Resumo: No estudo da execução penal, o trabalho volta-se especificamente ao procedimento administrativo para a apuração de faltas disciplinares no sistema penitenciário de Santa Catarina. Para tanto, depois de feitas as indispensáveis introduções conceituais sobre o cumprimento das penas, discorre-se sobre as peculiaridades da competência legislativa dos entes federados em matéria disciplinar prisional, interpretando as mais importantes normas que tratam do assunto, sobretudo a lei federal geral sobre execução penal (LEP) e a legislação temática catarinense. Para que se possa compreender a realidade do sistema de apuração de faltas disciplinares, analisa-se também a incidência dos postulados constitucionais com as respectivas consequências práticas, sobretudo no que diz respeito à indispensabilidade da existência de uma defesa independente durante a apuração das faltas. Outrossim, depois de detalhado o híbrido sistema de apuração de faltas e aplicação de sanções (administrativo e judicial), são trazidos os paradigmas jurisprudenciais dominantes, não se descuidando das minúcias dos casos concretos subjacentes.
Palavras-chave: Execução penal. Apuração de falta disciplinar. Sanção disciplinar prisional. Procedimento administrativo-disciplinar prisional.
Résumé: Ce travail met l’accent sur l’exécution pénale, notamment sur la procédure administrative pour enquêter des infraction disciplinaires au système pénitentiaire de Santa Catarina. Ainsi, nous examinons des concepts fondamentaux et des particularités de la compétence des entités fédérales pour légiférer sur la discipline pénitentiaire. Nous avons aussi étudié les règles les plus importantes à propos du théme, en particulier la Loi d’Exécution de Peines brésilienne (Lei de Execuções Penais – LEP) et la légistation de Santa Catarina. Pour connaitre la realité de l’ênquête des infractions disciplinaires, nous y faison une analyse de l'application des normes constitutionnelles, notamment sur la nécessité d’une défense indépendante dans la procédure. La recherche démontre un système hybride d’enquête des fautes disciplinaires et d’aplicattion de sanctions dans le cadre administratif et juridiciaire. Enfim, tout au long du travail, on a fait une approche jurisprudentielle, en étudiant aussi les aspects pratiques de la matiére
Mots-clés: Exécution des peines. Instruction de l’infraction disciplinaire. Sanction disciplinaire pénitentiaire. Procédure disciplinaire pénitentiaire.
Sumário: Introdução. 1. Competência para legislar, princípios aplicáveis e sujeitos passivos. 1.1. Competência para legislar. 1.2. Princípios e direitos fundamentais. 1.3. Sujeitos Passivos. 2. O enunciado 533 da súmula do superior tribunal de justiça e o recurso especial repetitivo 1.378.557/RS. 2.1. O verbete 533 da Súmula do Tribunal da Cidadania 2.2. O recurso especial repetitivo 1.378.557/RS. 3. O procedimento administrativo para apuração de falta disciplinar em Santa Catarina. 3.1. A Lei Complementar estadual 529/11 3.2. A sequência de atos do procedimento administrativo. 3.3. Inconsistências 3.4. Sanções Administrativas. 4. A fase judicial 4.1. A homologação judicial do procedimento administrativo e as sanções aplicadas 4.2. A incursão no mérito administrativo 4.3. A proporcionalidade na aplicação das sanções e os parâmetros legais. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
No Brasil, durante o período colonial (até 1822), não desfrutava a execução penal de tratamento muito relevante pelas normas vigentes (Ordenações do Reino), por uma questão fática muito simples: a aplicação das penas se dava de forma instantânea.
De fato, as reprimendas elegíveis à época eram em sua maioria de natureza corporal, não se exigindo um regramento específico aprofundado e minudenciado, bastava ‘matar’ o apenado, no caso da pena de morte, ou expulsá-lo, se lhe fosse imposto o banimento, etc. A prisão ocorria apenas de forma transitória, por curto espaço de tempo, para contenção do acusado até que se prolatasse a sentença e se lhe infligisse a pena.
A independência do Brasil e o advento da nossa primeira Constituição criaram o campo para a promulgação do Código Criminal do Império (1930). Este, ao inserir a prisão como uma das modalidades de sanção penal, fez com que a execução das penas ganhasse interesse no campo normativo, apesar das tímidas disposições que trazia[1].
Isto porque o Estado passou a ter o apenado sob sua custódia de forma protraída no tempo e, assim, teria que se disciplinar quais seriam os direitos e deveres do aprisionado, bem como condutas que lhe eram proibidas durante a execução da pena e as sanções correspondentes.
Desta forma, à medida que se inauguravam estabelecimentos específicos para o cumprimento da pena de prisão, sobretudo as Casas de Correções, iam se editando seus respectivos regulamentos, sendo estes a gênese da normatização da execução penal brasileira[2].
Com o Código Penal de 1890, a prisão se tornou a sanção principal do sistema punitivo brasileiro. Em decorrência disso, sucederam-se várias tentativas de se disciplinar a execução das penas, sendo digno de nota o Código Penitenciário da República (1933), que apesar de publicado no ‘Diário do Congresso’ de 25 de fevereiro de 1937, teve sua discussão obstada pelo advento do Estado Novo[3].
Em 1941, o Código de Processo Penal passou a disciplinar a Execução Penal, em seu Livro IV. Não obstante o avanço quanto à sua abrangência, por dispor sobre a execução das penas e das medidas de segurança, não continha disposições a respeito do procedimento disciplinar, focando-se muito mais no desenrolar do processo execucional judicial.
Digna de menção é a Lei 3274, de 02 de outubro de 1957, que passou a prever as Normas Gerais de Regime Penitenciário. Segundo Rodrigo Duque Estrada Roig, trouxe “significativas inovações para a regulamentação carcerária, contemplando preceitos até então carentes de positivação em âmbito penitenciário, como os princípios da legalidade e da individualização judicial e executiva da pena”.[4]
E continua o autor:
“O projeto também abarca a vedação do enclausuramento penitenciário sem a correspondente ordem legal da autoridade competente (art. 6º) ou em estabelecimento inadequado à execução da reprimenda imposta (art. 7º). Proíbe ainda a imposição de medidas privativas de liberdade por instâncias alheias ao Poder Judiciário (art. 9º)”.[5]
Entretanto, o salto evolutivo mais considerável se deu com a ainda vigente Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, ao impor a jurisdicionalização da execução penal, sendo que a partir de então o cumprimento das penas e medidas de segurança passou a ser preponderantemente conduzido pelo Estado-juiz. É o que se dessume do teor dos arts. 65 e 194 da Lei de Execuções Penais[6], bem como do item 10 de sua exposição de motivos[7].
Andrei Zenkner Schmidt vai além, defendendo que a jurisdicionalização da execução penal tem raiz constitucional:
“Uma primeira decorrência dessa Constituição Cidadã é o fato de o apenado não ser um objeto de execução, mas sim o sujeito de execução, portando direitos idênticos (salvo as exceções antes vistas) aos dos demais cidadãos. Assim, possui ele, por um lado, o direito de respeito à vida, à igualdade, à segurança, e à propriedade, e, por outro, o direito de exigir educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência (direitos fundamentais = direitos de liberdade + direitos sociais).
(…) Sendo correta, portanto, a visualização do preso como sujeito de direitos, creio que a natureza administrativa da execução penal não pode subsistir”[8].
Isso não quer significar, contudo, a deslegitimação da condução do procedimento disciplinar pela autoridade administrativa a que estiver subordinado o preso provisório ou definitivo, porquanto aquela, ao conduzir a apuração de falta disciplinar, terá sempre seus atos submetidos à apreciação do magistrado execucional.
Rodrigo Duque Roig Estrada comunga do mesmo entendimento:
“Pensar a execução como atividade administrativa significa dar margem à imposição do interesse estatal sobre o individual, pretensão esta inclinada à satisfação de pretensões retributivo-preventivas. Por outro lado, enxergar a execução penal como atividade de natureza jurisdicional significa em primeiro lugar assumir que não há prevalência do interesse estatal sobre o individual, mas polos distintos de interesse (Estado e indivíduo), cada qual refletindo suas próprias pretensões (retributivo-preventiva e libertária, respectivamente). Em segundo lugar, significa reconhecer que todos os atos executivos, mesmo aqueles administrativos de origem, sempre serão sindicáveis pela Jurisdição (ato de justiça formal e substancial, não de administração).
Não se pode olvidar ainda que as concepções administrativistas – ou mesmo as mistas –, desconsiderando a existência do conflito de interesses e de pretensões, acabam por incorporar em seus discursos elementos inquisitoriais refratários ao contraditório, ampla defesa, imparcialidade e devido processo legal. O mesmo não se verifica na concepção jurisdicional da execução penal, uma vez que a própria acepção de jurisdição demanda a existência de um contraditório entre as partes, o desempenho da ampla (e técnica) defesa e a emanação de um provimento imparcial e processualmente correto”.[9]
Até porque a própria Lei de Execuções Penais, em seus arts. 47 e 48, textualmente comanda que o poder disciplinar será exercido pela autoridade administrativa à qual está submetido o apenado.
Portanto, a atribuição da autoridade administrativa para apurar faltas disciplinares, além de decorrer da lei, contribui com a higidez da imparcialidade do juiz da execução penal, que se limitará a homologar ou não o procedimento administrativo já concluído, abstendo-se de capitanear a investigação de fatos, típica postura inquisitiva que não se coaduna com o papel do magistrado na execução das penas.
Enfim, cabe ainda salientar que, apesar dos inegáveis progressos trazidos pela Lei 7.210, esta deve sempre ser lida à luz dos preceitos constitucionais, não só por questão de hierarquia normativa, mas sobretudo porque quando editada a LEP, vigia lei fundamental de matizes não democráticas.
1 COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR, PRINCÍPIOS APLICÁVEIS E SUJEITOS PASSIVOS
Inicialmente, antes de adentrar no cerne da questão referente ao procedimento administrativo disciplinar propriamente dito, é indispensável tecer algumas elucidativas explicações a respeito da competência para legislar a respeito da matéria.
1.1 – Competência para legislar
A Constituição Brasileira, em seu art. 24, I, dispõe que é competência concorrente da União e dos Estados-membros legislar a respeito de direito penitenciário. A mesma qualidade de competência legislativa, repartida entre os citados entes federativos, recai sobre a regulamentação de procedimentos em matéria processual (art. 24, XI).
Em princípio, a competência legislativa do Estado fundada no dispositivo constitucional citado, segundo seu próprio § 2º, limita-se a suplementar as normas gerais que a União vier a editar.
Todavia, enquanto esta não exercer a competência que lhe foi atribuída, o Estado-membro tem autorização para disciplinar a matéria de forma plena (§ 3º), até que a União edite as normas gerias, o que suspenderá a legislação estadual que lhe for contrária (§ 4º).
Essa repartição vertical de competências entre Estados (e Distrito Federal) e União é abordada com maestria por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:
“Os Estados-membros e o Distrito Federal podem exercer, com relação às normas gerais, competência suplementar (art. 24, § 2º), o que significa preencher claros, suprir lacunas. Não há falar em preenchimento de lacuna, quando o que os Estados ou o Distrito Federal fazem é transgredir lei federal já existente. Na falta completa da lei com normas gerais, o Estado pode legislar amplamente, suprindo a inexistência do diploma federal. Se a União vier a editar a norma geral faltante, fica suspensa a eficácia da lei estadual, no que contrariar o alvitre federal. Opera-se, então, um bloqueio de competência, uma vez que o Estado não mais poderá legislar sobre normas gerais, como lhe era dado até ali. Caberá ao Estado, depois disso, minudenciar a legislação expedida pelo Congresso Nacional”[10].
Desta forma, conclui-se que é permitido aos Estados membros positivar o procedimento relativo ao processo administrativo disciplinar, desde que obedeça às regras gerais editadas pela União. Além disso, devem os estados se abster de invadir competência exclusiva desta, como é o caso da normatização acerca dos institutos de Direito Penal (art. 22, I, da Constituição).
