Dignidade humana: mantenham a Darwin fora do alcance das crianças

 “Hay dos tipos de filósofos: los que se pegan a lo establecido y los que abren nuevos caminos poniéndose en el punto de mira de quienes alimentan el statu quo. […] Yo soy de la opinión de Nietzsche: uno tiene que filosofar con el martillo”.

Era uma vez um país dominado por uma ideologia horrível chamada «Alturismo». Segundo esta doutrina, as pessoas altas eram superiores às pessoas mais baixas e só as pessoas altas podiam governar e ocupar profissões e cargos importantes na sociedade. Todas as pessoas de menos de 1,80 eram discriminadas e só podiam trabalhar com a permissão dos mais altos e servindo aos demais. Havia suspeitas não confirmadas de que as pessoas muito baixas (menos de 1,50) haviam sido inclusive assassinadas. Um belo dia, os «não-alturistas» se rebelaram contra este horror porque já não suportavam o regime de «Alturaheid» imposto. Se produziu um câmbio na consciência de um grande número de «não-alturistas», um câmbio relativo a eles mesmos e a sua posição social, e se levou a cabo um movimento revolucionário: os «não-alturistas» deram um golpe de estado, se fizeram com o poder e tiraram os «alturistas». E para que ninguém pudesse utilizar a altura para voltar a discriminar às pessoas se proibiu falar da altura e se decretou por lei que todos os indivíduos eram «dignos» de ser vistos igual de altos. Filósofos e juristas de todos os rincões do país, convencidos de que as palavras têm o poder de dominar a realidade, que constructos sociais como a dignidade “son mucho más poderosos que los 300 millones de años de evolución genética que culminaron en la formación de los seres humanos (hechos que ignoran en absoluto para poder desarrollar un enfoque del tema fundamentado exclusivamente en las palabras)”[1], se apressuraram em proclamar e predicar, com júbilo, o triunfo da «dignidade»… E viveram felizes para sempre.

Iniciamos com este conto[2] porque parece que muitos juristas se comportam como os «anti-alturistas» em tema da dignidade: pintá-la de cor-de-rosa com sutis maquinações de um jogo puramente especulativo-argumentativo. Decretaram que a natureza humana não importa e, ademais, que está proibido falar dela. Opinamos, por contra, que o «naturalismo» tem muito que ensinar-nos sobre a dignidade em si, ademais de distanciar-nos das inferências estúpidas e ajudar-nos a buscar as raízes de nossa dignidade em como somos, no que nos ocupa e o que nos preocupa, em nossa natureza, em definitiva (P. S. Churchland, 2011).[3]

De fato, atuando como o fazem, como se pudessem construir uma “ciência” especulando e inventando tudo, uma “ciência” que nada tem que ver com o conhecimento científico externo a si mesma, os juristas, arrastados por concepções estrafalárias e vulveráveis em sua frenética ignorância, se perdem uma série de associações que podem ser críticas. E quando uma disciplina tem a intenção de ser científica e não o é, acaba utilizando conceitos, critérios e “sistemas tendenciosos y chapuceros para evaluar la verdad” (R. Trivers, 2013), passando por rios de tinta desperdiçados em «metafísica».[4]

A receita de «mais do mesmo»: mantenham a Darwin fora do alcance das crianças

Não resulta ingênuo, além de inútil, pretender cambiar a linguagem para ver se assim câmbia a sociedade? Por que manter-se em um estado infantil de delirio no que à dignidade humana se refere? Quem teme a natureza humana?

Embora, em conjunto, a visão da natureza humana que foi evolucionando durante as quatro últimas décadas cambiou sistematicamente a explicação “de lo que somos y por qué hacemos lo que hacemos” (M. Banaji), palavras como a «dignidade», que não existe fora da imaginação comum dos seres humanos, não deixa de provocar secreção de adrenalina em determinados filósofos e juristas propensos a uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo de “regras e princípios”, um sociologismo, um jusnaturalismo com alguma peculiar ontologia substancialista e/ou um «neoconstitucionalismo» de direitos humanos ou fundamentais e suas ponderações.

