Resumo: Este estudo tem por escopo a demonstração da ilegitimidade da função investigatória criminal pelo Ministério Público, a partir do perfil constitucional que lhe foi delineado pela Constituição Federa de 1988. A questão é polêmica, e está assentada em várias hipóteses, dentre elas: a possibilidade de violação das garantias constitucionais, a inexistência de previsão constitucional e legal para o exercício de tal atividade, possibilidade de o Ministério público estar ferindo o sistema acusatório, a inexistência de uma instituição que fiscaliza o mesmo, com a supressão ou não das funções da Polícia Judiciária, e outras que serão debatidas mais adiante.
Palavra-chave: Investigação Criminal. Ministério Público. Garantias Constitucionais. Polícia Judiciária.
Abstract: This study purposes to demonstrate the ilegitimacy of the criminal investigative function by the Public Prosecution Service, based on the constitutional profile outlined in the Federal Constitution of 1988. The question is controversial, and it is based on various hypotheses, such as: the possibility of violation of constitutional guarantees, the lack of constitutional and legal provision for the exercise of this activity, the possibility of the Public Prosecutor's Office injures the accusatory system,the lack of an institution that supervises the Public Prosecutor´s Office, the suppression or not of the Judicial Police funcions, and others which will be discussed later.
Keyword: criminal investigation. Public prosecutor's office. Constitutional guarantees. Judiciary Police.
Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução para um real estado democrático de direito. 2.1 Fundamento do Estado Democrático de Direito: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3. O constitucionalismo no processo penal. 3.1 Função Garantista da Investigação Criminal: Justa Causa. 4. Sistemas de investigação criminal. 4.1 Sistema de Investigação Coordenada pelo Magistrado. 4.2 Sistema de Investigação Coordenada pelo Ministério Público. 4.3 Sistema de Investigação Coordenada pela Polícia Judiciária. 4.4 Crise no Sistema Investigatório Brasileiro. 5. Poderes investigatórios do ministério público. 5.1 Argumentos favoráveis à investigação ministerial. 5.2 Argumentos contrários à investigação ministerial. 5.3 Atual posicionamento jurisprudencial. 5.3.1 Superior Tribunal de Justiça. 5.3.2 Superior Tribunal Federal. 6. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Verifica-se no Brasil um crescente aumento da taxa de criminalidade. Sabemos que a nossa polícia judiciária não é dotada de treinamento, verba e principalmente equipamento adequado para conter o vertiginoso crescimento dos índices de marginalidade, o que vem alarmando não apenas as autoridades públicas, mas também a sociedade. Com a ineficiência da polícia brasileira, gerada pelo descaso com a qual é tratada a segurança pública, surge uma discussão acerca da introdução de um novo sistema de investigação criminal, que seria impulsionado também pelo Ministério Público.
Porém, sob a égide do aumento da criminalidade e defensor do ordenamento jurídico e da sociedade brasileira, o Ministério Público vem participando diretamente das investigações sem que se tivesse uma real regulação para a mesma. Temos inclusive promotorias de investigação e o GAECO. O Ministério Público atua como se a Constituição lhe tivesse concedido tal poder. Os Tribunais superiores já decidiram ser legítimos tais poderes. Mas, e a sociedade? Será que esta foi ouvida? Será que seus anseios vão ser alcançados? Será que o Ministério Público vai atender às camadas mais necessitadas da segurança pública?
O atual ordenamento jurídico encontra-se submerso à Constituição. Todos os ramos do direito, atualmente encontram-se irrigados pelas garantias constitucionais e pela interpretação conforme. O sistema penal está sendo alterado pela via da Teoria dos Poderes Implícitos, tendo inclusive, recebido o aval do plenário do STF.
Na atual seara, introduzir uma instituição no pólo investigativo não nos parece solucionar os problemas da sociedade. E sim por em risco a democracia e todas as garantias advindas da mesma.
1 A Evolução para um real Estado Democrático de Direito
Na ante véspera da convocação da Constituinte de 1988, era possível identificar um dos fatores crônicos do fracasso na realização do Estado de Direito no país: a falta de seriedade em relação à lei fundamental, a indiferença para com a distância entre o texto e a realidade, entre o ser e o dever ser[1]. Dois exemplos emblemáticos: a Carta de 1824 estabelecia que “a lei será igual para todos”, dispositivo que conviveu, sem que se assinalasse perplexidade ou constrangimento, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata. Outro: a Carta de 1969, outorgada pelo Ministro da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, assegurava um amplo elenco de liberdades públicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco elenco de direitos sociais não desfrutáveis, que incluíam “colônia de férias e clinicas de repouso”[2].
A instalação da Assembleia Nacional Constituinte ocorreu em 1 de fevereiro de 1987, sob a presidência do Ministro José Carlos Barbosa Moreira Alves, então presidente do Supremo Tribunal Federal. Logo no dia seguinte, o Deputado Ulysses Guimarães foi eleito presidente da Constituinte, elaborou o seu regimento interno, aprovado no dia 24 de março. Foram formadas vinte e quarto subcomissões incumbidas de elaborar a nova Constituição, em trabalho findo em 25 de maio, aperfeiçoado por oito comissões temáticas, que encaminharam o anteprojeto à Comissão de Sistematização[3]. Depois de mais de vinte mil emendas, no dia 5 de outubro de 1988, tivemos a consagrada Constituição de 1988, a qual em seu preâmbulo instituiu o Estado Democrático e os valores que passaram a reger a sociedade como a igualdade, dignidade da pessoa humana, solidariedade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
A consagração da noção de Estado de direito por um texto constitucional tem, originalmente, dupla finalidade: a imposição de limites ao exercício do poder estatal e a criação de uma autêntica garantia constitucional aos cidadãos.[4]
No que tange à democracia, mesmo sendo difícil conquistar a unanimidade na determinação precisa de seus contornos elementares, Norberto Bobbio alude à existência de uma definição mínima. O autor assinala a possibilidade de caracterizá-la como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos”.[5] A democracia estaria, assim essencialmente relacionada à formação e atuação do governo.
