Resumo: O presente artigo aborda a recente e polêmica decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, na Petição (PET) 5828, determinando o fornecimento da substância chamada fosfoetanolamina sintética, a chamada “pílula contra o câncer”, que contradiz o anterior posicionamento do STF na paradigmática STA 175, bem como boa parte da doutrina e jurisprudência sobre a judicialização da saúde, deferindo o uso compassivo de uma substância sem registro na ANVISA, fora de protocolo e em caráter experimental.
Palavras Chave: Fosfoetanolamina Sintética. Judicialização da Saúde.
Abstract:ThisarticlediscussestherecentandcontroversialdecisionoftheMinisteroftheSupremeCourt, Edson Fachin in thePetition (PET) 5828, determiningtheprovisionofsubstancecalledsyntheticphosphoethanolamine, the "pillagainstcancer", whichcontradictstheprevious position ofthe STF onparadigmatic STA 175, andmuchofthedoctrineandjurisprudenceonthelegalizationofhealth, grantingthecompassionate use of a substancewithoutregistrationat ANVISA, out ofprotocolandon a trialbasis.
Keywords:SyntheticPhosphoethanolamine. Legalizationof Health.
Na Constituição Federal o direito à saúde é tratado como direito social fundamental (art. 6º), contando com uma normatização específica entre os artigos 196 e 200, cujo intuito é garantir o acesso universal, integral e igualitário aos serviços de saúde pública.A disciplina infraconstitucional desse direito social (Lei 8.080/90) reafirma a saúde como direito fundamental do ser humano, sendo as ações para a sua promoção um dos deveres mais cobrados das três esferas do Estado Brasileiro (art. 2º) que fazem parte do Sistema Único de Saúde.
Se é certo que os avanços tecnológicos na área da medicina trazem todos os dias novidades para a promoção da cura das doenças, ou da melhoria da qualidade de vida dos enfermos, não é menos verdade que, em termos de saúde pública, a inclusão das novas tecnologias deve ser apreciada sob diversos prismas, incluindo a relação custo benefício desses avanços, de modo a harmonizar os princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS): universalização do acesso com equidade, integralidade da atenção, unificação institucional do sistema, descentralização, regionalização, hierarquização da rede de serviços e participação da comunidade.
Gilmar Ferreira Mendes[1] aponta clara identificação no texto Constitucional de um direito individual e de um direito coletivo de proteção à saúde, sendo na dimensão individual um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação obrigacional consubstanciada em uma prestação positiva, um direito a prestações em sentido amplo, de forma que, tratar o dispositivo do art. 196 da Constituição da República como mera norma programática, seria negar-lhe eficácia, ou reduzi-lo a uma promessa inconsequente, como referido pelo Ministro Celso de Mello no AgR-RE n. 271.286/RS[2].
Todavia, apesar da consagração desse direito social como um direito subjetivo exigível do Estado, e do primado da integralidade da atenção, o próprio STF[3] já deixou patente que não há um direito absoluto a toda e qualquer tecnologia disponível “no mercado”, porque em um sistema de saúde pública, fulcrado na “medicina com base nas evidências”, é poder-dever do Estado utilizar apenas e tão-somente as tecnologias comprovadamente seguras, eficientes e com uma relação custo-efetividade que recomende a sua incorporação ao SUS, de forma a estar disponível em condições de igualdade para toda a população.
Mesmo assim, a ânsia pela vida e pelo bem-estar, a esperança depositada em tudo que há de novidade, faz com que os cidadãos levem o direito à saúde a ser uma das questões mais debatidas no âmbito judicial atualmente.Basta ver a grande discussão do momento, que é a distribuição da Fosfoetanolamina Sintética, propalada como o “milagre” contra o câncer. A peregrinação de doentes terminais por essa substância levou o STF a admitir o seu uso excepcional e compassivo, contradizendo suas próprias e recentes afirmações, determinando a disponibilização da substância, apesar de a Fosfoetanolamina não possuir sequer pedido de registro na ANVSA, ou ter sido testada validamente em humanos.
