Resumo: O presente trabalho aborda o conteúdo das relações negociais em que o adquirente de produtos ou serviços seja pessoa jurídica que esteja em posição de vulnerabilidade em face do fornecedor. São analisados os conceitos de consumidor e de fornecedor no direito brasileiro, a fim de identificar a legislação que é aplicável na regulação das obrigações existentes entre eles, quando o consumidor esteja no exercício de atividade profissional. Discorre sobre a proteção aplicável às pessoas jurídicas adquirentes quando são identificadas cláusulas contratuais que proporcionem desequilíbrio que afetem os seus interesses. Analisa a litigiosidade entre elas e seus fornecedores, especialmente aqueles de elevado porte econômico. Conclui pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor a esse tipo de relação, de modo excepcional, quando ficar demonstrada a vulnerabilidade econômica, técnica ou jurídica do adquirente pessoa jurídica, caso não haja solução adequada, que restabeleça o equilíbrio contratual, prevista no Código Civil ou em lei extravagante.
Palavras-chave: relações de consumo; consumidor pessoa jurídica; estado de vulnerabilidade; desequilíbrio contratual; legislação aplicável.
Abstract: This paper deals with the content of business relations in which the purchaser of goods or services is a legal entity that is in a vulnerable position in face of the provider. The concepts of supplier and consumer are analyzed in Brazilian law, in order to identify the legislation that can be used in the regulation of their business relationships. It discusses about the applicable protection to vulnerable entities when contractual clauses are identified that provide imbalance affecting their interests. It analyzes the litigation between them and their suppliers, especially those of high economic size. It concludes with the applicability of the Consumer Protection Code to this type of relationship, in an exceptional way, when it is evidenced the economic, technical or legal vulnerability of the acquirer entity, if there is no suitable solution to restore the contractual balance provided for in the Civil Code or in the complementary legislation.
Keywords: Consumer relations; consumer entities; state of vulnerability; contractual imbalance; legislation.
Sumário: Introdução. 1. Conceito de fornecedor. 2. Conceito de consumidor. 3. Extensão do conceito de consumidor. 4 Desequilíbrio contratual e cláusulas abusivas. 5. proteção às pessoas jurídicas vulneráveis. Conclusão. Referências.
Introdução
É perfeitamente sabido que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXII, trouxe no rol dos direitos fundamentais a previsão de que o Estado deveria promover a defesa do consumidor, na forma da lei. Essa incumbência também foi elevada à categoria de princípio da ordem econômica brasileira, pela mesma Carta Magna, em seu artigo 170, ao lado de outros postulados de elevada importância, tais quais o da soberania nacional, o da propriedade privada, o da função social da propriedade, o da livre concorrência, o da defesa do meio ambiente, o da redução das desigualdades sociais e o do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte. Conforme o mesmo preceito, a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Diante desse panorama, e considerando-se a massificação das relações de consumo, a necessidade dessa defesa tomou uma importância capital para o alcance do equilíbrio econômico que deve haver nos contratos celebrados no dia a dia, e que visam ao atendimento de praticamente quase todas as necessidades humanas, das mais básicas às mais sofisticadas.
Em obediência à previsão constante na mesma Constituição Federal, no artigo 48 das suas disposições transitórias, foi editado o Código de Defesa do Consumidor, cujo artigo 2º regulou a definição de consumidor, sendo este a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Equiparou ainda a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Além disso, ao tratar da responsabilidade do fornecedor, pelo fato do produto e do serviço, o mesmo diploma legal prevê que se equiparam aos consumidores todas as vítimas do evento danoso que seja decorrente de qualquer atividade econômica exercida no mercado.
Embora tenha havido essa preocupação do legislador, de estabelecer um conceito de consumidor bem abrangente, a discussão acerca de quem está enquadrado nessa categoria se tornou profícua, especialmente pelo alcance que pode ser dado à expressão destinatário final. Há uma diversidade de enfoques, certamente buscando fazer com que a proteção legal se torne a mais ampla possível, sem fazer, entretanto, com que haja o desvirtuamento das nobres finalidades dessa tutela especial.