Enquanto alguns (os pós-modernos) fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas, outros (os “cientistas” jurídicos, os “puristas” da dogmática e os “filósofos” dos direitos humanos) fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério e carentes da menor autoconsciência com relação a realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria com traços de seriedade e coerência acerca da dignidade humana. Quer dizer, deificando o mundo da moral (como sistema de signos e representações arbitrários que existem independentemente da condição humana) e exagerando sua consistência ontológica ou suposto fundamental à margem de uma natureza humana como objeto de investigação empírica.[5]

Um tipo de razoamento teórico-acadêmico de uma hipocrisia insofrível e cuja única vantagem consiste em que não conduz a nada, “si no es a más de lo mismo, es decir, nada: se aplica más cantidad de la misma «solución» y se cosecha más cantidad de la misma miseria” (P. Watzlawick, 2013). E se nos aprofundamos um pouco mais, aparece um quadro muito mais enganoso, estrafalário e tenebroso, de sinistra competência, seleção despiedada e traiçoeiras correntes jurídicas. Para essas «teorias», longe de ser uniforme, a dignidade é esquizofrênica.

Tomando sem ônus os argumentos de Julie Wark (2011): “la «dignidad» se ha degradado en la burbuja «intelectual», una industria en crecimiento desde la cual muchos académicos se aferran a la segura oscuridad de la jerga académica especializada y a la opacidad de las abstracciones de la teoría posmoderna”. E se o leitor não pode encontrar uma importante distinção entre o que a «academia» predica e os recentes avanços científicos sobre a natureza humana, provavelmente deveria consultar a um neurólogo.

Ademais, os bons argumentos baseados exclusivamente na mera contemplação teórica indicam de maneira muito clara os riscos que se corre quando se utilizam critérios de abstração e/ou universalização da dignidade que não procedam de uma consideração contrastada da natureza biológica humana. E a história nos mostra o fato desgraçado de que os intentos morais mais fortes de melhorar a sociedade humana e executados em nome da preservação de uma dignidade humana etérea – todo um catálogo de propostas que já levaram a situações monstruosas – conduziram em ocasiões à perversa incapacidade de indignar-se ante a injustiça e a comover-se ante o sofrimento desnecessário.

Dito de outro modo, todos os esotéricos discursos e/ou as enigmáticas teorias filosófico-jurídicas que se negam a admitir o fato de que as novas teorias neurobiológico-psicológicas constituem um profundo aumento na compreensão do ser humano e contribuem a aumentar em vez de diminuir nossa humanidade, cometem o grave equívoco de supor que ciência e humanismo estão divorciados (P. S. Churchland, 2006). Hoje, teorizar sobre a dignidade humana desconsiderando a necessidade de se levar em consideração os aportes provenientes das ciências adjacentes desde uma perspectiva interdisciplinar (uma radical interdiscipliridade) é, sem mais, um risco que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate. O verdadeiro conhecimento do humano já não pode mais fundar-se sobre ilusões ou representações incorretas do real, senão sobre evidências científicas.[6]

Tudo isso implica a necessidade de resignar-se e aplicar ao caso dos valores humanos mais apreciados — dignidade, justiça, liberdade, igualdade, autonomia — a evidência de que somente através do conhecimento da mente, do cérebro e da natureza humana podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida (S. Zeki, 1993). Não é possível compreender o sentido profundo do direito (suas normas, princípios e valores) sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que o habilita e que o sustenta, um conjunto que administra e gera o sentido da identidade, personalidade e conduta, da percepção do outro e da intuição de nossa própria condição enquanto seres morais.[7]

Mas, dado que na filosofia sempre se tratou, em todo caso, do problema da condição humana (ainda quando dito tema não era o núcleo central), não é possível que o direito seja também indiferente à natureza humana, que qualquer programa filosófico, inclusive de cariz religioso, baste para estabelecer o fundamento da dignidade humana?

A resposta é negativa. Qualquer concessão ideológica ou meramente especulativa está ameaçada pelos erros produzidos pelo desconhecimento, a superstição e a ignorância deliberada. A condição humana, e seus atributos ligados à possessão de valores, deve ser definida em termos antropológicos e científicos e não políticos, contemplativos ou religiosos. As ideias menos arriscadas acerca da dignidade humana são as que podem oferecer-nos os enunciados descritivos procedentes das ciências que a falácia naturalista pretendeu desqualificar, ainda que surpreenda a muitos o argumento de que, hoje em dia, resulte pouco confiável qualquer ciência social normativa que não tenha em conta o estudo de nossa natureza neurobiológica – e a partir dela a cultura – à luz dos princípios da seleção natural.

Sair da magia ou do mistério em direção a maior claridade das ciências é o que fará com que nos adentremos na via que leva a entender com maior precisão em que consiste realmente a verdadeira dignidade do ser humano. Depois de tudo, em toda esta questão, o conhecimento é preferível ao obscurantismo; sempre há muito que aprender.[8]

A dimensão «relacional» da dignidade

O direito se ocupa dos aspectos (naturais) que se derivam da condição do primata humano: o regular sociedades que emanam das relações entre indivíduos. Uns entes que têm problemas e que sentem a necessidade resolvê-los. O objetivo do direito consiste em resolver alguns desses problemas sociais de grande calhado, permitindo, estimulando e assegurando a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) que fazem possível a condição humana e habilitam publicamente a dignidade dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.