José Joaquim de Gomes Canotilho aduz que a consagração constitucional da noção de democracia (Estado Democrático de Direito) tem a finalidade de erigi-la a um autêntico princípio informador do Estado e da Sociedade, e assevera que o sentido constitucional desse princípio é a democratização da democracia, ou seja, a condução e a propagação do ideal democrático para além das fronteiras do território político.[6]
A Constituição de 1988 exterioriza valores fundamentais como a democracia, a igualdade e a dignidade da pessoa humana. Mas não bastam estarem escritos na carta. Como dito anteriormente, Constituições anteriores já consagravam valores, os quais nunca foram efetivados. Tais valores precisam ser consagrados, caso contrário, serão letra morta, como infelizmente já o foram.
Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição. A doutrina da efetividade consolidou-se no Brasil como um mecanismo eficiente de enfrentamento da insinceridade normativa e de superação da supremacia política exercida fora e acima da Constituição.[7]
Tal doutrina da efetividade emergiu no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. O compromisso destes não era propriamente de ordem teórica, sendo mais política. As mensagens do discurso constitucional eram as seguintes: “a Constituição vincula”, “a Constituição vale”, “a Constituição incide”. Tratava-se de apostar nas virtualidades dirigentes do novo texto e de irrigar a ordem jurídica com os valores plasmados no documento constitucional. Para isso, importava reler todo o Direito à luz da principiologia da Constituição, através do processo conhecido como filtragem constitucional. Tratava-se, portanto, de uma doutrina amiga da Constituição, enfim, de uma doutrina constitucional amorosa, vinculada até a medula à ideia de normatividade integral da lei fundamental. Propunha a releitura das velhas categorias, do propósito do Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião constitucional no contexto da nova Constituição, e o estudo das ações constitucionais como meios de efetivação das suas promessas.[8]
O Brasil vinha de um processo de redemocratização, onde o Direito Constitucional ficou imerso frente às barbáries da época ditatorial. O Supremo Tribunal Federal calou-se. Era preciso mudar de paradigma para transformar a sociedade brasileira. A Constituição havia de deixar de ser um simples amontoado de letras para tornar-se direitos fundamentais.
A Carta Magna absorve determinados valores, apresentados na forma de princípios, de modo a garantir os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Não é mais um simples corpo orgânico destinado a estruturar o Estado, os seus órgãos e a desenhar os limites do exercício do poder. Mais do que isso, é, na verdade, a mina, a reserva, a fonte da materialidade do Direito, dos valores que singularizam esta ou aquela ordem jurídica, dos compromissos intergeracionais condensados normativamente. Por isso, ela é conquista, é condensação compromissória, é expressão de luta e, ao mesmo tempo, consenso, resultado de acordo sobre o que é essencial e determinante de sua história, através de seus canais de mediação, em especial as instituições, haverá de desempenhar na comunidade de destino. Em síntese, a Constituição deixa de ser documento do Estado e para o Estado para afirma-se como documento também da sociedade e, por isso mesmo, do ser humano dotado de dignidade. O Estado é instrumento a serviço do homem, e não o contrário.[9]
Esse é o papel pretendido pela Constituição de 1988. Esse é o corpo normativo que se pretende atribuir plena efetividade. A este tema, no final da década de 1960, José Afonso da Silva publicou a primeira edição de seu clássico A aplicabilidade das Normas Constitucionais, e ainda o Luis Roberto Barroso em sua tese de livre-docência, escrita em 1987, intitulada A Força Normativa da Constituição. Elementos para a Efetividade das Normas Constitucionais. Enfim, a doutrina fez o seu papel, procurou introduzir juridicidade para o Direito Constitucional brasileiro e substituir a linguagem retórica por um discurso substantivo, objetivo, comprometido com a realização doa valores e dos direitos contemplados na Constituição.[10]
Salientemos a íntima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais, as noções de Constituição e de Estado Democrático de Direito. Para tanto, afigura-se oportuna a transcrição da seguinte lição de Klaus Stern, para quem “as ideias de Constituição e direitos fundamentais são, no âmbito da segunda metade do século XVIII, manifestações paralelas e unidirecionadas da mesma atmosfera espiritual. Ambas se compreendem como limites normativos ao poder estatal. Somente a síntese de ambas outorgou à constituição a sua definitiva e autêntica dignidade fundamental”.[11] Tal pensamento afigura-se em sintonia com a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, no seu art 16 “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada não possui Constituição”.