Partindo de tal premissa, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o Estado-membro, ao prever prazo prescricional para apuração da falta disciplinar no âmbito da execução penal, extravasa a competência constitucional que lhe foi conferida, por abordar instituto de natureza penal:
“HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. ART. 109 DO CP. COMPETÊCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. REGRESSÃO DE REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA. TRÂNSITO EM JULGADO. DESNECESSIDADE. 1. Inexistindo norma específica quanto à prescrição da infração disciplinar, aplica-se o disposto no artigo 109 do Código Penal, considerando-se o menor lapso temporal previsto, que é de dois anos. Precedente. 2. O Regime Penitenciário do Rio Grande do Sul não tem a virtude de regular a prescrição. Isso porque compete privativamente à União legislar sobre direito penal [artigo 22, I, da CB/88]. 3. A prática de fato definido como crime doloso, para fins de aplicação da sanção administrativa da regressão, não depende do trânsito em julgado da ação penal respectiva. Precedente. Ordem indeferida”.[11]
Assim sendo, poderia o legislador estadual versar a respeito dos prazos para as práticas dos atos do procedimento administrativo, inclusive dispondo um limite razoável para conclusão do próprio procedimento, mas sem que isso refletisse no prazo para o Estado apurar a falta e impor sanções, refletindo, a inobservância de tais prazos, apenas em eventuais medidas disciplinares preventivas ou regressão cautelar de regime que estivesse vigorando.
Em virtude do mesmo raciocínio, estaria vedado à legislação estadual versar a respeito de sanções disciplinares não previstas em lei federal, por ostentarem nítido caráter penal.
1.2 – Princípios e Direitos Fundamentais
A aplicação prática dos princípios e direitos fundamentais na execução penal é tema que nem sempre é bem assimilado pelos operadores do Direito e pelos profissionais que, de algum modo, atuam na concretização das sanções penais pelo Estado.
Isso porque a disciplina da execução das penas costuma ser estudada de modo autônomo em relação ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, gerando a falsa ideia de que se trata de setor completamente à parte, o que exigiria a relativização dos sagrados postulados protetivos conquistados ao longo da História.
Além disso, enquanto o processo penal de conhecimento desenvolve-se integralmente no âmbito jurisdicional, o processo de execução das penas possui um desenvolvimento misto, com algumas questões decididas pela autoridade judicial e outras pela autoridade administrativa.
Esse caráter misto da atividade executiva por vezes contribui para a falsa premissa de que os direitos fundamentais na execução penal devem ser fragilizados, sobretudo nas questões administrativas.
Porém, ainda que a execução penal tenha as suas especificidades, não há como compreendê-la de modo totalmente afastado do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Assim, é inquestionável que devem ser observados os postulados gerais da ciência jurídica criminal. Em especial, deve-se sempre fazer incidir sobre a execução das penas as balizas dos direitos fundamentais de primeira geração, já que o regime jurídico da execução penal deve servir como limitador do poder punitivo do Estado.
Exatamente nesse sentido ensina NUCCI:
“[…] é impossível dissociar-se o Direito de Execução Penal do Direito Penal e do Processo Penal, pois o primeiro regula vários institutos de individualização da pena, úteis e utilizados pela execução penal, enquanto o segundo estabelece os princípios e as formas fundamentais de se regular o procedimento da execução. […] O estudo da execução penal deve fazer-se sempre ligado aos princípios constitucionais penais e processuais penais, até porque, para realizar o direito punitivo do Estado, justifica-se, no Estado Democrático de Direito, um forte amparo dos direitos e garantias individuais. Não é viável a execução da pena dissociada da individualização, da humanidade, da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade da lei prejudicial ao réu (princípios penais) e do devido processo legal, como todos os seus corolários (ampla defesa, contraditório, oficialidade, publicidade, dentre outros). ”[12]
Se a regra é a liberdade, certamente o direito de o Estado executar penas deve ser excepcional. E é sobre tal excepcionalidade que devemos nos debruçar ao estudar o regime jurídico da execução das penas, sempre à luz dos princípios e direitos fundamentais, ainda que tratamos de tema concernente às matérias administrativas relacionadas à execução das penas.
1.2.1 – Devido Processo Legal, Ampla Defesa e Contraditório:
A Constituição Federal é bastante enfática ao prescrever que ninguém será privado de liberdade sem o devido processo legal, bem como ao determinar que aos ligantes, tanto em processo judicial quanto em administrativo, são assegurados o contraditório e ampla defesa (artigo 5º, incisos LIV e LV).
Assim, não resta qualquer dúvida quanto à aplicação desses importantes postulados ao procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no âmbito da execução penal.
Já que decorre diretamente do próprio texto constitucional a aplicação das aludidas garantias ao processo administrativo, com mais razão ainda elas serão aplicadas quando o processo administrativo envolver frontalmente o direito à liberdade, que é justamente o que ocorre no caso das faltas disciplinares praticadas durante o cumprimento da pena.
Uma implicação prática bastante relevante dos aludidos princípios no procedimento de apuração de falta disciplinar prisional diz respeito à necessidade de participação de advogado contratado pela pessoa presa ou Defensor Público.
Já é bastante sedimentada a ideia de que a ampla defesa compreende tanto a autodefesa – direito de presença, de audiência e de postulação da pessoa presa – quanto a defesa técnica.
De tal modo, o apenado ou preso provisório que é acusado de uma falta disciplinar no cumprimento de sua pena possui o direito de, ele próprio, manifestar-se sobre os fatos, de estar presente quando da oitiva de testemunhas, de postular o que entender de direito, bem como de ser defendido tecnicamente por um profissional da área jurídica.
Esse exercício da defesa, embora pareça evidente, gerou alguma controvérsia quando o Supremo Tribunal Federal editou o enunciado número 5 de sua Súmula Vinculante, que assim dispõe: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.
Quando o verbete foi publicado, alguns juristas passaram a sustentar que o procedimento administrativo disciplinar para apuração de faltas no sistema prisional prescindiria da presença da defesa técnica.
Todavia, o próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Reclamação 9164[13] esclareceu que aplicabilidade da súmula se direciona aos procedimentos disciplinares de cunho cível, cujos desdobramentos não repercutirão na esfera do direito de liberdade do indivíduo.
O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, firmou orientação no sentido de que a presença de advogado contratado pela pessoa presa ou Defensor Público no procedimento administrativo disciplinar prisional segue sendo indispensável, já que em razão da especial vulnerabilidade do apenado ou preso provisório, é certo que o teor do enunciado cinco da Súmula Vinculante do STF não se refere a esse tema[14].
Portanto, em casos de apuração de falta disciplinar prisional a defesa técnica permanece imprescindível, é direito irrenunciável.
Só que a contenda ainda vai além. Embora atualmente seja inconteste a necessidade da presença da defesa técnica, surge a necessidade de avaliarmos a temática da independência do profissional jurídico que elabora a defesa técnica nos estabelecimentos prisionais.
Isso porque, não raras vezes, o próprio estabelecimento prisional possui agentes penitenciários formados em Direito e com registro da Ordem dos Advogados, aos quais é dada a atribuição para fazer a defesa dos apenados nos incidentes disciplinares, ou então tem, em seu quadro administrativo, advogados contratados para exercício de atividades de cunho jurídico que também acabam por realizar a defesa nos procedimentos administrativos de apuração de faltas disciplinares.
O que se questiona é se esses profissionais, ainda que detentores de suficiente conhecimento jurídico, teriam a independência necessária para fazer a defesa dos presos mesmo em situações em que, para tanto, teriam que se voltar contra forças do próprio estabelecimento prisional.
Parece-nos temerário que a defesa do apenado seja feita por um agente do próprio quadro de servidores e trabalhadores do estabelecimento prisional, já que a defesa, nesses casos, não seria necessariamente livre, pois o profissional jurídico, muitas vezes, em sua atuação, poderia ter que agir em oposição aos Administradores do sistema prisional, o que, para dizer o menos, causaria constrangimentos.
Até porque, como se verá adiante, em Santa Catarina, a decisão final do procedimento cabe ao gestor da unidade prisional – seja Diretor de Penitenciária ou Gerente de Presídio, UPA, Cadeia Pública, Centro de Triagem, etc. –, o qual também é a autoridade hierarquicamente superior a qualquer servidor – estatutário ou contratado – do respectivo estabelecimento que venha a desempenhar a defesa do incidentado.
Nesse viés, já decidiu o Tribunal da Cidadania, em habeas corpus impetrado em face de decisão considerada ilegal emanada da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
“Dessa forma, verifica-se que a Gerência de Execuções Penais é órgão ligado à Secretaria de Segurança Pública e Defesa do Cidadão, de maneira que, o procedimento instaurado para apuração da falta disciplinar transcorreu a despeito da não participação da defesa técnica.
Portanto, não pode o Gerente de Revisões Criminais exercer o papel outorgado à defesa técnica do apenado, pois integrante da administração prisional do Estado”[15]
Assim sendo, entende-se importante que a defesa das pessoas presas nos processos administrativos disciplinares seja feita por advogados por estas contratadas e, para aquelas que não possuem condições de contratar causídico particular, que seja feita por Defensores Públicos.
Se não existir defesa técnica no procedimento administrativo disciplinar prisional ou se a defesa por feita por um membro dos próprios quadros do sistema penitenciário, compreendemos que o procedimento estará maculado de forma absoluta, por fragilização à ampla defesa e ao contraditório.
1.2.2 Legalidade, Tipicidade e Anterioridade
Se fosse possível estabelecer uma ordem de grandeza entre os princípios e direitos fundamentais, certamente a legalidade estaria em posição de destaque. O princípio da legalidade é o baluarte do Estado de Direito. No Direito Penal tal postulado possui tamanha força que, já não bastasse a previsão constitucional no rol do artigo 5º, ainda se encontra presente no artigo inaugural do Código Penal[16].
Em matéria de execução de penas a realidade é a mesma: o princípio da legalidade deve imperar.
Quando se trata das faltas disciplinares durante o cumprimento da pena, tema deste texto, a legalidade também está especialmente presente, positivada no art. 45 da Lei Extravagante Execucional: “Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar”.
Pela mesma razão que os tipos penais que descrevem condutas criminosas, os dispositivos legais que descrevem faltas administrativas no âmbito da execução penal também se sujeitam à necessidade de observância da tipicidade estrita.
Quando à pessoa presa é imputada a prática de uma infração disciplinar, ela poderá ser punida com sanções, por exemplo, de isolamento ou de suspensão ou restrição de direitos. Além disso, eventual(is) punição(ões) certamente influenciará(ão) de modo negativo a concessão de direitos no curso da execução da pena, como a progressão de regime, a autorização de saídas temporárias, o deferimento do livramento condicional, dentre outros.
Logo, diante das severas restrições que tais punições administrativas podem causar às liberdades do cidadão aprisionado, é certo que a exigência da tipicidade estrita precisa se fazer presente. Para a pessoa presa ser punida por uma infração disciplinar prisional, o fato praticado precisa, antes de tudo, amoldar-se perfeitamente a uma norma anterior que preveja a conduta como infração.
Embora essa ideia possa parecer simples e já sedimentada, há situações práticas em que a premissa da tipicidade estrita em matéria de infração disciplinar parece não ser bem observada.
A título de ilustração, pode-se citar a falta disciplinar prevista no artigo 50, inciso II da Lei de Execuções Penais. Prevê o citado dispositivo que comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que fugir.
Quando o cidadão que está preso realmente foge do estabelecimento prisional, cavando túneis, pulando os muros durante o período de banhos de sol, disfarçando-se de outras pessoas, agredindo agentes prisionais ou agindo de qualquer outro modo violento ou sorrateiro, parece não haver dúvida de que ele “fugiu” e, assim sendo, estará sujeito às sanções disciplinares correspondentes, que serão aplicadas quando ele for recapturado (evidentemente, durante o prazo da prescrição executória).
Entretanto, é matéria bastante consolidada na jurisprudência que o condenado que não retorna de uma saída temporária incorre da falta disciplinar de “fugir”. Então, pergunta-se: Não retornar ao estabelecimento prisional, depois de gozar de uma saída lícita, é o mesmo que fugir de dentro do estabelecimento? Parece-nos que, sob as lentes da estrita tipicidade, não é exatamente o mesmo.
Ressalta-se que não se está aqui afirmando que deixar de retornar ao ergástulo depois de usufruir de uma saída temporária é uma conduta adequada e lícita. Porém, ainda que a conduta possa ser inadequada e reveladora de uma falta de responsabilidade por parte do reeducando, o certo é que essa conduta não se amolda ao tipo disciplinar “fugir”.
Assim sendo, viola o princípio da legalidade (ou da tipicidade) imputar ao apenado a conduta de “fugir”, quando o que ele fez, na verdade, foi “não retornar”.
É claro que isso não impede que o acusado venha a ser punido por outra falta, média ou leve, desde que exista lei que preveja a conduta de não retornar da saída temporária como uma falta disciplinar.
Lado outro, assim como os preceitos primários de faltas disciplinares precisam ser taxativamente previstos em lei anterior ao fato praticado, as sanções correspondentes também o devem. É vedado, assim, à autoridade administrativa detentora do poder disciplinar aplicar sanções não previstas em lei, ou mesmo com excesso das que são legalmente previstas.