É interessante observar, como fizeram GIANCOLI e ARAÚJO JÚNIOR (2012, p. 30):
“…Que os autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor utilizaram como conceito a relação jurídica para determinar a abrangência do microssistema de proteção do direito do consumidor. O CDC, em momento algum, fala de contrato de consumo, ato de consumo ou negócio jurídico de consumo, ms sim de relação, termo que tem sentido mais amplo do que as demais expressões…”
Para que reste caracterizada a relação de consumo, contudo, é preciso o atendimento dos requisitos subjetivos e objetivos estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor, não sendo suficiente apenas o enquadramento de alguém na posição jurídica de consumidor. É indispensável que haja no outro polo da relação negocial alguém que seja considerado fornecedor nos parâmetros legais. Quanto a isso, o legislador pátrio foi mais analítico, o máximo possível. Tanto é assim que pouquíssimas divergências surgiram na interpretação desse dispositivo.
Conforme é cediço, necessário se faz que o fornecedor esteja exercendo a sua atividade profissional, e que o objeto da relação seja produto ou serviço posto no mercado de consumo, para que o elo obrigacional esteja fechado e se tenha efetivamente uma relação negocial que seja tida como submetida às normas do Código de Defesa do Consumidor.
Isso exposto, a presente abordagem visa analisar o atual conceito de consumidor, segundo a doutrina e a jurisprudência nacionais, para verificar se ele abrange quem esteja exercendo atividade econômica profissionalmente, especialmente as pessoas jurídicas que possam ser qualificadas como vulneráveis, a fim de que elas se socorram da proteção destinada aos consumidores destinatários finais.
1 Conceito de fornecedor
Fornecedor é conceituado pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo, 3º, como sendo toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Vê-se, de início, que se procurou abranger quem quer que seja, independentemente da sua estrutura jurídica ou fática. Mesmo entes públicos ou grupos de pessoas que atuem conjuntamente e que não tenham personalidade regularmente constituída, mas que estejam no mercado de consumo, são incluídos nesse conceito, como meio de fazer com que anteparos formais não sejam utilizados para evitar o exercício de qualquer direito conferido ao consumidor.
O que se exige é que o fornecedor seja alguém que exerça habitualmente uma atividade profissional, pondo à disposição do público bens e serviços mediante contraprestação, tanto direta quanto indireta.
Isso é de suma relevância porquanto é sabido que muitos se inserem no mercado sem que haja uma formalização da sua atividade, seja individual ou coletivamente, atraindo para os seus negócios parte considerável da população, que não tem nenhuma obrigação de saber se a atividade empresarial exercida de modo ostensivo é regular ou irregular. Como é praticamente impossível ao Estado exercer uma fiscalização perfeita, optou-se em proteger os consumidores e atribuir obrigações legais mesmo a quem esteja atuando informalmente e oferte produtos e serviços à coletividade.
Isso não quer dizer, contudo, que os fornecedores sejam sempre tratados igualmente. O legislador deve tratá-los, e o fez, segundo a sua especificidade, notadamente quanto à responsabilidade civil derivada da sua atividade. GRINOVER et al (1992, pp. 29 e 30) assim entendem, ao apreciar o conceito de fornecedor, nos termos seguintes:
“…Nesse sentido, por conseguinte, é que são considerados todos quantos propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título, sendo relevante, isto sim, a distinção que se deve fazer entre as várias espécies de fornecedor nos casos de responsabilização por danos causados aos consumidores, ou então, para que os próprios fornecedores atuem na via regressiva e em cadeia da mesma responsabilização, visto que vital a solidariedade para a obtenção efetiva de proteção que se visa oferecer aos mesmos consumidores.”
Assim é que, ao tratar da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, nos seus artigos 12 a 17, apesar de a regra ser que os fornecedores respondem independentemente da existência de culpa, estabeleceu hipóteses de exclusão da responsabilidade, de responsabilidade solidária condicionada e de responsabilidade subjetiva.
É também de se observar, retornando à abrangência conceitual de fornecedor acima mencionada, que, ao definir produto como qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial, a legislação deu amplitude total aquilo que é posto no mercado para venda, independentemente das suas características físicas ou da tradição comercial que a coisa vendida possa ter.
