Após o término da Segunda Guerra Mundial, surge o neoconstitucionalismo, cuja objetivação consiste em uma reaproximação entre o direito e a moral e a volta dos valores éticos para a esfera jurídica. Assim, os princípios assumem importantes papeis nesse novo sistema, no qual a Constituição passa ao centro do ordenamento jurídico e a ser o critério de validade de todas as normas.
O surgimento desse novo constitucionalismo se deu após as barbáries ocorridas na Segunda Guerra Mundial, cuja defesa dos seus principais acusados, no julgamento de Nuremberg, consistiu na invocação do cumprimento da lei e na obediência a ordens proferidas por superiores. Percebeu-se, assim, que não era mais possível defender a ideia de um ordenamento jurídico ausente de valores éticos, no qual a legitimação das normas fosse auferida apenas em seu caráter formal[1] (BARROSO, 2008, p. 26; SARMENTO, 2009, p. 2).
Inicia-se, assim, um debate doutrinário sobre a superação das teorias positivistas[2] e a ascensão das teorias pós-positivistas do direito[3] [4], promovendo uma reaproximação entre o direito e a filosofia (esfera axiológica) perdida no âmbito do positivismo.
Tais teorias (pós-positivistas) têm como principais mudanças de paradigmas o reconhecimento da força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e a elaboração das diferentes categorias da nova interpretação constitucional – esta é uma decorrência natural da primeira mudança[5] (BARROSO, 2007, p. 9/14). No caso brasileiro, o renascimento do direito constitucional a partir dessas novas concepções se deu após a Constituição Federal de 1988.
No que concerne ao reconhecimento da força normativa da Constituição, antes do neoconstitucionalismo a Carta Magna, tanto na Europa quanto no Brasil, não tinha força de norma; servia apenas como um documento político a orientar as ações dos Poderes Públicos, contudo, sem força para vincular as decisões do Judiciário (BARROSO, 2007, p. 9; SARMENTO, 2009, p. 2). Daniel Sarmento (2009, p. 4), para exemplificar tal situação, assim afirma::
“A Constituição de 1824 falava em igualdade, e a principal instituição do país era a escravidão negra; a de 1891 instituíra o sufrágio universal, mas todas as eleições eram fraudadas; a de 1937 disciplinava o processo legislativo, mas enquanto ela vigorou o Congresso esteve fechado e o Presidente legislava por decretos; a de 1969 garantia os direitos à liberdade, à integridade física e à vida, mas as prisões ilegais, o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura campeavam nos porões do regime militar. Nesta última quadra histórica, conviveu-se ainda com o constrangedor paradoxo da existência de duas ordens jurídicas paralelas: a das constituições e a dos atos institucionais, que não buscavam nas primeiras o seu fundamento de validade, mas num suposto poder revolucionário em que estariam investidas as Forças Armadas.”
Quanto à expansão da jurisdição constitucional, temos que antes de década de 40 do século XX, de acordo com o modelo constitucional europeu, havia uma supremacia do Poder Legislativo diante dos demais poderes. Com o neoconstitucionalismo, a Constituição passa a ocupar o centro do sistema jurídico, devendo todas as normas serem válidas a partir da sua observância, tanto formal quanto material (constitucionalização dos direitos fundamentais[6]).
Nesse diapasão, no novo constitucionalismo, a Constituição passa ao centro do sistema jurídico, consistindo em um sistema aberto de regras[7] e princípios[8] (GÓES, 2007, p. 118); dotado de aplicabilidade direta e imediata (BARROSO e BARCELLOS, 2008, p. 329). Dessa forma, ela é dotada de superlegalidade. Tal característica faz dela o parâmetro de validade de todo o sistema[9], o que demandou o controle de constitucionalidade e a criação de tribunais constitucionais (BARROSO, 2007, p. 11).
Ademais, ela desempenha uma função de filtragem, no qual “toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida (interpretada) sob a sua lente, de modo a realizar os valores nela consagrados” (BARROSO, 2007, p. 22). É a ascensão do princípio da juridicidade[10].
E, nesse contexto, o Direito Civil – aqui, em especial, a direito contratual – não poderia deixar de ser diferente. Como qualquer outro ramo da ciência jurídica, a disciplina que estuda a relação entre os particulares também tem de ser lida com base na Constituição, a partir de seus preceitos e valores.
Isso também se deve ao status garantido aos direitos fundamentais nessa nova fase do constitucionalismo. Com esse movimento, tais direitos “posicionaram-se” no centro do sistema jurídico, devendo ser o objetivo maior de todo o Estado e da sociedade a sua concretização. Esses direitos estão compilados no art. 1°, inc. III, da Constituição Federal, quando aborda entre os fundamentos da República a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, os direitos fundamentais, cuja eficácia é imediata (art. 5°, parágrafo 1°), também deve prevalecer na relação entre os particulares (eficácia horizontal). Na lição de Ingo Sarlet (1998, p. 339)
“As normas de direito privado não podem contrariar o conteúdo dos direitos fundamentais, impondo-se uma interpretação de normas privadas (infraconstitucionais) conforme os parâmetros axiológicos contidos nas normas de direitos fundamentais, o que habitualmente ocorre quando se trata de aplicar conceitos indeterminados e cláusulas gerais do direito privado”
Nesse sentido, há uma relativização do princípio do pacta sunt servanda. Entendida no positivismo como a estrita vinculação das partes às normas elaboradas no contrato, atualmente, essa relação só adentra naquilo que estiver de acordo com as normas constitucionais e os princípios constantes no ordenamento jurídico nacional. Ora, se o contrato faz lei entre as partes; e a lei tem de observar e ser lida de acordo com as “lentes da Constituição”, é cediço que agora aquele princípio não pode mais ser entendido de forma absoluta.