Observa-se, pois, que o postulado da legalidade estrita é tema bastante presente quando se trata das faltas disciplinares, motivo pelo qual não pode passar ao largo do debate.
1.2.3 Da individualização da pena
O princípio da individualização da pena também encontra amparo na Constituição Federal, através do artigo 5º, XLVI, e também por decorrência da própria premissa de proporcionalidade, que inspira toda a interpretação constitucional.
Ademais, o fundamento da dignidade humana também requer que cada indivíduo receba um tratamento de acordo com as singularidades subjetivas e objetivas do seu caso, o que também traduz a individualização da pena e o repúdio ao indesejado ‘Direito Penal do Autor’.
Não é demasiado lembrar que tal princípio tem aplicação ampla, devendo ser observado tanto na fase legislativa, quanto nas fases judicial e executória da pena.
Na fase executória, exige-se que o cumprimento da sanção seja imposto pelo Estado reconhecendo as desigualdades entre os apenados, tratando cada um de acordo com os seus méritos e deméritos.
Logo, o preceito da individualização deve ser observado quando se trata da aplicação de sanções por faltas disciplinares praticadas pelos reeducandos.
Portanto, tanto o Administrador Prisional quanto o Juiz da Execução Penal, quando decidem por aplicar às pessoas presas as sanções, de suas respectivas competências, em decorrência da prática de faltas disciplinares, devem estar atentos à necessidade de individualização.
Por oportuno, um aspecto concreto da importância do primado da individualização no âmbito da aplicação de sanções aos apenados envolve a questão da perda dos dias remidos.
Sabe-se que o artigo 127 da Lei de Execuções Penais, com a redação trazida pela Lei 12.433/11, autoriza o juízo da execução penal, em caso de prática de falta grave, a decretar a perda de até 1/3 (um terço) dos dias remidos pelo apenado.
Observa-se, pois, que a lei traz o limite máximo de perda de dias remidos (um terço). Entretanto, não deve o juiz aplicar a fração de um terço indistintamente a todos os reeducandos que praticam faltas graves.
Ao contrário, deve o magistrado dar concretude ao princípio da individualização para fazer a dosagem da perda dos dias remidos de acordo com as circunstâncias objetivas e subjetivas do caso posto a julgamento.
O legislador, atento à importância da realização da individualização da sanção, estabeleceu no artigo 57 da LEP balizas a serem seguidas pelo julgador na aplicação das sanções disciplinares: natureza, motivo, circunstâncias, consequências do fato, pessoa do faltoso, tempo de prisão.
Por conseguinte, quando são aplicadas sanções padronizadas aos apenados que cometem faltas, estar-se-á violando a lei e a Constituição. Nesse sentido vem se posicionamento a doutrina majoritária[17], assim como a jurisprudência[18].
1.2.4 Da razoável duração do processo
A Emenda Constitucional nº 45/2004 fez incluir no rol dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Carta Magna o direito à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade. Vale enfatizar que a Constituição Federal é expressa ao prever esse direito tanto no que se refere ao âmbito judicial, quanto ao administrativo.
Sobre esse novo direito fundamental, importante é o ensinamento de ARRUDA:
“Passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição Federal, dezenas de emendas promoveram acréscimos, supressões ou modificações no texto constitucional, sendo que apenas uma delas recaiu sobre o corpo desde art. 5º da Lei Magna […]. De toda forma, é inegável que o direito fundamental aí acrescentado […] é de ser reputado de especialíssima relevância. Segundo compreendemos, há uma razão lógica bem evidente a determinar essa inserção, que para nós corresponde a uma evolução natural. É que, como documento consagrador da plena restauração democrática, a Constituição de 1988 ocupou-se especialmente de garantir o amplo acesso à justiça. […]. Assim, naquele primeiro momento de consolidação do Estado democrático, era natural fosse priorizada uma perspectiva quantitativa da cláusula de acesso à justiça […] Embora seja possível afirmar que o postulado do devido processo leal prescreve e contenha algumas das garantias materiais que podem ser relacionadas à perspectiva qualitativa da prestação jurisdicional, cremos que esse viés não havia sido suficientemente contemplado pelo constituinte originário. […] Parece-nos em evidente, portanto, que a inclusão do inciso LXXVIII neste artigo 5º marca a consolidação de uma nova etapa: uma fase em que o constituinte, já havendo assegurado o acesso à justiça, preocupa-se em garantir a qualidade do cumprimento da missão estatal […]. O constituinte deu ao direito fundamental uma louvável amplitude. Não o restringiu à esfera criminal e nem mesmo limitou-se aos processos judiciais. Quis garantir a razoável duração dos processos nos planos ‘judicial e administrativo’[…] A referência do constituinte foi sobremaneira relevante para garantir a aplicação do direito fundamental no curso do inquérito policial, procedimento que tem se caracterizado por uma morosidade excessiva e que, por sua natureza, vulnera as mais basilares prerrogativas do investigado”.[19]
No que toca especificamente à apuração de faltas disciplinares no sistema prisional e à aplicação das respectivas sanções, a necessidade de se observar a razoável duração do processo também se faz presente.
De partida, porque o ordenamento jurídico não admite a imprescritibilidade das imputações, ressalvadas as exceções já trazidas pelo próprio Constituinte (racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático – art. 5º, XLII e XLIV). Assim, é certo que a apuração de faltas prisionais não pode se eternizar. Até porque, com o passar do tempo, a sanção passa a não mais fazer sentido, pois o aprisionado pode já ter renovado a sua postura, porque se passa a ter uma dificuldade probatória maior, dentre tantos outros fundamentos.
Contudo, embora não se tenha dúvida quanto à prescritibilidade das imputações de faltas disciplinares, a LEP silencia quanto ao efetivo prazo da prescrição.
Assim, era forte na doutrina o entendimento de que a apuração da falta grave prescrevia no prazo de dois anos, já que era esse o prazo mínimo de prescrição de crimes previsto no Código Penal.
Mas com o advento da Lei 12.234/2010, o prazo mínimo de prescrição, para as faltas disciplinares praticadas após sua publicação, passou a ser de três anos, o que fez crescer o entendimento de que a aplicação do prazo de prescrição de crimes para as faltas disciplinares era tempo por demais elástico, sobretudo ao se considerar a extrema dinâmica da execução penal, com vários direitos a serem concedidos aos apenados que levam em conta a existência ou não de faltas em seus registros prisionais.
Com isso, ganha força o entendimento de que o prazo prescricional no caso de faltas disciplinares deveria ser o de 12 (doze) meses, utilizando-se como paradigma os Decretos Presidenciais de Indulto e Comutação de penas que são anualmente publicados pela Presidência da República.
De fato, tais atos presidenciais de clemência soberana utilizam a existência de faltas graves para impedir a concessão de indultos e comutações pelo prazo de 12 (doze meses). Logo, esse seria um prazo razoável para que eventual sanção do Estado pela falta praticada ainda exerça algum sentido. Inclusive já é possível encontrar julgados que acolhem o mencionado entendimento, a exemplo da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais[20].
1.2.5 Da culpabilidade, da presunção de inocência e do direito ao silêncio
A responsabilidade penal só tem lugar diante de um comportamento típico, antijurídico e culpável.
No terreno da execução das penas, a culpabilidade como pressuposto da responsabilidade disciplinar vem explícita na Lei de Execuções Penais quando ela veda a sanção coletiva (art. 45, § 3º).
Exige-se, assim, para que se possa aventar a aplicação de alguma sanção disciplinar, um agir ou uma omissão prevista em lei e imbuída de dolo ou culpa, bem como que se constate que não estava o agente respaldado por excludentes de antijuridicidade (legítima defesa, p. ex.) ou sob coação moral irresistível ou que estivesse com perturbação mental ou psíquica a ponto de eliminar a consciência quanto ao comportamento ilícito.
Intimamente relacionado ao princípio da culpabilidade está o da presunção de inocência, positivado no art. 5º, LVII, da Constituição da República.
O postulado tem duas implicações imediatas: não pode o apenado ser considerado culpado até a decisão definitiva reconhecedora da prática do ilícito (regra de tratamento) e, além disso, o ônus de demonstrar a existência dos fatos e a culpabilidade do agente recai sobre o órgão acusatório (regra probatória)[21].
Na seara execucional, a presunção de inocência implica em dizer que a pessoa presa só pode ser considerada a efetiva autora da falta disciplinar que lhe é imputada se a Administração Prisional (especificamente o Conselho Disciplinar) se desincumbir do ônus de provar, de forma plena, sua culpa, sendo que, até a decisão definitiva reconhecedora da culpa, deve ser tratado como inocente.
Aliás, reforçando a premissa acima exposta, cita-se o art. 64 da LC estadual 529/11, ao dispor que “não haverá pena disciplinar em razão de dúvidas ou suspeitas”.
Nesse ponto, oportuna é a lição de Alexis Couto de Brito:
“Durante a execução da pena o condenado poderá ser acusado de atos – penais ou administrativos – que implicarão consequências diretas em seu regime de cumprimento ou benefícios como saídas temporárias, remição etc. É certo que, mesmo após sua condenação por um crime anterior, sua conduta posterior deve ser analisada caso a caso, e o estado de inocência deve acompanha-lo, para que antes da revogação ou destituição de algum direito, possa provar sua inocência”.[22]
Enfim, inter-relacionado com a presunção de inocência está o princípio constitucional implícito da vedação de autoincriminação (‘nemo tenetur se detegere’), que está expressamente prevista no art. 8, item I, ‘g’ da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1989, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.
Uma de suas exteriorizações mais agudas o direito ao silêncio este explicitado no art. 5º, LXIII, da Constituição da República –, sem que a referida inércia possa ser interpretada em seu desfavor.
1.2.6 Da lesividade
O princípio da lesividade é verdadeiro limitador do jus puniendi na medida em que proíbe o sancionamento de condutas que não tenham resultado em efetiva lesão a bens jurídicos protegidos pela norma (disciplinar) penal.
Para Rodrigo Duque Roig Estrada:
“Segundo o princípio da lesividade (comumente denominado princípio da ofensividade), somente pode ser considerada punível a conduta exteriorizada e capaz de lesionar ou ameaçar concretamente determinado valor ou direito, e não aquele comportamento simplesmente pecaminoso ou imoral.
(…) Em sua essência, o princípio da lesividade afasta, por exemplo, a constitucionalidade dos tipos penais de perigo abstrato (aqueles em que não há ameaça concreta a determinado direito ou valor, sendo presumido o perigo) e os tipos criminológicos de autor (aqueles que preveem como puníveis determinados estados ou condições pessoais do acusado).”[23]
Desta forma, como exemplo, tem-se que a tentativa de fuga que não tenha se dado mediante violência ou grave ameaça, que não tenha repercutido no transtorno da ordem prisional e nem acarretado danos à estrutura da unidade prisional ou a bens do Estado ou de terceiros não deveria sequer ensejar sanção disciplinar, em razão da absoluta falta de lesão a qualquer bem jurídico protegido pelo ordenamento. Quando muito, autorizaria aplicação de sanções menos gravosas, como a advertência.
1.2.7 Da dignidade da pessoa humana, da vulnerabilidade do preso e da menor onerosidade da execução penal
Irrefutável também é a aplicação do princípio da dignidade humana no Direito de Execução Penal, onde é conhecido também como ‘princípio da humanidade das penas’. Para além de um imperativo normativo, de índole constitucional, não se pode olvidar que, recentemente, no Recurso Extraordinário 592581, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o ‘estado inconstitucional de coisas’ em que se encontra o sistema carcerário brasileiro:
“o Estado os está sujeitando a uma pena que ultrapassa a mera privação da liberdade prevista na sentença, porquanto acresce a ela um sofrimento físico, psicológico e moral, o qual, além de atentar contra toda a noção que se possa ter de respeito à dignidade humana, retira da sanção qualquer potencial de ressocialização.
O tratamento dispensado aos detentos no sistema prisional brasileiro, com toda a certeza, rompe com um dogma universal segundo o qual eles conservam todos os direitos não afetados pelo cerceamento de sua liberdade de ir e vir, garantia, de resto, expressa, com todas as letras, no art. 3º de nossa Lei de Execução Penal”.[24]
Diante do caótico cenário do sistema prisional, maior é o apelo pela observância do princípio da dignidade humana, para que os apenados efetivamente só tenham restritos seus direitos políticos e de liberdade de locomoção, e não todos os outros direitos que lhe são assegurados constitucionalmente mas que, no cotidiano do cumprimento da pena, são recorrentemente vilipendiados.