Pois bem, por «dignidade» se entende, no contexto filosófico-jurídico, uma determinada condição do ser humano que lhe distingue de qualquer outro animal e fundamenta certos direitos indiscutíveis e inalienáveis ao estilo de ter que ser considerado, à maneira kantiana, como um fim em si mesmo e não como meio para outros propósitos. Este é o ponto de partida que nos lega Kant (1785) em sua «Metafísica de las costumbres» ao sustentar que o humano não tem preço senão dignidade, valor intrínseco.

Um projeto assim, referido a um «ser humano» genérico, sem distinção de sexo, idade, classe social, etnia, saber, nacionalidade ou ofício, parece levar de maneira necessária à condição comum de qualquer pessoa, à natureza biológica humana derivada dos traços da espécie. Mas o processo de construção do conceito, antes e depois de Kant, conduziu em realidade à meta oposta: a de negar qualquer viabilidade às características biológicas do ser humano sempre que se trate de levar a cabo uma justificação filosófico-jurídica (teórico-abstrata, ortodoxo-dogmática) da dignidade.

O problema é que a tão popular dignidade filosófico-jurídica, sem nenhuma referência às atuais teorias e evidências científicas acerca da natureza humana (quer dizer, da dignidade como «propriedade emergente» da natureza humana), não significa coisa alguma. Dizer que alguém é «digno», sem mais, é deixar a frase incompleta e, o que é mais penoso, equivale a não dizer nada e a ressaltar o espírito de contradição. Nas atinadas palavras de Patricia Churchland, a dignidade humana “no es un concepto claro, como pudiera ser el de «electrón», o el de «hemoglobina» (siempre con respecto a las mejores teorías físicas y biomédicas), aunque tampoco radicalmente convencional, a la manera como el significado de «metro» es relativo al tamaño del trozo de platino conservado en una oficina de París. Con la «dignidad», ocurre que ninguna cultura hegemónica, revelación mística, ideología universal, o análisis conceptual es capaz de sentar un veredicto definitivo. Sólo podemos aspirar a  razonar juntos (elevada y difícil aspiración), intentando calibrar nuestras opiniones morales en función de la experiencia histórica compleja y de las mejores teorías y evidencias científicas a disposición”.

Em que medida é possível e útil a plasmação jurídica da concepção naturalista da dignidade humana no contexto do direito? Por que, se está clara a deficiência de qualquer aproximação filosófica, ética, política e jurídica que não passe por uma análise detalhada da natureza humana, continuamos insistindo por seguir um caminho contrário a um  diálogo  interdisciplinar que ponha de manifesto a integração natureza e cultura? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana que pretenda ser digno de algum crédito na atualidade mantendo-o à margem de um modelo darwiniano sensato acerca da natureza humana?

Não! Não parece razoável nem tampouco oportuno. A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma — «digna», portanto — é um elemento muito mais complexo e gradual que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade como mera diretriz normativa. A caracterização da dignidade humana que desenvolvemos ao longo deste artigo leva-nos a admitir que temos boas razões para supor como correta a afirmação de que não cabe inferir grande coisa acerca da dignidade humana a partir de enunciados meramente lógico-formais, religiosos, filosóficos, normativos, de ideais políticos ou de vagas elucubrações acadêmico-teóricas.

A investigação da dignidade está vinculada de forma estreita à noção de natureza humana que, a sua vez, é uma questão tão fática como a medida do periélio de Mercúrio (J. Mosterín, 2006). Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e/ou unicamente como condição transcendental de possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da liberdade, etc.

E a ideia de nossa natureza que se deriva da concepção biológica do ser humano parte da situação básica de relação que existe entre cada um dos seres humanos com outros seres humanos. A natureza humana nem se esgota nem fica bem descrita em função do indivíduo moral singular, encerrado em sua esfera individual, e que serviu até agora para caracterizar como valor básico da construção do Estado liberal. Hoje sabemos que o que denominamos natureza humana tem qualidades e predisposições físicas e morais inatas. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que esse conjunto de traços conformam a condição humana. Sabemos, mais além de toda dúvida razoável, que somos o resultado do processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. E o resultado é uma espécie interdependente, ética e social.

