do parâmetro da produtividade sustentável, para o cumprimento dos requisitos da função social. Assim, pela definição constitucional, produtivas são as terras que além de cumprir a função social, criam riquezas não somente para o presente, mas que possam continuar sendo produtivas no futuro. Caso a Constituição desejasse excepcionar as terras rentáveis de programas de reforma agrária mesmo que não cumprissem sua função social, o diria com todas as letras, deixando claro tratar-se de uma exceção. A interpretação de que qualquer produtividade, independentemente do cumprimento da função social, torna uma terra insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária faz da exceção regra. A regra então seria: as terras não produtivas podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária. Todos os outros requisitos e a própria idéia de função social seria inútil, escritas apenas par embelezar a folha de papel chamada Constituição”.[9]
Vejamos, agora, como são averiguados os índices de produtividade pelo INCRA e de que modo este levantamento pode ser efetuado observando-se o atendimento da função socioambiental pela propriedade rural vistoriada.
Para se chegar aos índices de produtividade, é de fundamental importância o quantitativo da área efetivamente utilizada do imóvel, sendo este um conceito necessário tanto para se calcular o GUT, quanto o GEE do imóvel.
Com efeito, o GUT do imóvel é “calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel“ (§1º do art.6º da Lei 8.629/93). O GEE, por sua vez, é calculado na forma especificada no § 2º, do art.6º, da Lei 8.629/93, sendo, para tanto, também necessária a adoção da área efetivamente utilizada. E é o § 3º do mesmo artigo que elenca quais as áreas devem ser assim consideradas:
“§ 3º Consideram-se efetivamente utilizadas:
I – as áreas plantadas com produtos vegetais;
II – as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação por zona de pecuária, fixado pelo Poder Executivo;
III – as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada microrregião homogênea, e a legislação ambiental;
IV – as áreas de exploração de florestas nativas, de acordo com o plano de exploração e nas condições estabelecidas pelo órgão ambiental competente;
V – as áreas sob processos técnicos de formação ou recuperação de pastagens ou de culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e devidamente comprovadas, mediante documentação e Anotação de Responsabilidade Técnica.”
O art. 10 da Lei nº 8.629/93, por sua vez, elenca as áreas tidas como não aproveitáveis, a saber:
“Art. 10. Para efeito do que dispõe esta lei, consideram-se não aproveitáveis:
I – as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes;
II – as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal;
III – as áreas sob efetiva exploração mineral;
IV – as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente”. (grifo do autor)
Ao se classificar tais espaços como não aproveitáveis, a área aproveitável total do imóvel diminui, resultando um GUT maior pela equação acima apresentada.
Deste modo, entendemos que, ao incluir as áreas de preservação como “não aproveitáveis”, possibilitando um aumento no cálculo do GUT, a Lei de Reforma Agrária prestigiou o proprietário que observou a legislação ambiental, em atendimento à função socioambiental da sua propriedade. Ressaltamos, porém, opinião diversa de Roxana Borges[10], no sentido de que, se a Lei classificasse as áreas preservadas como efetivamente utilizadas, a importância da manutenção das florestas nativas seria mais explicitada, estimulando os proprietários a terem um comportamento conservacionista.
É ainda Borges que registra a importância da segunda parte do inc. IV do art.10 da Lei 8.629/93, acima transcrito, que incluiu como não aproveitáveis não só as áreas de efetiva preservação permanente, mas também as “demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente“[11], trazendo para este conceito todas as unidades de conservação e espaços territoriais especialmente protegidos, como exemplo: a reserva legal, a zona de amortecimento e o corredor ecológico, regulamentadas pelo Código Florestal e o monumento natural, o refúgio da vida silvestre, a área de preservação ambiental e a de relevante interesse ecológico, bem como a reserva particular do patrimônio natural, previstas na Lei do SNUC.
Assim, na forma em que a legislação se encontra, todos estes espaços, quando existentes no imóvel rural, são retirados do total da área aproveitável do imóvel, devendo ser computadas, pelos técnicos do INCRA, para fins de cálculo dos índices de produtividade, como não aproveitáveis, o que influenciaria positivamente para o alcance satisfatório do GUT.
