É de CARRARA a eloquente afirmação de que o reconhecimento e a chamada de có-reu são os braços da cruz em que se suplícia a inocência.
Identificações erradas são a maior causa isolada de condenações injustas. Na história dos erros judiciários, repousa em sua gênese, incontáveis casos de reconhecimentos falsos, por suposição equivocada, falibilidades próprias da memória ou por perversidade.
A ONG norte-americana “The Inocence Project” realizou uma pesquisa e nesta constatou que 75% das condenações de inocentes, muitos deles no corredor da morte, ocorrem devido a erros de reconhecimento por parte de vítimas e testemunhas ao identificar os suspeitos.1
E, “no entanto, ainda assim, por estar o reconhecimento dotado de força “impressionista”, o seu resultado positivo influência profundamente a decisão do juiz. Observa Alessandro Bernasconi que, mesmo estando comprovadas as falhas desse meio de provas, os juízes “continuam a ser inconscientemente influenciados pela identificação positiva computada pela testemunha” (tradução livre) e, ainda, que os resultados positivos do reconhecimento “quase equivalem a uma pacífica indicação de culpa” (tradução livre).2
Em terras brasileiras, o reconhecimento é uma prova nominada e expressamente prevista no Codex processual penal –art. 226.
E mais. Nos dizeres de Camargo Aranha, “o reconhecimento É ATO EMINENTEMENTE FORMAL; requerendo para sua validade a obediência dos pressupostos exigidos pelo art. 226 do Código de Processo Penal”3
Se, infelizmente, estamos a viver nos dias que correm o “Tempo do Medo” de que nos fala Eduardo Galeano, isso não legitima o sacrifício ou o desprezo a esfera das garantias individuais. O lúcido enfrentamento da criminalidade não permite que tal luta sirva de álibi à ruptura de tais garantias. Devemos ter cuidado.
Notadamente, quanto ao reconhecimento, da ensinança de Tourinho Filho se retira que “De todas as provas previstas no nosso diploma processual penal, esta é a mais falha, a mais precária. A ação do tempo, o disfarce, más condições de observação, erros por semelhança, a vontade de reconhecer, tudo, absolutamente tudo, torna o reconhecimento uma prova altamente precária.”4
É preciso dizer, no puro reproduzir da fala de Leite Fernandes, que “O processo é caminho, é viajem compreendendo início, meio e fim. Devem as partes trilhá-lo superando normalmente os obstáculos, sem falhas ou irregularidades.” (…) “ Isso só pode ser feito através do caminho adequado, vale dizer, do processo, conjunto de atos desenvolvidos segundo modelos pré- traçados. Esses modelos tem forma precisa, tem molde onde os atos se encaixam, vivificados. Forma dat esse rei (“a forma dá realidade às coisas”).(…) Não se pode permitir que a legalidade das formas seja desprezada, ainda que se tenha em linha de conta ter o ato atingido a finalidade colimada”5.
Os poderes de persecução penal do Estado não podem se transformar naqueles “poderes selvagens” de que nos adverte Luigi Ferrajoli. Sob a democracia e na vigência de um Estado de Direito, espera-se um espetáculo diferente do sistemático atropelo das formas do processo, preterição esta que pode até condizer com um processo penal do terror, onde o medo (novamente ele) é o senhor e guia das decisões, gerando verdadeiros estupros constitucionais ao devido processo, ao justo processo; porém, não condiz com os muramentos da Carta Magna de 88, a começar, do seu fundamento filosófico na dignidade humana.
Tratar o homem como coisa, objeto ou algo assim, não respeitando a forma que lá está no artigo 226 do C.P.P. é tudo, menos digno, justo ou legal. Com Ihering, lembramos: “A forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gemea da liberdade.”6 Ou, nos dizeres do Min. Marco Aurélio: “a forma revela meio para alcançar a realização do direito substancial. A forma, colocada no cenário jurídico mediante preceitos imperativos é, acima de tudo, liberdade, em seu sentido maior; é a revelação do que pode ou não ocorrer, em se tratando de jurisdição.” 7
Mais não é necessário dizer, no que tange aos pretensos “reconhecimentos” realizados sem as amarras credenciadoras do art. 226 do C.P.P. São irrituais. Daí a solar imprestabilidade probatória do ato feito ao arrepio do devido Processo Legal. Seu desvalor advém do desprezo a forma preceituada. De fato, como reconhecido textualmente no CPP Português – art. 147, tal ato é um “nada jurídico” posto que advém do desprezo a forma pré-constituida para sua realização que, nesse caso, atua como garantia de um justo processo. Como já há muito nos ensinava Pimenta Bueno: “É da máxima necessidade que haja inteira pontualidade nos atos substanciais ou importantes do processo criminal, regras fixas; (…)É pois consequente anular-se o processo, desde que são preteridas suas fórmulas substanciais, ou as cominações expressas da lei, portanto o que se pratica contra seus preceitos nada vale; seria contraditório estabelecê-las com esse caráter, e deixar violá-las impunemente.”8
E, Guilherme Nucci o reverbera:
“para que se possa invocar ter havido o reconhecimento de alguém ou de algo, é fundamental a preservação da forma legal. (…) em outros termos, o reconhecimento exige a formalidade (art. 226, C.P.P.).”9
Repita-se, a exaustão: Do respeito pela norma resultará o valor do reconhecimento como meio de prova. Norma que cuidadosamente posta pelo Legislador, reconhecendo este tratar-se de prova delicada, não é cabente ao intérprete e aplicador do direito escamoteá-la ou desprezá-la.