No mesmo passo, o Código de Defesa do Consumidor preceitua serviço como sendo qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes de caráter trabalhista. Incluiu, assim, toda a gama de atividades humanas exercidas mediante contraprestação, com exceção daquelas submetidas à relação de emprego, considerando-se a subordinação do empregado ao empregador, e a regulação própria dessa atividade, pela sua peculiaridade de o prestador do serviço ser a parte frágil nessa relação.
Vale salientar, inclusive, que o Supremo Tribunal Federal proferiu importante decisão, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2591/DF, no resguardo do conceito de serviço, e na sua abrangência, conforme a vê adiante:
“Em conclusão de julgamento, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF contra a expressão constante no § 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8.079/90) que inclui, no conceito de serviço abrangido pelas relações de consumo, as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária…Entendeu-se não haver conflito entre o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor, haja vista que, nos termos do disposto no art. 192 da CF, a exigência de lei complementar refere-se apenas à regulamentação da estrutura do sistema financeiro, não abrangendo os encargos e obrigações impostos pelo CDC às instituições financeiras, relativos à exploração das atividades dos agentes econômicos que a integram – operações bancárias e serviços bancários – que podem ser definidos por lei ordinária…”
Caso o Supremo Tribunal Federal tivesse decidido de modo contrário, teria sido aberto um grave precedente para excluir do alcance das normas consumeristas várias outras atividades econômicas submetidas a regramentos específicos, o que poderia fazer o Código de Defesa do Consumidor ter a sua abrangência bastante reduzida.
Discorrendo sobre a conceituação de fornecedor, ALMEIDA (2009, p. 46) faz um ele entre isso e aquilo que se caracteriza como produto e serviço, concluindo que:
“A definição do que seja fornecedor aliada à explicitação do entendimento dos termos produto e serviço facilita sobremodo a aplicação da lei, pois elimina na medida do possível, dúvidas que poderiam pairar sobre o correto entendimento do conteúdo de cada termo. Tal medida, inclusive, define bem o alcance da tutela do consumidor, pois permite a clara identificação de quem está abrangido por ele e, por exclusão, quem a ele não se submete.”
Por esse entendimento, quem se enquadrar como fornecedor não poderia ser considerado consumidor, para os fins protetivos legais, quando adquirente de bens no exercício da sua atividade, numa concepção conceitual restritiva, consoante será abordado adiante, em cotejo com os outros entendimentos doutrinários existentes.
2 Conceito de consumidor
Para se obter o conceito jurídico de consumidor, normalmente se parte da sua concepção econômica, que abrange todos aqueles que se tornam destinatários da produção de bens e serviços para gasto próprio. Assim, não alcança aqueles que os utilizam como insumo de outras atividades produtivas ou de circulação.
FILOMENO (2014, pp. 24-25) procura definir consumidor sob o aspecto sociológico, dizendo se tratar de qualquer indivíduo que frui ou se utiliza de bens e serviços, mas pertencente a uma determinada categoria ou classe social.
Apesar de parecer algo inicialmente bem claro, o conceito de consumidor tem gerado entendimentos diversos acerca do seu alcance. A principal divergência surgida se refere à interpretação do que se compreende por destinatário final. Surgiram, pois, diferentes correntes doutrinárias sobre esse tema.
A corrente finalista clássica tem uma visão restritiva do conceito de consumidor. Entende que o Código de Defesa do Consumidor somente deve tutelar aqueles que precisam de proteção, por sua vulnerabilidade, não admitindo que quem esteja exercendo profissão seja beneficiado. Alguns chegam a expressar o entendimento de que as pessoas jurídicas não deveriam ser consideradas consumidoras, para os fins de proteção especial, em qualquer hipótese, visto que não seriam vulneráveis e teriam meios de defender os seus interesses quando do surgimento de conflitos de negociais entre elas e seus fornecedores. Neste caso, a acepção de vulnerabilidade é a mais restrita possível.
Assim sendo, para os finalistas clássicos apenas pode ser considerado consumidor, para os fins jurídicos, aquele que se utiliza do bem ou do serviço para uso próprio ou de sua família, sem utilizá-lo como elemento de qualquer atividade econômica de intermediação.
