A falta de pagamento do preço das mercadorias ou dos serviços tem gerado discussões na doutrina e na jurisprudência. Pergunta-se, são devidos os tributos na ausência de pagamento do preço?
A inadimplência ocorre, via de regra, após a consumação do fato gerador da respectiva obrigação tributária,[1] pelo que não exonera o vendedor ou prestador do serviço do pagamento do tributo. O recebimento do preço, em geral, não integra a definição de fato gerador do tributo. Examinemos a questão à luz de cada tributo em espécie.
O ISS
O fato gerador do ISS é a efetiva prestação do serviço previsto na lista anexa à LC n° 116/2003, conforme prescreve o art. 1° desse diploma legal.
Logo, o não recebimento do preço contratado não pode ser invocado pelo prestador do serviço para deixar de pagar o imposto.
Diferente a hipótese de exigência do ISS antes da ocorrência do fato gerador, ou seja, sem a efetiva prestação do serviço. Isso vem acontecendo na cobrança do ISS dos operadores de Valet, que são obrigados a utilizar o cupom de estacionamento fornecido pela Prefeitura, que cobra antecipadamente o imposto no ato do fornecimento desse cupom (IN n° 6, de 28-5-2012). Ocorre, também, em relação aos profissionais liberais que se inscreverem nos últimos meses do exercício. Eles devem arcar com o imposto fixo sem que tenham tido a oportunidade de prestar serviço a quem quer que seja, como se o fato gerador do imposto fosse a inscrição no cadastro de contribuintes.
O ICMS
O fato gerador do ICMS é:
a) a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte (art. 12 I da LC n° 87/96);
b) o início da prestação de serviço de transporte intermunicipal e interestadual (art. 12, V da LC n° 87/96);
c) o ato de prestação onerosa de comunicação (art. 12, VII da LC n° 87/96).
A inadimplência que ocorre após a realização da hipótese de incidência tributária é irrelevante. Por isso, o não pagamento do preço decorrente de furtos e roubos não tem o condão de impedir a cobrança do imposto. Da mesma forma, o contribuinte faz jus ao crédito do imposto incidente na operação anterior, independentemente de ter o referido imposto ingressado no erário.
O IPI
O art. 46, II do CTN fixa o aspecto temporal do fato gerador do IPI para o momento da saída do produto industrializado do estabelecimento comercial, industrial ou importador.
Por isso, a jurisprudência orientou-se no sentido de incidência do imposto nas hipóteses de furto ou roubo do produto, se o ocorrido após a saída do produto industrializado.
Recente decisão da 2ª Turma do STJ decidiu pela não incidência do imposto sobre as mercadorias roubadas que eram destinadas ao exterior, aparentemente, contrariando decisão em sentido contrário da mesma Turma (Resp nº 1203236/RJ, Rel. Min. Hermann Benjamin, j. 21-6-2012).
O exame do julgado, cujo acórdão ainda não foi publicado, revela tratar-se de mercadoria destinada à exportação que foi roubada no trajeto entre Uberlândia (MG) e o Porto de Santos (SP).
Portanto, a mercadoria estava sendo transportada sem a incidência do IPI por força da imunidade tributária prevista no inciso III, do § 3°, do art. 153, da CF.
Logo, se a União já não dispunha de competência impositiva no caso, o roubo da mercadoria no trajeto para o Porto de embarque não tem o condão de transformar, ipso facto, a operação imune em operação tributada. Ainda que a mercadoria roubada venha ser eventualmente comercializada, só para argumentar, o sujeito passivo da obrigação tributária dela decorrente seria outro.
Como se sabe, a imunidade é forma de limitação do poder de tributar dirigida ao legislador ordinário que fica impedido de instituir o tributo em relação às pessoas, bens ou serviços considerados imunes.
COFINS
Em relação a essa contribuição social a controvérsia é bastante acentuada.
O fato gerador da Cofins não cumulativa é “o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil” (art. 1º da Lei nº 10.833 de 29-12-2003).
O fato gerador da Cofins cumulativa é o faturamento (art. 2º da Lei 9.718 de 28-11-1998) que de conformidade com o § 1º, do seu art. 3º compreende a receita bruta, abarcando a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevante o tipo da atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas. No conceito de receita bruta inclui-se, portanto, os ganhos de capital. Todavia, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade desse § 1º por não ser possível acolher-se a figura da constitucionalidade superveniente.[2]
Pondere-se, no entanto, que mesmo considerando que o fato gerador da Cofins é o faturamento, de conformidade com a redação original do texto constitucional (art. 195, I), e não a receita acrescida pela EC nº 20/98, nada muda em relação às vendas de mercadorias e serviços. No conceito de faturamento apenas a receita de capital é que fica de fora.