Os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do estado Constitucional, constituindo, neste sentido não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material. Para, além disso, estava definitivamente consagrada a íntima vinculação entre as ideias de Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais. Assim, acompanhando as palavras de K.Stern, podemos afirmar que o Estado constitucional determinado pelos direitos fundamentais assumiu feições de Estado ideal, cuja concretização passou a ser tarefa permanente.[12]
Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada, isto é, por meio do direito, pode-se afirmar com segurança, que a Constituição (e neste sentido, o Estado constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de um autêntico Estado constitucional. Os direitos fundamentais podem ser considerados, conditio sine qua non do Estado Constitucional democrático. Além disso, como já havia sido objeto de previsão expressa na declaração de direitos da ex-colônia inglesa da Virginia (1776), os direitos fundamentais passaram a ser simultaneamente a base e o fundamento (basis and foundation of governmet), afirmando, assim, a ideia de um Estado que, no exercício de seu poder, está condicionado aos limites fixados na sua Constituição.[13]
É neste contexto que assume a concepção, consensualmente reconhecida na doutrina, de que os direitos fundamentais constituem, para além de sua função limitativa do poder (que ademais não é comum a todos os direitos), critérios de legitimação do poder estatal e, em decorrência, da própria ordem constitucional, na medida em que “o poder se justifica por e pela realização dos direitos do homem e que a ideia de justiça é hoje indissociável de tais direitos”.[14]Podemos ainda nos ater às palavras de Pérez Luño, de acordo com o qual “existe um estreito nexo de interdependência genético e funcional entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao passo que estes exigem e implicam, para sua realização, o reconhecimento e a garantia do Estado de Direito”.[15]
Seguindo esta ideia, com importante relevo, a lição de Ferrajoli, no sentido de que todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos substanciais que condicionam a validade substancial das normas produzidas no âmbito estatal, ao mesmo tempo em que expressam os fins últimos que norteiam o moderno Estado constitucional de Direito. No Estado de Direito, em que se assegura prioritariamente os valores substanciais e os direitos fundamentais da pessoa humana, o seu modelo penal garantista, tem perfeita adequação às finalidades estatais.[16]
Segundo Ferrajoli, o garantismo pode ser encarado sob três ângulos distintos, embora dependentes. Ensina o jurista italiano que, numa acepção própria do Direto Penal, já mencionada, o garantismo designa um modelo normativo de estrita legalidade, caracterizando-se como um sistema de poder mínimo cuja técnica de tutela é capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade, através da imposição de vínculos limitativos ao poder punitivo do Estado em garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. Numa segunda acepção, o garantismo designa uma teoria jurídica que diferencia a vigência, a validade e a efetividade das normas. Numa terceira e última acepção, o garantismo designa uma filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado uma carga de justificação externa dos bens e interesses protegidos, distinguindo direito e moral, validez e justiça, ponto de vista interno e externo, em suma, ser e dever ser, ao mesmo tempo em que prestigia o aspecto externo para fins de legitimação ou deslegitimação ético-política do Direito e do Estado.[17]
Para a teoria garantista a legitimação deve obedecer um parâmetro externo e interno. Muitas vezes podemos observar um descompasso entre o Estado Democrático e o direito positivado. Em qualquer caso, incumbirá ao operador do direito afastar a aplicação das normas contrarias aos bens, interesses e valores éticos, políticos e jurídicos inerentes às pessoas humanas, as quais foram asseguradas na carta constitucional. Para Ferrajoli, a expressão Estado de Direito pode ser empregada como sinônimo de garantismo, como veremos no trecho transcrito de sua belíssima obra:
“El término ‘estado de derecho’se usa aqui la segunda de acepciones; y em este sentido es sinônimo de “garantismo”. Por eso designa no simplesmente um “estado legal” o “regulado por la ley”, sino um modelo de estado naciso com lãs modernas Constituciones y caracterizado: a) em el plano formal, por el principio de legalidad, em virtud Del cual todo poder público – legislativo, judicial y administrativo – está subordinado a leyes generales y abstractas, que disciplinan sus formas de ejercicio y cuya observancia se halla sometida a control de legitimidad por parte de jueces separados Del mismo e independiemtes (el Tribunal Constitucional para lãs leyes, jueces ordinários para lãs sentencias, los tribunales administrativos para lãs decisiones de esse carácter); b) em el plano sustancial, por la funcionalización de todos los poderes Del estado al servicio de la garantia de los derechos fundamentales de los ciudadanos, mediante la incorporación limitativa em su Constituición de los deberes públicos correspondientes, es decir, de lãs prohibiciones de lesionar los derechos de libertad y de lãs obligaciones de dar satisfacción a los derechos sociales, asi como de los correlativos poderes de los cidadanos de activar la tutela judicial”.[18]
Com efeito, a teoria do garantismo penal preconiza um sistema político-jurídico destinado a assegurar a máxima correspondência entre a normatividade e a efetividade na proteção aos direitos fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade substancial, mediante a utilização de mecanismos institucionais de garantias. Em consequência, há uma minimização do poder de proibir, de julgar e de punir em prol de uma maximização da investigação judicial, fundando-se a epistemologia garantista, respectivamente, em duas premissas básicas: a definição legislativa e a comprovação judicial.[19]
Apesar da ausência de norma expressa no direito constitucional pátrio qualificando a nossa República como um Estado Social e Democrático de Direito (o art. 1º, caput, refere apenas aos termos democrático e Direito), não restam dúvidas – e nisto parece existir um amplo consenso na doutrina – de que nem por isso o princípio fundamental do Estado social deixou de encontrar guarida em nossa Constituição.[20] Além de outros princípios expressamente positivados no Título I de nossa Carta (como, por exemplo, os da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, etc), tal circunstância se manifesta particularmente pela previsão de uma grande quantidade de direitos fundamentais sociais, que, além do rol dos direitos dos trabalhadores, inclui diversos direitos de prestações sociais por parte do Estado.