Já a corrente maximalista entende que consumidor é quem adquire produto ou serviço cujo ciclo econômico se esgota com ele. Tem ela uma visão mais abrangente das normas inseridas no Código de Defesa do Consumidor, que seriam destinadas a todos os agentes do mercado, que podem assumir ora o papel de fornecedor ora o papel de consumidor.
Para os que pensam assim, apenas não há relação de consumo quando o produto ou serviço adquirido é utilizado diretamente no objeto da atividade profissional. Desse modo, toda a aquisição para utilização em prol da empresa, mas não destinada à circulação, direta ou mediante transformação, é entendida como relação de consumo. Desse modo, independentemente da natureza jurídica da pessoa adquirente, a relação pode vir se caracterizar como de consumo, e sujeita às normas consumeristas.
Discorrendo sobre o conceito de consumidor, DE LUCCA (2008, p. 113) apresenta visão interessante, ao asseverar que nele se enquadra quem pratica o ato pelo qual se completa a última fase do processo econômico, o que abre a discussão sobre quando exatamente isso se concretiza, considerando-se a diversidade de aplicações que se permitem aos bens e serviços postos no mercado.
O significado de quem seja consumidor, para fins jurídicos, tem-se baseado, nos países europeus, na pessoa individual, que adquire ou utiliza, para fins privados, bens e serviços colocados no mercado. Nesse sentido, a Diretiva 2005/29/EC, da Comunidade Europeia, que trata das práticas comerciais abusivas, conceitua consumidor como a pessoa física que contrata, desde que não o faça em razão de sua atividade comercial, trabalho, ofício ou profissão. Pelo contexto protecionista do mencionado diploma normativo, e segundo a tradição jurídica formada, entende-se que não se enquadra no conceito de consumidor aquele que adquire produto a ser utilizado ou integrado ao seu processo produtivo, com a finalidade de obtenção de lucro.
No Brasil, em decorrência do seu próprio texto, como já visto, o Código de Defesa do Consumidor somente se aplica às relações jurídicas em que o consumidor seja destinatário final do produto ou do serviço. Contudo, a norma legal prevê que pessoa jurídica pode ser enquadrada no conceito de consumidor, fazendo surgir a dúvida sobre a abrangência dessa previsão, ou seja, se ela alcança somente as pessoas jurídicas que não exercem atividade especulativa ou se alcança as pessoas jurídicas empresárias, os empresários individuais, e demais profissionais, quando estes estejam em situação que possa ser considerada de vulnerabilidade nas suas relações com os seus fornecedores.
Não há entendimento unânime em terras pátrias sobre a possibilidade ou não da aplicação das normas de defesa do consumidor às relações jurídicas negociais em que o destinatário do produto ou serviço seja qualquer um no exercício da sua atividade econômica.
Nesse contexto, não se pode esquecer do Código Civil de 2002, que traz normas aplicáveis aos negócios jurídicos realizados entre empresários, sem, entretanto, ter em foco a desproporção econômica e técnica que muitas vezes se apresenta em tais relações.
Assim, permanece em discussão a possibilidade de aplicação direta das normas que regulam as relações de consumo quando se tratar especificamente de contrato celebrado entre empresários, estando um deles na posição de consumidor.
Merece reflexão se é adequado o uso da analogia para estender a aplicação dos princípios e das regras que norteiam as relações de consumo mesmo quando o consumidor não seja destinatário final, mas esteja em situação de clara inferioridade em face do seu fornecedor, de modo tal que mereça proteção equivalente às pessoas físicas e jurídicas não empresárias, ante o equilíbrio de proveito que deve haver nas relações privadas.
De modo inverso, existem também as pessoas jurídicas que não são consideradas empresárias, pela sua estrutura jurídica, mas que às vezes exercem atividades econômicas, tais quais as empresas, com elas concorrendo no mercado de bens e serviços, como associações, fundações e sociedades cooperativas, que alcançam patamar financeiro elevado, e, portanto, não são detentoras de hipossuficiência, mas que estariam alcançadas pelas normas protetivas, criando-se uma espécie de antinomia sistêmica, acaso se entenda pela não proteção aos empresários quando atuem como consumidores e estejam em posição de flagrante inferioridade em face dos seus fornecedores.