De fato, a própria ideia de liberdade — condicio sine qua non na qual se arraigam a autonomia e a dignidade humana — não se pode conceber a margem da relação com outras pessoas, porque a forma de ser do homem no mundo é de per si uma forma de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer está inscrita na mesma essência do homem; dela surge a possibilidade e a capacidade de atuar de maneira livre e digna. Pois bem, essa autonomia não pode ter lugar mais que no diálogo e a interação com outros (com o «outro»); quer dizer: não há liberdade humana que não se plasme na capacidade de sentir a chamada do outro. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, de forma posterior e secundária, se veja revestida de uma dimensão ética. Dimensão livre e dimensão ética são os mesmos, e também é essa uma constatação que cobra seu sentido à luz do naturalismo.

Darwin apresentou o «homem moral» baseando-se em que sua capacidade cognitiva para compreender, avaliar e eleger complementa o moral sense para dar lugar à natureza humana evolucionada. Nada disso é possível em uma situação de isolamento. A mais íntima essência e a medida da liberdade no ser humano são a possibilidade e a capacidade para sentir a chamada do outro e responder a ela. Desde o momento em que o outro aparece como um outro livre e autônomo, nasce  também a dimensão ético-jurídica, relacional e intersubjetiva da dignidade.

Autonomia pessoal, liberdade e dignidade

Dado que os humanos não nos criamos a nós mesmos em um sentido absoluto, tem que haver algo em nós do qual não somos a causa. Mas o problema central com respeito ao nosso interesse pela dignidade e a liberdade humana não radica em quais dos acontecimentos em nossa vida volitiva estão determinados causalmente por condições externas a nós. O que realmente conta, no concernente à liberdade e a dignidade, não é a independência causal. É a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão acerca de se somos ativos ou passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, desse modo, não nos são alheios. (H. Frankfurt, 2004). O sujeito autônomo, entanto que sujeito livre, não se encontra nem por debaixo nem por encima do sujeito de carne e osso (genes, mente e cérebro) e tampouco requer, para salvar a liberdade e a dignidade, de um  “agente moral autônomo” como alternativa a uma explicação causal em termos biológicos e evolutivos.

Ser fiel à natureza não é, portanto, recusar em seu nome a autonomia ou a liberdade (elemento constitutivo da dignidade e, por sua vez, efeito da natureza); é, ao contrário, prolongar esse gesto, indissociavelmente natural e histórico, pelo qual nossa espécie, biológica e social, se ergue contra a natureza que a produz e a contém. É o que Camus chamava de «revolta», é o que Vercors chamava de «recusa rebelde»  (em que via uma característica de nossa espécie, que faz de nós uns animais desnaturados), é o que chamamos ordinariamente de «livre arbítrio» e que a evolução por seleção natural também pode explicar. Nossos cérebros realmente estão desenhados para produzir flexibilidade, liberdade e autonomia.[9] Para a perspectiva naturalista ser fiel à natureza consiste en estender este gesto à categoria de normas, princípios e valores para o direito.

É esse sentido relacional de dignidade humana o que deve estar ancorado em um direito destinado a favorecer a liberdade e a autonomia da pessoa. E não se trata de um problema de pouca importância, de um mero diletantismo mental para os acomodados juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição da forma de abordar o problema da dignidade humana supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção e o sentido do discurso jurídico, moral e político.

Desde esta perspectiva, o interesse humano pela dignidade  como valor prioritário na ordem dos valores vem a converter-se, desde a ideia da liberdade humana, em um convite a viver de forma genuinamente humana nossa existência a partir do reconhecimento do «outro». De fato, a responsabilidade pelos demais, que emana de sua mera existência, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, a liberdade e a dignidade humana.

O fundamento do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, geneticamente programado para a liberdade e a vida em sociedade (P. Magistretti, 2004; D. Siegel, 2007). Longe de ser um princípio contrário ou separado de nossa natureza, é esta, nossa natureza, a que dá sentido a nossa ideia da dignidade humana.

Natureza humana, dignidade e normatividade

A ideia de dignidade fundada em uma teoria forte de natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito sustentado, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo. Somos nós mesmos os que outorgamos direitos morais a todo homem, por mais que busquemos seus fundamentos em instâncias não humanas, transcendentes ou sobrenaturais.[10] Não existem, pois, direitos que não sejam outorgados para resolver problemas adaptativos relacionados com nossa própria vida (ou sobrevivência) social. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo — que implica ter em conta as necessidades, desejos e crenças dos demais — tem por objeto garantir as condições mínimas de uma vida satisfatória e plena (o radical direito aos meios materiais de existência), que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, de fato, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar baixo o suposto implícito de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.