Tanto é assim que antes da declaração de inconstitucionalidade do § 1°, do art. 3°, da Lei n° 9.718/98 pelo STF não enxergávamos no referido parágrafo o alargamento do conceito de faturamento conforme escrevemos: “A primeira vista, não vislumbramos o apontado elastecimento do conceito de faturamento, equiparado ao de receita bruta. No fundo, não refoge da conceituação tradicional, como demonstram os julgados dos tribunais.” [3]
Feitas essas considerações, passemos ao exame da matéria enfocada no título deste artigo.
Em recentíssimo julgado o STF decidiu, por maioria de votos, que nas vendas inadimplidas incide o PIS/Cofins. (RE n° 586482, Rel. Min. Dias Toffolli, Repercussão Geral, DJe de 19-6-2012).
Distinguiu-se a venda inadimplida da venda cancelada, o que nos parece incensurável.
Ao depois, sustentou-se que as pessoas jurídicas, como no caso, regem-se pelo regime de competência e não pelo regime de caixa, aplicável à pessoa física. Donde a irrelevância da efetiva realização material das receitas decorrentes de vendas de mercadorias ou de serviços.
Adotou-se, portanto, argumento próprio para tributação pelo imposto de renda, que tem como fato gerador a disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou proventos de qualquer natureza (art. 43 do CTN).
Os dois votos pela intributação (Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello) bateram-se pela tese de que na inadimplência não há receita auferida, fato gerador da Cofins a que alude a Lei n° 10.883/03 (Cofins não cumulativa).
De fato, auferir receitas pressupõe ingresso de valores segundo o significado etimológico do termo. Por isso, a tributação de venda inadimplida viola o princípio da capacidade contributiva.
Aplicar ao tributo de incidência mensal, assentado em receitas auferidas, como a Cofins, o regime de competência que rege a cobrança do imposto de renda, cujo fato gerador é a disponibilidade jurídica ou econômica de rendas e proventos de qualquer natureza, é, no mínimo, discutível.
No imposto de renda basta tão só a aquisição do direito à renda para a incidência do tributo, pois a aquisição desse direito já configura um acréscimo patrimonial que é um conceito encampado pelo art. 153, III, da CF. Por isso, no imposto de renda, efetivamente, há incidência sobre as provisões de devedores duvidosos e sobre créditos baixados como perdas permitindo-se, ao depois, as exclusões das receitas dos valores pertinentes às reversões das provisões feitas e às recuperações de créditos baixados como perdas.
Diferente a hipótese da Cofins, cujo fato gerador é o recebimento de receitas (receitas auferidas) decorrentes das venda de mercadorias ou de serviços.Para proceder da mesma forma prevista na legislação do imposto de renda não pode prescindir de normas expressas no mesmo sentido na legislação do PIS/COFINS. O uso da analogia não pode resultar em aumento da carga tributária.
Daí a dúvida. Contudo, o STF já reconheceu a repercussão geral e decidiu por maioria de votos pela tributação pela Cofins dos valores das vendas inadimplidas, superando a questão da competência que aparentemente caberia ao STJ.
DESCONTOS INCONDICIONAIS E CANCELAMENTO DE VENDAS
As legislações dos três entes políticos, normalmente, contemplam a dedução da base de cálculo dos valores dos descontos incondicionais e dos cancelamentos de vendas.
O valor do desconto incondicional, realmente, não integra o preço da mercadoria ou serviço, pois implica redução do preço por liberalidade do fornecedor/prestador.
Na venda cancelada há anulação do negócio jurídico que fica desfeito. Por isso, não ocorre o fato gerador (saída da mercadoria/ prestação do serviço). Difere da hipótese de furto ou roubo da mercadoria ocorrido após a concretização do fato gerador.
CONCLUSÕES
O inadimplemento do preço que nada tem a ver com o cancelamento da operação de vendas como bem ilustra a jurisprudência de nossos tribunais. O inadimplemento do comprador ou do tomador insere-se no âmbito do risco empresarial, não dando ensejo à exclusão do tributo, sob o manto do princípio da capacidade contributiva que é dirigido ao legislador infraconstitucional.
No caso da Cofins, o fato gerador é a receita auferida, o que pressupõe ingresso efetivo de valores ao teor do significado etimológico do termo. Difere do fato gerador do imposto de renda sendo inaplicável em relação à Cofins o regime de competência para considerar receita auferida sem ingresso monetário. Trata-se, contudo, de tese vencida no STF, por maioria de votos.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.