No âmbito de um Estado Social de Direito – e o consagrado pela nossa evolução constitucional não foge à regra – os direitos fundamentais sociais constituem exigência inarredável do exercício efetivo das liberdades e garantia de igualdade de chances (oportunidades), inerentes à noção de uma democracia e um Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, mas, sim, guiado pelo valor da justiça material.[21]Cumpre frisar, ainda, que a ideia do reconhecimento de determinadas posições jurídicas sociais fundamentais, como exigência do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre, consoante leciona Klaus Stern, da concepção de que “homogeneidade social e uma certa medida de segurança não servem apenas ao indivíduo isolado, mas também à capacidade funcional da democracia considerada na sua integralidade”.[22]
Com base nestas ideias há como sustentar que além da íntima vinculação entre noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal qual como consagração também em nosso direito constitucional positivo vigente.[23]
Como vimos, constituições anteriores, como a de 1891, 1934, 1946, já previam alguns direitos fundamentais. Mas, como dito, sempre lhes faltaram normatividade, seriedade. A Constituição jurídica de um Estado é condicionada historicamente pela realidade de seu tempo. Esta é uma evidência que não se pode ignorar. Mas ela não se reduz à mera expressão das circunstâncias concretas de cada época. A Constituição tem uma existência própria, autônoma, embora relativa, que advém de sua forca normativa, pela qual ordena e conforma o contexto social e político. Existe, assim, entre a norma e a realidade uma tensão permanente, de onde derivam as possibilidades e os limites do Direito Constitucional, como forma de atuação social.[24]
É comum afirmar em sistemática repetição, que uma Constituição deve refletir as condições históricas, políticas e sociais de um povo. Porém, se uma sociedade por circunstâncias diversas da sua formação, é marcadamente autoritária e tem um código opressivo de relações sociais, devem o constituinte e o legislador curvar-se a esta conjuntura e cristalizá-lo nos textos normativos? Parece intuitivo que não. Logo, a ordem jurídica não é mero retrato instantâneo de uma dada situação de fato, nem o Direito uma ciência subalterna de passiva descrição da realidade.[25]
Konrad Hesse, ex-Juiz do Tribunal Constitucional Alemão, assentou com propriedade:
“Si las normas de la Constituición no son sino la expresión de realiciones de hecho em continuo cambio, la ciência de la constiución jurídica tiene que volverse uma disciplina jurídica sin Derecho a la que no le queda em ultimo termino outra tarea que la de constatar y comentar initerrupidamente los hechos produzidos por la realidad politica. La ciência del Derecho político no es, entonces, servicio a um orden estatal justo que debe encontrar cumplimento sino que recibe la penosa unción, indigna de uma ciência, de justificar las relaciones de poder existentes.”[26]
É de se reconhecer que o Direito tem limites que lhe são próprios e que por isso não deve ter a pretensão de normatizar o inalcançável. Este “otimismo juridicizante”[27] se alimenta da crença desenganada de que é possível salvar o mundo com papel e tinta. Diante de excessos irrealizáveis, a tendência do intérprete é a de negar o caráter vinculativo da norma, distorcendo, por esse raciocínio, a forca normativa da Constituição. As ordens constitucionais devem ser cumpridas em toda a sua extensão possível. Ocorrendo a impossibilidade fática ou jurídica, deve o intérprete declarar tal situação, deixando de aplicar a norma por este fundamento e não por falta de normatividade.[28]
Intuitivamente compreende-se princípio como aquilo que dá origem ao todo, constituindo sua base ou essência. Sendo isto correto, pode-se afirmar que os princípios guardam uma dose de generalidade e abstração que tendem a torná-los aparentemente inacessíveis na prática.[29] Bonavides, em seu curso, observa:
“A passagem dos princípios da especulação metafísica abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos códigos) para a órbita juspublicistica (seu ingresso nas constituições); a suspensão da distinção clássica entre os princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da ciência jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas pragmáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.”[30]
Bonavides se refere à importância atual que possuem os princípios. Brilhantemente, não podemos esquecer de Robert Alexy, um grande tradicionalista no assunto: “Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão ampla quanto possível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, portanto, mandamentos de otimização”.[31]
Mais adiante, o autor complementa seu raciocínio esclarecendo que as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não cumpridas, sem possibilidade de qualquer ponderação. A forma de aplicação das regras seria pelo processo de subsunção e, não, de ponderação. Mas “ao lado e atrás das regras estão os princípios”.[32]
Para finalizar essa tentativa de concretizar o que seriam os princípios, podemos nos ater mais uma vez à obra de Canotilho:
“São normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada. Enquanto as regras são normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer exceção”.[33]
Atribui-se ao Cristianismo as primeiras preocupações com a dignidade humana. Se o homem foi criado à margem e semelhança de Deus, haveria de ser reconhecido como um valor fundamental em si mesmo. Contudo, foi com o Iluminismo que a noção de dignidade da pessoa humana ganhou uma dimensão mais racional e passou a irradiar efeitos jurídicos, sobretudo por influência do pensamento de Immanuel Kant. O homem, então passa a ser compreendido por sua natureza racional e com capacidade de autodeterminação. De tudo resulta a noção de que o homem é um fim em si mesmo e fim do próprio Estado, que existe para assegurar a dignidade das pessoas e, não, o contrário.[34]
Se de fato há como acolher a lição de Antônio Junqueira de Azevedo[35], no sentido de que o acordo a respeito das palavras “dignidade da pessoa humana” infelizmente não afasta a grande controvérsia em torno do seu conteúdo, e se é igualmente correto partir do pressuposto de que a dignidade, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, e, portanto, guarda íntima relação com as complexas, e, de modo geral, imprevisíveis e praticamente incalculáveis manifestações da personalidade humana, já se percebe o quão difícil se torna a busca de uma definição do conteúdo desta dignidade da pessoa e, portanto, de uma correspondente compreensão (ou definição) jurídica. Assim, por mais que não seja esta a posição a ser adotada, verifica-se que não é inteiramente destituída de qualquer fundamento racional e razoável a posição dos que refutam a possibilidade de uma definição, ou, pelo menos de uma definição jurídica de dignidade.