Dito de outro modo, não encontraremos o quid da dignidade introduzindo-nos frivolamente em reinos metafísicos nem tratando de encontrar seus fundamentos em tal ou qual escola de filosofia. A dignidade não é uma nuvem amorfa. E se estamos de acordo em que a dignidade humana é a capacidade de mostrar-nos dignos de respeito, devemos reconhecer que ela afeta a seres humanos, indivíduos de carne e osso, cada um com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, mirar e sofrer, “uno más uno más uno más uno más uno…”(J. Wark, 2011).

Em consequência, parece que a melhor maneira para explicar, compreender e aplicar o princípio da dignidade é a partir da ideia do ser humano em sua tríplice configuração: a) em sua existência individual, separada e autônoma (e, como tal, princípio do direito); b) como fim de seu mundo (e, portanto, também do direito); e c) como sujeito de vínculos sociais elementares através dos quais constrói, a partir das reações dos demais, os estilos aprovados de uma vida sócio-comunitária digna de ser vivida em sua plenitude (ou seja, como titular de direitos e deveres que projetam na coletividade a sua existência como cidadão).

O objetivo essencial em uma operação assim, recorda N. Chomsky (2006), deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça. Isto significa criar uma teoria social e jurídica humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção naturalista e empiricamente firme da natureza humana (ou da essência humana), quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, à igualdade e outras características humanas fundamentais (enfim, à dignidade humana), e uma noção de estrutura e relação social donde estas propriedades possam realizar-se para que a vida adquira a essência de uma existência verdadeiramente humana.[11]

Mas o princípio da dignidade não somente tem importância no processo político-legislativo de elaboração de um desenho normativo. Também tem, e muito em especial, no momento tão problemático como concreto de sua aplicação. Nesse sentido, a primazia que desempenha a condição/natureza humana sobre o princípio da dignidade como critério de sustentação das normas, valores e princípios contidos no ordenamento jurídico se converte em garantia contra o perigoso modismo das recentes teorias dos direitos humanos e fundamentais, já proceda do jusnaturalismo transcendental, do poder aterrador das más ideias pós-modernas ou do positivismo jurídico.

A título de resumo, o direito constitui um instrumental normativo muito útil para dar curso normal a uma mediação pragmático-normativa de elaboração e aplicação das leis que seja eficaz para evitar que o indivíduo resulte interferido em seu plano vital pelos demais agentes sociais. Mas como condição necessária para que suceda isso, para poder fugir das imposições arbitrárias, a própria realização prático-jurídica do direito deve ser formulada a partir de uma posição antropológica capaz de explicar a fenomenologia da ação humana. Somente desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao operador do direito captar o sentido e a função do princípio da dignidade humana como unidade de um contexto vital, ético e cultural. Afinal, a noção de um direito destinado a garantir a existência material de todos as pessoas e suas possibilidades de viver de acordo com seus próprios planos de vida indica precisamente que o ser humano não se converte em membro da sociedade humana por meio da (simples) captação metafísica de um «ideal social» sobre a base de determinadas palavras, senão em virtude de su pertenencia biológica a la especie Homo sapiens”.

Daí que a percepção da «dignidade» pressupõe a evidência de que o homem é um produto da história da evolução por seleção natural. Os momentos biológicos e culturais se encontram estritamente entrelaçados no processo que conduziu ao ser humano. O homem é um ser natural e cultural, dotado de uma “natureza cultivada” – para usar a expressão de K. A. Appiah (2010). Quando o homem começou a dar nome e significado às coisas do mundo em uma linguagem reciprocamente utilizável surgiu a mente, o pensamento ou o discurso, todo um sistema de representação simbólica destinado a designar as coisas de maneira que resultem apropriadas a algum fim determinado. Somente neste terreno é possível falar de «dignidade»;  somente então se abriu o campo de atuação da comunidade humana no qual os direitos e os deveres desempenham um papel significativo; somente a partir da capacidade (neuronal) de dar-se respostas a si mesmo e aos outros que o homem se converteu em um ser digno, livre e responsável.

Em realidade não se trata de pretender impor grandes novidades. O que se intenta mediante a concepção naturalista dos valores e princípios humanos é vincular de forma prioritária a concepção da dignidade à de natureza humana, devidamente fundada na herança e na cultura, isto é, de fazer dela o sentido mesmo das virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. Estas três virtudes, que compõem o conteúdo da justiça, somente são diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito sem condições da «condição humana»: não se pode realizar na prática o princípio da dignidade se este não se materializa nas humanas condições do processo experiencial de que surge, garantindo a cada cidadão liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade solidária.