3 Extensão do conceito de consumidor
Tendo em vista a especial proteção dada pela legislação ao consumidor, isso despertou naturalmente um desejo de quase todos os adquirentes de produtos e serviços de nele se enquadrarem, sempre quando do surgimento de qualquer litígio obrigacional com seus fornecedores.
Ora, a possibilidade de inversão do ônus da prova a seu favor, a interpretação mais favorável de cláusulas contratuais, e toda a gama de direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor, fornecem mais chances de êxito em uma eventual demanda judicial.
Desse modo, e considerando-se o alto grau de litigiosidade existente no Brasil, os interessados passaram a ter uma compreensão mais extensiva do conceito de consumidor, para poder gozar desses direitos.
O próprio legislador, após lançar o conceito acima referido, tratou de fazer com que ele fosse estendido em dois preceitos insertos no Código de Defesa do Consumidor. Assim é que no seu artigo 2º, parágrafo único, está previsto que se equipara a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Comentando esse preceito, MARQUES, BENJAMIM e MIRAGEM (2013, p. 119), fazem interessantes esclarecimentos:
“Nos primeiros anos de aplicação do CDC, duas foram as linhas utilizadas pela jurisprudência para atingir a ampliação do campo de aplicação do CDC: a primeira foi a de considerar o CDC como novo paradigma geral da boa-fé nas relações contratuais e aplicar os seus princípios, em especial a sua cláusula geral do art. 51, IV (cláusula geral de boa-fé), mesmo a contratos mercantis ou a contratos de polêmica inclusão no sistema do CDC, como, para muitos, são alguns contratos bancários ou contratos de locação; a segunda linha ampliadora do impacto do CDC no mercado veio através da interpretação dada ao art. 29. A jurisprudência valorizou a técnica do próprio CDC de instituir “consumidores equiparados” ao lado dos consumidores stricto sensu, e passou a exercer um controle de cláusulas abusivas em contratos de adesão que estariam inicialmente fora do campo de aplicação do CDC, como contrato entre dois profissionais, assim como a valorar práticas comerciais abusivas entre dois fornecedores ou dois grupos de empresários, práticas que possuíram reflexos apenas mediatos no que se refere à proteção dos consumidores stricto sensu.”
Não se pode esquecer, contudo, que o Código de Defesa do Consumidor teve o seu advento ainda quando estava em vigência o Código Civil de 1916, e com ele foi utilizado paralelamente durante mais de doze anos.
Quanto ao enquadramento na definição de consumidor de pessoa física ou jurídica que não exerça atividade econômica, não há divergências, pois ambas se qualificam claramente como destinatárias finais dos produtos ou serviços adquiridos, visto que estes não serão usados como insumos de uma atividade lucrativa.
A questão se torna polêmica apenas quanto às pessoas ou entes despersonalizados que exercem atividade econômica, especialmente com fins lucrativos.
A jurisprudência de alguns tribunais brasileiros, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, chegou, em muitos casos, a deixar de lado a análise quanto à finalidade do produto ou serviço, passando a admitir a aplicabilidade da legislação protetiva com base nas características da própria parte consumidora, isto é, sua maior ou menor vulnerabilidade frente ao fornecedor, conforme se verá adiante.
4 Desequilíbrio contratual e cláusulas abusivas
Já há bastante tempo que o princípio da autonomia da vontade, que reinava nas relações obrigacionais, foi relativizado, diante da constatação de que a antes existente igualdade substancial que havia entre os contratantes tivera sido substituída por uma igualdade meramente formal, em muitos casos. Na teoria clássica, os contratos eram baseados na vontade individual, que era a razão de ser da sua força obrigatória. Os celebrantes se vinculavam voluntária e conscientemente, em todos os seus termos, e o Estado não interferia nessa vontade soberana. Sua atuação se restringia a assegurar-lhes a validade, desde que não existisse qualquer vício que maculasse o negócio jurídico.