Outrossim, o próprio § 3º do art. 6º, se interpretado em consonância com os princípios que regem todo o ordenamento jurídico brasileiro, é importante instrumento de prestígio do proprietário do imóvel que observa a função socioambiental. Atente-se que o seu inc. III condicionou que, para serem consideradas como efetivamente utilizadas as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, devem ser observados os índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, bem como a legislação ambiental.
Na verdade, a legislação ambiental deve ser observada sempre — mormente os dispositivos do Código Florestal e da Lei do SNUC —, e não só na hipótese prevista no mencionado inciso, de modo a corrigir eventuais distorções existentes no texto da Lei de Reforma Agrária.
A título de exemplo, imaginemos que o proprietário tenha cultivado em área correspondente à reserva legal do seu imóvel ou tenha pastagens em espaço de preservação permanente. Como este comportamento foi de encontro à legislação ambiental, a produção dessas áreas – classificadas pelo INCRA como “efetivamente utilizadas” – é proporcionalmente descontada da produção total, ensejando a redução do GEE.
A nosso ver, esse raciocínio deve ser desenvolvido em todos os casos em que a exploração econômica é conduzida de forma ilegal, e, no caso da legislação ambiental, para que seja feita uma interpretação adequada da legislação aos seus fins e de acordo com os princípios que regem o seu ordenamento jurídico, não obstante o respeito à opinião divergente de Roxana Borges[12], que não concorda com a inclusão de tais áreas de cultivo irregular como área efetivamente utilizada.
Ressalte-se que a Lei de Reforma Agrária não conceitua expressamente quais as áreas do imóvel que seriam “aproveitáveis, mas que não são utilizadas”, definindo apenas as que devem ser consideradas como efetivamente utilizadas (§ 3º, art.6º) e as que são não aproveitáveis (art.10).
As normas internas do INCRA tratam de que forma devem ser comprovadas, pelo proprietário rural, as áreas com restrição de uso, assim consideradas as áreas de reserva legal, de preservação permanente, de mata atlântica, bem como aquelas componentes do SNUC, que serão classificadas como não aproveitáveis (art. 10, Lei nº 8.629/93). Esta orientação é no sentido de considerar como tal as áreas preservadas que estejam caracterizadas dentro de uma das espécies de uso restrito. Importante o alerta de que a área preservada, simplesmente, que não esteja dentro de uma dessas hipóteses, será classificada como não utilizada, contribuindo para a queda dos índices de produtividade. Para evitar tal situação, o proprietário pode criar uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) no espaço que não será objeto de exploração no imóvel.
O manancial legislativo aqui mencionado, no entanto, ainda é insuficiente para encampar todas as situações que, na prática, são encontradas pelos peritos federais agrários do INCRA, sendo recomendável uma espécie normativa mais detalhada, editada no âmbito administrativo, de modo a aperfeiçoar os procedimentos para averiguação dos índices GUT e GEE do imóvel objeto de vistoria, levando a efeito o cumprimento da função socioambiental da propriedade no momento de realizar estes cálculos.
5. Aplicação no âmbito administrativo e judicial do princípio da função socioambiental
Em face da atuação do órgão federal executor da reforma agrária foram registrados consideráveis avanços na fiscalização de todos os aspectos da função social, registrando-se a decretação de interesse social para fins de reforma agrária pelo descumprimento da função socioambiental dos seguintes imóveis rurais:
a) Fazenda Escalada do Norte ou Juliana, município de Rio Maria- PA (DOU de 08/12/2009);
b) Fazenda Santa Elina, município de Chupinguaia – RO (DOU de 15/04/2010), área do episódio conhecido “Massacre de Corumbiara”.
Outrossim, no âmbito judicial, obteve-se importantes precedentes favoráveis à desapropriação de imóveis que, mesmo atingindo os índices de produtividade, não atendiam os demais aspectos da função social. A seguir, breve relato acerca dos julgados nos referidos feitos.
a) Processo n.2002.61.07005639-9 – 1ª Vara Federal de Araçatuba (Fazenda Araçá)
Trata-se de sentença prolatada pelo Juízo da 1ª Vara Federal em Araçatuba, o qual expôs estudo sobre os procedimentos para se aferir os índices de produtividade de GUT e GEE, conseguindo demonstrar a validade dos trabalhos produzidos pelos técnicos do INCRA quando da elaboração do Relatório Agronômico de Fiscalização, e dispensando, para tanto, os serviços do perito judicial.