Nesse viés, Rodrigo Duque Estrada Roig o concebe como a base de uma política criminal redutora de danos:
“O princípio da humanidade constitui, enfim, o cerne de uma visão moderna e democrática da execução penal, pautada pela precedência e ascendência substanciais do ser humano sobre o Estado e pena necessidade de reduzir ao máximo a intensidade da afetação individual. Possui, portanto, o escopo maior de capitanear a construção de uma política criminal redutora de danos, considerando – na esteira do que leciona Pavarini –, que a contradição entre cárcere e democracia não pode ser resolvida, mas apenas contida, por meio de uma política humanizante”[25]
Desta forma, há que se reduzir ao máximo os danos da execução penal, tornando-a menos onerosa possível ao apenado, também como consectário do princípio da humanização da pena.
Com efeito, se há, no campo da execução civil, o princípio da menor onerosidade, por se reconhecer uma situação peculiarmente inferior do devedor no jogo processual, maior razão há em se aplicar referido princípio na seara da execução penal, notadamente em razão da inegável situação de vulnerabilidade da pessoa presa e da gravidade do nível de restrição que as sanções disciplinares acarretam[26].
1.2.8 Duplo grau
A garantia do duplo grau é princípio constitucional implícito, e sua previsão decorre de uma condição natural do ser humano, que é a irresignação, aliada à reconhecida falibilidade do julgador, também humano[27].
Em se tratando de mandamento constitucional nuclear que se irradia a todos os ramos do direito, não se pode negar sua aplicação também ao procedimento administrativo que se destina a apurar e classificar faltas disciplinares.
Ainda mais porque, no regimento penitenciário federal, como se verá linhas a frente, há previsão expressa de recurso no procedimento administrativo para apuração de falta disciplinar e, assim, não há porque se negar o mesmo direito às pessoas recolhidas em estabelecimentos prisionais estaduais, sob pena de se infringir o princípio da igualdade.
Ademais, se é garantido, no procedimento administrativo disciplinar de cunho civil o duplo grau (Lei 9.784/99), maior razão há para se assegurar o direito ao recurso às pessoas que são sujeitos passivos de procedimento administrativo disciplinar de cunho penal, já que este deve prever maiores garantias aos administrados.
1.2.9 Motivação
A motivação é uma decorrência lógica do próprio princípio da ampla defesa, pois só se faz possível ao prejudicado questionar uma decisão por meio da demonstração do equívoco ou irrazoabilidade de suas premissas. Assim, as premissas que levam à conclusão da decisão devem estar nela expostas.
Nesse ponto, não se olvida que a Lei 9.784/99, que tem aplicação supletiva em se tratando de matéria administrativa, prevê expressamente o dever de motivação da Administração Pública:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Ora, se as decisões exaradas em procedimentos administrativos de caráter civil têm na motivação um pressuposto, com maior razão as decisões no procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso do cumprimento da pena devem ser adequadamente motivadas, pois neste campo que as garantias constitucionais têm maior espectro de abrangência e profundidade de aplicação.
Aury Lopes Júnior ressalta a máxima aplicação do dever de motivar na seara da execução penal:
“Sua principal função é a de permitir o controle da racionalidade, pois só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder.
(…) Tais regras básicas de um modelo garantista devem ser aplicadas na sua totalidade no processo de execução, inclusive na apuração de faltas disciplinares, pois muitas vezes a sanção é tão ou mais grave que aquela atribuída pela lei penal a condutas delituosas”[28]
Portanto, é de se deixar claro que a simples exposição do raciocínio que levou à conclusão da decisão não basta para a escorreita obediência ao dever de motivação, e por conseguinte, ao princípio da ampla defesa.
Destarte, é absolutamente indispensável que o julgador explicite o motivo pelo qual não acolheu cada uma das teses defensivas, até para fins de se propiciar a interposição de recursos.
1.3 – Sujeitos Passivos
Não há qualquer dúvida a respeito do fato de que o procedimento de apuração de faltas disciplinares tem como potencial sujeito passivo a pessoa condenada, que cumpre sanção penal.
De fato, fala-se, a todo tempo, da aplicação de sanções administrativas pela prática de faltas disciplinares pelo apenado, tenha o título condenatório definitividade (quando há execução definitiva) ou mesmo em se tratando de condenação com recurso pendente de julgamento (ocorrência de execução provisória da pena).
A situação que pode provocar algum questionamento ocorre quando uma pessoa presa a título provisório, que aguarda julgamento, contra o qual que não tem nenhuma sentença de mérito.[29]
Todavia, parece-nos irrefutável que também a eventual prática de falta disciplinar pela pessoa presa a título provisório deve se submeter ao procedimento administrativo disciplinar, com posterior homologação judicial.
De partida, porque não se pode aventar a aplicação de qualquer sanção, sobretudo na seara (da execução) penal, que não no bojo de procedimento administrativo em que se observe a ampla defesa e o contraditório.
Serve, assim, o procedimento administrativo disciplinar – o PAD –, antes de tudo, a dar legitimidade à aplicação das sanções administrativas decorrentes do exercício do poder disciplinar pelo gestor da unidade prisional (advertência, repreensão, suspensão de direitos e recolhimento cubicular).
Desta forma, em se vislumbrando a aplicação de qualquer sanção disciplinar à pessoa presa ‘provisória’, o que só se admite quando da constatação da prática de alguma falta disciplinar, há que se lançar mão do devido processo legal, apurando-se a conduta em procedimento administrativo disciplinar.
Mormente porque o ‘devido processo legal’ é direito do indivíduo, sendo que a pessoa presa mantém todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3º da Lei 7.210/84).
Ademais, a Lei de Execuções Penais aplica-se igualmente ao preso provisório e ao condenado (art. 2º, parágrafo único), e se aquele tem garantida a realização de procedimento administrativo disciplinar, este também o tem.
Ora, pensar contrariamente, sustentando a inviabilidade de adoção de procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares praticadas por presos provisórios significaria, em verdade, concluir que este é imune à aplicação de qualquer sanção, pois, repita-se, nenhuma sanção de natureza (disciplinar) penal pode ser infligida fora do procedimento legal.
Por conseguinte, todas as questões que aqui abordaremos dizem respeito tanto aos presos condenados como aqueles a título provisório, residindo a única diferença na questão do momento da aplicação das sanções judiciais, já que só se poderá falar em aplicação de ‘regressão de regime’, ‘perda de dias remidos’, etc., aos presos provisórios que em algum momento vierem a ser condenados, e mesmo assim dentro do prazo prescricional que tem o estado para apurar e julgar as faltas disciplinares.
2 O ENUNCIADO 533 DA SÚMULA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E O RECURSO ESPECIAL REPETITIVO 1.378.557/RS
A escolha em abordar o verbete e o citado recurso que tutela a ordem normativa objetiva não é aleatória.
De fato, o enunciado 533 da súmula do Tribunal da Cidadania tem como precedente que o ampara o recurso especial repetitivo 1.378.557/RS.
A importância de ambos reside no fato de terem resolvido a celeuma a respeito da competência para apuração, por meio de procedimento administrativo, de faltas disciplinares e para aplicação das sanções delas decorrentes.
2.1 O verbete 533 da Súmula do Tribunal da Cidadania
O enunciado citado, aprovado em 10 de junho de 2015, pouco mais de um ano e meio depois do precedente que o sustenta, foi editado nos seguintes termos:
“Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado”.[30]
Logo, de sua simples leitura, é possível constatar duas conclusões: a obrigatoriedade de procedimento administrativo disciplinar para apurar faltas graves, médias e leves no âmbito da execução penal, e a indispensabilidade do acompanhamento de todo o procedimento por advogado particular constituído pela pessoa presa ou então por defensor público.
Assim, não restam mais dúvidas de que a apuração de faltas disciplinares de qualquer natureza deve ser realizada em procedimento administrativo disciplinar.
De fato, trata-se de consequência lógica decorrente do exercício do próprio poder disciplinar pela autoridade administrativa a que está subordinado o apenado, na forma do disposto nos artigos 47 e 48 da Lei de Execuções Penais[31].
Não bastasse, também se coaduna com o melhor raciocínio lógico o fato de que a classificação da falta disciplinar se dá com a constatação de que a conduta que se provou existente durante a instrução do procedimento administrativo melhor se subsume a apenas uma determinada fattispecie disciplinar, que será de natureza média, leve ou grave.
Em outros dizeres, apenas após constatada a existência de um proceder faltoso durante a instrução do PAD é que será possível verificar em qual dos tipos disciplinares taxativos a conduta se amoldará.
O contrário é que se mostra ilógico – instaurar procedimento disciplinar apenas para condutas faltosas potencialmente de natureza grave –, uma vez que não é possível presumir qual a gravidade da conduta antes mesmo de comprovar sua própria ocorrência e vislumbrar todas as circunstâncias de seu desenrolar.
Vê-se, pois, que somente com a conclusão da fase instrutória do procedimento é que será possível assegurar a ocorrência de falta disciplinar, vindo ela a ser classificada de acordo com sua natureza na decisão que encerra o procedimento, após parecer do colegiado disciplinar.
No que toca à segunda premissa estabelecida, a que exige a defesa técnica desempenhada por Defensor Público ou advogado particular constituído pela pessoa presa, tem sua razão de ser no fato de que, na prática, quando havia defesa técnica, esta era frequentemente desempenhada por servidores das unidades prisionais ou então por advogados por elas contratados e, em razão disso, não detinham a necessária isenção para assistir juridicamente o apenado, oferecendo-se plenitude de possibilidades de defesa.
Com efeito, alguém que está hierarquicamente subordinado à autoridade administrativa que solucionará o incidente disciplinar, ou que não tem estabilidade de vínculo com a administração pública, não tem a necessária independência funcional para exercer a firme resistência à pretensão disciplinar.
Enfim, é de se ressaltar, conforme já adiantado acima, que está pacificada a questão de que o procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso de execução penal não está no espectro de abrangência do enunciado número cinco da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal – “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”[32] – , justamente porque esta tem sua aplicabilidade direcionada apenas aos procedimentos disciplinares que tenham por objeto lides de cunho civil, cujos desdobramentos não repercutirão na esfera do direito de liberdade do indivíduo.
2.2 O Recurso Especial Repetitivo 1.378.557
Conforme já adiantado, um dos principais julgados que serviram de base para a consolidação do enunciado sumular 533 do STJ foi o Recurso Especial nº 1.378.557[33]. Tal recurso, julgado no dia 23 de outubro de 2013, foi recebido como representativo de controvérsia, nos termos do art. 543-C do Código de Processo Civil, em razão da multiplicidade de processos questionando o mesmo tema que chegavam aos Tribunais Superiores.
Em razão da importância do aludido julgamento, passa-se a tratar da matéria que fora debatida e decidida.
Na origem, tratava-se de processo de execução penal da Comarca de Caxias do Sul/RS, através do qual era executada a pena de um reeducando.
No referido processo, noticiou-se que o apenado teria praticado uma falta grave decorrente de seu não retorno da saída temporária na data devida[34]. O juízo da execução penal designou audiência e, depois de ouvir o apenado, reconheceu que o caso se amoldava a uma prática de falta grave. Assim, o magistrado decretou a regressão do regime prisional, a perda dos dias remidos e a anotação, no prontuário do cidadão, do rebaixamento de conduta.
Irresignada, a defesa do apenado, desempenhada pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, manejou recurso de agravo em execução. Ao julgar o reclamo, a Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), por maioria, houve por bem anular a decisão do juízo da execução penal, ao fundamento de que não se poderia reconhecer judicialmente a prática de uma falta grave no caso concreto em razão de não ter sido instaurado previamente o devido procedimento administrativo disciplinar, no âmbito da unidade prisional[35].
O Ministério Público do Rio Grande do Sul não concordou com a decisão proferida pelo Tribunal Gaúcho. Assim, manejou recurso especial, gerando, no âmbito do STJ, o REsp repetitivo que está sendo estudado.
Sustentou o Parquet que a decisão estadual violava os artigos 59, 118, I e §2º da LEP, bem como o art. 563 do CPP. Isso porque o apenado, na fase judicial, havia sido assistido pela Defensoria Pública, o que tornaria prescindível a instauração de um procedimento administrativo disciplinar para apurar o cometimento da falta grave.
O relator do aludido recurso foi o Ministro Marco Aurélio Bellizze, que destacou a importância de se solucionar a contenda, já que a Quinta e Sexta Turmas do STJ vinham proferindo decisões com entendimentos opostos sobre a matéria. Assim, o momento seria oportuno para a Terceira Seção do Tribunal, órgão fracionário que reúne as duas Turmas citadas, pacificar a questão.