Entretanto, o prevalecimento da ideia de autonomia da vontade não perdurou intacto com o desenvolvimento econômico havido desde a Idade Moderna. LOPES (1996, p. 34) fez uma análise interessante dessa evolução:
“…Logo os juristas se aperceberam que a liberdade no exercício das vontades individuais longe de ser, como dizia COMBACÈRÈS, “la faculté de choisir les moyens de son bonheur”, se convertera, muitas vezes, na desgraça de um dos contratantes, em face de sua posição de desigualdade ante a outra parte. Inexato pretender-se, como o acentuava MARCEL DIJOL repetindo FOUILLÉ, que nas obrigações particulares “la liberté demeure seule em face de la liberté”, porque de nenhum modo é possível considerar-se livremente celebrado um contrato concluído entre contratantes num desnível de posições. As desigualdades econômicas agravaram-se; a concepção de um indivíduo, senhor dos seus próprios interesses nos contratos em que aparentava convencionar livremente, se patenteou falsa, em face das seguintes razões: 1º) porque o indivíduo é por vezes desarrazoado; 2º) porque frequentemente não se encontra em situação de poder prever um futuro cada vez mais aleatório do que era no século passado; 3º) porque contrata frequentemente sob o império da necessidade, tendo ante ele um co-contratante cuja força econômica é ante a dele, incomensurável.”
Essas desigualdades econômicas e suas consequências obviamente se espraiam não apenas sobre as relações em que o adquirente dos produtos ou tomador dos serviços não atua profissionalmente. Na verdade, elas ocorrem também na seara interempresarial, quando em um dos seus polos se tem um empreendedor de porte elevado e no outro um diminuto. É bem verdade que a nitidez desse fenômeno se mostrou mais vívida nas relações de consumo, sendo o consumidor destinatário final, diante do volume de aquisições que ocorrem no mercado e seus largos reflexos socioeconômicos.
Contudo, o dinamismo da atividade econômica tornou frequente a realização de operações entre os grandes empreendedores e os intermediários que atuam diretamente perante o consumidor final, visando atingi-los comodamente, sem que haja a necessidade de pulverização de estabelecimentos por parte dos produtores, fabricantes e distribuidores, que se limitam, na maioria das vezes, a atuar na rotina de produção e na venda no atacado. Esse modo de atuar lhes diminui os custos e lhes reduz os riscos. Para isso, utilizam-se em grande escala de contratos padronizados, aos quais os varejistas apenas aderem. Surgiram dessas relações novos modos de contratar, em que os fornecedores passaram a impor, de modo unilateral, aos adquirentes de bens de consumo, inclusive aos intermediários, cláusulas contratuais cada vez mais onerosas.
Tem-se seguido, assim, um processo mercadológico que põe os micro e pequenos empreendedores em situação similar à dos consumidores destinatários finais. Essa massificação, não existente até a Idade Média, é fruto, inicialmente, da revolução industrial ocorrida na Inglaterra, mas sobretudo do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, caracterizada pelo domínio dos bens de produção por grandes companhias, que passaram a se utilizar de avançadas técnicas de “marketing” para esse fim.
Atingidos por esse fenômeno inicialmente foram apenas os destinatários finais dos produtos e serviços, ou seja aqueles que os adquiriam para uso pessoal, sem emprego em outra atividade negocial. Contudo, hodiernamente, com o exponencial crescimento populacional havido não só no Brasil, mas em todo o mundo, seguido da também massificação das relações empresariais, essa desigualdade acima referida se expandiu para também alcançar os negócios jurídicos empresariais, já que, na maioria das vezes, quem atua diretamente perante o consumidor final são micro ou pequenos empreendedores, ou ainda profissionais não organizados empresarialmente.
O Código de Defesa do Consumidor regula analiticamente, dentro do capítulo intitulado “Das práticas comerciais”, o que chamou de práticas abusivas, vedando uma série de condutas ao fornecedor de produtos e serviços. Já no capítulo “Da proteção contratual”, há a enumeração daquilo que é considerado como cláusulas abusivas, as quais são nulas de pleno direito. Vale salientar que, em ambos os casos, as relações são meramente exemplificativas, já que não haveria como o legislador prever, diante da complexidade que caracteriza a atividade econômica, todas as hipóteses possíveis de práticas e cláusulas em que o fornecedor abusa do seu direito de anunciar e contratar.