Assim, bem demonstrou o Juízo a diferença entre área utilizada e área efetivamente utilizada, para elucidar que, na primeira, permite-se o desconto de áreas cuja produção contraria as determinações legais, sendo tidas em tese como áreas não aproveitáveis; a segunda, por sua vez, não permite sejam subtraídas as áreas que, mesmo em desconformidade com a lei, estejam sendo usadas de alguma maneira.
Nessa perspectiva, a área de pasto encontrada na preservação permanente, como exemplo, foi classificada como efetivamente utilizada, porém a produção da área correspondente foi desconsiderada da produção total, provocando a redução do GEE.
Seguindo essa linha de raciocínio, consignou que nenhum procedimento para cálculos dos índices de produtividade deve beneficiar o descumprimento da legislação ambiental, posto que, em assim sendo, não estaria o imóvel incidindo em aproveitamento racional e adequado.
O Juízo considerou que o imóvel rural não estava cumprindo a sua função social, posto que descumpridor dos incisos primeiro e segundo do artigo 186 da Constituição Federal: aproveitamento racional e adequado e preservação do meio ambiente.
Assim, vê-se que a sentença prestigia em sua expressão máxima o cumprimento da função social plena da propriedade, validando os trabalhos realizados pelos técnicos do INCRA para esse fim.
a) Processo n.2004.43.00.001111-0 – 2ª Vara Federal de Tocantins (Fazenda Bacaba)
Nesses autos, o Juízo da 2ª Vara Federal de Tocantins consignou que, não obstante a Fazenda Bacaba apresentar índices de produtividade satisfatórios, o imóvel não estaria imune à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, haja vista que não cumpre a sua função social no que tange ao requisito de preservação do meio ambiente, considerando a degradação da área de reserva legal naquele caso concreto.
a) Processo n.2007.72.11.001000-1 – Vara Federal Única de Caçador (Fazenda Campo do Paiol – SC)
O Juízo da Vara Federal de Caçador – SC ratificou a tese de que a propriedade rural somente cumpre a sua função social de forma plena quando atende simultaneamente às condicionantes do artigo 186 da Constituição Federal, o que não ocorreu no caso concreto, uma vez que o imóvel incorrera no uso inadequado dos recursos naturais e devastação do meio ambiente.
Registre-se, por fim, que o Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades manifestou-se sobre o princípio da função social da propriedade, especialmente no seu aspecto ambiental, destacando-se os seguintes julgados:
“a) MS 22.164/SP (Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 17/11/1995): “A utilização apropriada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente constitui elementos de realização da função social da propriedade.”
b) ADI-MC 2213/DF (Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23/4/2004): “O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social (…) só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade.”
6. Conclusões
O direito à propriedade não pode mais ser tratado simplesmente como instituição do direito privado, em razão da subordinação do instituto ao cumprimento da sua função social. Assim, temos que o diploma constitucional alterou o regime jurídico da propriedade privada ao subjugá-la ao cumprimento da função social.
Neste sentido, adotando-se uma interpretação sistemática do texto constitucional, verifica-se que somente é protegida da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária a propriedade rural produtiva (aproveitamento racional e adequado) que atende os demais aspectos da função social (utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulamentam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores). Como assevera Bruno Arruda e Silva, “as quatro dimensões da função social estão expostas na Constituição e na legislação e a sua efetivação é uma tarefa que se impõe ao Estado e à sociedade”[13].
Desta feita, o princípio da função social da propriedade, mormente em seu aspecto ambiental, antes discutido somente no meio acadêmico, vem sendo adotado como fundamentação para decretação, pelo Poder Executivo, de imóveis rurais que, mesmo considerados produtivos do ponto de vista meramente economicista – alcance dos índices de produtividade – não utilizam de forma adequada os recursos naturais e não preservam o meio ambiente). Tal entendimento tem sido corroborado pelo Poder Judiciário, que vem julgando aptos à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária imóveis rurais nesta mesma condição.
Informações Sobre o Autor
Renata Almeida Dávila
Procuradora Federal junto à PFE/INCRA, onde exerce o cargo de Subprocuradora-Chefe. Especialista em direito ambiental e desenvolvimento sustentável pelo CDS/UNB. Especialista em processo civil pela UFBA.