Ao interpretar a Lei de Execução Penal, o Ministro relator firmou posição de que a atribuição de apurar a conduta faltosa do apenado, assim como a de realizar a subsunção do fato à norma, é da autoridade administrativa, ou seja, do Diretor do estabelecimento prisional. Assim, a ele compete verificar se a falta realmente encontra tipificação legal e, assim sendo, se a falta classifica-se como leve, média ou grave. Da mesma forma, ao Diretor da unidade prisional compete aplicar a sanção correspondente à falta.
Ressalvou o Ministro, entretanto, que se for reconhecido o cometimento de falta grave, determinadas consequências e sanções disciplinares, por determinação legal, serão de competência do juiz da execução penal, como a regressão de regime, a revogação da saída temporária, a perda de dias remidos, a conversão de pena restritiva de direitos em privativa de liberdade. Nesses casos, a autoridade administrativa representará ao juiz da execução penal para análise acerca da aplicação das sanções de competência judicial.
Por relevante, cita-se trecho da conclusão do Ministro relator:
“Somente se for reconhecida a prática de falta disciplinar de natureza grave pelo diretor do estabelecimento prisional, é que será comunicado ao juiz da execução penal para que aplique determinadas sanções, que o legislador, excepcionando a regra, entendeu por bem conferir caráter jurisdicional. Portanto,a competência do magistrado na execução da pena, em matéria disciplinar, revela-se limitada à aplicação de algumas sanções, podendo, ainda, quando provocado, efetuar apenas controle de legalidade dos atos e decisões proferidas pelo diretor do presídio, em conformidade com o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF/1988, art. 5º, inciso XXXV). No tocante à formalização dessa sequência de atos concernentes à apuração da conduta faltosa do detento e aplicação da respectiva sanção, o art. 59 da Lei de Execução Penal é expresso ao determinar que: ‘Praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado o procedimento para a sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito de defesa’. Em segunda, o art. 60 possibilita à autoridade administrativa, na hipótese da prática de falta disciplinar, ‘decretar o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo de até dez dias’, ressalvando-se a competência do juiz da execução penas apenas para determinar a inclusão do detento no regime disciplinar diferenciado. Da leitura desses artigos, não resta dúvida que a Lei de Execução Penal impõe a instauração de procedimento administrativo para apurar a prática de falta disciplinar pelo preso, cuja responsabilidade é da autoridade administrativa […]. E mais, mesmo sendo a referida lei de execução penal do ano de 1984, portanto, anterior à Constituição Federal de 1988, ficou devidamente assegurado o direito de defesa do preso, que abrange não só a autodefesa, mas também a defesa técnica, a ser realizada por profissional devidamente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Não por outro motivo o legislador disciplinou expressamente nos arts. 15, 16 e 83, §5º, da LEP, a obrigatoriedade de instalação da Defensoria Pública nos estabelecimentos penais, a fim de assegurar a defesa técnica daqueles que não possuírem recursos financeiros para constituir advogado […] O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua vez, reconheceu a nulidade da decisão, por ausência de instauração do devido procedimento administrativo disciplinar, impondo-se, assim, a manutenção do acórdão recorrido, porquanto proferido em consonância com os ditames da legislação infraconstitucional ora analisada. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial, mantendo o acórdão recorrido em sua integralidade.”[36]
Os Ministros Assusete Magalhães, Rogerio Schietti Cruz, Moura Ribeiro, Regina Helena Costa, Marilza Maynard (Convocada do TJ/SE), Maria Thereza de Assis Moura e Sebastião Reis Júnior acompanharam o voto do relator, formando a necessária maioria.
Em sentido divergente foi o voto da Ministra Laurita Vaz, que proferiu entendimento no sentido da desnecessidade de se instaurar um procedimento administrativo prévio, quando é assegurado um procedimento judicial de apuração da falta grave, com a oitiva do preso e presença do advogado.
Desta forma, é de se repisar que o recurso em comento é o acórdão paradigma no enunciado sumular tratado no item anterior. Ostenta ele, por óbvio, maior extensão de premissas do que o verbete: enquanto este essencialmente assenta a indispensabilidade do PAD para apuração de faltas disciplinares, com a presença da defesa técnica desempenhada por advogado constituído pelo incidentado ou por Defensor Público, a decisão paradigma ainda detalha a divisão entre as competências administrativa e judicial ante a suposta prática de falta disciplinar, bem como expressamente assenta que a audiência de justificação do art. 118 da Lei de Execuções Penais não convalida a ausência ou deficiência do PAD.
Quanto à separação das atribuições administrativas e judiciais, deixa muito claro que cabe ao gestor da unidade prisional, por ser ele o titular do poder disciplinar (arts. 47 e 48 da LEP), apurar a falta disciplinar, respeitando o devido processo legal, classificá-la em leve, média ou grave mediante subsunção da conduta às normas penitenciárias e, ao final, aplicar as sanções cabíveis de acordo com a gravidade – advertência verbal, repreensão, suspensão de direitos e isolamento cubicular, estas duas últimas limitadas ao teto de 30 dias.
Nesse viés, colho elucidativo trecho do RESP 1.378.557/RS:
Dessa forma, constata-se que a Lei de Execução Penal não deixa dúvida ao estabelecer que todo o "processo" de apuração da falta disciplinar (investigação e subsunção), assim como a aplicação da respectiva punição, é realizado dentro da unidade penitenciária, cuja responsabilidade é do seu diretor, porquanto é quem detém o exercício do poder disciplinar.[37]
De outro lado, ao juiz, sempre, em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição, é relegada a tarefa de exercer o exame de legalidade e proporcionalidade do procedimento, qualquer que seja a natureza da falta praticada e reconhecida.
Além disso, em caso de reconhecimento de falta grave em PAD prévio e findo, aplicar as sanções da reserva de jurisdição – regime disciplinar diferenciado, cassação de saída temporária, regressão de regime, perda de até 1/3 dos dias remidos, revogação do trabalho externo, etc.
Saliente-se que a decisão proferida pela Terceira Seção do Tribunal da Cidadania não descaracteriza o viés preponderantemente jurisdicional da execução penal. Ocorre que agora há delimitação precisa de competências, mas mantém o Judiciário, em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, CRFB), o papel de dar a palavra final em relação a eventuais ilegalidades ocorridas no procedimento administrativo, situação que enseja sua nulidade e o retorno ao status quo ante, inclusive extirpando-se do boletim carcerário qualquer informação desvaforável ao apenado que decorra de PAD que venha a ser judicialmente invalidado.
Enfim, o acórdão ainda pontifica o fato de que a ausência ou a deficiência de procedimento administrativo prévio não é convalidada, de modo algum, pela realização da audiência prevista no art. 118 da Lei de Execuções Penais, porquanto ostentam diferentes finalidades, tendo a audiência judicial objeto mais restrito que os atos orais praticados no decorrer do procedimento administrativo disciplinar:
“Dessarte, verifica-se que a defesa do sentenciado no procedimento administrativo disciplinar revela-se muito mais abrangente em relação à sua oitiva prevista no art. 118, § 2º, da LEP, que algumas decisões interpretam, sem base legal, tratar-se de audiência de justificação, tendo em vista que esta tem por finalidade tão somente a questão acerca da regressão de regime, a ser determinada ou não pelo juiz da execução.
Nota-se que os procedimentos não se confundem. Ora, se de um lado, o PAD visa apurar a ocorrência da própria falta grave, com observância do contraditório e da ampla defesa, bem como a aplicação de diversas sanções disciplinares pela autoridade administrativa; de outro, a oitiva do apenado tem como único objetivo a aplicação da sanção concernente à regressão de regime, exigindo-se, por óbvio, que já tenha sido reconhecida a falta grave pelo diretor do presídio.”[38]
Aliás, discute-se se a realização da dita ‘audiência de justificação’ é obrigatória quando o prévio procedimento administrativo disciplinar concluir pela prática de falta de natureza grave.
Há julgado do Supremo Tribunal Federal pela imprescindibilidade da oitiva do reeducando em audiência de justificação:
“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. EXECUÇÃO PENAL. 1. OITIVA DO RECORRENTE E ASSISTÊNCIA DA DEFESA TÉCNICA NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR PARA A APURAÇÃO DA FALTA GRAVE. 2. FALTA GRAVE. REINÍCIO DA CONTAGEM DO PRAZO PARA O BENEFÍCIO DA PROGRESSÃO DE REGIME. 3. RECONHECIMENTO DA FALTA GRAVE SEM OITIVA DO RECORRENTE E DA ACUSAÇÃO EM JUÍZO. ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Não há falar em nulidade da fase administrativa do procedimento para apuração da falta grave atribuída ao Recorrente; evidência de sua oitiva no momento apropriado e da assistência da defesa técnica. 2. O Supremo Tribunal Federal assentou que o cometimento de falta grave impõe o reinício da contagem do prazo exigido para a obtenção do benefício da progressão de regime de cumprimento da pena. Precedentes. 3. Recurso ao qual se nega provimento. 4. Ordem concedida de ofício para cassar a decisão judicial do juízo da Vara das Execuções Criminais da Comarca de Presidente Prudente/SP que reconheceu a falta grave e “determinar que outra seja proferida após a oitiva do apenado em juízo e a manifestação das partes – Defesa e Ministério Público”. [39]
De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, no repisado julgado, sugere que só teria lugar a audiência do art. 118 da Lei de Execuções Penais para o caso de se aventar a hipótese de regressão de regime.
Contudo, ousamos divergir do Tribunal da Cidadania na medida de que os sucessivos decretos concessivos de indulto, ao especificarem o requisito objetivo para a concessão da clemência soberana, explicitamente exigem a realização de ‘audiência de justificação’ para que o reconhecimento de falta grave, devidamente homologado pelo Juízo, tenha o condão de obstar a declaração do direito extintivo.
Eis a literalidade do caput do art. 5º do Decreto 8.615/15:
“Art. 5º A declaração do indulto e da comutação de penas previstos neste Decreto fica condicionada à inexistência de aplicação de sanção, reconhecida pelo juízo competente, em audiência de justificação, garantido o direito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, por falta disciplinar de natureza grave, prevista na Lei de Execução Penal, cometida nos doze meses de cumprimento da pena, contados retroativamente a 25 de dezembro de 2015.” [40]
Com efeito, a estipulação das condições do indulto coletivo é de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, do que se dessume que, uma vez exigida a realização de audiência de ‘justificação’ para que se possa denegar ao apenado direito subjetivo seu, não cabe ao Judiciário dar interpretação in malam partem ao dispositivo para fins de tornar dispensável a realização do ato oral mencionado.
Portanto, ainda que se defenda que a realização da audiência do art. 118 da Lei 7.210/84 é pressuposto apenas da aplicação, pelo juízo execucional, da sanção de regressão de regime, é certo que, nos casos que não for ela realizada e o apenado preencher os pressupostos objetivos para o indulto ou a comutação, tais direitos não poderão lhe ser denegados.
3 O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA APURAÇÃO DE FALTA DISCIPLINAR EM SANTA CATARINA
No Estado de Santa Catarina, tomando o lugar do decreto 3.494, de 27 de junho de 1989, editou-se a Lei Complementar 529, de 17 de janeiro de 2011, que aprova o regimento interno dos estabelecimentos penais catarinenses.
Referida lei extravagante estadual, além de inúmeras outras disposições, tipifica as faltas leves e médias, disciplina o tratamento penitenciário, regulamenta o procedimento administrativo disciplinar para apuração de faltas e, ainda prevê atenuantes e agravantes para a aplicação de sanções.
Assim, atualmente é a LC 529/11 que dita a sucessão de atos do procedimento disciplinar. Contudo, não se descura a aplicação inafastável das disposições constitucionais, notadamente quanto ao devido processo legal, bem como a sistemática jurídica, especialmente quanto à produção de provas, adotada pelo Código de Processo Penal, e, ainda, as disposições gerais da própria Lei 7.210/84.
Também é cabível a utilização supletiva do Decreto Presidencial 6.049, de 27 de fevereiro de 2007, que dispõe sobre o regulamento penitenciário federal.
Enfim, é de se salientar que se trata de procedimento inquisitório, mas com feições típicas do sistema acusatório.