Há de convir, que para o estudo do direito é fundamental que se adote, ou ao menos se tente adotar uma definição. O Direito não é como a Filosofia, lá, podemos nos posicionar de modo esquivado, mas no Direito, a dignidade será objeto de tutela do Estado, logo a sua definição acaba por definir a proteção do Estado. Tal já se justifica, entre outros fatores, pelo fato de que o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa pelo Direito resultam justamente de toda uma evolução do pensamento humano a respeito do que significa este ser humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o Direito reconhece e protege esta dignidade.[36]
Tal dificuldade se cuida de um conceito de contornos vagos e imprecisos caracterizado por sua “ambiguidade e porosidade”[37] assim como por sua natureza necessariamente polissêmica. Muito embora tais atributos são possam ser exclusivamente atribuídos à noção de dignidade da pessoa. Uma das principais dificuldades, todavia, reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas sim, de uma qualidade tida para muitos, para a esmagadora maioria, como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.[38]
Ainda assim, não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifica qualquer dificuldade em identificar claramente uma situação em que a mesma é agredida, ainda que não seja possível estabelecer uma pauta exaustiva de violações da dignidade. A dignidade está presente em todos os seres humanos. Independente da sua classe social, da sua religião ou do país em que se resida. Como já dizia Edelman: “Se a liberdade é a essência dos direitos do homem, a dignidade é a essência da humanidade”.[39]
Em noticiário de televisão, um repórter entrevistava um cidadão paulistano, morador de bairro da periferia, com aparência bastante humilde e expressão verbal indicativa de grau de instrução, no máximo, semialfabetizado. Aqueles que escrevem o nome, mas não o leem. O homem tentava salvar os miseráveis pertences de sua casa, inundada pelas chuvas torrenciais que acabavam de cair sobre a cidade. O entrevistado residia em imóvel de construção clandestina, em condições precárias, com família numerosa – seis filhos pequenos – todos residentes em um cômodo e cozinha. Diante de um microfone de poderosa emissora, o cidadão sentiu-se fortalecido para clamar às autoridades públicas que dessem aos moradores daquela região melhores condições de vida, que os tratassem com mais dignidade e igualdade com o tratamento garantido aos moradores e bairros ricos, como nos Jardins e no Morumbi.[40]
Saberia, este humilde cidadão, o que significa dignidade? Por seu perfil, ora descrito pode-se afirmar que ele desconhece que o artigo 1º, III, da Constituição Federal da República de 1988. Inaugura a Lei Magna afirmando que o Estado Brasileiro tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. No entanto, a sua indignação dita no noticiário, revelava, indubitalmente, que o conhecia pelo sentir, e não pela razão, o conceito de dignidade a que se referia, fazendo mesmo uma apropriada ilação com igualdade, assim como os filósofos e juristas têm levantado teorias a respeito.
Assim é a dignidade. Presente na vida de todos, por mais que não se saiba de onde surgiu a ideia, de como se difundiu, de como se escreve, enfim. Assim iniciaremos o estudo da dignidade da pessoa humana, compreendendo a sua generalidade e amplitude.
Retomando a ideia nuclear, a qual se fazia presente até mesmo no pensamento clássico, de que a dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Está, portanto compreendida como qualidade integrante e, em princípio, irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe – ou é reconhecida como tal – em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Ainda nesta linha de entendimento, houve até mesmo quem afirmasse que a dignidade representa “valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispensável, é insubstituível”, o que por si só não afasta a eventual relativização da dignidade, notadamente na sua condição jurídico-normativa.[41]
Evidentemente, a dignidade não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que podemos reconhecer que ela é preexistente e anterior a qualquer especulação.
A dignidade independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos, mesmo o maior dos criminosos, são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana como forma de comportamento (admitindo-se atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por constituir atributo intrínseco da pessoa humana e expressar seu valor absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, não poderá ser objeto de desconsideração. Aliás, não é outro o entendimento que subjaz ao art. 1º da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”, preceito que, de certa forma, revitalizou e universalizou as premissas basilares da doutrina kantiana.[42]
Utilizando-se da doutrina alemã, Günter Dürig, para quem a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacite para, com base em sua própria decisão, torna-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda”.[43]
Assim, à luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem como considerando os entendimentos correlacionados em caráter exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa. É a capacidade de cada ser humano de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de deficiência mental) possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente capaz.
