Resumo: A regulamentação do tribunal do júri pelo Código de Processo Penal possibilita recurso contra a decisão que seja manifestamente contrária a prova dos autos. No entanto, sendo soberano o tribunal do júri, ele pode absolver baseando-se em teses defensivas não previstas na legislação, decisão inatacável, vez que não ignora a prova dos autos, apenas lhe dá consequencia jurídica diversa. A decisão do tribunal popular em casos tais deve ser preservada, dado que a inclusão do tribunal do júri entre as garantias fundamentais visa melhor proteger o cidadão.
Palavras-chave: 1. Soberania dos veredictos. 2. Teses metajurídicas. 3. Decisão do conselho de sentença contrária a provas dos autos. 4. Absolvição baseada em teses metajurídicas. 5. Garantia constitucional.
Abstract: The regulation of jury trial by the Code of Criminal Procedure allows appeal against the decision that is manifestly contrary to the evidence of the case. However , being sovereign the jury , it may acquit based on defensive thesis not contained in the legislation , unassailable decision , since indeed it does not ignore the evidence of the case, just gives it a rather different legal consequence. Thus, such decision of the people's court in these cases should be preserved, since the inclusion of the jury trial guarantees among the fundamental aims to better protect citizens.
Keywords: 1. Sovereignty of the verdicts . 2. Metajuridicas thesis . 3. Decision of the Jury contrary to the evidence on the process. 4. Acquittal based in metajuridica thesis . 5. Constitutional Guarantee.
Sumário: Introdução. 1. A soberania dos veredictos do tribunal do júri e seus limites; 1.1. Recorribilidade das decisões do tribunal do júri; 1.2. Teses metajurídicas; 1.3. Soberania dos jurados; 1.4. Teses acusatórias de extração unicamente metajurídicas. Conclusão. Bibliografia
Introdução
A Constituição Federal de 1988 expressamente agasalhou o “princípio democrático[1]”, reconhecendo ao povo a titularidade de toda manifestação do poder. E o tribunal do júri é, sem dúvida, mais um espaço privilegiado para a manifestação da vontade popular.
Deveras, previsto entre as garantias fundamentais do cidadão[2], o tribunal do júri tem assegurado que, quanto aos crimes dolosos contra a vida e os que são com estes conexos, haverá um julgamento não apenas técnico, realizado por um magistrado de carreira, sim por cidadãos que, em tese, representam toda a sociedade.
Este julgamento, porém, deve se dar na forma da lei, seguindo, pois, o procedimento regulamentado pelo Código de Processo Penal. Como é assegurado constitucionalmente a soberania dos veredictos, são exíguas as possibilidades de se recorrer das decisões emanadas pelo tribunal popular (CPP, art. 593, inciso III, alíneas “a” a “d”), destacando-se, neste artigo, a hipótese referente à decisão contrária à prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”). Com isto, surge a questão jurídica de saber se, num caso concreto, tendo a prova produzida sido conclusiva sobre a materialidade do crime, bem como sendo certa a autoria, pode o Tribunal do Júri, baseando-se apenas em teses metajurídicas apresentadas pela defesa, absolver o réu (malgrado as provas existentes quanto à materialidade e autoria, como já se mencionou).
1 – A soberania dos veredictos do tribunal do júri e seus limites
Por conta da soberania das decisões emanadas pelo tribunal do júri, o Código de Processo Penal, ao regulamentar o procedimento do tribunal popular, prevê de forma limitada as possibilidades de revisão recursal de suas decisões.
1.1 – Recorribilidade das decisões do tribunal do júri
De fato, uma apelação contra a decisão soberana dos jurados somente é cabível nas estreitas situações previstas no art. 593, III, alíneas “a” a “d” do CPP, quais sejam, a) nulidade posterior à pronúncia, b) sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados, c) erro ou injustiça na aplicação da pena ou medida de segurança e, por fim, d) se for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
Para o presente trabalho, importa apenas a questão ventilada na alínea “d” do inciso III do art. 593 do CPP, sobre o qual se destaca a lição doutrinária: “Admite, finalmente, o Código a apelação contra a decisão dos jurados que for manifestamente contrária a prova dos autos (593, III, d) podendo o Tribunal determinar novo julgamento (593, § 3º). Com isso o legislador permitiu, em casos de decisões destituídas de apoio na prova produzida, um segundo julgamento”. (GRINOVER, 2009, p. 103).
Todavia, como aceitar este entendimento quando o Conselho de Sentença, mesmo ante a prova dos autos, decidiu absolver? Ele não seria soberano para julgar, acolhendo toda e qualquer tese, ainda que sem amparo legal, mas com algum substrato social, isto é, teses metajurídicas?
