Na prática é muito comum o descumprimento de determinada convenção entre as partes a acarretar responsabilidade tributária do sujeito passivo da obrigação tributária.
É o caso, por exemplo, da venda de mercadoria a contribuinte localizado em outro Estado da Federação com a cláusula FOB (Free On Board).
Se o adquirente promover a revenda da mercadoria no território do Estado remetente, a responsabilidade tributária pelo recolhimento do ICMS pela diferença de alíquota (alíquota interna/alíquota interestadual) é imputada ao contribuinte-vendedor.
Pelo direito comum, na venda com a cláusula FOB, a responsabilidade do vendedor cessa com a entrega da mercadoria ao comprador na origem. O transporte da mercadoria até o lugar do destino é da responsabilidade do adquirente e do seu transportador.
Contudo, em termos de Direito Tributário não é assim tendo em vista o disposto no art. 123, do CTN:
“Art. 123. Salvo disposição da lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não pode ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.
Em função desse preceito legal o STJ tem firmado a responsabilidade tributária do vendedor na hipótese de venda com cláusula FOB, conforme ementa abaixo:
“Ementa
Tributário. ICMS. Operação interestadual. Descaracterização. Cláusula FOB. A cláusula FOB opera entre as partes, exonerando o vendedor da responsabilidade pela entrega da mercadoria ao destinatário, nada valendo perante o Fisco (CTN, art. 123), que só homologa o pagamento do ICMS pela alíquota interestadual se a mercadoria for entregue no estabelecimento destinatário em outra unidade da operação; não é a nota fiscal que define uma operação como interestadual, mas a transferência física da mercadoria de um Estado para outro. Recurso especial conhecido e provido”. (REsp nº 37.033/SP, Relator: Ministro Peçanha Martins, Publicado no DJU de 31.08.98). No mesmo sentido o REsp nº 37.033/SP e o REsp nº 886695/MG.
Por simetria, aplica-se o entendimento desse acórdão à hipótese de venda de mercadoria para ser internada na Zona Franca de Manaus, por exemplo. Constatado o desvio da mercadoria, anula-se o benefício tributário ficando o vendedor responsável pelo recolhimento do imposto.
Isabela Bonfá de Jesus combate esse posicionamento jurisprudencial estribado no art. 123, do CTN “pois desnaturar o acordo comercial avençado licitamente entre as partes invade o campo do direito privado, o que é vedado pelo art. 110 do CTN, segundo o qual a lei tributária não pode alterar a definição, conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado”[1].
Cita em abono de sua tese o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aonde ficou decidido que “a legislação tributária não pode ignorar, sobrepor-se e, muito menos, atropelar as normas do direito privado, que contempla a cláusula FOB nas transações comerciais” (Ap.Civ. nº 20000349043, Rel. Des. Celeste Rovani, j. em 22-11-99).
Na verdade, penso não ter aplicação ao caso o disposto no art. 110 [2] do CTN, porque o instituto da compra e venda com cláusula FOB sequer foi utilizado expressa ou implicitamente pela Constituição Federal, muito menos para definir ou limitar competências tributárias.
Mas, não paira dúvida alguma que ignorar os institutos, conceitos e formas de direito privado em nome da autonomia do Direito Tributário traz insegurança jurídica aos contribuintes.
Cabe ao legislador tributário de cada ente político dispor no sentido de atribuir a responsabilidade tributária à parte que violou o pacto, no caso, o adquirente da mercadoria com cláusula FOB que revendeu a mercadoria no Estado de origem, como, aliás, recomenda o art. 123, do CTN.
O Regulamento do ICMS do Estado de Minas Gerais, aprovado pelo Decreto nº 43.080/02, caminha nesse sentido ao contemplar a responsabilidade tributária do comprador que adquire a mercadoria para ser empregada no processo de industrialização e a desvia para outros fins, revenda, por exemplo (art. 18, § 2º, inciso II).
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.