Mesmo considerando que a dignidade se encontra ligado à condição humana de cada indivíduo, não há como desconsiderar a necessária dimensão comunitária, uma dimensão intersubjetiva desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos humanos e sem dúvida, pelo fato de conviverem em sociedade.
Segundo Sarlet[44] além desta dimensão ontológica da dignidade humana (qualidade inerente do ser humano), para a sua melhor compreensão, é necessário sustentar uma dimensão intersubjetiva da dignidade. Partindo da situação básica do ser humano em sua relação com os demais, em vez de fazê-lo em função do homem singular, limitado a sua esfera individual. Importa considerar uma visão de caráter mais “instrumental”, traduzida pela noção de uma igual dignidade de todas as pessoas, não restrita, portanto, à ideia de autonomia individual, mas que parte do pressuposto da necessidade de promoção das condições, de uma contribuição ativa para o reconhecimento e proteção do conjunto de direitos e liberdade indispensáveis ao nosso tempo.
A dignidade implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao “florescimento humano”.[45]. Em verdade, a dignidade da pessoa humana, sem prejuízo de sua dimensão ontológica, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica. Que deve zelar para que todos recebam igual consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade.
Tais desenvolvimentos em torno da natureza relacional e comunicativa da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que acabaram contribuindo, consoante já referido, para a superação de uma concepção eminentemente especista (reducionista e vulnerável) da peculiar e especifica dignidade dos seres humanos, permitem vincular a igual dignidade de todas as pessoas humanas à qualidade comum, a qual permite a todo ser humano se comunicar com todos os demais seres humanos do planeta e estabelecer com eles uma relação moral.[46]
As constatações a respeito da dimensão ontológica e intersubjetiva da dignidade humana, por tratar-se de categoria axiológica aberta, não poderá ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição dessa natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas. [47] Razão pela qual nos deparamos com um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento. Há que reconhecer que também o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico-normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos vagos e abertos, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional.
O conceito é muito mais profundo do que aparenta ser. A dignidade possui um viés cultural, onde a mesma vem sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam e interagem mutuamente. O conceito cresce a cada geração. Podemos observar que após a barbárie feita pelos nazistas, a dignidade da pessoa humana ganhou novos contornos. Precisou-se efetivá-la de alguma maneira, pois o Estado não poderia usar a lei para fundamentar seus mandos e desmandos.
Tal situação nos faz remeter a um outro aspecto da dignidade da pessoa humana. Na verdade a um duplo aspecto, a dignidade como limite e como tarefa: a dupla dimensão negativa e prestacional da dignidade.[48] Denota-se a simultaneamente a expressão da autonomia da pessoa humana, bem como da necessidade de sua proteção por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a sua capacidade de autodeterminação.
Dworkin partia do pressuposto de que a dignidade possui “tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que ambas encontram-se conectadas”[49], de tal sorte que é no valor intrínseco de todo e qualquer ser humano, que encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la considerada e respeitada.
É justamente nesse sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida a mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gera direitos fundamentais contra atos que violem ou a exponham a graves ameaças[50]. Como tarefa da previsão constitucional da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção.
Com base no que até agora nos foi exposto, verifica-se que reduzir a uma fórmula abstrata de tudo aquilo que constitui o possível conteúdo da dignidade da pessoa humana não nos parece possível. Apesar disso, impõe-se à busca de uma definição em face da exigência de um certo grau de segurança e estabilidade jurídica, bem como para evitar que a dignidade continue a justificar o seu contrário.
De início, usaremos a fórmula utilizada por Günter Dürig, na Alemanha, para quem a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.[51] Podemos observar essa posição negativa em relação à conceituação de dignidade pelo nosso constituinte, no art 5º, inciso III, da Constituição de 1988, onde ele estabelece “ninguém será submetido à tortura, a tratamento desumano ou degradante”. Esta solução é adotada amplamente, mas não poderá oferecer uma solução global para o problema, já que não define previamente o que deve ser protegido, mas permite a verificação, à luz do caso concreto, a existência de uma efetiva violação, fornecendo ao menos o caminho a ser trilhado. A doutrina e a jurisprudência encarregaram-se de identificar uma série de posições que integram a noção de dignidade da pessoa humana, e que reclama a proteção pela ordem jurídica.
É neste contexto, na busca pela concretização que veio a lição de Maria Celina Bodin de Moraes, [52] para quem o substrato material da dignidade decorre de quatro princípios jurídicos fundamentais: o da igualdade (veda toda e qualquer discriminação arbitrária), da liberdade (que assegura a autonomia ética), da integridade física e moral (inclui a garantia de um conjunto de prestações), e da solidariedade (garantia e promoção da coexistência humana). Que tais princípios concretizadores de dignidade, por sua vez, encontram-se vinculados a todo um conjunto de direitos fundamentais.
Verifica-se que a concepção de homem-objeto constitui justamente a antítese da dignidade da pessoa humana. Não podemos abordar aqui apenas o viés negativo, já que assim estaríamos restringindo demasiadamente o âmbito de proteção da dignidade, razão pela qual imperiosa a sua concretização por meio de outros princípios e direitos fundamentais, de natureza negativa e positiva.
Dworkin[53] remete a Kant novamente, ao relembrar que o homem não poder ser tratado como objeto, significa que o mesmo não poderá ser mero instrumento para realização dos fins alheios, destacando que o postulado não diz que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim que as pessoas não podem ser tratadas de tal forma que neguem a existência da própria vida. Kant refere expressamente que o Homem constitui um fim em si mesmo e não pode servir “simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.