1.2 – Teses metajurídicas
Inicialmente, um esclarecimento quanto ao vernáculo: metajurídico, para o Aurélio[3], “diz-se de certas condições jurídicas que não podem ser analisadas com os métodos da jurisprudência”. Com isto, são metajurídicas as questões que, conquanto sejam jurídicas no sentido de produzirem efeitos desta ordem, não se submetem unicamente aos limites do Direito positivo.
Assim, aplicam-se às teses defensivas que estão ao largo das previsões legais sobre excludentes de antijuridicidade (cuja presença impede a configuração de crime, previstas no art. 23 do Código Penal[4] prevê) ou culpabilidade (impede a imposição de pena[5]).
As teses metajurídicas, portanto, se referem a fatos sociais não previstos pela lei. Para melhor ilustração do tema, oferece-se 4 (quatro) exemplos imaginários de teses que poderiam ser sustentadas em plenário para absolver um réu:
1 – o réu deve ser absolvido porque, apesar de ter realmente cometido o homicídio de seu desafeto político, isto foi há quase 2 décadas e, doente como está hoje, já com 68 (sessenta e oito anos), cego pela diabete, hemofílico e paraplégico, já não há mais necessidade ou possibilidade de impor pena privativa de liberdade a ele, que sofrerá na prisão uma morte lenta e certa, em descompasso com os valores relativos aos direitos humanos vigentes em nossa sociedade;
2 – a ré deve ser absolvida porque matou sim o ex-marido, e mataria quantas vezes ele revivesse, porque um sujeito de estupra as próprias filhas durante tantos anos não poderia ter outro fim. Deveras, a ré matou em nome da justiça, não contra ela;
3 – os réus devem ser absolvidos porque, ao matar o sujeito que gerava o terror em sua localidade, um invasor de lares e violador de crianças, agiram como se espera que homens de bem ajam, realizando por si a justiça que o aparato estatal não foi capaz de realizar;
4 – o réu deve ser absolvido porque é um deus, na concepção da crença que cultua, sendo que retirar a vida da vítima, a qual partilhava do mesmo credo, foi para este antes um privilégio – morrer pelas mãos de seu deus e assim herdar o paraíso -, não um ato de menosprezo a vida, antes de elevação dela.
Algumas das suposições acima parecem plausíveis, outras absurdas, algumas até caricatas, mas todas são possíveis de ocorrer na prática, bem como outras que não se pode sequer imaginar.
Em casos tais, mesmo sendo robusta a prova da materialidade e segura a autoria atribuída ao réu, pode o tribunal – se é mesmo soberano – absolver os acusados, dado que o Conselho de Sentença não ignorou a prova produzida, apenas não lhe deu a consequencia jurídica requerida pela acusação, qual seja, invariavelmente a condenação?
Parcela da doutrina prefere ignorar esta discussão, simplesmente aduzindo que o quesito quanto à absolvição é obrigatório e vale para todas as teses com apoio em excludentes de antijuridicidade ou dirimentes de culpabilidade.
“Na pergunta sobre a absolvição do réu ficaram concentradas as teses sobre excludente de ilicitude e exclusão da culpabilidade, legítima defesa própria, de terceiros, legítima defesa putativa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever, exercício regular do direito, coação irresistível e obediência hierárquica, inexibilidade de conduta diversa, todas essas questões serão objeto de uma única indagação: o réu deve ser absolvido?” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 197).
Como se vê, a doutrina mais tradicional entende que as teses defensivas devem ter amparo em disposições jurídicas. Assim, pode haver várias teses defensivas, ainda que contraditórias ou alternativas, reunidas num único quesito geral, no qual estarão quase todas as causas de exclusão do crime (como a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal, que são causas de exclusão da ilicitude) e causas de isenção da pena (como a coação moral irresistível, que é uma causa de exclusão da culpabilidade).
Destarte, no que concerne às teses passíveis de sustentação em plenário de julgamento, a doutrina processual tradicional apenas se referem a defesas jurídicas, isto é, baseadas em teses que tenham amparo legal.
Todavia, tal leitura parece ser estreita demais, não compatível com a inclusão do tribunal do júri entre as garantias fundamentais, não estando de acordo com o espírito garantista inserto na Constituição Federal.
1.3 – Soberania dos jurados
Ao contrário da lição doutrinária destacada no tópico anterior, parece-nos que, nos casos assemelhados aos exemplos oferecidos no item 1.2, bem como em muitos outros que a vasta realidade está sempre a oferecer, nem sempre haverá uma regra legal servindo de amparo à tese defensiva, a qual pode repousar apenas em apelos emocionais por clemência, em concepções sociológicas sobre as peculiaridades de certa região etc. Enfim, em teses metajurídicas.
Inclusive, esta é exatamente esta a razão de se instituir um juízo leigo, ou seja, somente ele é capaz de apreciar adequadamente questões que desbordam dos temas legais. Para todos os demais, basta o juiz togado.