Qualquer teoria que não se baseie em dados experimentais verdadeiros e fidedignos, ou que os ignore, é uma teoria digna de condena por sua irremediável estupidez ou má-fé. O que diríamos de um juiz que decidisse dirimir os casos apresentados a juízo a partir de suas intuições, suas opiniões pessoais ou de sua ideologia e não a partir da prova dos fatos? Esta ignomínia resulta ainda mais grave quando se trata de considerar os grandes problemas da vida. Como disse W. K. Clifford (1879) há mais de um século, temos o dever pessoal e social de combater as crenças não respaldadas pela evidência ou que se opõem ativamente a ela, do mesmo modo que temos a obrigação pessoal e social de tratar de evitar a propagação de uma enfermidade.

É sabido que a norma jurídica, qualquer que seja seu grau de imperatividade, deve promover a justiça. O modo mais decisivo de fazê-lo é garantir de forma incondicional a liberdade, a igualdade e a autonomia do ser humano que, em seu conjunto, configuram sua dignidade. Mas nada disso haveria resultado possível, nem o seria nunca, se a natureza humana não houvesse adquirido através do caminho de nossa evolução as bases necessárias para alcançar a dignidade, para entendê-la e para fazer dela o sentido mesmo de nossa existência como primatas peculiares.

A teimosa insensatez dos néscios

Poderão os resultados das investigações científicas sobre a natureza humana virem a servir de fonte de informação e/ou renovação dos postulados tradicionais acerca da dignidade humana? Duvidamos. Os juristas distam muito de estar preparados para que os dados científicos guiem suas teorias e práticas jurídicas: a sacrossanta ideia da «excepcionalidade» humana continua tão presente nas ciências sociais e jurídicas que os acadêmicos não somente não suportam a novidade e a profundidade científica, senão que também partem da premissa, pelo menos em sua grande maioria, de que o ser humano é «tão extraordinário» que a condição humana transcende por completo o conhecimento científico (ou, ao menos, que se acha fora do alcance da boa ciência) .[12]

Nada obstante, estamos convencidos de que assumir a importância desse câmbio de paradigma gerado pelos estudos provenientes das boas ciências dedicadas à compreensão da natureza humana não somente representa uma enorme diferença na imagem que temos do mundo e de nós mesmos, rebaixando uma vez mais o orgulho dos juristas que nos fizeram (e ainda nos fazem) crer em tantas falsidades, senão que também nos proporciona uma maneira mais frutífera e fascinante de cultivar o direito do que essa espécie de filosofia ou ciência jurídica “no vazio” em que todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos.

Um programa naturalista digno desse nome, carregado de responsabilidade e vinculando o conhecimento científico experimental e o conhecimento humanístico, sugere novas exigências ontológicas e metodológicas para a filosofia, a teoria e a ciência do direito, um campo em que cientistas e juristas estão condenados a colaborar.

Em um de seus  escritos, Eduardo Galeano fala de uma criança que chega cerca do mar – e é a primeira vez que o vê -, segura a mão de seu pai e lhe diz:  «Ayúdame a mirar». Tudo o que temos que fazer com relação à dignidade humana é dizer: «Mira ahora, porque hasta ahora no podías mirar».

 

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Notas
[1] “Cuando eliminamos a la biología de la vida social, ¿qué nos queda? Palabras. Ni siquiera el lenguaje – que, desde luego, es profundamente biológico –sino solo palabras que tienen el poder mágico y son capaces de inclinar nuestro pensamiento. La ciencia misma queda reducida a uno de tantos sistemas arbitrarios de pensamiento” (R. Trivers, 2013). Assim choca a idiossincrasia com a realidade.

[2] Tomado e modificado levemente do original «¿Existen las razas?», http://ilevolucionista.blogspot.com.es/.

[3] Sobra dizer que os ecléticos e irênicos discursos sobre a dignidade humana são uma forma deveras eficaz para ganhar prestígio acadêmico, vender livros “de ocasião”, receber aplausos entusiastas dos mais crédulos, e, desde logo, inúmeros convites para proferir palestras: a «síntese admirável», «a satisfação perfeita». Desgraçadamente esses discursos, além de não servirem para  fazer  avançar  discussões originais e significativas, limitam-se a engrossar ad infinitum o tema da dignidade, sem chegar nunca ao «núcleo duro», ainda que parcial, dos fundamentos naturais e neurobiológicos dos valores humanos; um tipo de discurso condescendente adstrito a determinados marcos ideológicos e que só realça a fragilidade e a insuficiência que caracteriza a dignidade enquanto «constructo mental». Não tratam de expressar a realidade, senão que se restrigem a usar um tipo de razoamento tendencioso, uma fascinação perigosa pela dignidade que favorece e apoia determinados pontos de vista que são fáceis de justificar, mas não necessariamente melhores: «conhecem a música da dignidade humana, mas não a letra da natureza humana». Para dizer de modo mais simples: os argumentos que expressam representam os curiosos malabarismos que se pode chegar a fazer com os valores, princípios, normas e/ou métodos interpretativos para inferir as conclusões que valoram como positivas e que trabalham a favor de seus “sombríos sesgos emocionales, cognitivos e ideológicos (incluyendo rasgos propios de mente de colmena y por el tipo de presiones sociales «conservadoras» y «progresistas» descritas por Thomas Kuhn)”, torcendo de forma idiossincrásica os significados que atribuem à informação que tomam do mundo (D. Kahneman, 2011). Voltaremos de imediato sobre este ponto.