Ou seja, não podemos utilizar o ser humano de forma egoística, o disponibilizando, como meio de alcançar determinada finalidade. Não podemos instrumentalizar o outro, coisificá-lo. Podemos utilizar a conceituação de Sarlet[54] que além de vedar a coisificação, a degradação da pessoa por conta da sua fórmula objeto, e buscando reunir a sua perspectiva ontológica e instrumental, destacando a sua face intersubjetiva, junto com a dimensão dúplice de âmbito negativo e positivo. Sendo assim, tem-se por dignidade da pessoa humana:
“A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
Este é o conceito em que se baseia a nossa sociedade contemporânea. O Estado de Direito atual tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Este princípio serve de suporte doutrinário para a construção dos demais princípios. Todos os ramos do direito hoje se sustentam em tal princípio basilar. O fenômeno da Constitucionalização do Direito tornou-se inevitável frente à reconhecida importância deste princípio. Todos se voltam para a efetivação desta conquista.
3. O Constitucionalismo no Processo Penal
De acordo com essa “nova”[55] visão do direito constitucional, podemos estabelecer um reflexo direto nos outros ramos do direito. Hoje, falamos em Direito Civil Constitucional, algo inimaginável há pouco, quando o Código Civil ditava as regras privadas, como se fosse uma verdadeira Carta Magna.[56] Os Direitos Processuais foram reformulados a partir de uma óptica constitucional. Essa abordagem constitucional no processo penal foi fundamental para dar efetividade às garantias constitucionais.
Encontra-se na Constituição uma diversidade de normas que, direta ou indiretamente, interessam ao processo penal. O fato de o país ser um Estado Democrático do Direito assentado no valor da dignidade humana, extrai-se algumas regras básicas de como o processo penal deve ser construído e atuado.[57] Em seu art.5º, a constituição dispõe sobre vários dispositivos que se referem ao aspecto criminal. Alguns deles podem ser aplicados desde a noticia criminal, que levará à investigação e apuração do fato, seja através do inquérito policial, seja através de outra forma, como simples procedimento informativo e investigatório.[58]
A idéia de garantismo brota da Constituição, da noção de garantia substancial que dela emerge. É importante destacar que o garantismo não tem nenhuma relação com o mero legalismo, formalismo ou mero processualismo. E, muito menos, com defesa da impunidade, como querem fazer crer alguns manipuladores.[59] Consiste na tutela dos direitos fundamentais, os quais representam os valores, os bens e os interesses da sociedade. O direito existe para tutelar os direitos fundamentais. O juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria.[60] Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas e absolver quando não existirem provas plenas, porque isso é uma garantia constitucional do mesmo.
Uma grande contribuição da visão constitucional no processo penal brasileiro foi em torno da justa causa. De acordo com o Juiz de Direito, Luis Gustavo Grandinetti[61], a legislação pouco tratou sobre o tema, não dando a devida importância. Segundo o referido autor, apenas três dispositivos processuais-penais brasileiros cogitam da justa causa[62], nenhum deles, contudo, permitem inferir qual o conceito, o sentido e o alcance imaginados pelos respectivos legisladores.
E, aí que a doutrina e a jurisprudência ganham relevo. Diante deste contexto, nada mais razoável que a discussão travada em torno da justa causa ganhe contornos constitucionais. A visão constitucional estabeleceu um alcance do instituto bem maior do que ocorria tradicionalmente.[63] Caminhamos da falta de um conceito legal, para erigi-la a uma garantia constitucional.
3.1) Função Garantista da Investigação Criminal: Justa Causa.
Segundo Maria Theresa Rocha Assis, o emprego da expressão “justa causa”, no Direito brasileiro está intimamente ligado ao habeas corpus, que foi introduzido em nosso país pelo Código Criminal do Império, em 1830.[64] Segundo consta em seu livro, o Código do Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, tratou da ordem do habeas corpus no Título VI, nos arts. 340 a 355, e dispôs no art.353, I, ser ilegal a prisão “quando não houver uma justa causa para ela”. Assim, a ausência de justa causa para a prisão possibilitava, dentre outras hipóteses, a concessão da ordem.
O Código de Processo Criminal, no art. 340, só se referiu à “prisão ou constrangimento ilegal”, razão pela qual a compreensão que se deu ao habeas corpus, na época do império, foi bastante restrita. [65] A visão que se tinha, era que o habeas corpus se referia apenas à prisão corporal, a física, logo, o habeas corpus era apenas liberatório. Já Pimenta Bueno[66], dizia que a garantia do habeas corpus era conferida não apenas contra prisão arbitrária, mas contra todo constrangimento ilegal, proviesse ele de detenção injusta, ou de ser ela verificada em lugar ilegítimo, em cárcere privado, ou resultasse de uma exigência forçada ou opressão que comprimisse individualmente a liberdade do cidadão.