Destarte, não aparenta ser admissível o conhecimento e provimento de recurso acusatório que se insurge contra decisão absolutória que acolheu tese não jurídica, ainda que o CPP permita manejo de apelação em face de decisão contra a prova dos autos. Neste sentido, o dispositivo do CPP (e apenas no que se refere a esta interpretação restritiva), não teria sido recepcionado pela Carta de 88.
Nesta seara, Eugênio Pacelli de Oliveira apresenta uma introdução ao tribunal do júri condizente com o que aqui se defende – uma maior elasticidade hermenêutica ao art. 593, III, “d”, do CPP, conforme a Constituição -, em lição que se colaciona abaixo:
“Aliás, uma das razões para a justificação da instituição do júri certamente diz respeito à possibilidade de se permitir que o sentimento pessoal do jurado sobre a justiça ou não da ação praticada pelo réu expressasse a vontade popular. Fala-se em democracia no júri por esta razão: a substituição do direito positivo a cargo do juiz pelo sentimento de justiça do júri popular” (OLIVEIRA, 2010, p. 707).
Assim, parece mais consentânea com a Constituição uma interpretação que privilegie realmente a soberania dos veredictos, respeitando as motivações íntimas dos jurados, em qualquer sentido que se manifestem.
No mesmo sentido: “O motivo do Conselho de Sentença para absolver ou condenar não se torna explícito. Pode fundar-se em qualquer argumento exposto pelas partes em plenário, como pode centrar-se na convicção íntima de que o réu simplesmente não merece ser condenado ou merece a condenação” (NUCCI, 2013, p. 820).
Este é realmente o entendimento que deve prevalecer.
Nos casos em que a defesa se baseie unicamente em teses de extração metajurídica, reconhecendo materialidade e autoria delitivas, mas pugnando pela absolvição por razões sentimentais, políticas ou sociológicas (metajurídicas, como são tratadas neste artigo) estas decisões devem ser preservadas, não podendo ser alteradas em julgamento de recurso acusatório baseado na contrariedade à prova produzida, uma vez que, ao absolver, o tribunal popular não ignorou a prova produzida, apenas lhe deu consequencia jurídica diversa da prevista na letra da lei.
Isto é possível porque, em última instância, todo poder emana do povo, como consta no parágrafo único do art. 1º da CF, tema já explorado na introdução a este trabalho. E o tribunal do júri, uma das garantias do cidadão, tem a competência até para absolver independentemente da prova produzida, sendo sua decisão soberana.
1.4 – Teses acusatórias de extração unicamente metajurídicas
Naturalmente, poder-se-ia perguntar se o mesmo raciocínio não poderia ser utilizado para fundamentar condenações baseadas também em teses metajurídicas. No entanto, tal raciocínio é prontamente descartado quando se mira a exigência constitucional de lei prévia e formal para que alguma conduta possa ser considerada crime, o que não impede que, num caso concreto julgado pelo tribunal do júri, os jurados optem por absolver o acusado, exercendo uma discricionariedade política que o constituinte lhe outorgou.
Conclusão
Por todo o exposto, verifica-se que a colocação do Tribunal do Júri entre os direitos e garantias fundamentais visa melhor proteger o cidadão comum quando acusado de cometimento de crime doloso contra vida e os que lhe são conexos.
Para a análise de tais casos, a Constituição não aceita um julgamento baseado apenas em questões técnicas, em disposições legais claras. Ao contrário, o simples fato de ter determinado o julgamento destas questões por um juízo composto por pessoas sem necessária formação acadêmica em Direito, garantindo-lhes o sigilo das votações ao mesmo tempo em que os isenta de fundamentação, já é um indicativo de que podem julgar conforme suas consciências, sendo suas deliberações insindicáveis por órgão de superior instância, sob uma alegação de decisão contrária a prova dos autos.
Se o conselho de sentença absolver quem efetivamente cometeu crime cuja materialidade é estreme de dúvidas, mas estando motivado por temas defensivos que não estão explicitamente positivados como causas de exclusão de antijuridicidade ou dirimentes de culpabilidade, ainda assim esta decisão deve prevalecer, não sendo constitucional a reforma desta decisão.
De fato, o tribunal popular pode absolver porque quer absolver, exercitando legitimamente um poder que é seu, como membro da sociedade da qual emana todo o poder, esta decisão precisa ser respeitada – e mantida.
Informações Sobre o Autor
Cláudio Sérgio Alves Teixeira
Bacharel em Direito pela Unimesp-FIG 2007 com especialização em Direito Penal e Processo Penal pela FMU 2014. Licenciado em Letras pela Unicsul 1997. Advogado em Guarulhos – SP