[4] Deixaremos de lado os aspectos lógico-formais da «falácia naturalista» que enunciou o pensamento analítico dentro da filosofia porque já resolvidos de maneira convincente por Richard Hare (1979). Sem embargo, conjecturar acerca do problema da «falácia naturalista» significa, em síntese, passar dos enunciados descritivos («Pedro matou a sua mulher») aos enunciados valorativos («Pedro deve ir à prisão»). Nada mais longe da realidade. E duas são as circunstâncias a considerar: em primeiro lugar, como mostrou  Hare, não existe falácia lógica porque a passagem dos enunciados descritivos aos valorativos se faz dando por suposto de maneira implícita um enunciado intermédio («Quem mata deve ir à prisão»); em segundo lugar, que os fatos da natureza e a história fundamentam e impõe limites aos valores, mas não os determinam. É a mente humana a que constrói os valores e as normas. Depois, talvez seja útil recordar que, simétrica à «falácia naturalista», está a chamada «falácia moralista». Esta falácia («moralista»), descoberta por Bernard Davis nos anos setenta do século passado (em resposta às crescentes demandas políticas e públicas para restringir a investigação básica), realiza o caminho oposto à «naturalista»: enquanto esta consiste em inferir um «dever ser»  de um  «ser», aquela supõe o «ser» a partir de um «dever ser» (quer dizer, inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou enunciado moral ou deôntico). Como é óbvio, ambas são falazes e insustentáveis logicamente. E S. Pinker (2002) já chamou a atenção sobre a frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” caem ( e/ou insistem) na «falácia moralista», isto é, na ideia de que devemos dar forma aos fatos, de tal modo que apontem às consequências mais moralmente desejáveis.

[5] Uma atitude similar à descrita por Paul Watzlawick (2013): “Un borracho está buscando afanosamente bajo un farol. Se acerca un policía y le pregunta qué ha perdido. El hombre responde: «La llave». Los dos hombres buscan la llave. Al fin, el policía pregunta al hombre se está seguro de haber perdido la llave precisamente ahí. El hombre responde: «No, aquí no, allí detrás, pero allí está demasiado oscuro». ¿Le parece absurda esta historia? Si cree que sí, busque también usted fuera de lugar”.

[6] O mesmo é dizer que hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer distanciada ou isolada fingindo desconhecer os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que trabalham para estender uma «ponte» entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da conduta humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a dimensão natural do ser humano, do ser humano considerado simultaneamente como um ser (neuro) biológico, cultural, psicológico e social; uma espécie animal que há alguns milhões de anos atrás não era senão parte do menu de numerosos depredadores e que conseguiu sobreviver, evolucionar, criar ferramentas e vencer sérias adversidades, e cujos descendentes conseguiram logros tais como pintar O Juízo Final, compor e interpretar a Tocata e Fuga em Ré Menor  e escrever Crime e castigo.

[7] Recordemos que o cérebro humano, sede de nossas ideias e emoções, da linguagem, da moral e do direito, é o único meio através do qual os valores chegan ao mundo. É o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar e dar sentido ao mundo, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e dignidade. Toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo o que pensamos, sentimos, fazemos ou deixamos de facer sucede e depende de nosso cérebro; se originam em nossas faculdades de percepção, pensamento e emoção, “y se acumulan y difunden a través de la dinámica epidemiológica en la que una persona contagia a otras.” (S. Pinker, 2013). Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo seu esplendor é sem dúvida em nosso volumoso cérebro. O que implica que para compreender “lo que somos y cómo actuamos, debemos comprender el cerebro y su funcionamiento.” (P. S. Churchland, 2006). Dito de modo mais direto: não somente a causa da mente e de toda conduta é o cérebro, senão que «somos nosso cérebro» (D. Swaab, 2014).