Portanto, não mais os nobres julgadores de nosso País se olvidem dessa garantia frente ao arbítrio do estado que é o Princípio da Legalidade, do óbvio e ululante fato de que o reconhecimento, para ser havido como prova legal, tem de atender o preciso modelo previsto no artigo 226 do C.P.P. sob pena de mostrar-se ato ilícito, posto que irritual e passível de extirpação do processo penal nos exatos termos do art. 157 do C.P.P.:
“São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação as normas constitucionais ou legais.”
A Justiça criminal não pode ser a Justiça do descaso, como a caracterizou o notável Juiz Federal Ali Malzon no 1° Forum do Instituto Delmanto.
Se as salvaguardas constitucionais existentes no Processo Penal, que é “Direito constitucional aplicado”, não obtiverem do Juiz uma garantia, todo o sistema jurídico processual esboroa. É falho. É falso. Um pseudo – processo bem longe da idéia do processo justo. E, para que assim não o seja, de todo o exposto, “advém um dever especial de cuidado e uma atitude extremamente profissional por parte da entidade que preside à realização da prova por reconhecimento. Este meio de prova não se compadece com amadorismos que tantas e tantas vezes acontecem por esse país a fora, manchando a Justiça e o Direito com as cores da vergonha e da ignomínia.”10
A jurisprudência, bem tímida ainda, felizmente não nos deixa a pregar sozinho no deserto:
“As formalidades previstas no art. 226 do C.P.P. são essenciais à valia do reconhecimento, que, inicialmente, há de ser feito por quem se apresente para a prática do ato, a ser iniciado com a descrição da pessoa a ser reconhecida. Em seguida, o suspeito deve ser colocado ao lado de outros que com ele guardem semelhança, a fim de que se
confirme o reconhecimento. A cláusula “se for possível”, constante do inc. II do artigo de regência, consubstancia exceção, diante do princípio da razoabilidade. O vício não fica sanado pela corroboração do reconhecimento em juízo, também efetuado sem as formalidades referidas.” 11
“Porque verdadeiramente definitivas, a produção de tais provas, no inquérito policial, há de observar com rigor as formalidades legais tendentes a emprestar-lhe maior segurança, sob pena de completa desqualificação de sua idoneidade probatória.”12
“ROUBO – PROVA – PALAVRA DA VÍTIMA – RECONHECIMENTO PESSOAL – FORMALIDADES – ARTIGO. 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – ABSOLVIÇÃO
Se o reconhecimento de pessoa for realizado sem o comprimento das regras previstas no art. 226 do C.P.P., sua força probante se esvai e não pode ser apontado como fundamento da condenação.”13
“PROVA CRIMINAL – Auto de reconhecimento de pessoa – Falhas em sua realização – Autoria do delito negado pelo acusado – Inexistência de outros elementos de convicção – Absolvição decretada – Inteligência do art. 226 do C.P.P.
Na sistemática do Código do Processo Penal, somente se pode falar em reconhecimento quando observadas as normas cautelares do art. 226, seja o ato realizado diante da autoridade policial, seja diante da autoridade judiciária.”14
Como visto no prólogo deste artigo, o reconhecimento é algo tão falho que nem mesmo Penélope reconheceu a seu marido Ulisses quando este de Tróia e de sua Odisséia retornou. Inquestionavelmente, devemos ter cuidado.
Era o que tinhamos a dizer sobre o tema.
Informações Sobre o Autor
Renato de Oliveira Furtado
Advogado Criminalista. Professor de Processo Penal da Universidade Estadual de Minas Gerais – Campus Frutal. Membro IBCCRIM