A prevalência do modo inquisitorial se dá por não haver a separação precisa entre as funções de julgar e ‘acusar’, já que ambas estão nas mãos da Administração Prisional, bem pelo fato de que a gestão probatória também está atribuída a esta.[41]
Nesse sentido, é a lição de Salo de Carvalho:
“Não restam dúvidas de que é imprescindível à caracterização dos sistemas acusatórios o distanciamento entre quem propõe a ação e quem julga o caso. No entanto evoca-se as lições de Jacinto Coutinho no sentido de que o princípio unificador e diferenciador entre os sistemas refere os critérios de gestão probatória, pois, ‘se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito ao crime, através da instrução probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identifica o princípio unificador”.[42]
Porém, de outro lado, não se pode negar que a indispensabilidade da garantia da ampla defesa ao preso – abarcando-se não só a autodefesa como a defesa técnica – é requisito sine qua non do procedimento acusatório, motivo pelo qual se pode dizer que se está diante de um processo preponderantemente inquisitorial, mas com alguns aspectos próprios do sistema acusatório.
3.1 A Lei Complementar estadual 529/11
Conforme já exposto, a Carta Constitucional dispõe que a competência para legislar sobre direito penitenciário é concorrente entre União e Estados-membros. Em âmbito federal, a normativa geral sobre o tema vem exposta na Lei 7.210/194 (LEP), já em relação ao Estado de Santa Catarina, o regime interno dos Estabelecimentos Prisionais vem regulado pela Lei Complementar Estadual 529, de 17 de janeiro de 2011.
A aludida lei local normatiza uma série temas penitenciários, como questões atinentes ao ingresso, transferência e saída de presos; a classificação dos detentos; as diversas formais de assistência; o trabalho prisional (interno e externo); direitos e deveres e outros temas relevantes.
Porém, o item de maior relevância ao presente trabalho diz respeito à disciplina prisional e ao procedimento para apuração de faltas e aplicação de sanções disciplinares.
Nesse contexto, vale relembrar que o artigo 49 da Lei Federal de Execuções Penais apenas trata das faltas graves, expressamente relegando à legislação estadual o tratamento das faltas leves e médias.
Seguindo essa orientação, a lei catarinense, no artigo 95, traz um rol de faltas consideradas leves, como a ocultação de fato relacionado à falta de outrem, para dificultar averiguações; a utilização de materiais sem autorização; o trânsito pelo estabelecimento prisional em desobediência às normas e a simulação de doença para eximir-se de obrigação, dentre tantas outras – algumas de duvidosa constitucionalidade. As sanções que podem ser aplicadas para tais práticas, segundo a citada lei, são a advertência verbal e a repreensão.
Da mesma forma, no art. 96, são elencadas as faltas ditas médias, a exemplo da prática de jogos proibidos; a resistência à execução de ordem; a ofensa à funcionários; a desobediência aos horários, dentre outras. Em relação às faltas médias, pode haver sanção de restrição de direitos e de recolhimento na própria cela por período de cinco a dez dias.
Ademais, a lei aborda o procedimento para a apuração de tais faltas e a aplicação de sanções, o que será avaliado em item próprio a seguir
3.2 A Sequência de atos do Procedimento Administrativo[43]
A sucessão de atos disciplinada pela citada lei complementar é a seguinte: inicialmente, realiza-se a lavratura da ocorrência com a condução do preso ao chefe de plantão ou supervisor (art. 83), o qual comunicará o fato ao diretor (ou gerente) do estabelecimento penal (art. 84).
Em seguida, este instaura o PAD (art. 86) mediante ato administrativo (normalmente uma portaria) que contenha a descrição fática pormenorizada e encaminha o documento ao Conselho Disciplinar (art. 86).
O colegiado procede à apuração da conduta, investigando a veracidade dos fatos e propiciando a produção de provas de todos os tipos – documentais, testemunhais, periciais, etc. – (arts. 87 a 89). Nesse ponto, é imprescindível a oitiva do apenado em audiência acompanhada de defesa técnica, que também acompanhará a ouvida de eventuais testemunhas.
Concluída a instrução, após a defesa oral ou escrita, o Conselho Disciplinar emite parecer não vinculante quanto à existência da falta, à autoria, à classificação em leve, média ou grave e, enfim, sugere as sanções a serem aplicadas (arts. 87 a 89).
Por fim, o processo segue ao gestor da unidade prisional, que decidirá de forma isenta, não ficando adstrito ao parecer do Conselho Disciplinar (art. 88).
Da decisão do Diretor ou Gerente da unidade, há duas possibilidades de reconsideração no prazo de 8 dias: quando o parecer do Conselho não tiver sido unânime e for acolhido pelo Diretor ou quando este discordar do parecer do Conselho (art. 92).
Todavia, a qualquer tempo poderá a pessoa presa requerer a revisão da punição, desde que demonstre, com base em provas novas, que a decisão se fundamentou em testemunha ou fato falso ou então que foi aplicada em desacordo com a LC 529/11 (art. 94).
3.3 Inconsistências
De partida, o aspecto mais criticável da referida lei é o fato de não prevê recurso específico em face da decisão que julga o incidente disciplinar.
Como visto acima, a lei extravagante que disciplina o PAD abarca apenas duas possibilidades de reconsideração da decisão – a saber, quando o parecer do Conselho Disciplinar não é unânime ou, então, se a decisão do Diretor ou Gerente da Unidade for contrária ao parecer do colegiado[44] – bem como duas hipóteses de ‘revisão’ – quando a decisão tiver por base prova falsa ou se tiver sido aplicada em desacordo com a LC 529/11´[45].
Todavia, tratam-se de hipóteses que não serão apreciadas por pessoa diversa daquela que originariamente julgou o procedimento administrativo disciplinar, o que torna praticamente inaplicável, na prática, a possibilidade de se reverter os fundamentos jurídicos e até revolver a apreciação da prova.
Por isso que se defende o cabimento do instituto do recurso hierárquico típico do direito administrativo, inclusive porque no Regulamento Penitenciário Federal – Decreto 6.049/07 – há previsão expressa de recurso[46], sendo que, assim, a pessoa recolhida em presídio federal não poderia ter tratamento jurídico diferenciado, privilegiado em relação àquela pessoa que está custodiada em estabelecimento penal estadual.
Desta forma, escudamos a possibilidade de se interpor o recurso hierárquico nos prazos previstos no Regulamento Federal, fazendo com que a aplicação supletiva da normativa federal supra a omissão da legislação estadual.
No que toca aos responsáveis pelo julgamento de tal recurso, é preciso ter em mente a organização hierárquica legalmente concebida entre as unidades prisionais catarinenses.
O art. 4o da Lei estadual Lei 12.116/02, dispõe que "Os estabelecimentos prisionais do Estado serão vinculados ao Diretor da Penitenciária da Região".
Desta forma, os Gerentes das Unidades Prisionais Avançadas (UPAs) e dos Presídios estão imediatamente submetidos, na hierarquia administrativa, ao Gerente da Penitenciária regional, que em Santa Catarina, são sete (Itajaí, Florianópolis, Criciúma, Curitibanos, Joinville, Chapecó e São Pedro de Alcântara).
Assim sendo, da decisão final em procedimento administrativo disciplinar de um Gerente de Presídio caberá recurso ao Diretor da Penitenciária Regional ao qual está vinculado. Contudo, se a decisão tiver sido tomada por Diretor de Penitenciária Regional, a competência para julgar o recurso será do próprio Diretor do Departamento de Administração Prisional.
Outra omissão de relevante nota do legislador catarinense é a ausência de regulamentação de prazo para a conclusão do procedimento administrativo disciplinar, o que também poderia ser resolvido pela aplicação analógica do já mencionado regimento penitenciário nacional, o qual prevê o prazo de 30 dias.[47]
Com efeito, não há razão para que a pessoa recolhida em estabelecimento prisional estadual tenha tratamento processual mais gravoso, em termos de garantias constitucionais, do que o preso alocado em unidade prisional estadual, sob pena de tornar letra morta o princípio constitucional da igualdade.
Além disso, a Lei Extravagante catarinense não regulamenta a forma pela qual o incidentado e sua defesa técnica são notificados dos atos do procedimento, notadamente quanto à possibilidade de solicitar a produção de provas, quanto à cientificação para apresentação de defesa escrita (quando esta não é realizada oralmente em audiência), e também quanto à intimação da decisão final do procedimento, para fins de propiciar o manejo dos meios de impugnação (seja reconsideração, revisão ou até o recurso administrativo).
3.4 Sanções Administrativas
A norma extravagante em discussão replica as mesmas sanções disciplinares que a Lei de Execuções Penais, exceto aquela cuja aplicação é de competência exclusiva do magistrado execucional: o regime disciplinar diferenciado. Senão vejamos.
A Lei 7.210/84, em seu artigo 53, elenca as seguintes: advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos (art. 41, parágrafo único), isolamento cubicular e inclusão no regime disciplinar diferenciado.
Por seu turno, a LC 529/11, traz, no art. 68, apenas as quatro primeiras, na mesma ordem: “I – advertência verbal; II – repreensão escrita; III – suspensão ou restrição de direitos, conforme estabelecido no art. 41, parágrafo único, da Lei federal nº 7.210, de 1984; e IV – isolamento na própria cela ou em cela especial”.
Passamos, então, a analisar cada qual das sanções administrativas de competência do gestor da unidade prisional.
A advertência (inciso I) e a repreensão verbal (inciso II) são cabíveis quando do reconhecimento de faltas leves ou médias. Não têm lugar, portanto, como resposta ao cometimento de faltas graves, na esteira do disposto no art. 57, parágrafo único, da Lei de Execução Penal.
Ambas representam uma reprovação formal a uma falta média ou leve praticada. Porém, enquanto a advertência se dá por escrito, a repreensão cinge-se à oralidade.
Alexis Couto de Brito[48] e Norberto Avena[49] defendem que a repreensão verbal deve ser aplicada em caso da primeira falta leve praticada pelo detento, enquanto que a advertência é cabível quando da reiteração de falta leve ou então como resposta a falta média.
Nesse ponto, discordamos dos ilustres doutrinadores. Reputamos mais adequada a análise casuística, balizando-se todas as diretrizes previstas no art. 57 da Lei de Execuções Penais e, também, as atenuantes e agravantes insertas na LC 529/11, método que será pormenorizadamente abordado em tópico próprio.
A suspensão ou restrição de direitos (inciso III) pode ser adotada a qualquer modalidade de falta – leve, média ou grave. Cinge-se à limitação dos direitos previstos no art. 41, V, X e XV, do Lei de Execuções Penais, na forma especificada no parágrafo único do citado dispositivo.
Assim são passíveis de cerceamento a proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação (V), a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados (X), e o contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes (XV).
Na prática, a escolha dos direitos a serem restringidos obviamente vai depender se o detento exerce ou não tais direitos, já que é extremamente comum que a maioria da população carcerária não trabalhe nem estude – no mais das vezes pela omissão dos órgãos incumbidos da gestão do sistema prisional –, que não receba visitas ou até que não se corresponda com outras pessoas ou sequer receba itens de leitura.
De qualquer forma, a restrição ou suspensão não poderá exceder o prazo de 30 dias (art. 58 da Lei de Execução Penal).
Além do que, à luz do que dispõe o art. 52 da Lei 7.210/84, em nenhuma hipótese o preso poderá ter menos de duas horas diárias de banho de sol e visita de duas pessoas por semana, não computadas as crianças.
Aliás, somente na mais grave das situações a que o preso pode ser submetido – o regime disciplinar diferenciado, que de tão severo só pode ser aplicado pelo juízo execucional – é que desfrutará de apenas duas horas de banho de sol por dia e de apenas duas visitas de dois adultos por semana (as crianças não sofrem limitação).
Por consequência lógica, na aplicação das outras sanções (restrição de direitos e isolamento), as limitações devem ser mais brandas, mostrando-se razoável garantir à pessoa presa o mínimo de 3 horas de banho de sol diário e visita de 3 adultos por semana, ficando livre a visita por crianças.
Por fim, há o isolamento cubicular, que igualmente se submete ao máximo de duração de 30 dias e às garantias de direitos mencionadas no parágrafo acima.
Nesse andar, oportuno o esclarecimento de Alexis Couto de Brito: “O isolamento consiste na separação do preso dos demais, em sua cela individual nos casos de regime fechado, ou em uma cela preparada para tanto, quando as acomodações do estabelecimento forem coletivas, como é o caso dos regimes semiaberto e aberto”.[50]
O recolhimento deverá seguir os requisitos mínimos do art. 88 da Lei 7.210/84: conter dormitório, aparelho sanitário e lavatório, condições salubres e área mínima de 6m2. Não bastasse, é proscrita a utilização de celas escuras (art. 45, § 2º).
