O debate em torno da quebra do sigilo bancário voltou à baila após a manifestação do Procurador-Geral do Banco Central no sentido de que as informações sigilosas são detidas pelas instituições financeiras e pelo Banco Central. Ponderou, entretanto, que existem normas legais excepcionais que determinam que o Banco Central comunique ao Ministério Público os indícios de crimes que encontrar nas movimentações financeiras. Parcela ponderável dos estudiosos não concorda com esse posicionamento.
Sobre o assunto já escrevemos pelo menos três artigos divulgados em diferentes momentos: “Fim da CPMF e a questão da quebra do sigilo bancário”; “Sigilo bancário e a atuação da COAF”; e “Sigilo bancário. Reflexos da decisão do STF que decretou a inconstitucionalidade da quebra do sigilo bancário sem ordem judicial”.
Os defensores da quebra do sigilo reconhecem o sigilo imposto pelo art. 2º da Lei Complementar nº 105/01, mas argumentam com a exceção do art. 9º do mesmo diploma legal.
Examinaremos os dispositivos legais pertinentes à luz da interpretação sistemática e à luz do princípio da hierarquia das leis para superar eventuais conflitos. Assim, transcrevemos abaixo as normas jurídicas a começar pelos textos constitucionais pertinentes:
Art. 5º, X da CF:
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Art. 5º, XII da CF:
“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”
Art. 1º da LC nº 105/01:
“As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.”
Art. 2º da LC nº 105/01:
“O dever de sigilo é extensivo ao Banco Central do Brasil, em relação às operações que realizar e às informações que obtiver no exercício de suas atribuições.
§ 1º O sigilo, inclusive quanto a contas de depósitos, aplicações e investimentos mantidos em instituições financeiras, não pode ser oposto ao Banco Central do Brasil:
I – no desempenho de suas funções de fiscalização, compreendendo a apuração, a qualquer tempo, de ilícitos praticados por controladores, administradores, membros de conselhos estatutários, gerentes, mandatários e prepostos de instituições financeiras;
II – ao proceder a inquérito em instituição financeira submetida a regime especial.”
Art. 9º da LC nº 105/01:
“Quando, no exercício de suas atribuições, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários verificarem a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios da prática de tais crimes, informarão ao Ministério Público, juntando à comunicação os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos.”
Há aparente conflito entre as normas do art. 2º e do art. 9º retro transcritos. Ainda que se entenda que o dispositivo do art. 9º configura uma exceção, o conflito permanece em face dos dispositivos constitucionais igualmente transcritos.
A forma usual de superação de conflitos de normas é pela interpretação sistemática que envolve a consideração da ordem jurídica como um todo. Nesse tipo de interpretação avulta o uso do critério da hierarquia ou da interpretação conforme com a Constituição. A interpretação dos textos deve ser feita de cima para baixo. A interpretação há de partir do texto constitucional, devendo as normas infraconstitucionais com ele se conformar.
Os dois incisos do art. 5º da CF que transcrevemos fundamentam o sigilo bancário. Há corrente doutrinária e jurisprudencial que extrai o sigilo bancário diretamente do direito a intimidade (inciso X). Outra corrente funda o sigilo no inciso XII. O sigilo bancário por se constituir em direito fundamental representa uma garantia contra o poder político do Estado exercitado por seus órgãos e instituições públicas, dentre os quais, o Banco Central do Brasil.
É conhecida a decisão judicial que concedeu indenização ao caseiro de um ex Ministro de Fazenda por quebra de sigilo bancário relativamente à conta que ele mantinha na Caixa Econômica Federal. No caso foi aplicado o disposto no inciso X, do art. 5º da CF.
Outrossim, a leitura do inciso XII, do art. 5º da CF permite vislumbrar de pronto o sigilo absoluto em relação à correspondência e às comunicações telegráficas, e sigilo de dados e das comunicações telefônicas, por ordem judicial, para fins de instrução criminal.
Consoante escrevemos “o sigilo de comunicação de dados a que se refere o texto constitucional é espécie do gênero sigilo profissional ou segredo profissional, o que abarca o chamado sigilo bancário. Abrange as operações financeiras do cliente do Banco, seus extratos, o uso de cartões de crédito, o cadastro de bens, etc. Por isso, no entender do STJ, o sigilo bancário constituiria espécie do direito à intimidade consagrado no art. 5º, inciso X da CF (Ag. Reg. 187/96-DF, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo. DJ de 16-9-96, p. 33.651).[1]
Superando as divergências do passado o STF firmou a tese de que a quebra do sigilo de dados bancários está sob reserva de jurisdição.
Transcrevemos abaixo a Ementa do Acórdão proferido no RE 389808, para melhor exame:
“SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte” (RE nº 389808, Relator Min. MARCO AURELIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2001, PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218; RTJ VOL-00220-PP-00540).
Embora a tese tenha sido firmada em face da atuação da Receita Federal o princípio é o mesmo. Se a exceção legal para a quebra do sigilo deve ser submetida ao crivo do Judiciário, e assim mesmo só para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal, resulta óbvio que o Banco Central não pode romper esse sigilo por conta própria, a pretexto de que encontrou indícios de crimes na movimentação financeira do correntista. Reserva de jurisdição significa submissão da quebra do sigilo constitucionalmente protegido ao órgão que detém a atividade jurisdicional em regime de monopólio estatal, fato que exclui qualquer outro órgão que não seja do Poder Judiciário.
[1] Cf. nosso Direito Financeiro e Tributário. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 584.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.