A fosfoetanolamina sintética é uma substância que foi estudada de forma independente pelo Prof. Dr. Gilberto OrivaldoChierice, outrora ligado ao Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros da Universidade de São Paulo (USP), e querecentemente ficou conhecida como a “pílula do câncer”. Os estudos independentes do Prof. Chierice envolveram a metodologia de síntese da substância que acabou por ser utilizada para fins medicamentosos, por conta e risco do docente em questão. Como alguns pacientes relataram melhora, a notícia se espalhou como um rastilho de pólvora, gerando uma romaria de doentes e familiares em busca de esperança na nova substância.
Apesar de a Universidade de São Paulo não possuir acesso aos elementos técnico-científicos necessários para a produção da substância, cujo conhecimento é restrito ao docente aposentado e à sua equipe, além de protegido por patentes (PI 0800463-3 e PI 0800460-9), ocorreu que a USP passou a ser sistematicamente demandada, inclusive judicialmente, para o fornecimento da fosfoetanolamina a doentes dos mais diversos tipos de câncer, como se configurasse um tratamento revolucionário e comprovado para a cura da doença.[4] A Universidade foi obrigada a se manter produzindo o medicamento, mesmo sem condições para isso, de forma que passou a tentar cassar na Justiça de São Paulo as decisões que a obrigavam ao fornecimento.
A USP argumenta que não desenvolveu estudos sobre reação dessa substância em seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos, de forma que a fosfoetanolamina sintética não pode ser sequer classificada como medicamento, tanto que não tem bula e a dosagem está sendo administrada conforme entendem os técnicos que produzem a substância.
Provocada pela USP, a presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu as decisões de antecipação de tutela para o fornecimento da fosfoetanolamina sintética, com o que advogados e familiares de pacientes com câncer buscaram a reversão da decisão no STF.
Em 6 de outubro de 2015, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), naPetição (PET) 5828concedeu medida liminar suspendendo decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que impedia uma paciente de ter acesso à substância contra o câncer fornecida pela Universidade de São Paulo (Campus de São Carlos). A manifestação do STF incendiou a discussão sobre o assunto e a situação foi amplamente divulgada na mídia, levando o Ministério da Saúde a publicar na sexta-feira, dia 30 de outubro de 2015, a Portaria n.º 1.767 de 29 de outubro de 2015[5], instituindo um grupo de trabalho para apoiar os estudos clínicos necessários ao desenvolvimento clínico da fosfoetanolamina.
Segundo o Ministro Fachin, o fundamento da suspensão da tutela guerreada seria apenas a falta de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) da substância requerida, e que, por o tema pender de análise sob o sistema de repercussão geral (RE 657.718-RG, Relator Ministro Marco Aurélio, Dje 12.03.2012 – tema 500), isto emprestaria plausibilidade à tese suscitada pela recorrente, recomendando a concessão da medida cautelar, para suspender decisão proferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.[6] Apesar de o Ministro referir que o caso não deveria ser utilizado como precedente, por se tratar de uma situação excepcional, proliferam milhares de ações na Justiça em busca da fosfoetanolamina.
O deferimento de uma substância experimental e sem registro na ANVISA é oposto ao que o STF[7] decidiu na paradigmática Suspensão de Antecipação de Tutela n.º 175que reconheceu o registro na ANVISA como condição de partida para a possível inclusão de um medicamento no rol dos fornecidos pelo SUS.
Gilmar Ferreira Mendes[8] registra ainda o “dever de proteção” do Estado com relação aos medicamentos ditos “experimentais”:
“Na hipótese de o medicamento ainda ser experimental, a Administração Pública deve zelar pela segurança e qualidade das ações e prestações de saúde, não sendo razoável que decisões judiciais determinem o custeio dessa espécie de tratamento, de eficácia duvidosa, associado a terapias alternativas.”
A decisão que determina o fornecimento da fosfoetanolamina vai de encontro, também, ao que o Conselho Nacional de Justiça, órgão de cúpula do Poder Judiciário, considerou ao emitir a Recomendação n.º 31/2010, visando melhor subsidiar os operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a saúde. Na Recomendação 31/2010, no item “b.2”, ficou consignada a orientação aos magistrados para evitar a autorização de fornecimentos ainda não registrados na ANVISA, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei.