Quando da aplicação de tal medida, pela sua severidade, deverá o Juiz da Vara de Execuções Penais ser comunicado (art. 58, parágrafo único).
É de se citar, ainda, que pode o isolamento ser aplicado preventivamente, de forma excepcional, por até 10 dias, desde que ocorra por ato motivado do Diretor da unidade prisional (art. 60, caput, primeira parte, da LEP).
4 A FASE JUDICIAL
4.1 A homologação judicial do procedimento administrativo e as sanções aplicadas pelo Juiz
Já ficou bem assentado que a execução das penas no sistema brasileiro possui natureza mista, sendo que há algumas matérias que devem ser resolvidas pela autoridade administrativa do estabelecimento prisional e outras reservadas à atuação jurisdicional.
No campo das faltas disciplinares pode-se dizer que há um elo entre as duas searas. Isso porque uma falta praticada pela pessoa presa, além de gerar uma sanção administrativa (como a restrição de direitos internos), também pode refletir nos benefícios da execução penal que são apreciados pelo Poder Judiciário.
Nessa linha, o artigo 47 da LEP deixa claro que o poder disciplinar, na execução das penas, é exercido pela autoridade administrativa. Porém, o parágrafo único do artigo 48 da mesma lei ressalva que, em caso de faltas graves, a autoridade administrativa deverá representar ao Juiz da execução penal.
Assim, pode-se concluir que, enquanto as faltas leves e médias irão gerar, diretamente, apenas consequências administrativas no cumprimento das penas (só indiretamente, por refletirem na classificação do comportamento do preso, é que refletirão na apreciação da concessão de direitos); as faltas graves podem repercutir em temas jurisdicionais imediatos – fala-se na aplicação de sanções pelo próprio juiz – razão pela qual a autoridade administrativa deve comunicar o Juiz de Direito sempre que entender que ocorreu uma falta disciplinar.
Logo, fica claro o sistema bipartido. Na primeira parte, no campo administrativo, ocorrerá a apuração da falta eventualmente praticada, sua classificação em leve, média ou grave e, ainda a aplicação de sanção administrativa pelo gestor da unidade prisional. Num segundo momento, com o envio do PAD concluído ao Juiz de Direito incumbido da Execução Penal, inicia-se a verificação da validade do procedimento e a apuração do reflexo jurisdicional do ato praticado pela pessoa presa.
Com efeito, a prática de falta grave no curso da execução penal pode gerar a regressão do regime prisional (art. 118, inciso I da LEP), a revogação das saídas temporárias (artigo 125), a perda de parcela dos dias já remidos (art. 127) e a revogação da monitoração eletrônica (art. 146-D, II), matérias essas sujeitas à reserva de jurisdição, em consonância com o art. 66 da LEP.
Portanto, embora o ato supostamente praticado pela pessoa presa já tenha sido apreciado pela autoridade administrativa do estabelecimento prisional, ele precisará ser submetido ao crivo judicial, com avaliação das consequências jurisdicionais citadas.
Não há um procedimento detalhado a respeito da forma pela qual se deve apreciar a falta disciplinar pelo Poder Judiciário. Porém, é certo que o acusado deve ser ouvido previamente pelo Juiz, conforme estipula o §2º do artigo 118 da LEP.
Ademais, em atenção ao postulado da ampla defesa (defesa técnica) também é indispensável que, nessa oitiva, o acusado esteja acompanhado de advogado que tenha constituído por procuração ou Defensor Público, profissionais capacitados para tanto.
Na ausência de regramento específico, é possível utilizar-se subsidiariamente das regras procedimentais do Código de Processo Penal, permitindo ao preso juntar provas, arrolar testemunhas, requerer diligências, tudo isso antes de ser ouvido e julgado.
Por fim, importante observar que o Juiz, nesse caso, num primeiro momento, irá observar se o procedimento administrativo prévio seguiu o devido processo legal administrativo, tanto formal quanto substancial, para então declarar se o julgamento do mérito da falta supostamente praticada foi adequado às normas vigentes e, se assinalar positivamente, verificará a conveniência da aplicação das sanções que são de sua alçada.
4.2 A ‘incursão’ no mérito administrativo
Conforme se verificou em linhas anteriores, no Recurso Especial Repetitivo 1.378.557/RS, que veio a sustentar o enunciado 533 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, em sede de apuração de falta disciplinar e de aplicação de sanções, as competências administrativa e judicial estão bem delimitadas.
Em decorrência de seu poder disciplinar, cabe ao gestor da unidade prisional decidir pela existência ou não de falta praticada no curso de execução penal, classificá-la em leve, média ou grave, aplicar as sanções que lhe são cabíveis, e, em seguida, encaminhar o feito ao Juízo Execucional.
Este, então, tem a incumbência primeira de verificar se o procedimento administrativo obedeceu à risca o ‘devido processo legal’, não só em seu aspecto formal, mas também no viés substancial, exigindo que tenham sido observados todos os direitos e garantias processuais e substanciais previstas na legislação pátria.
Vale dizer que o juiz deve averiguar não só se a sequência de atos procedimentais insertos na norma complementar foi observada e se foram editados pelas autoridades competentes (aspecto formal), como tem o dever de constatar se a conclusão do incidente não se deu ao arrepio dos princípios e regras processuais e de direito material que circundam a matéria (aspecto substancial).
Desta forma, não é dado ao juiz abster-se de verificar o aspecto substancial do ‘devido processo legal’ sob o vetusto argumento de que lhe é vedado ingressar no ‘mérito administrativo’, sob pena de violação da separação de poderes.
Isto porque, num Estado Democrático de Direito de matiz garantista, tem o dever de controlar os atos administrativos, anulando aqueles que forem praticados em contrariedade aos direitos e garantias dos indivíduos.
Sob esse aspecto, bem pontua Cristina Mendes Bertoncini:
“E é a concepção garantista de Estado de Direito, que designa não somente um estado legal ou regulado por lei, mas sim um Estado constitucional de Direito caracterizado, no plano formal, pelo princípio da legalidade em virtude do qual todo poder público está subordinado a leis gerais e abstratas, que disciplinam sua forma de exercício e cuja observância está submetida ao controle de legitimidade e no plano substancial pela funcionalização de todos os poderes do estado a serviço da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, ou seja, das proibições de lesionar os direitos de liberdade e as obrigações de satisfazer os direitos sociais, assim como os poderes dos cidadãos de acionar a tutela judicial”.[51]
Ressalte-se que a matéria já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal em Recurso Extraordinário em que se decidiu ser lícito ao Juiz da Execução Penal ordenar a realização de obras emergenciais em unidades prisionais, justamente com fundamento na inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB):
“O postulado da inafastabilidade da jurisdição é um dos principais alicerces do Estado Democrático de Direito, pois impede que lesões ou ameaças de lesões a direitos sejam excluídas da apreciação do Judiciário, órgão que, ao lado do Legislativo e do Executivo, expressa a soberania popular.
Trata-se de um verdadeiro marco civilizatório, que prestigia a justiça contra a força, sobretudo a moderação diante do arbítrio, na solução dos litígios individuais e sociais.
(…) Assim, contrariamente ao sustentado pelo acórdão recorrido, penso que não se está diante de normas meramente programáticas. Tampouco é possível cogitar de hipótese na qual o Judiciário estaria ingressando indevidamente em seara reservada à Administração Pública.
No caso dos autos, está-se diante de clara violação a direitos fundamentais, praticada pelo próprio Estado contra pessoas sob sua guarda, cumprindo ao Judiciário, por dever constitucional, oferecer-lhes a devida proteção”.[52]
De fato, se o juiz execucional pode o mais – determinar uma prestação positiva que é a realização de obras pela Administração Prisional – pode o menos – declarar a ilegalidade de atos administrativos (aqui importam aqueles relativos ao procedimento administrativo disciplinar) que afrontem direitos fundamentais e garantias constitucionais.
Oportuno trazer à baila que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já se posicionou no sentido de que o princípio da inafastabilidade da jurisdição autoriza a incursão judicial no ‘mérito’ administrativo:
“HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. APURAÇÃO DE FALTA GRAVE. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INDISPENSABILIDADE. SÚMULA 533 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO PARA A OITIVA DO APENADO PELO JUÍZO. PROVIDÊNCIA NECESSÁRIA ANTES DA REGRESSÃO DE REGIME. PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. DISCRICIONARIEDADE MOTIVADA DO MAGISTRADO. IMPRESCINDIBILIDADE NO CASO CONCRETO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. PEDIDO DE ORDEM CONCEDIDO.
1 Conforme o entendimento consolidado na Súmula 533 do Superior Tribunal de Justiça, "para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo
pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado".
2 "Nos termos do art. 118, § 2º, da Lei de Execução Penal, é imprescindível, para a regressão definitiva de regime carcerário, a prévia oitiva do apenado em juízo, sob pena de nulidade" (STJ, HC n. 330.797/SP, j. em 1º/10/2015).
3 A amplitude da análise judicial, malgrado a existência de decisões em sentido contrário, não pode se limitar ao exame da legalidade e do cumprimento dos aspectos formais do procedimento administrativo disciplinar, sob pena de vulneração ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal).
4 Como o Juiz é o destinatário da prova, cabe-lhe avaliar a pertinência de sua produção, afastando motivadamente apenas as protelatórias e desnecessárias”.[53]
Do corpo da decisão, extraímos trecho elucidativo:
“No que tange à amplitude da análise judicial, malgrado a existência de decisões em sentido contrário, tem-se que não pode se limitar ao exame da legalidade e do cumprimento dos aspectos formais do PAD, sob pena de vulneração ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal).
Como bem ponderou a douta Procuradoria-Geral de Justiça: "É importante, também, destacar que o Juízo da Execução Penal não é tão somente homologador de falta grave reconhecida em procedimento administrativo, mas sim deve ser juízo de garantias, em especial, para verificar se houve o devido e necessário atendimento da aplicação do devido princípio legal, traduzido pela existência dos princípios da ampla defesa e do contraditório" (fl. 42).
Com efeito, pertinente que o Juiz a quo verifique, também, a ocorrência da falta reconhecida na via administrativa e, se conveniente – discricionariedade motivada (Recurso de Agravo n. 2014.055469-2, de Chapecó, rel. Des. Ernani Guetten de Almeida, Terceira Câmara Criminal, j. em 18/11/2014) –, permita a colheita de outras provas na audiência do art. 118, § 2º, da Lei de Execução Penal, ainda que devessem, por regra, terem sido produzidas anteriormente”.
Portanto, a inafastabilidade da jurisdição aliada ao controle judicial dos atos administrativos impõe que o magistrado incumbido da Execução Penal deixe de homologar procedimento em que se tenham desrespeitado as garantias processuais e os direitos constitucionais do apenado, tornando-se imperiosa a anulação, por exemplo, nos casos em que o reconhecimento de falta disciplinar estiver respaldado em provas ilícitas, ou sem lastro probatório mínimo, baseado em dúvidas ou suspeitas – em dissonância ao que dispõe o art. 64 da Lei Complementar estadual 529/11[54] –, ou se estiver exclusivamente calcado na confissão da pessoa que, por sua condição de encarcerada, é vulnerável, ou, ainda, quando fulcrado em atos unilateralmente produzidos, sem o crivo do contraditório, como é o caso de boletins ou registros de ocorrências.
No mesmo viés, também não será possível reconhecer a higidez de procedimentos administrativo disciplinar desprovido de laudo pericial e que reconheça a prática de falta que deixe vestígios, aplicando-se a analogicamente o art. 158 do Código de Processo Penal.[55]
4.3 A proporcionalidade na aplicação das sanções e os parâmetros legais
A escolha da sanção disciplinar, tanto na esfera administrativa como na judicial, aplicável ao caso concreto, deve levar em conta cada um dos parâmetros previstos no art. 57 da Lei de Execuções Penais:
“Art. 57. Na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as conseqüências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003)
Parágrafo único. Nas faltas graves, aplicam-se as sanções previstas nos incisos III a V do art. 53 desta Lei.”
A previsão de critérios pela letra da lei, repita-se, é um consectário do próprio princípio da proporcionalidade, amparado na tríade adequação-necessidade-proporcionalidade em sentido estrito.
Antes de adentrar no mérito da questão execucional, cumpre tecer breves considerações quanto aos três vetores do aludido princípio constitucional.
Em primeiro lugar, o exame de proporcionalidade deve recair sobre a adequação do meio eleito para o alcance do fim proposto.