Resta saber, pois, se essa tutela especial pode ser efetivamente aplicada de modo mais amplo, como preconizam os maximalistas ou se não, como entendem os finalistas clássicos.
5 A proteção às pessoas jurídicas vulneráveis
A discussão objeto do presente trabalho envolve a importância que os empreendedores diminutos tem ganhado no mercado de bens e serviços, e na sua posição de fragilidade em relação às grandes e médias sociedades empresárias que dominam os meios de produção.
Esse tema apresenta grande relevância socioeconômica, tendo em vista que os micros e pequenos empresários se relacionam frequentemente com empreendedores de elevado porte em sua atividade negocial, e, normalmente, pela sua situação de inferioridade, são atingidos por práticas mercadológicas similares às utilizadas nas relações com os consumidores destinatários finais dos produtos e serviços postos à disposição da coletividade.
Este assunto já vem sendo objeto de pesquisa entre os estudiosos da matéria. Inicialmente, o estudo deve partir do conceito de consumidor para os fins delineados na Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990. Sobre isso, surgiram diferentes correntes doutrinárias, conforme já referido, utilizando-se de diferentes interpretações. Uma delas é de que somente se enquadram nesse conceito, além das pessoas físicas, as pessoas jurídicas que não tenham finalidade lucrativa (GRINOVER, 1992, p. 27). Por esse entendimento, somente os entes não empresários estariam equiparados aos consumidores hipossuficientes, o que levaria à conclusão de que os empreendedores de pequeno vulto estariam excluídos da proteção consumerista.
Especializando essa discussão, (COELHO, 2012, p. 93) defende o entendimento de que o que marca a assimetria nas relações contratuais entre empresários é a dependência empresarial, situação que deveria levar à aplicação do que denomina princípio da proteção do contratante mais fraco, o qual já estaria legalizado de modo implícito em nosso ordenamento. (SALOMÃO FILHO, 2003, p. 206) chega a analisar os tipos de dependência comercial que podem existir no mercado, embora o tenha feito inicialmente apenas no campo das negociações compulsórias.
Essa discussão ganhou relevância após o advento do Código Civil de 2002, que, diferentemente do anterior, trouxe normas inovadoras que se aplicam às relações entre empresários e que estão mais adequadas com a realidade atual. Antes tínhamos o Código Civil de 1916, passo a passo com o Código Comercial de 1850 e com o Código de Defesa do Consumidor.
Acerca disso, MARQUES (2006, p. 663) desenvolveu interessante teoria a que denominou de diálogo das fontes, que trata do problema de que norma deve ser aplicada no caso concreto, permitindo certa maleabilidade nos critérios a serem utilizados, cujo entendimento vem sendo bastante difundido ultimamente.
MARQUES, BENJAMIN E MIRAGEM (2013, p. 118), discorrendo sobre a presunção de vulnerabilidade e equidade contratual, apresentam o seguinte entendimento:
“….Mas existiria desequilíbrio contratual em um contrato firmado entre dois profissionais? Como regra geral, presume-se que não há desequilíbrio, ou que ele não é tão grave a ponto de merecer uma tutela especial, não concedida pelo direito civil renovado (pelo direito das obrigações do CC/2002). Aqui presume-se a inexistência de vulnerabilidade…Mas por vezes o profissional é um pequeno comerciante, dono de bar, mercearia, que não pode impor suas condições contratuais para o fornecedor de bebidas, ou que não compreende perfeitamente bem as remissões feitas a outras leis no texto do contrato, ou que, mesmo sendo um advogado, assina o contrato abusivo do único fornecedor legal de computadores, pois confia que nada ocorrerá de errado. Nestes três casos, pode haver uma exceção à regra geral: o profissional pode também ser “vulnerável”, ser “mais fraco” para se proteger do desequilíbrio contratual imposto.”