A ANVISA na nota técnica n.º 56 SUMED/ANVISA esclarece que não está em curso qualquer pedido de registro para o medicamento com princípio ativo fosfoetanolamina, bem como não há qualquer avaliação de projetos para fins de pesquisa envolvendo seres humanos, sendo que cada fase de pesquisa necessita de aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Finalmente, é preciso salientar que a determinação de custeio da fosfoetanolamina pelo SUS fere frontalmente o artigo 19-T da Lei 8.080/90 (que foi incluído pela Lei nº 12.401, de 2011), uma vez que é vedado à Administração Pública fornecer ou custear fármaco que não possua registro na ANVISA:
“Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA;
II – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.”
O pensamento do Ministro Fachintambém parece não se coadunar com a linha seguida pelo Ministro Barroso[9], que critica as “decisões extravagantes ou emocionais que condenam a Administração ao custeio de tratamentos não razoáveis:
“O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas.(…)
Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.”
Ingo Sarlet se manifestou sobre a decisão do Ministro Luiz Edson Fachin em coluna no site Consultor Jurídico[10], afirmando que não é possível desconsiderar o fato de que o critério da excepcionalidade da situação, tal como defendido pelo prolator da decisão, não afasta a correção da justificativa adotada para afastar a possibilidade de via judicial impor ao Estado ou mesmo aos planos de saúde o fornecimento de medicamentos em fase experimental, pelos riscos para a própria saúde do autor da demanda ou mesmo em virtude da ainda não comprovada eficácia do medicamento, ademais de seu custo em relação a medicamentos devidamente aprovados e reconhecidos pela comunidade médica e pelas autoridades sanitárias nacionais. Ainda segundo o renomado autor, mesmo a aquisição particular, por conta e risco do paciente, de um medicamento que sequer foi testado em humanos, já seria questionável, quanto mais impor ao Poder Público e aos planos de saúde o ônus de custear esse tratamento que não pode ser tido como exigência da dignidade da pessoa humana e do direito à vida (quanto mais em face da ausência de comprovação de eficácia).
Em início de novembro de 2015, o Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) chegou a autuar o laboratório da Universidade de São Paulo (USP), no campus de São Carlos (SP), pela ausência de farmacêuticos no local onde é produzida a fosfoetanolamina sintética, registrando as precárias condições sanitárias e ausência de controle na produção[11].
Em 11/11/2015 o site Consultor Jurídico veiculou notícia de que o TJ-SP no Agravo Regimental 2194962-67.2015.8.26.0000/50080, cassou todas as liminares de primeira instância que mandavam USP fornecer "cápsula contra câncer" ao argumento de que seria irresponsável liberar substância química que promete cura de uma doença sem o mínimo rigor científico e ainda com duvidosa eficácia. Os desembargadores também proibiram que juízes do estado tomem decisões futuras com o mesmo tema[12].
Apesar de toda a polêmica criada, e de a decisão do STF já ter se repetido em outro caso, a recomendação do Ministério da Saúde segue sendo de que as pessoas não façam uso da Fosfoetanolamina até que os estudos sejam concluídos[13], sendo que o Ministério da Ciência anuncia um investimento de dez milhões de reais na pesquisa desta substância para os próximos dois anos. A ideia é que os estudos sejam conduzidos por laboratórios que têm parcerias firmadas com o ministério, o Instituto Butantã e os institutos ligados ao Ministério da Saúde[14].
Conclusão:
O direito à saúde não é uma promessa constitucional inconsequente, e tampouco um dever ilimitado do Estado. É, isto sim, garantia para o cidadão, e dívida estatal de prestações positivas que concretizem a busca do bem-estar físico e mental da população; um direito fundamental de segunda geração, que habita um terreno permeado por princípios e diretrizes que se prestam a muitos conflitos dada a dimensão coletiva e individual da saúde.
Ainda que a medicina seja uma ciência em constante evolução, tornando natural que as pessoas tenham a justa expectativa de viver mais e melhor, a absorção de novas tecnologias em saúde deve atender a processos administrativos específicos, vinculados e orientados pela medicina baseada em evidências, visando garantir a segurança dos usuários e a efetividade dos tratamentos, não sendo diferente com o caso da Fosfoetanolamina Sintética, cujo apelo emocional dos casos de câncer terminal não podem obrigar instituições públicas ou privadas ao fornecimento de uma substância que sequer está em uma fase experimental regular.
Informações Sobre o Autor
Renata Morsch
Advogada da União desde 2000 e trabalha na Coordenação Regional de Medicamentos da Procuradoria Regional da União na 4 Região