[8] Como assinalou em certa ocasião Patricia Churchland: “Una de las cuestiones más importantes de nuestra cultura tiene que ver con en quién confiamos en el ámbito del conocimiento. Para contestar a esta pregunta, debemos saber algo para albergar una creencia razonable sobre quién puede ser de fiar para obtener los datos técnicos que necesitamos”. 

[9] “Uma descrição naturalista de como ocorreu nossa evolução e de nossas mentes parece ameaçar o conceito tradicional de liberdade, e o medo ante esta perspectiva acabou por distorcer a investigação científica e filosófica nesta matéria. Alguns dos que deram à voz de alarma ante os perigos dos novos descobrimentos sobre nós mesmos apresentaram uma imagem muito falseada dos mesmos. Uma severa reflexão sobre as implicações de nosso novo conhecimento sobre nossas origens servirá de fundamento para uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade que os mitos aos que está chamada a substituir” (D. Dennett, 2003).

[10] Há, por certo, quem crê que existe algo assim como um mundo platônico de direitos que só temos que aprender a ver para reconhecer-lhes. Outros creem que os direitos estão outorgados por um ente superior e que, em escritos a «ele» atribuídos, deixou dito quais são. Outros, ainda, creem que a só existência desse «ser» implica também a existência de direitos, que se pode ir desglosando com boa Teologia. Também estão os que creem que as cartas de direitos são provisionais e que refletem as preferências dos mais poderosos. Finalmente está quem crê que os direitos poderão deduzir-se usando a razão, estando escondidos nela e desde donde, razoando adequadamente, poderemos sacar-lhes, esta vez com boa Metafísica. Não é muito distinta esta última da postura platônica inicial, nem é distinta a maneira em que cada qual crê haver vislumbrado o deduzido pela razão. Mas o fato de que nenhuma destas posturas tenha conseguido avançar em sua agenda, senão mais bem que para seus respectivos «progressos» haja corroborado as próprias intuições e prejuízos, as fazem igualmente débeis e inúteis. Daí a proposta da simples consideração de que não existem mais direitos que os que concedemos uns a outros e/ou aos demais, um conjunto de estratégias destinadas à oferecer soluções aos desafios adaptativos que surgem em determinadas situações da vida comunitária, delimitando, modelando, controlando e separando por uma via não conflituosa os campos em que os interesses individuais podem (ou devem) ser válida, legítima e socialmente exercidos – quer dizer, o direito como um artefato cultural desenhado e empregado para abordar, regular e articular, por meio de atos que são qualificados como valiosos, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social (Fernandez, 2007).

[11] Como esclarece S. Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos nos afanamos em prever o comportamento dos demais, o que significa que todos necessitamos umas teorias sobre ( e para entender) o que é o que move as pessoas a adotar determinadas condutas. Na própria maneira de pensar sobre a gente subjaz uma teoria tácita da natureza humana – a saber, que são os  pensamentos e os sentimentos  os causantes da conduta -. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remetimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. É esta teoria que nos aconselha sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta os nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por outro lado, o conhecimento da natureza humana também tem consequências profundas sobre nossos sistemas de justiça, os vínculos sociais relacionais e a dinâmica de poderes, na medida em que esta não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações jurídicas e os sistemas jurídicos concretos. Em resumo, é a natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais, limitando as variações sociais, morais e jurídicas possíveis.

[12] Para determinados acadêmicos desnorteados e alguns indivíduos do grêmio dos juristas não somente a ciência é um monólito, um mistério (antes que um método), senão que fazem caso omisso, por princípio, do fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos. Na verdade, temos a impressão de que alguns juristas não são capazes de reconhecer uma história verdadeiramente científica nem que esta baile desnuda ante eles. Mas, ainda que a resistência para dar por sentado que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação seja uma constante, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. Citando a Steven Pinker (2013): “… cuando leo a Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Leibniz, Kant, Smith, me asalta a menudo la tentación de viajar hacia atrás en el tiempo para ofrecerles alguna pieza de ciencia fresca del siglo XXI que pudiera llenar algún hiato en sus argumentos o servirles para dar un rodeo y salvar algún obstáculo atravesado en su camino. ¿Qué no habrían dado estos Faustos por disponer de ese conocimiento? ¿Qué no podrían haber logrado, muñidos y pertrechados con el mismo? […] La nuestra es una época extraordinaria para la comprensión de la condición humana. Problemas intelectuales que proceden de la antigüedad resultan ahora iluminados por los fogonazos procedentes de las ciencias de la mente, del cerebro, de los genes y de la evolución”.


Informações Sobre os Autores

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

Manuella Maria Fernandez

Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Humanidades y Ciencias Sociales( Evolución y Cognición Humana)/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Mestre em Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland; Research Scholar do Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos /UIB


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