Na prática, os tribunais pátrios, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, tem adotado um entendimento flexível, para proteger aqueles que não estariam enquadrados no conceito de consumidor, mas que merecem essa proteção, por sua vulnerabilidade econômica, jurídica ou técnica. Em decisão proferida no AgRg no AResp 133253/SP, publicada no dia 09 de outubro de 2014, a terceira turma dessa Corte, sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, decidiu que “…. Se a pessoa jurídica não ostenta a condição de consumidora final nem se apresenta em situação de vulnerabilidade, não incidem as regras do Direito do Consumidor…” Vê-se, pois, que se tivesse ficado caracterizada essa última qualidade referida, haveria, sim, a tutela especial.
Em outra decisão (AgRg no REsp 1321083/PR), publicada no dia 25 de setembro de 2014, o mesmo Tribunal, por meio da mesma turma, entendeu existir relação de consumo entre empresa administradora de imóveis e outra de táxi-aéreo, em vista da aquisição de aeronave pela primeira à segunda, não obstante seja aquela sociedade anônima de porte elevado. O argumento utilizado em prol dessa decisão foi o de que a aeronave seria produto destinado a atender uma necessidade própria da pessoa jurídica, não se incorporando ao serviço prestado aos clientes. Quanto a esta decisão, o voto proferido faz menção à adoção da teoria finalista mitigada, o que somente se justifica diante da vulnerabilidade técnica do adquirente, dada a especificidade do bem adquirido.
Como visto, consolida-se o entendimento de que a vulnerabilidade do adquirente pode se configurar sob três modalidades diferentes: a fática, nas situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade; a jurídica, consistente na falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico; e a técnica, pela ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço. Assim, configurada qualquer dessas hipóteses, entende a jurisprudência que podem ser aplicadas as normas de defesa do consumidor em favor da pessoa jurídica adquirente.
Conclusão
Atualmente, o tema passa por uma fase de transição entre os tribunais pátrios, que demonstram estar evoluindo de uma interpretação puramente minimalista da aplicação das normas de defesa do consumidor para uma compreensão finalista aprofundada, observando que o Direito não pode ser fonte de legitimação de práticas anteriores que não mais condizem com a necessidade de melhor distribuição dos recursos econômicos.
Assim, não se tem utilizado unicamente o critério de a pessoa jurídica ser destinatária final do produto ou serviço, mas também o critério da sua vulnerabilidade no caso concreto, independentemente da sua qualificação jurídica, mesmo ela sendo de grande porte econômico, mas débil em outro aspecto da relação que a põe em posição de inferioridade relevante, posto que comumente não se tem no Código Civil ou em legislação extravagante preceitos que sirvam para regular adequadamente os conflitos advindos desse tipo de relação.
É óbvio que nas relações em que se tenha de um lado um grande ou médio empreendedor, e de outro um pequeno ou micro empreendedor, a possibilidade de ocorrência da reclamada vulnerabilidade se apresenta muito mais comum, e é nessas situações que a extensão do conceito de consumidor, para abrangê-los e conferir-lhes a especial tutela regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, ganha relevância e indispensável aplicação.
Contudo, parece que esse entendimento desvirtua um pouco o espírito do Código de Defesa do Consumidor, quando se verifica que os objetivos do seu surgimento se destinavam a abranger como consumidor unicamente as pessoas naturais e as pessoas jurídicas sem fins econômicos, na esteira do que ocorre no continente europeu.
A aplicação da teoria finalista aprofundada preenche uma lacuna do ordenamento jurídico pátrio, que deveria ser resolvida com a reforma do Código Civil ou mesmo com a edição de um novo código comercial ou de empresa, que tratasse especificamente dos litígios entre empreendedores, que possuem caracteres muito próprios, diversos daqueles observados nas relações de consumo cotidianas. Em seu bojo deveria haver tratamento específico para as relações em que o adquirente do produto ou tomador do serviço, não obstante a sua atuação profissional, esteja em situação de vulnerabilidade, seja ela econômica, técnica ou jurídica.
Informações Sobre o Autor
Cleanto Fortunato da Silva
Juiz de Direito em Natal/RN Professor do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Mestrando em Direito Comercial pela PUC/SP