O Estado, em se tratando de relações privadas, deixa de atuar de forma meramente negativa e passa a exercer uma função intervencionista, no qual “a atenção do legislador se volta para a função social que os institutos privados devem cumprir procurando proteger e atingir objetivos sociais bem definidos” (TEPEDINO, 2004, p. 217). É o que se chama de dirigismo contratual.
A legislação (latu sensu) se utilizará dos princípios – que garantem a abertura ao sistema jurídico, gerando uma maior flexibilização ao intérprete – para estabelecer cláusulas gerais (de dicção normativa indeterminada), nas quais consagrarão os valores adotados pela Constituição e, de certa forma, vincular as normas legais e contratuais[11]. Por isso que não se fala mais em autonomia da vontade, mas sim em autonomia privada (JOSLIN; SILVEIRA, 2010, p. 43).
A autonomia privada tem como um de seus pressupostos a livre iniciativa, positivada na Carta Magna como um dos fundamentos da República brasileira (art. 1, IV). No entanto, essa livre iniciativa não ocorre mais ausente de limites. Ela deve observar, pois, a sua função social, não podendo operar ao seu bel prazer (GRAU, 2008, p. 201).
Nesse diapasão, apesar da Constituição garantir expressamente o direito de propriedade como um direito fundamental (art. 5°, XXII), ela afirma que esse direito de primeira geração tem de atender a sua função social (art. 5°, XXIII). O Código Civil, seguindo o entendimento constitucional, dispôs que “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais (…)” (art. 1.228, parágrafo 1°).
Ademais, a Constituição Federal de 1988 adotou como um dos objetivos da República Federativa do Brasil “constituir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3°, I). Veja que o constituinte afirmou que o objetivo pertence à República, e não ao Estado isoladamente. Dessa forma, não só o ente político mas também os cidadãos devem ter como fim a construção de uma sociedade justa e solidária.
O Código Civil de 2002, por sua vez, em consonância com a Constituição Federal, dispôs o princípio da função social e solidária do contrato quando afirma que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” (art. 421). E ainda, o parágrafo único, do artigo 2.035, estabelece que “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”.
Este princípio deve ser entendido como uma forma de limitar a vontade individual em consonância aos valores supraindividuais inseridos na Constituição, harmonizando-se, pois, com o ordenamento jurídico vigente.
A função social e solidária do contrato tem eficácia tanto interna quando externa (JOSLIN; SILVEIRA, 2010, p. 43). Aquela abordando os seguintes aspectos: a proteção dos vulneráveis contratuais[12]; a irradiação do princípio da dignidade da pessoa humana[13]; vedação da onerosidade excessiva ou desequilíbrio contratual; nulidade das cláusulas antissociais ou abusivas; e o princípio da manutenção contratual[14].
Quanto à função externa do contrato, está relacionado à proteção dos interesses difusos e coletivos em nome do princípio da solidariedade e da eficácia do contrato perante terceiros, que têm legitimidade de invocar o contrato sempre que reflexivamente forem atingidos por seus termos.
O Código privado ainda previu, em seu art. 422, o princípio da boa fé objetiva. In verbis: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”[15].
O princípio da boa fé objetiva diz respeito aos deveres anexos que os contratantes devem ter para com a outra parte, tanto nas fases pre e pós-contratual quanto durante o contrato. Esses deveres estão implícitos no ordenamento jurídico e dizem respeito ao dever de informar, colaborar, lealdade, transparência, confiança e etc. (JOSLIN; SILVEIRA, 2010, p. 48).
Desse modo, entendemos que a possibilidade de ocorrer insegurança jurídica, em razão dos princípios adotados na base dos contratos, só se sustenta em uma visão capitalista (ou liberal) dos contratos; em uma defesa que prevalece os ideais individuais em lugar dos sociais, buscando proteger os empresários ou a empresa face à parte hipossuficiente.
A adoção principiológica garante, na verdade, a segurança jurídica aos contratantes, não só ao colocar ambas as partes em posição de igualdade como também em saber que as cláusulas abusivas poderão ser anuladas pelo Judiciário. Ou seja, essa nova teoria geral dos contratos gerará uma segurança jurídica maior às partes desfavorecidas.
Nesse sentido, podemos concluir que a nova teoria geral dos contratos perde a sua característica oitocentista e formalista kelseniana e passa a valorizar o interesse público em nome da justiça social, a dignidade da pessoa humana, a efetiva vontade das partes pela tutela da confiança objetiva e da funcionalização do contrato.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Ricardo Duarte Jr
Doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Procurador Geral do Município de São Bento do Norte, Advogado, Consultor Jurídico e sócio do escritório Duarte & Almeida advogados associados