Para Canotilho, a adequação é uma “exigência de conformidade”, que “pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção”.[56]
Nesse ponto, à luz do princípio da individualização do cumprimento da pena e dos fins da Execução Penal, notadamente a harmônica integração social do condenado (art. 1º), deve-se vislumbrar se a sanção eventualmente adotada será apta a concretizar o objetivo exposto de ressocialização do apenado.
Ressalte-se que na seara da adequação, não há mesurar o grau de eficácia dos meios considerados aptos à consecução da finalidade pretendida. Esta questão paira no campo da necessidade[57] (BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 78).
Desta forma, dentre todos os meios que são igualmente aptos a produzir o resultado pretendido, somente aquele que denota inequívoca necessidade e que afeta o bem constitucional de maneira menos gravosa poderá ser eleito[58].
Em nova alusão à questão das sanções da seara da execução penal, é certo que somente a sanção que se consubstanciar em resposta necessária à falta grave cometida, à luz das nuances do caso concreto, é passível de aplicação.
Restando positivos os exames de adequação e necessidade, urge avaliar a proporcionalidade em sentido estrito. O subprincípio em pauta exige que se efetue um juízo de racionalidade, de justa medida entre os meios e fins utilizados à luz dos bens constitucionais e direitos fundamentais relacionados[59].
Barroso explica se tratar “de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos”.[60]
Seus dizeres são complementados por Willis Santiago Guerra Filho, ao alertar que através da proporcionalidade stricto sensu, almeja-se que “não se fira o conteúdo essencial (Wesensgehalt) de direito fundamental, com o desrespeito intolerável do valor/princípio que o define: a dignidade humana”.[61]
Portanto, vê-se que, em sede de execução penal, o agravamento da restrição da liberdade por força da aplicação de eventual sanção disciplinar em virtude de cometimento de falta grave, média ou leve, para que respeite o princípio da dignidade da pessoa humana, deve ser o menos oneroso possível ao apenado, mormente levando-se em conta, dentre outros parâmetros que serão analisados em linhas à frente, a gravidade do ato supostamente praticado pelo reeducando.
Intenta-se, pois, preservar, na etapa de ponderação estritamente proporcional, o equilíbrio entre valores e bens[62], pois é perfeitamente possível que, a despeito da comprovada necessidade da medida, identifiquem-se situações que revelem “um desequilíbrio na relação meio-fim, (…) porque não está em causa a existência de outra medida menos lesiva, mas, sim, a precedência de um bem ou interesse sobre outro”.
É preciso preservar um equilíbrio entre a disciplina exigida da pessoa presa, de um lado, e o princípio da individualização da pena e a consecução do objetivo de ressocialização dos penalmente sancionados previsto textualmente na Lei de Execuções Penais.
Em outros dizeres, o ‘benefício’ trazido pela imposição de penalidade, para fins de se exigir a disciplina, deve ser maior ou igual ao ônus que será imposto à pessoa presa com uma maior restrição de sua liberdade, inclusive por força da cassação de benefícios.
Para que seja possível, pois, o exercício de proporcionalidade, é indispensável o balizamento das diretrizes insertas na legislação pertinente.
Como dito, a Lei de Execuções Penais fornece variantes para que a eleição da sanção a ser imposta se coadune com as nuances do caso concreto, tudo para que a resposta sancionatória escolhida seja adequada, necessária e proporcional.
A citada norma prevê, consoante já se expôs, uma série de sanções, com distintos graus de ‘gravidade’, que podem ser aplicadas àqueles que cumprem pena e não observam o regime de disciplina penitenciária, tanto administrativa como judicial[63].
Assim, repise-se, para que seja eleita a sanção proporcionalmente mais adequada à falta cometida, há que se verificar um a um os critérios fornecidos pela Lei de Execuções Penais: a natureza da falta, os motivos, as circunstâncias e as consequências da conduta faltosa, a pessoa do faltoso e o tempo de prisão cumprido.
A melhor doutrina não discrepa:
“Em uma visão redutora de danos, os critérios de mensuração das sanções disciplinares – tais quais as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP – não devem ser empregadas em desfavor dos acusados. A individualização da pena, conforme já mencionado, representa uma excepcionalização do princípio da legalidade, e como tal não pode ser empregada de modo contrário ao acusado, seja pelo aplicador, seja pelo intérprete da norma. Essa constatação, atrelada ao dever constitucional de redução de danos, conduz à conclusão de que a individualização da pena na verdade somente se mostra constitucional quando operada em sentido redutor. Assim exposto, existentes circunstâncias favoráveis do art. 57 da LEP, estas devem ser empregadas. Não havendo circunstâncias favoráveis tampouco poderão ser usadas gravosamente”.[64]
Mas não é só os parâmetros da LEP que devem ser observados.
Em Santa Catarina, vige a Lei Complementar 529/11, a qual prevê uma série de atenuante e agravantes que devem ser apreciadas quando da imposição de sanções administrativas e judiciais:
“Art. 76. São circunstâncias que sempre atenuam a sanção:
I – a personalidade abonadora do preso;
II – a ausência de faltas anteriores;
III – ser maior de 60 (sessenta) anos;
IV – haver sido de somenos importância sua cooperação na falta;
V – ter confessado, espontaneamente, a autoria da falta ignorada ou imputada a outrem;
VI – haver agido sob coação a que não podia resistir; e
VII – ter procurado, logo após a falta, evitar ou minorar suas consequências.
Art. 77. São circunstâncias que agravam a sanção:
I – a personalidade desabonadora do preso;
II – a reincidência disciplinar;
III – promover ou organizar a cooperação na falta ou dirigir a atividade dos demais reclusos;
IV – haver coagido ou induzido outro à prática de falta;
V – ter praticado a falta quando, em virtude de confiança nele depositada pelas autoridades administrativas, gozava de liberação de alguma ou algumas normas gerais de segurança; e
VI – haver agido em conluio com funcionário.”
Diante do exposto, vê-se que a eleição da sanção deve partir da mais branda possível aplicada ao caso concreto (advertência, para falta média ou leve, e suspensão de direitos, quando praticada falta grave), podendo haver ‘substituição’ por sanção mais grave na medida que os parâmetros do art. 57 da LEP forem se mostrando desfavoráveis, bem como ante a presença de uma ou mais agravantes da LC 529/11 e não existirem atenuantes que equivalham às agravantes.[65]
Com efeito, não se admite que qualquer reprimenda a ser aplicada pelo Estado a uma pessoa tenha seu ponto de partida na situação mais gravosa legalmente prevista.
Ao contrário, deve-se partir da situação menos onerosa possível ao apenado e, tão-somente mediante fundamentação concreta a respeito de fatos relevantes à individualização da sanção e que sejam desfavoráveis ao administrado/jurisdicionado é que pena pode se distanciar, em maior ou menor grau, da mais suave das hipóteses sancionatórias possíveis.
Exemplo prático que torna mais fácil a compreensão da premissa aqui defendida é a aplicação da perda dos dias remidos pelo magistrado execucional.
A LEP, em seu art. 127, limita a perda da remição em 1/3 do que o apenado adquiriu até a data da falta disciplinar de natureza grave, ressaltando a obrigatoriedade da aplicação dos critérios de aferição do art. 57 do citado diploma legal.
De tal modo, o mínimo possível que o detento pode perder de sua remição é o piso de um dia, e o máximo, com já tido, a terça parte do total adquirido até a data da falta disciplinar. É preciso, pois, que se tenha em mente os patamares mínimos e máximo aplicáveis à situação concreta, para que se possa verificar qual o espectro variável cabível ao caso.
A partir daí, o aplicador da sanção de perda de dias remidos deve partir da pena-base de 1 dia remido a ser retirado do quantum de pena cumprido, e, em uma primeira etapa, analisando os requisitos do art. 57 da LEP de forma individualizada (tal como se realiza a primeira fase da dosimetria penal), somente se distanciar do piso de 1 dia remido se constatar a existência de mais circunstâncias desfavoráveis do que favoráveis à pessoa presa, bem como em sendo estas qualitativamente menos robustas que aquelas.
Sugere-se, aqui, que não se ultrapasse, nessa primeira etapa, o termo médio entre os limites mínimo e máximo que foram assentados antes de iniciar a ‘dosimetria’.
Então, numa segunda e última fase, caberia verificar a aplicação das circunstâncias atenuantes e agravantes anteriormente explicitadas, contidas nos arts. 76 e 77 da LC 529/11.
Eis um critério bifásico de aplicação das sanções disciplinares passível facilmente de ser aplicado não só à sanção de perda de dias remidos, mas, realizadas as devidas adaptações, às demais penas cabíveis em resposta à prática de faltas disciplinares no curso da execução penal.
Enfim, entendemos que a aplicação, prima facie, de sanções cumuladas, é desproporcional. Com efeito, à luz da Teoria Redutora de Danos da Execução Penal e, também, tendo em vista a corresponsabilidade estatal pela prática de faltas disciplinares não só pela sua posição de garante frente aos custodiados mas também em razão de sua omissão de não respeitar todos os direitos das pessoas presas, legal e constitucionalmente assegurados, situação que contribui inegavelmente para que os apenados resistam a se submeter ao cumprimento das penas, muitas vezes degradantes e até cruéis, inequívoca é a conclusão de que a aplicação de sanções judiciais cumulativas é sistematicamente vedada pelo ordenamento jurídico.
CONCLUSÃO
Em conclusão, é possível observar que a partir do momento histórico em que se estipulou que a segregação humana é a resposta estatal legítima em face daqueles que cometem crimes, surgiu a necessidade de elaboração e manutenção de um complexo mecanismo de execução dessas penas de encarceramento.
Nessa linha, considerando que a execução da pena não é instantânea, mas sim prolongada no tempo, é necessário que o ordenamento jurídico seja capaz de prever soluções para as diversas intercorrências que surgem ao longo desse período de aprisionamento.
Dentre elas estão as faltas disciplinares. É evidente que o Estado precisa manter a ordem nos estabelecimentos prisionais, prevenindo e reprimindo indisciplinas. Porém, toda essa atividade estatal precisa ser legalmente estipulada e orientada pelos princípios e direitos fundamentais.
Por isso, é indispensável que seja respeitada a separação entre os procedimentos administrativos e judiciais, cada qual com suas fases. Ademais, a defesa dos apenados em ambas as fases deve ser feita por um profissional com assegurada independência, seja ele um advogado da confiança do preso, seja ele um Defensor Público.
Como visto, a designação de um funcionário da casa prisional para formalmente elaborar a defesa dos reeducandos acusados de cometerem faltas disciplinares não é suficiente para atender às exigências constitucionais e legais, matéria que já resta consolidada no âmbito dos Tribunais Superiores.
Foi possível analisar que o procedimento administrativo disciplinar para apuração de faltas disciplinares no sistema prisional possui duas searas bem delimitadas: administrativa e judicial. As autoridades administrativa e judicial possuem atribuições distintas nesse procedimento, ainda que haja intrínseca relação entre elas.
No Estado de Santa Catarina, o procedimento administrativo disciplinar é regido pela Lei Complementar 529/11, que traz as minúcias a serem observadas desde o momento em que se verifica – em tese – a prática de uma falta disciplinar, até a sua completa apuração e aplicação das devidas sanções.
Porém, embora não se possa deixar de reconhecer o avanço da lei catarinense ao disciplinar o tema, observou-se que a legislação possui inconsistências, como a ausência de previsão de mecanismos recursais, a falta de fixação de prazo para a conclusão do procedimento e a não definição de mecanismos de cientificação do apenado e de seu advogado das fases procedimentais e da decisão. Entretanto, tais lacunas são supríveis ao se lançar mão da interpretação sistêmica e da analogia.
Superada a fase administrativa, ainda há a fase jurisdicional do procedimento de apuração das faltas. Nessa questão, destacou-se que o Juiz da Execução Penal não deve se limitar a decidir a repercussão da falta praticada nos benefícios do cumprimento da pena, mas também avaliar se o procedimento administrativo prévio seguiu as balizas da lei e se foram resguardados os direitos fundamentais do apenado.
Em suma, restou assentado que é indispensável que se faça incidir sobre o sistema disciplinar da execução penal todo o arcabouço constitucional e legal inerente ao devido processo legal. As garantias fundamentais também precisam ser cautelosamente observadas pelas autoridades que impulsionam a apuração de faltas disciplinares, sob pena de se desvirtuar os princípios e as finalidades da própria pena.
Informações Sobre os Autores
Caroline Kohler Teixeira
Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Especialista em Direito Público pelo Instituto de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG) e pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (ESMAFESC). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro Titular do Conselho da Comunidade de Florianópolis/SC
Renê Beckmann Johann Júnior
Defensor Público do Estado de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas e Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus.