Resumo: O presente trabalho visa analisar a possibilidade de restituição ao contribuinte naqueles casos em que há a adoção do regime de substituição tributária para frente – progressiva – do Imposto sobre Circulação e Serviços (ICMS), sobretudo quando a base de cálculo ocorrer em dimensão menor do que a presumida. Através de uma exposição inicialmente conceitual, na primeira parte, apresenta-se aspectos gerais sobre a regra matriz de incidência tributária (RMIT) do ICMS, sem prejuízo da abordagem conceitual, legislativa e histórica do instituto da substituição tributária. Já na segunda parte, passa-se a realizar um levantamento histórico jurisprudencial acerca do tema, o qual, além de demonstrar a atualidade do problema, fornece argumentos e teses para a conclusão do trabalho. Em sede final, observa-se que a presunção em tela viola princípios histórico-basilares do direito tributário, além de afastar a ocorrência real do critério quantitativo da regra matriz de incidência tributária, em prol de uma praticidade idealizada e fictícia. Assim, necessário é assegurar ao contribuinte o direito à restituição do imposto pago a maior na hipótese de haver dissonância entre as bases de cálculo presumida e real na substituição progressiva do ICMS.
Palavras-chave: Base de cálculo presumida. ICMS. Restituição. Substituição Tributária.
Abstract: This study aims to examine the possibility of refund to the taxpayer in cases where there is the adoption of the tax substitution system forward – progressive – Tax on Circulation and Services (ICMS), especially when the basis of calculation occur in smaller than the presumed. Through an initially conceptual exhibition, the first part presents general aspects of the rule array of tax incidence (RMIT) ICMS, without prejudice to the conceptual approach, and legislative history of the tax substitution institute. In the second part, is going to hold a jurisprudential historical survey on the subject, which, in addition to demonstrating the relevance of the problem, provides arguments and theses for completing the work. In the final seat, it is observed that the screen presumption violates historical and general principles of tax law, as well as away the actual occurrence of the quantitative criteria of the rule array of tax incidence in favor of an idealized practicality and fictitious. Therefore necessary to ensure the taxpayer is entitled to refund of tax overpaid in the event there is dissonance between the assumed and actual calculation bases in the progressive replacement of the ICMS.
Keywords: Presumed Calculation Basis. ICMS. Restitution. Tax Substitution.
Sumário: Introdução. 1. A regra-matriz de incidência tributária do ICMS e a substituição tributária. 1.1. Da regra-matriz do imposto sobre circulação de mercadoria e serviços (ICMS). 1.2. Do regime de substituição tributária e sua historicidade no ordenamento pátrio. 2. Da dissonância entre as bases de cálculo real e presumida na substituição para frente e o possível direito à restituição. 2.1 Da manifestação da jurisprudência ao reconhecimento de repercussão geral em relação ao tema. 2.2 Da inocorrência de seu aspecto quantitativo e o direito à restituição. Conclusão. Referências.
Introdução
Com o desiderato de reduzir a sonegação de impostos, sobretudo o ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços -, inúmeros mecanismos de exação fiscal foram previstos no ordenamento pátrio. Dentre eles, um, em especial, chama a atenção por sua aplicabilidade complexa e ensejadora de inúmeras controvérsias: a denominada substituição tributária. Seu estudo é polêmico, tanto na doutrina, como na jurisprudência, produzindo inúmeros questionamentos envolvendo institutos propedêuticos de direito tributário e contornos técnicos de antecipação e diferimento do recolhimento do imposto no tempo.
Especificamente na substituição “para frente”, ao tempo em que a mercadoria começa a sua cadeia comercial, a indústria/importador (primeiro contribuinte da operação) calcula com antecedência qual será o montante do imposto devido em todo o ciclo comercial. Partindo-se desse valor, a indústria, na origem, recolhe, por exemplo, o ICMS próprio e dos demais contribuintes futuros que integrarão o ciclo de comercialização, pagando com antecedência a quota das operações subsequentes. Todavia, ao seu turno, o industrial não fica com a conta (débito), pois ele recupera o valor pago do imposto dos demais componentes do ciclo de comercialização.
Trata-se, ao bem a verdade, conforme se pode diagnosticar precocemente, de instituto ávido à fiscalização. A substituição tributária foi criada com o objetivo de evitar, dentre outras coisas, a chamada “venda por fora” e o “subfaturamento”, sendo uma forma de garantir que seja pago imposto (o ICMS, no exemplo), em todo o ciclo econômico de uma mercadoria por um valor razoável. Assim, quanto ao ICMS, por exemplo, tanto o grande comerciante, como o pequeno, acabam pagando o mesmo valor de imposto pela mesma mercadoria, diminuindo a defasagem de preço entre um e outro e tornando a concorrência mais equânime.
Fixadas tais premissas sobre o funcionamento da substituição tributária, é preciso se tomar conhecimento de um ponto fulcral que será objeto de detalhamento e análise no presente trabalho: na prática, é comum a administração pública estipular valores médios de determinados produtos muito acima do valor médio real. Tal conduta, inegavelmente, significa que os comerciantes acabam pagando mais imposto do que seria efetivamente devido, ocasionando, ao aderentes do regime de substituição tributária, ao invés de benéfico, um mecanismo perverso e inflacionário.
Desse modo, com base nessa constatação de que potencialmente pode ocorrer a tributação com base de cálculo inegavelmente presumida a maior, imperioso se faz o desenvolvimento do presente trabalho. A perspectiva, aqui, é o enfrentamento de contornos técnicos a fim de se buscar uma conclusão sobre os deslindes que podem, ou que deveriam, ocorrer ao se optar pelo regime de substituição tributária, sobretudo, na denominada de substituição para frente.
Após uma exposição inicial, propedêutica, a respeito da importância da legalidade para a seara tributária, desenvolver-se-á na presente obra, em sua primeira parte, a apresentação de contornos elucidativos sobre a regra matriz de incidência tributária (RMIT), com especial referência àquela prevista para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Em um segundo momento, abordar-se-á o instituto da substituição tributária em si considerada, abordando seu conceito, sua classificação, e sua historicidade. Sem prejuízo, procurar-se-á evidenciar as críticas doutrinárias levantadas ao tema, e de que forma a jurisprudência encara o direito de restituição naqueles casos de substituição tributária progressiva.
Se, de um lado, prepondera os interesses fazendários no sentido de que a exação sobre fato gerador presumido tem permissivo constitucional, de outro, a cobrança precisa alimentar-se em fato gerador prévio, em decorrência da tipicidade tributária. Além disso, eventual dissonância entre as bases de cálculo real e presumida ensejam interpretações distintas, uma vez que, para o fisco, a presunção deriva de lei e é conditio sine qua non para a fiscalização e possível cobrança do imposto, enquanto que para os contribuintes, se a base de cálculo é distinta, o aspecto quantitativo da regra matriz de incidência tributária não se perfectibilizou, não existindo fato gerador.
Não se busca, via de lógica, esgotar o assunto, mas tal embate de argumentos e teses em torno do tema ganha contornos ainda mais importantes, já que, no ano de 2009, mediante o RE nº 593.849 RG/MG, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral no que tange ao assunto. No ponto, ainda pendente de julgamento, inúmeras são as expectativas dos contribuintes para que haja uma modificação no atual entendimento do tribunal, o qual abriga os interesses fazendários, posto que a composição dos membros da corte sofreu severa alteração desde a última apreciação envolvendo o tema.
1. A regra-matriz de incidência tributária do icms e a substituição tributária
O avanço tecnológico-científico, aliado à massificação cultural, propicia um aumento de complexibilidade nas interações estatais, tanto daquelas regidas pelo direito público, quanto pelo privado. Nesse cenário, é importante ressaltar a figura do Estado, como agente imprescindível à estruturação social, o qual, via de lógica, assume papel fundamental na subsistência da sociedade, na medida em que é agente transformador e, ao mesmo tempo, garantidor de uma plêiade de direitos e obrigações no seio social.
Nesse contexto, surge de maneira exponencial o papel do direito tributário, como sendo o ramo, dentro do ordenamento jurídico pátrio, capaz de angariar recursos públicos derivados, legitimando exações e instrumentalizando todo um aparato normativo-jurídico apto à fiscalização e à arrecadação. Tudo isso, via de lógica, dá-se sob a erige do regime jurídico público, com verticalização da relação entre Estado e cidadão. Conforme lições de André Elali:[1]
“O fenômeno da tributação, originado pela circunstância de um povo da criação de uma exação para cumprimento pelo povo, é tão antigo quanto a própria humanidade. É hoje manifestação do poder político do Estado, influenciando nas suas atividades política, social, administrativa e econômica.
Nasceu, indubitavelmente, pela necessidade de o aglomerado de pessoas, dentro de uma estrutura organizacional, em qualquer época, atender as carências comuns”.
Tal atividade coercitiva estatal, por sua vez, baseia-se principiologicamente no ditames de legalidade, no qual a lei serve como baliza-mestra no desenrolar de sua aplicação, sobretudo na imposição das obrigações a todos os membros da coletividade, então sujeitos passivos, existentes no meio social. Essa irrefutável ligação entre o direito tributário e o Princípio da Legalidade perfaz, ao bem da verdade, o pressuposto lógico para a existência daquele. Nas palavras de Hugo de Brito Machado[2]:
“Pelo Princípio da legalidade tem-se a garantia de que nenhum tributo será instituído, nem aumentado, a não ser através de lei (CF, art. 150, inc. I). A Constituição é explícita. Tanto a criação, como o aumento dependem de lei. Essa explicitude decorreu do fato de que no art. 153, § 29, da Constituição anterior a regra vinha formulada juntamente com as ressalvas, e tais ressalvas eram pertinentes apenas aos aumentos”.
É necessário, então, por ora, deixar expressa a importância da lei na atividade exatora, chamada tecnicamente, conforme se observar-se-á adiante de Regra Matriz de Incidência Tributária (termo cunhado pelo professor Paulo de Barros Carvalho), sem a qual não haverá tributação, sequer obrigação a quaisquer sujeito que seja. Para Luciano Amaro, a função assumida pela lei – em sentido amplo – no direito tributário é elementar à existência e ao funcionamento de todo aparato estatal respectivo, dissertando nos seguintes termos[3]:
“O conteúdo do princípio da legalidade tributária vai além da simples autorização do legislativo para que o Estado cobre tal e qual tributo. É mister que a lei defina in abstracto todos os aspectos relevantes para que, in concreto, se possa determinar quem terá de pagar, quanto, a quem, à vista de que fatos ou circunstâncias. A lei deve esgotar, como preceito geral e abstrato, os dados necessários à identificação do fato gerador da obrigação tributária e à quantificação do tributo, sem que restem à autoridade poderes para, discricionariamente, determinar se “A” irá ou não pagar tributo, em face de determinada situação. Os critérios que definirão se “A” deve ou não contribuir, ou que montante estará obrigado a recolher, devem figurar na lei e não no juízo de conveniência ou oportunidade do administrador público”.
Sob esse aspecto, para haver alguma exação torna-se imprescindível que haja prévia e anterior previsão legal para tanto. Parte-se do postulado, “nom lei, nom tribut”. Tal disposição legal, ou hipótese de incidência, como preferem os tributaristas de ordem mais técnica, perfaz a previsão expressa e clara prevendo o motivo pelo qual exigir-se-á algum tributo ou exação. É a tipicidade do tributo.
De forma bem sintética, elucida Ricardo Lobo Torres[4]:
“Para que surja a obrigação tributária é necessário que o fato gerador seja perfeita e exaustivamente definido na lei formal. Já estudamos que o Princípio da Legalidade vincula inteiramente a criação do tributo. Mas só a lei formal não é o bastante para dar nascimento à obrigação tributária, que está vinculada também, como vimos antes, aos princípios constitucionais, especialmente ao da capacidade contributiva, e aos direitos fundamentais”.
Ademais, sob um aspecto ainda mais teórico, segundo lição de Paulo de Barros Carvalho, a estruturação lógico-normativa (previsão geral e abstrata na lei) decompõe-se em alguns componentes ou critérios, sendo eles um antecedente (proposição hipótese) e um consequente (proposição tese), vinculados por um “conector deôntico” estabelecido pelo sistema do direito positivo[5]. Dentro destes dois componentes, existem alguns critérios elementares, quais sejam: a) o critério material; b) o critério espacial; c) o critério subjetivo; d) o critério territorial, e; e) o critério quantitativo. Tal conjunto de informações, todas incluídas na hipótese de incidência, ganham a denominação de “Regra-matriz de incidência tributária”.
Assim sendo, conforme se observa, didaticamente, a regra-matriz perfaz uma norma jurídica, a qual acoberta todos os elementos necessários para a constituição do crédito tributário. A contrário sensu, a não ocorrência de algum dos cinco elementos discriminados acima impossibilita o órgão exator de efetuar o lançamento tributário. Destaca-se que a relação, no ponto, é de causa e efeito, haja vista que a relação jurídica somente pode-se constituir se a descrição contida no plano abstrato vier a se concretizar.
1.1 Da regra-matriz do imposto sobre circulação de mercadoria e serviços (ICMS)
Quanto ao estudo do direito tributário em si, atentar-se-á, para fins de seguimento do presente trabalho, sobretudo a um dos impostos tipificados pelo legislador originário da Constituição Federal de 1988, qual seja, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Tal espécie de exação, cerne da presente obra, perfaz um verdadeiro mecanismo de tributação incidente sobre “Produção e a Circulação” (capítulo IV do Código Tributário Nacional), o qual, nas linhas que seguem serão melhor detalhadas.
Ademais, seu âmbito de aplicação, com a Carta da República de 1988, ganhou significativa extensão, passando a cobrir não apenas a operação de circulação de mercadorias, mas também as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, além dos serviços de comunicação. Segundo a renomada e ímpar obra de Roque Antônio Carrazza sobre o tema, a amplitude dada ao retro mencionado imposto foi tamanha que sua regra matriz de incidência tributária guarda relação com cinco nichos de aplicação distintos:[6]
“A sigla ICMS alberga pelo menos cinco impostos diferentes, a saber: a) o imposto sobre operações mercantis (operações relativas à circulação de mercadorias), que, de algum modo, compreende o que nasce da entrada de mercadorias importadas do exterior; b) o imposto sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal; c) o imposto sobre serviços de comunicação; d) o imposto sobre produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos e de energia elétrica; e e) o imposto sobre extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais. Dizemos diferentes, porque estes tributos têm hipóteses de incidência e bases de cálculo diferentes. Há, pois, pelo menos cinco núcleos distintos de incidência do ICMS”.
Ademais, consolidadas os elementos formadores da Regra Matriz de Incidência Tributária (RMIT) mencionadas acima, no âmbito do ICMS, espera-se que, no mundo empírico, sobrevenham acontecimentos – circulação de mercadoria e prestação de determinados serviços – que preencham a situação prevista em sua hipótese de incidência. De fato, para que haja tal fenômeno – ocorrência do fato gerador -, e seu consequente nascimento da obrigação tributária, é necessária a adequação a critérios preexistentes, os quais, no ICMS, se revelam da seguinte forma:
a) Seu aspecto material, conforme já mencionado, engloba sinteticamente I) operações relativas à operação de circulação de mercadorias; II) prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e III) prestação de serviços de comunicação.
Com efeito, Julio M. de Oliveira, em definição simples e exauriente, esclarece[7]:
“O critério material da hipótese normativa do imposto sobre operações mercantis é a realização de uma operação jurídica comercial que implique a circulação de mercadorias, isto é, a realização de negócio jurídico regido pelo Direito Comercial em que se opere a transferência de propriedade de bem móvel objeto de mercancia, e não apenas o deslocamento físico, como o que ocorre, por exemplo, nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa ou no empréstimo de bens. (…)
No que respeita ao ICMS incidente sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, somente restará configurado o fato imponível se houver a realização de negócio jurídico no qual haja manifestação de um prestador e um contratante e estejam presentes a onerosidade e a prevalência de um fazer (arte humana) em detrimento de um dar, elementos característicos da prestação de serviço”.
b) Já quanto ao aspecto temporal, este perfaz o momento da ocorrência do fato gerador no mundo empírico. No caso do ICMS, em regra, é considerado como aquele momento que corresponde à saída da mercadoria do estabelecimento comercial, industrial ou produtor. Ainda, forçoso é a transcrição novamente da obra de Roque Carraza sobre a questão:[8]
“A lei ordinária dos Estados e do Distrito Federal é que vai eleger o momento em que esta transmissão jurídica será tida por realizada. Pode ser o momento da entrada da mercadoria no estabelecimento comercial, industrial ou produtor, o momento da saída da mercadoria de qualquer um destes locais, o momento da extração da nota fiscal e assim por diante. Estes momentos apenas identificam oficialmente, no espaço e no tempo, a ocorrência da preexistente operação mercantil a que se referem”.
c) O elemento territorial, ou espacial, da Regra Matriz de Incidência Tributária do referido imposto é, em regra, o local em que se verifica a ocorrência do fato jurídico tributário. Não se confunde com o âmbito territorial da vigência da lei. Em se tratando de mercadoria importada, por outro lado, a competência arrecadatória ficará a cargo do Estado onde estiver situado o estabelecimento comprador, pouco importando o Estado pelo qual a mercadoria adentra do território nacional.
d) Quanto à base de cálculo, componente do critério quantitativo, para estipulação do ICMS, não há maiores segredos, atendo-se ao valor da operação envolvendo a mercadoria ou a prestação do serviço. No ponto, identificam-se os dois elementos quantificadores da obrigação tributária: a base de cálculo e a alíquota, sendo a primeira conceituada como a exteriorização do conceito econômico contido no critério material da hipótese jurídica, e a segunda, o percentual ou valor fixo, o qual será aplicado para o cálculo do valor de um tributo.
e) Em relação ao contribuinte do ICMS, ou critério pessoal, a Lei Complementar 87/96 trouxe disposições muito semelhantes às já existentes no âmbito do Código Tributário Nacional (CTN), no qual a denominação de sujeito passivo subdivide-se em contribuintes e responsáveis, a depender da relação de ambos com o fato gerador da obrigação tributária. Eis:
“Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.
Parágrafo único. É também contribuinte a pessoa física ou jurídica que, mesmo sem habitualidade ou intuito comercial:
I – importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a sua finalidade;
II – seja destinatária de serviço prestado no exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior;
III – adquira em licitação mercadorias ou bens apreendidos ou abandonados;
IV – adquira lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo e energia elétrica oriundos de outro Estado, quando não destinados à comercialização ou à industrialização.
Art. 5º Lei poderá atribuir a terceiros a responsabilidade pelo pagamento do imposto e acréscimos devidos pelo contribuinte ou responsável, quando os atos ou omissões daqueles concorrerem para o não recolhimento do tributo.
Art. 6o Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que assumirá a condição de substituto tributário.
§ 1º A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subseqüentes, inclusive ao valor decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto.
§ 2o A atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias, bens ou serviços previstos em lei de cada Estado.
Art. 7º Para efeito de exigência do imposto por substituição tributária, inclui-se, também, como fato gerador do imposto, a entrada de mercadoria ou bem no estabelecimento do adquirente ou em outro por ele indicado”.
Frisa-se que essa temática a respeito do polo passivo da obrigação tributária, inclusive, guarda estreita relação com o objeto de estudo do presente trabalho, na medida em que a fim de fiscalizar uma cadeia sequencial de operações envolvendo sujeitos passivos distintos, utiliza a Fazenda Pública estadual do mecanismo denominado substituição tributária, a ser elucidado adiante. Através do referido instituto, atribui-se o recolhimento tributário à origem, apenas presumindo-se fatos geradores futuros.
Conforme tentar-se-á expor nas páginas seguintes, as operações futuras, no regime de substituição tributária, dão-se apenas a título presuntivo, constatando-se que possa haver, ainda que potencialmente, no mundo dos fatos, uma dissonância quantitativa entre a presunção e a realidade. Desse modo, imperiosa é uma melhor analise sob o ponto de vista técnico, uma vez que é sobre essa presunção que incide o poder arrecadatório estatal. De modo contrário, estar-se-á possivelmente legitimando uma tributação sobre base de cálculo inexistente. O caso enseja debate.
1.2 Do regime de substituição tributária e sua historicidade no ordenamento pátrio
Primeiramente, insta deixar consignado que atualmente tal mecanismo de controle deriva de respaldo constitucional trazido pelo art. 150, §7º, da Constituição Federal de 1988, incluído pelo poder constituinte derivado através da Emenda Constitucional nº 3, de 1993. Sua regulamentação, por exigência constitucional prevista no art. 155, §2º, XII, “c”, deu-se pelo art. 8º e seguintes da lei complementar nº 87/96, também denominada de “Lei Kandir”.[9] Veja-se a matriz constitucional:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”
Na atual sistemática vigente, a substituição tributária, didaticamente, divide-se “para trás” (ou regressiva) e “para frente” (ou progressiva). Na primeira, o recolhimento do tributo é diferido para o último contribuinte da cadeia comercial, de modo que este torna-se responsável pelo recolhimento retroativo, devido em razão das operações – fatos geradores – já evidenciadas no pretérito. Na segunda, ocorre o inverso. O contribuinte inicial da cadeia de operações assume a responsabilidade pelo recolhimento do tributo referente a operações subsequentes, o qual é calculado sobre fatos geradores que presumidamente ocorrerão.
No que tange aos pressupostos, parte-se, então, conforme já referido anteriormente, da existência, sobre um aspecto subjetivo, de (i) um contribuinte substituto, que é aquele eleito para efetuar a retenção e/ou recolhimento do ICMS, (ii) um contribuinte substituído, sendo é aquele que, nas operações ou prestações antecedentes ou concomitantes é beneficiado pelo diferimento do imposto e nas operações ou prestações subsequentes sofre a retenção. E, sobre o aspecto objetivo, (iii) uma cadeia de comercialização de mercadorias ou serviços.
Sobre o tema, imperiosa é a citação da obra de Andrei Velloso[10]:
“O substituto é o obrigado tributário originário que não se qualifica como contribuinte, não deve pagar o tributo em seu nome e tampouco responde pela dívida conjuntamente com este, seja solidária ou subsidiariamente. Em outros termos, é o sujeito passivo originário da relação tributária fundamental que está relacionado ao fato imponível de forma mediata.
Como todos os demais sujeitos passivos diversos do contribuinte, responde por dívida que numa acepção econômica se diz “alheia”: tem a obligatio, mas não o debitum. A peculiaridade reside no caráter originário e exclusivo da sua obrigação.
Em razão de o substituto constituir espécie de obrigado originário, juridicamente ele não substitui sujeito passivo algum. Não há devedor algum antes dele, que pelo substituto venha a ser sucedido. A obrigação tributária já nasce contra ele, sem qualquer sujeito passivo antecedente.”
Detendo-se especificadamente no regime de substituição tributária para frente, tema capaz de fomentar o objeto principal da presente obra, o substituto tributário fica responsável não apenas pelo recolhimento do seu tributo próprio, mas também pelo tributo da operação do substituído, ou melhor, daquele sujeito que pratica o critério material na sua própria operação. Repita-se, antecipa-se o recolhimento para facilitar a fiscalização de toda a cadeia de operações subsequentes.
Explicando de modo diverso, segundo tal sistemática, ao tempo em que a mercadoria começa a sua cadeia comercial (operações de circulação), a indústria/importador (primeiro contribuinte da operação) calcula com antecedência qual será o montante do imposto devido em todo o ciclo comercial. Partindo-se desse valor, a indústria, na origem, recolhe, por exemplo, o ICMS próprio e dos demais contribuintes futuros que integrarão o ciclo de comercialização, pagando com antecedência a quota das operações subsequentes. O que acontece, portanto, é a antecipação do pagamento do ICMS, com base em estimativa de fato geradores futuros, e com densidade quantitativa presumida pela Fazenda Pública.
Nessa cadeia de operações, por sua vez, aquele que paga adiantado o ICMS sobre as presunções – substituto – não fica com a conta (débito), recuperando tais valores pagos do imposto dos demais componentes do ciclo de comercialização. As escriturações e documentos contábeis, com o devido registro das operações, e em obediência ao princípio constitucional da não cumulatividade aplicável à espécie, fazem com que os créditos – do substituto -, e eventuais débitos – dos substituídos – sejam, ao longo da cadeia, compensados na medida de sua ocorrência. O fisco ganha, pois fiscaliza de forma mais eficiente apenas um momento da teia econômica, sem necessidade de adentrar contabilmente em inúmeros estabelecimentos substituídos.
Sobre o assunto, interessante frisar a lição de Eduardo Maneira, ao dissertar sobre a finalidade da substituição tributária e sua ligação com o Princípio da praticidade administrativa[11]:
“O fenômeno da substituição tributária recebe distintas explicações doutrinárias que variam de acordo com o enfoque que se dá ao tema. Entendemos que a substituição tributária, seja “para a frente” ou “para trás”, tem um único objetivo: atender à praticidade tributária. O princípio da praticidade tem por finalidade tornar o direito exequível, isto é, aproximar a norma jurídica da realidade que pretende regular.
Em termos de tributação, a praticidade manifesta-se em técnicas de fiscalização e arrecadação que, amparadas em presunções, tornam possível a tributação em massa de modo célere e menos oneroso. De nada adiantaria instituir-se um tributo por uma lei cuja obediência por parte do contribuinte e cuja fiscalização por parte da Fazenda fosse impraticável no mundo real.”
Nas palavras de Eduardo Sabbag, conceituando o instituto, e já antecipando sua crítica acerca do mesmo, assim assevera:[12]
“É a antecipação do recolhimento do tributo cujo fato gerador ocorrerá (se ocorrer) em um momento posterior, com lastro em base de cálculo presumida. Assim, antecipa-se o pagamento do tributo, sem que se disponha de uma base imponível apta a dimensionar o fato gerador, uma vez que ele ainda não ocorreu. Logo, a doutrina contesta tal mecanismo por veicular um inequívoco fato gerador presumido ou fictício – realidade técnico-jurídica que estiola vários princípios constitucionais, v.g., o da segurança jurídica, o da capacidade contributiva e o da vedação ao tributo com efeito de confisco.”
Deixando maiores debates sobre o assunto para a segunda parte deste trabalho, o importante, por ora, é fixar as premissas elementares para se conhecer a sistemática de funcionamento do regime de substituição tributária, sobretudo daquela intitulada “para frente”. Cabe lembrar que tal regime, em si, sempre foi alvo de críticas pela maior parte da doutrina (Gilberto de Ulhôa Canto, Alcides Jorge Costa, Sacha Calmon, Geraldo Ataliba, Ives Gandra da Silva Martins, Ricardo Mariz de Oliveira, Roque Carrazza, entre outros), que o consideravam inconstitucional, por ofensa aos seguintes princípios:
a) da tipicidade e, consequentemente, da segurança jurídica, pois o surgimento da obrigação tributária teria que estar inafastavelmente condicionado à materialização da hipótese de incidência, não podendo se fundamentar em presunção de ocorrência de fatos futuros.
Nesse sentido, assevera Roque Carrazza:[13]
“Temos para nós, entretanto, como já adiantamos, que o referido §7º é inconstitucional, porque atropela o princípio da segurança jurídica, que, aplicado ao direito tributário, exige, dentre outras coisas, que o tributo só nasça após a ocorrência real (efetiva) do fato imponível.
É sempre bom reafirmarmos que o princípio da segurança jurídica diz de perto com os direitos individuais e suas garantias. É, assim, cláusula pétrea e, nessa medida, não poderia ter sido amesquinhado por emenda constitucional (cf. art. 60, §4º, da CF).”
b) da capacidade contributiva e da vedação ao confisco, pois somente após a ocorrência do fato gerador seria possível aferir riqueza tributável, não se admitindo a tributação de riqueza presumida.
Assim depõe Sacha Calmon Navarro Coêlho:[14]
“Seria, pensamos, sério dislate estar dito imposto sujeito a recolhimento antes de ocorrer o fato gerador, maculados os princípios da capacidade contributiva, sempre contemporâneo à ocorrência do fato gerador, e da anterioridade da lei, de resto comprometido também em relação a quaisquer impostos, questão ainda não decidida pela Suprema Corte.”
c) da não-cumulatividade e da isonomia, pois se a operação fosse realizada por valor menor do que o estimado, a alíquota real incidente na operação seria maior do que a prevista em lei, o que também colocaria o contribuinte em situação de desigualdade em relação aos demais;
d) e, por fim, da competência exclusiva da União para a instituição de empréstimo compulsório (por lei complementar), pois se, como mencionado acima, a operação fosse realizada por um valor menor do que o estimado, haveria antecipação de valores à Fazenda Pública Estadual para posterior devolução.
Diante de todo o exposto, considerando as informações tidas acima, em uma hipótese de substituição tributária para frente, na qual o agente substituto paga imposto atinente a fatos geradores que hão de virem a ocorrer no futuro, havendo dissonância entre as bases de cálculo real e presumida, qual a solução a ser dada para o caso?
No mesmo sentido, polemizando o tema, aduz Hugo de Brito Machado, em seu curso de direito tributário:[15]
“O ICMS antecipado, que deveria ser calculado sobre o preço praticado nas vendas subsequentes, é calculado sobre um valor arbitrariamente atribuído pelas autoridades fazendárias. Colocou-se, então, a questão de saber se o valor pago antecipadamente seria definitivo, ou se como simples antecipação ficaria sujeito a ajuste em face da realização das operações subsequentes, com a restituição do excedente ou a cobrança da diferença paga a menor.”
Este, assim sendo, perfaz o cerne do presente trabalho a ser desenvolvido nos títulos e subtítulos que lhe seguem, tentando enfrentar os principais argumentos favoráveis e contrários à atuação arrecadatória estatal. Sem prejuízo, apresentar-se-á, ainda que se forma resumida, os contornos jurisprudenciais dado ao tema durante a última década, visando demonstrar que, embora haja posicionamentos estáveis, estes não conseguiram dar o status de incontrovertido ao tema.
2. Da dissonância entre as bases de cálculo real e presumida e o possível direito à restituição
A discordância entre as bases de cálculo presumida e real, dentro da sistemática da substituição tributária para frente, então, é assunto controvertido, ao menos no campo doutrinário, ensejando inúmeras discussões sobre a possibilidade de restituição (a favor do contribuinte) ou complementação (a favor do Ente Exator) do tributo pago/devido. Tal controvérsia ampara-se em alguns argumentos de ordem técnica e em alguns princípios aplicáveis ao ramo do direito tributário, conforme se verá adiante, sem a intenção de exauri-los no presente trabalho.
2.1. Da manifestação da jurisprudência ao reconhecimento de repercussão geral
Nos casos de substituição tributária para a frente, o diferencial existente entre a base de cálculo presumida e a base de cálculo empírica, ao longo das últimas décadas, foi assunto controvertido contumaz nos mais diversos tribunais do país. Tal dissonância de aspecto quantitativo proporcionou o ajuizamento de milhares de demandas visando a restituição do imposto incidente sobre tal diferencial, provocando o poder judicante a manifestar-se sobre a efetiva natureza de tal fenômeno jurídico.
A jurisprudência, por sua vez, embora atualmente esteja num momento de maior estabilidade, ainda procura dar contornos de definitividade ao assunto. Como verdadeiro guardião da Constituição, relegado a esta condição pela própria Carta Magna, e considerando as disposições havidas no sistema processual civil, é o Supremo Tribunal Federal (STF) que tem capitaneado as decisões e tentativas de pacificação sobre o assunto, manifestando-se na intenção de propiciar um “norte” – verdadeiro fixador de balizas – sobre o assunto para o posterior julgamento pelos demais tribunais existentes em solo nacional.
Na última vez em que se manifestou sobre o tema, no bojo da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (AdIn) nº 1.851-4-AL, o STF, embora, por unanimidade de votos, tenha deferido o pedido de cautelar em sentido contrário, ao julgar o mérito da referida ação abstrata, proferido em 08 de maio de 2002, entendeu pela impossibilidade da restituição do ICMS pago a maior nos casos em que a base de cálculo real é inferior à presumida. Para a Suprema Corte, a restituição somente seria devida quando o fato gerador do imposto verdadeiramente não ocorresse.
Todavia, é forçoso esclarecer que a questão foi reaberta e ainda não foi reapreciada pelo STF, pois em que pese a decisão proferida em 2002 na ADIn já mencionada, através do reconhecimento da repercussão geral ao Recurso Extraordinário nº 593.849 RG/MG no ano de 2009, o Tribunal Guardião da Constituição voltará a apreciar a questão. O dito acontecimento, invariavelmente trouxe novas esperanças aos contribuintes, já que há de se considerar que a composição dos Ministros do STF foi alterada e quase todos os Ministros que participaram do julgamento da ADIn, em 2002, não estão mais no respectivo tribunal.
2.2 Da inocorrência de seu aspecto quantitativo e o direito à restituição
Após a elucidação da importância do ICMS e da imprescindível aplicação do regime de substituição tributária para frente na sua fiscalização, chega-se à conclusão de que, em tal regime de tributação, pode ocorrer a existência de dissonâncias entre as bases de cálculo presumidas e aquela efetivamente praticada no mundo dos fatos. Ocorrendo tal diferença, tecnicamente, não existe fato imponível a ser tributado, pois não ocorrem os elementos consequentes da regra-matriz de incidência tributária (aspectos pessoal e quantitativo). Com efeito, o que se antecipa é apenas o pagamento de um fato gerador a posteriori, que nem sequer ocorreu.
Exatamente nesse sentido, depõe Roque Antônio Carrazza, em seu livro expoente sobre o assunto: “ICMS”:
“A substituição para frente não deve ser confundida com a figura da antecipação do pagamento do tributo. Na antecipação, a obrigação tributária já existe, ao passo que na substituição para frente ainda não há tributo a pagar.”
Ora, o fato gerador compõe-se de cinco elementos: material, pessoal, temporal, quantitativo, e espacial. Por consequência, a ausência de qualquer desses elementos, via de lógica, impede a ocorrência do fato gerador e, consequentemente, a cobrança do tributo. Assim, considerando que o elemento quantitativo constitui no "quantum debeatur", ou seja, o valor a ser recolhido aos cofres públicos, ocorrendo o fato gerador em dimensão menor do que àquela já paga (presumida), sobre esse diferencial não há incidência de fato imponível à norma, não havendo sinal signo-presuntivo de riqueza.
Como desmistifica o professor Humberto Ávila[16]:
“Para tanto, o legislador autoriza que se lance mão de uma padronização da tributação, desconsiderando parcialmente os fatos reais para dimensionar os elementos da obrigação tributária com base em valores estimados por critérios de verossimilhança.”
Assim, se a operação se realiza por um valor menor do que o presumido pela legislação, é razoável concluir que o "fato gerador presumido" não ocorre. Ocorre, sim, outro fato gerador, diferente por se referir a elemento valorativo diverso. A conclusão é notória: se o elemento valorativo do fato gerador presumido é diverso daquele relativo ao fato gerador efetivamente ocorrido, o fato gerador presumido não se concretizou, tendo o contribuinte, consequentemente, direito à restituição do imposto pago a maior.
Eis as palavras de Marçal Justen Filho:[17]
“O Fisco impõe, como necessário, um preço que pode ou não ser praticado (…) isso se, algum dia, vier a ocorrer o fato imponível. Tudo isso se configura como uma enorme ficção normativa. Não há fato gerador, não há base de cálculo, não há riqueza. Embora seja pacífica a inexistência de fato-signo presuntivo de riqueza, a lei tributária pretende falsificar sua existência e impor aos sujeitos passivos o dever de pagar o tributo. Não é facultado ao Estado criar, de modo arbitrário, uma base imponível para efeito tributário, distinta daquela realmente praticada.”
Desse modo, no caso de se verificar, por exemplo, que as bases de cálculo do ICMS, para fins do regime da substituição tributária “para frente”, fixadas pelos Estados, diferirem significativamente dos valores efetivamente praticados, estar-se-á diante da não subsunção integral do fato à norma, não vislumbrando-se a existência do aspecto quantitativo do imposto. Do mesmo modo, em realidade, ausente a tal proporcionalidade entre a base de cálculo real e presumida, notória é a adoção velada de pautas fiscais, cuja utilização é expressamente vedada pelo enunciado da Súmula n° 431 do Superior Tribunal de Justiça.
Sobre o tema, disserta Geraldo Ataliba[18]:
“Efetivamente, em direito tributário, a importância da base imponível é nuclear, já que a obrigação tributária tem por objeto sempre o pagamento de uma soma em dinheiro, que somente pode ser fixada em referência a uma grandeza prevista em lei e ínsita no fato imponível, ou dela decorrente, ou com ela relacionada.”
De fato, a base de cálculo deve ser mensura pelo fato gerador da obrigação tributária, na medida em que tem como escopo descrever quantitativamente este (aspectos da realidade). Tal sistemática, logicamente, ainda tem o condão de dar sentido à capacidade contributiva, a qual, no ensinamento de Humberto Ávila[19] é “uma razão pro tanto (ou ‘contanto que’), no sentido de que não pode ser descartada, conservando seu peso mesmo diante de razões contrárias e, não, prima facie (ou ‘descartável’), no sentido de que pode ser afastada completamente em face de razões contrárias”.
No mesmo sentido, posicionando favoravelmente ao direito de restituição do contribuinte, expõe Hugo de Brito Machado:
“Para os casos de substituição tributária, ou, mais exatamente, de cobrança antecipada do imposto, a lei terminou por adotar uma forma de pauta fiscal. Nesses casos, porém, o arbitramento da base de cálculo é apenas para efeito de antecipação. Sendo a operação relativamente à qual o imposto foi antecipado de valor menor, tem o contribuinte direito à restituição da diferença.”
Ainda, alertando para a existência da súmula 431 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a qual veda a cobrança de ICMS baseando-se em pauta fiscal, e comentando a respeito do julgamento proferido pelo STF na ADIn nº 1.851-4 já mencionada, completa o Autor acima citado:[20]
“Admitir que o valor antecipado é definitivo implica restabelecer a antiga pauta fiscal, há muito repelida pelo Supremo Tribunal Federal. Mesmo assim a Corte Maior o acolheu em julgamento do dia 8 de meio deste ano, no qual afirmou a constitucionalidade de lei estadual que o afirma. Prevaleceu o argumento do Min. Ilmar Galvão, relator do caso, a dizer que a finalidade da substituição tributária, por meio da presunção de valores, é justamente tornar viável o sistema de arrecadação do ICMS, porque haveria enorme dificuldade se fosse necessário considerar o valor real de cada operação realizada por inúmeros contribuintes.”
Sobre o viés principiológico, o artigo 150, parágrafo 7°, da Constituição Federal de 1988, está previsto na Seção "Das Limitações do Poder de Tributar"; tratando-se, portanto, de garantia individual do contribuinte, decorrente do princípio da igualdade, que visa impedir que o Estado cobre valor maior do que teria direito pelo regime normal de tributação. Fere-se, também, de fácil constatação, os princípios da capacidade contributiva, da legalidade, e da vedação ao confisco, uma vez que cobra-se parcela do fato gerador não ocorrido.
Em conclusão, a dissonância existente entre as bases de cálculo real e presumida – ou a inocorrência do aspecto quantitativo da regra matriz de incidência tributária -, conforme já referido acima, provoca colisões frontais a princípios tributários basilares, concebidos historicamente. Conforme passa-se a expor, ao menos os princípios da tipicidade tributária, da segurança jurídica, da capacidade contributiva, da não cumulatividade, e do não confisco, sem prejuízo de outros, apresentando-se severamente flexibilizados e incompatíveis com a situação em tela.
2.2.1 Tipicidade tributária, e consequente segurança jurídica:
Como é sabido por todos, para o nascimento da obrigação tributária, é imprescindível que ocorra um fato gerador no mundo dos fatos, um acontecimento concreto, real (art. 114 do CTN), com imprescindível adequação típica com a hipótese de incidência. Dito de outro modo, é necessário o adimplemento concomitante de todos os seus aspectos (material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo) da regra matriz de incidência tributária, de forma que ausente qualquer deles, não há o que se comentar de tributo devido, já que não existirá subsunção do conceito do fato ao conceito da norma, sob pena de inegável insegurança jurídica.
Exatamente nesses termos, vale a pena se ater à literatura pretérita e reproduzir a lição, dada com maestria, de Pontes de Miranda ao tratar do tema:[21]
“A regra jurídica de tributação incide sobre o suporte fático, como todas as regras jurídicas. Se ainda não existe o suporte fático, a regra jurídica de tributação não incide; se não se pode compor tal suporte fático, nunca incidirá. O crédito do tributo (imposto ou taxa) nasce do fato jurídico, que se produz com a entrada do suporte fático no mundo jurídico. Assim, nascem o débito, a pretensão e a obrigação de pagar o tributo, a ação e as exceções. O Direito Tributário é apenas ramo do direito público; integra-se como os outros, na Teoria Geral do Direito.”
Portanto, antes do evento, seja, no caso do ICMS, a operação envolvendo circulação de mercadoria ou prestação de serviço de transporte intermunicipal e interestadual e comunicações, não há falar-se em fato imponível relativamente a tais operações, mas quando muito de mera suposição, ou simples expectativa da ocorrência do fato tributário, o que não autoriza a exigência antecipada do tributo. Nesse sentido, igualmente, a conclusão do Geraldo Ataliba:[22]
“Absolutamente inaceitável 'presumir' a ocorrência de fatos futuros, no campo estrito do Direito Tributário. Se o fato tributável ainda não sucedeu, a exigência do tributo, sob fundamento de mera probabilidade do seu acontecimento, importa violação da Constituição.”
No ponto, em regime de substituição tributária para frente, inexistente concordância entre as bases de cálculo real e presumida, não há confirmação do aspecto quantitativo da regra matriz de incidência e, portanto, inexistente, na diferença, o fato gerador da obrigação tributária. Pensar de forma contrária, afastaria a tipicidade tributária e subverteria toda a doutrina do direito tributário, estando apto o fisco a cobrar sobre base de cálculo inexistente, não verificada, embora prevista em presunção.
2.2.2 Capacidade Contributiva:
É de conhecimento geral que a Carta Magna de 1988 resolveu por adotar expressamente o Princípio da Capacidade Contributiva (art. 145, §1º), impondo que os impostos terão caráter pessoal e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte. Em outras palavras, o critério material e quantitativo hão de expressarem um fato signo presuntivo de riqueza, o qual fará com que seu patrimônio – do sujeito passivo envolvido – tenha certa redução em decorrência de tal fato – exação.
Em lição elucidativa, novamente Eduardo Maneira, em publicação para a Revista Dialética em Direito Tributário, nº 95, exemplifica a questão da capacidade contributiva relacionada à substituição tributária progressiva[23]. Veja-se:
“Vamos exemplificar com as vendas de veículos automotores. A base de cálculo presumida de um carro é de R$ 20.000,00; incidindo o ICMS na alíquota de 12%, teremos um imposto de R$ 2.400,00. Se o veículo for efetivamente vendido por R$ 20.000,00, o consumidor terá arcado com a totalidade da carga tributária. No entanto, se o negócio for realizado por R$ 18.000,00, o consumidor arcará somente com 12% de R$ 18.000,00, isto é, R$ 2.160,00. A diferença de R$ 240,00 será suportada pelo contribuinte substituído. Nesta hipótese, o contribuinte substituído teve a sua capacidade contributiva duplamente arranhada: primeiro, por ter de adiantar o valor do imposto antes de receber do consumidor o valor do carro, e depois por não se ter ressarcido integralmente do valor adiantado.
O exemplo acima demonstra que a base de cálculo presumida deve ter por referência constitucional o princípio da capacidade contributiva. Se, em nome da praticidade, deve-se adotar a base de cálculo presumida, a sua aplicação deve ser razoável e proporcional à capacidade contributiva do sujeito passivo.
Assim, a base de cálculo presumida somente poderá ser definitiva, nos casos em que for comprovadamente inferior à base de cálculo real. Isto é, base de cálculo definitiva como forma de presunção absoluta no direito tributário só é aceitável se deliberadamente for favorável ao contribuinte.”
Logo, percebe-se nitidamente que tanto o princípio da igualdade, como o da capacidade contributiva, sofrem severa violação. Nesse sentido, bastante oportuna são as palavras de Paulo de Barros Carvalho[24], ao demonstrar como o princípio da igualdade, abordado pelo critério da capacidade contributiva, pressupõe que os participantes do acontecimento contribuam de acordo com o tamanho econômico do evento:
“Podemos resumir o que dissemos em duas proposições afirmativas bem sintéticas: realizar o princípio pré-jurídico da capacidade contributiva absoluta ou objetiva, retrata a eleição, pela autoridade legislativa competente, de fatos que ostentam signos de riqueza; por outro lado, tornar efetivo o princípio da capacidade contributiva relativa ou subjetiva quer expressar a repartição do impacto tributário, de tal modo que os participantes do acontecimento contribuam de acordo com o tamanho econômico do evento.”
Assim sendo, diante da ocorrência, em sede de substituição tributária para frente, de operação realizada com base de cálculo menor do que aquela anteriormente presumida e tributada pelo fisco, notória é a oneração do patrimônio do contribuinte em medida diversa daquela correspondente ao fato tributário de que participa. Fragrante, por sua vez, é a violação ao princípio da capacidade contributiva.
2.2.3 Não Confisco:
Quanto ao não confisco, o raciocínio é deveras simplório, já que realizado fato imponível, signo presuntivo de riqueza em valor inferior àquele anteriormente previsto em presunção realizada pelo Estado, o diferencial monetário recolhido aos cofres públicos – de forma adiantada, diga-se de passagem – importa em oneração sem embasamento legal. Tal exação sem incidência do fato à norma, sem perfectibilização do aspecto quantitativo na totalidade cobrada, importa em flagrante caráter confiscatório, de apoderamento de valores sem preenchimento dos requisitos próprios.
Nas palavras de Sacha Calmom Coêlho:[25]
“Ora, o recebimento pelo Estado de valores a título de ICMS, acima das bases de cálculo reais, i.e., não correspondentes aos preços reais praticados pelos contribuintes, caracteriza confisco tributário e enseja sua imediata restituição, por força da própria Constituição, como veremos em seguida. Os contribuintes são titulares de um direito subjetivo à imediata restituição (facultas agendi), de raiz constitucional, ou seja, previsto na própria Lei Maior.”
Exatamente no mesmo sentido, alerta Eduardo Maneira que “a definitividade de uma base de cálculo irreal representa total submissão dos princípios da capacidade contributiva, não-confisco, razoabilidade e proporcionalidade à praticidade tributária, numa total subversão dos valores consagrados pelo Sistema Tributário”, e conclui:[26]
“Se compreendermos o sistema jurídico como “ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais” e se recordarmos que há uma escala de princípios na qual os princípios gerais portadores de valores éticos primários ganham concretização com a aplicação de subprincípios com eles conexos e interligados, como admitir que a praticidade, mero atributo da legalidade, possa se sobrepor aos princípios fundamentais do direito tributário, em especial aos princípios da capacidade contributiva, do não confisco e da razoabilidade?
A definitividade da base de cálculo é antes de tudo injusta, por submeter uma categoria de contribuintes – aqueles que integram a substituição tributária “para a frente” – a um regime que permite ou que cristaliza uma base de cálculo confiscatória, posto que desarrazoada, em nome da praticidade. Ora, não pode haver praticidade injusta. A praticidade só se legitima se for instrumento que possibilite a aplicação da lei para todos, a fim de se evitar evasão fiscal, jamais como instrumento de perpetuação de irrealidades confiscatórias.”
Assim sendo, ao considerar, na aplicação do regime de substituição tributária para frente, o fato gerador presumido como definitivo, o Estado estaria confiscando patrimonialmente o contribuinte, exigindo-lhe, através do exercício do poder de império, prestação desproporcional àquela efetivamente devida (praticada). Seria, em outras palavras, a apoderação de valores sem fato imponível, flagrante oneração financeira imposta unilateralmente, resgatando experiências pretéritas em que o Estado agia de forma tirana e opressora.
2.2.4 Não cumulatividade:
No que tange ao direito de compensação, a oposição do Estado federado em consentir que o contribuinte/responsável se credite do ICMS decorrente de recolhimentos a maior (base de cálculo presumida maior que a efetiva), oriundos da aplicação do regime da substituição tributária, bem como a negativa para que os corrija monetariamente, da mesma forma com que é obrigada a corrigir seus débitos, resulta em infringência ao disposto no artigo 155, parágrafo 2º, I, da Constituição Federal.
Assim agindo, por questão de lógica, o Ente exator permite tão-somente a compensação/utilização parcial de seus créditos, o que culmina irremediavelmente na cumulatividade do tributo, contrariando de forma veemente o princípio da não-cumulatividade que está previsto naquele artigo, conforme já exposto anteriormente. Isso, pois, como é de notório conhecimento, tal princípio se enquadra, pragmaticamente, no simples direito de abatimento. Não havendo o abatimento necessário, o desrespeito ao mesmo é evidente.
No mesmo viés, novamente ressalta Sacha Calmon Navarro Coelho:[27]
“Daí advém o princípio da não-cumulatividade, pelo qual o valor do imposto pago na etapa anterior constitui crédito do contribuinte que irá realizar a posterior etapa tributada do processo de circulação, até o consumidor final, que suporta a tributação integral do ciclo.
Em razão do exposto, é de se concluir que o valor do ICMS na última operação a consumidor final nunca poderá ser superior ao valor REAL da operação mercantil que lhe der causa. Noutras palavras, a base de cálculo estimada pelo Fisco não poderá ser superior ao preço efetivamente praticado, sob pena de quebra do princípio da não cumulatividade do ICMS. “
Portanto, a análise do tema leva a crer que a não utilização dos créditos de ICMS, resultantes da diferença da base de cálculo fictícia utilizada pelo substituto tributário e o valor real da venda da mercadoria, resulta na sua cumulatividade, uma vez que o valor referente à atualização do poder aquisitivo dos valores lançados é mero instrumento de manutenção da identidade da prestação, quando alcançada pela desvalorização da moeda.
Por fim, antes de finalizar, pertinente ressaltar outro – e último – ponto fulcral: a substituição tributária é mero mecanismo de cobrança, instituto criado com a finalidade de facilitar o exercício estatal de fiscalização e arrecadação e, assim sendo, não deve interferir nos aspectos quantitativos do fato gerador do imposto. Em outras palavras, ela perfaz mecanismo de cunho formal, procedimental, não guardando relação com o tamanho do sinal signo-presuntivo de riqueza perpetrado pelo contribuinte.
Com efeito, em virtude de uma praticabilidade idealizada, a Fazenda Pública estadual constrói uma padronização e, portanto, fictícia, para atribuir a um fato gerador futuro um valor monetário correspondente. Flagrante é o desguardo de toda a gama principiológica já referida, tanto quanto dos direito fundamentais dos contribuintes envolvidos na questão. Segundo Eduardo Maneira[28], a praticabilidade (ou praticidade administrativa) “como princípio, é princípio vazio, sem conteúdo; a sua razão de ser é garantir a aplicabilidade da lei através de técnicas de simplificação que possibilitem alcançar realidades de natureza complexa”.
Exatamente nesse sentido, Humberto Ávila[29], associando a praticabilidade ao princípio da eficiência administrativa, ensina que esta não se deve sobrepor aos ditames finais conhecidos do direito tributário, pois “como modo de aplicação de outras normas, a eficiência atua sobre a realização de outras: são as finalidades administrativas constitucionalmente impostas que devem ser realizadas de modo eficiente”. E, na mesma senda, exemplifica: “Por exemplo, a igualdade deve ser realizada com eficiência; a capacidade contributiva deve ser eficientemente perseguida, e assim por diante”. Assim concluindo seu raciocínio:
“Essas conclusões inviabilizam a tese segundo a qual o denominado princípio da eficiência administrativa justificaria a criação de ficções ou presunções fora do poder atribuído pelas regras de competência. O dever de eficiência não cria poder inexistente nem amplia poder existente; ele apenas estrutura a aplicação dos princípios tributários dentro do âmbito de poder atribuído pelas regras. Sendo assim, os entes federados não podem, em nome da eficiência, supor a existência de renda onde ela não estiver comprovada; conjeturar a existência de venda de mercadoria nos casos em que ela não for verificada, e assim sucessivamente.”
Em suma, embora evidentemente saudável a finalidade da substituição tributária progressiva, a correlação entre o fato gerador imponível e base de cálculo é elementar e imprescindível para a própria manutenção do status de legalidade do sistema, como um todo. Segundo Misabel Derzi[30], em nome da praticidade, princípio difuso e implícito na Constituição decorrente da legalidade, não devem ser desconsideradas as nuances do caso concreto e o alcance de outros princípios constitucionais, como o da igualdade, da livre concorrência, e o da segurança jurídica. Para a autora, onde houvesse praticidade, não haveria justiça fiscal.
Ante ao exposto, com base em todos os argumentos pontuais, devidamente explicados, inclusive ressaltando, a toda evidência, o conflito frontal aos princípios tributários tidos por elementares, imprescindível é que haja uma reformulação no entendimento do Supremo Tribunal Federal, de modo a possibilitar a restituição do impostos devido nas hipóteses de dissonância quantitativa, nos termos supra. A manutenção da atual postura – beneficiando a exação apenas em presunção que não condiz com a realidade – enseja claro desvirtuamento dos valores basilares do direito tributário acima descritos.
Conclusão
Atualmente, nos tribunais a fora, existem inúmeras ações que objetivam o ressarcimento de ICMS pago antecipadamente, em decorrência de substituição tributária para frente, naquelas hipóteses em que o valor da operação foi menor que o valor presumido. São contribuintes que argumentam seu direito de imediata e preferencial restituição do ICMS pago a maior, fulcro no art. 150, §7º, e legislação complementar pertinente.
A jurisprudência, por sua vez, sendo balizada pelo juízo do STF, na última ocasião em que se manifestou sobre o tema (2009), reafirmou o entendimento de que o Estado não está obrigado a restituir o ICMS pago a maior por meio do regime da substituição tributária naquelas hipóteses de discrepância entre as bases de cálculo real e presumida. O tema, conforme analisado no decorrer da obra, doutrinariamente, é contumaz controvertido.
A verdade é que a substituição tributária em si considerada, perfaz técnica eficaz no combate à sonegação, por concentrar em um menor número de contribuintes a obrigação de pagar os tributos incidentes em toda a cadeia de circulação de bens, mercadorias e serviços e, consequentemente, reduzir os esforços de fiscalização e criar um ambiente mais justo de concorrência. Afinal, a dinâmica das relações comerciais em pleno século XXI, cada vez mais complexas e globais, exigem do fisco a arte de exercer seu papel de fiscalização de forma cada vez mais inteligente e eficaz.
Segundo se dispôs ao longo do presente trabalho, tal técnica de tributação deve estar atrelada aos valores da proporcionalidade e razoabilidade, haja vista ter como pressupostos para sua efetiva aplicabilidade presunções unilaterais de sua base de cálculo, feitas pela Fazenda Pública (no caso do ICMS, Estadual). Nesse viés, a questão cabal, e que constituiu cerne do debate, é o que fazer quando as referidas presunções não fecham, ou seja, quando há distorções desproporcionais entre o preço estipulado e o efetivamente praticado.
Assim sendo, conforme se vislumbra pela argumentos acima tecidos, naqueles casos de ocorrência de substituição tributária para frente, nos qual há o recolhimento antecipado do tributo atinente a fatos geradores futuros, quando a base de cálculo presumida for maior que a real, neste diferencial, não se constata a verificação do aspecto quantitativo da regra matriz de incidência tributária.
Em outras palavras, ao ocorrer uma substituição tributária para frente (fato gerador futuro), e posteriormente verificar-se que o quantum do tributo recolhido foi maior ao que se atesta no fato gerador, esta parcela a menor deve ser entendida como não ocorrida e, portanto, apta a ensejar a imediata e preferencial restituição. Trata-se de direito fundamental do contribuinte, uma vez que o fato imponível não guarda relação com sua própria base de cálculo presumida.
Com isso, o trabalho refuta, também, que o princípio da praticidade administrativa se sobreponha aos basilares e elementares valores constitucionais-tributários, como a tipicidade, a capacidade contributiva, a segurança jurídica, e a não cumulatividade. Conforme restou abordado, a tributação sobre um aspecto quantitativo destoante do fato imponível (valor da operação) figura-se como conduta confiscatória sem competência jurídica para tanto.
Frisa-se que não está diante da criação de empecilhos que contrariam a utilização do instituto da substituição tributária, mas apenas ressalvas de que a mesma deve basear-se em presunções mais próximas possível da realidade, sob pena de confisco por parte do Estado exator. No ponto, repete-se: uma vez destoante, não guardando proporção com o ocorrido, e não apenas nos casos de inocorrência total do fato gerador presumido, é imprescindível que hajam imediatos instrumentos de restituição/compensação por parte do contribuinte.
Por fim, quanto à atualidade da questão, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de se manifestar acerca do tema, através do Recurso Extraordinário nº 593.849 RG/MG, com repercussão geral conhecida, sobre o qual espera-se que seu entendimento revele estar com consonância com a interpretação dos demais dispositivos constitucionais aplicáveis à esfera tributária. Pugna, desse modo, para que o princípio da praticidade administrativa, utilizado na consecução de objetivos estatais, de fato, não suplante as garantias constitucionais tributárias carregadas de historicidade.
Informações Sobre o Autor
Thiago Feiten Nunes
Advogado. Especialista em direito tributário pela Escola Superior da Magistratura Federal no RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria/RS