Segundo Maria Thereza Rocha de Assis Moura, àquele tempo poucos foram os autores que analisaram de forma mais detida a questão da justa causa. Para Pimenta de Bueno, o código incluiu “não só a criminalidade do fato, como a falta de prova, não-identidade de pessoa e detenção indevida em uma prisão”.[67] E ainda, Joaquim de Oliveira Machado, foi o precursor do entendimento segundo o qual a justa causa não pode ser definida.[68] Manifestou-se no seguinte sentido: “Justa Causa não pode ser definida em absoluto. Depende de inteligente e escrupulosa apreciação do juiz que, aquilatando os motivos ocasionais determinantes da prisão, qualificará a justiça ou injustiça da causa para declarar legal ou não o constrangimento corporal ou ameaça. É impossível capitular antecipadamente a causa justa, assim como onde está a legítima defesa, ou onde principia o excesso. Tudo depende das circunstancias ocorrentes, e do estudo que sobre elas se faz o juiz”.
Para o autor, a justa causa não poderia ser definida, mas apenas casuisticamente. Segundo a sua brilhante posição, “somente a acurada análise dos fatos sob todos os pontos de vista pode ministrar ao juiz a convicção da justiça ou injustiça da prisão, a fim de ser pronunciada sua legalidade ou ilegalidade”.[69] De acordo com a lição de Maria Thereza, a estreita relação que se estabeleceu, a partir do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, entre justa causa e legalidade da prisão, foi sendo, ainda na época do império, pouco a pouco alargada, tendo a jurisprudência exercido papel marcante para as modificações legislativas introduzidas.[70]
Assim como abordamos no capítulo a respeito do princípio da dignidade da pessoa humana, para uma real e efetiva proteção do Estado, é preciso que se defina o que seja justa causa. De acordo com a doutrina majoritária, justa causa, abrange em regra, um conteúdo similar, consistente no mínimo de provas necessárias para a propositura da ação penal.[71] Para melhor desenvolvimento, seguem algumas definições.
José Barcelos de Souza sustenta que:
“Em seu sentido estrito, como o próprio nome indica, a justa causa diz respeito à causa de prisão ou à causa de pedir, isto é, motivação do fato para o pedido de aplicação da lei penal, justa no caso concreto. (…) Em seu sentido amplo, a expressão ‘falta de justa causa’ tem servido, pois, de nome-ônibus para indicar ilegalidade na instauração do processo.”[72]
Nas palavras de José Frederico Marques, autor do ante projeto do Código Penal que previa de modo expresso a ausência de justa causa como fundamento da denúncia, “o interesse de agir é a relação entre a situação antijurídica denunciada e a tutela jurisdicional requerida. Disto resulta que somente há interesse quando se pede uma providência jurisdicional adequada à situação concreta a ser decidida”.[73]Para Frederico Marques, ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação penal. Devia então, o juiz rejeitar a denúncia, baseando-se no antigo art. 43, III, do CPP.
Seguindo a posição de Frederico Marques, hoje, temos Tourinho Filho. O brilhante doutrinador ao ensinar em sua obra, diz que o interesse de agir, como condição para o regular exercício da ação penal, deve ser entendido como legítimo interesse. Para Tourinho filho, somente haverá legítimo interesse quando houver fumus boni iuris a sustentar a acusação formulada, quando houver “fundamento razoável” para o exercício do direito de ação penal. Segundo suas lições, para a propositura da ação penal, “não basta simples ‘denúncia’, ou simples ‘queixa’, narrando o fato criminoso e dizendo quem foi o autor. É preciso que haja elementos de convicção, suporte probatório mínimo à acusação, a fim de o pedido cristalizado na peça acusatória possa ser digno de apreciação”.[74] O autor não faz uso da expressão justa causa, mas a sua explanação coaduna-se com o que é denominado pela maioria dos demais autores, justa causa.
Similar lição é trazida por Paula Bajer Fernandes, que sustenta ser “justa causa o fundamento fático e jurídico, demonstrado na peca acusatória e verificável no inquérito policial ou em pecas de informação. A justa causa é o justo motivo para a instauração da ação penal, o que não significa, em absoluto, qualquer antecipação da condenação”.[75]
Encerrando a conceituação da expressão, nos utilizaremos da lição do promotor Afrânio Silva Jardim, onde para ele justa causa é “o suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação”, ou seja, um início de prova acerca da autoria e da materialidade do delito a permitir a propositura de ação penal, sem que esteja presente o constrangimento ilegal ao denunciado.[76]
Como se vê, a doutrina basicamente se inclina para o fato de ser justa causa, o fumus boni iuris necessário à propositura da denúncia ou da queixa, ou seja, suporte probatório que evidencie a presença de indícios de autoria e materialidade do delito. Apurou-se com isso, que inexiste na doutrina mediata vinculação entre a justa causa e os princípios constitucionais encartados na Carta Brasileira.[77]
A jurisprudência se divide. Temos duas posições antagônicas. O STJ adota uma posição mais formalista, no sentido de ser impossível, para a verificação da justa causa, o exame da prova. Baseia-se tal posição no entendimento de que, para investigar-se a presença da justa causa, deveria ser necessariamente realizado um exame aprofundado das provas, o que viria a ferir, inclusive, o princípio da ampla defesa, eis que, dependendo da fase processual, impediria a realização regular do contraditório.[78] Defende-se aqui que o exame da prova não pode ser aprofundado.
Já seguindo o posicionamento do STF, temos que para a apuração da existência da justa causa, deve o juiz, necessariamente, analisar os documentos que instruem a ação penal, pois esses seriam indispensáveis para o oferecimento da denúncia, e a ausência deles teria o condão de tornar sem sustentação a materialidade e autoria descritas na inicial. Segundo este posicionamento, o procedimento de verificação da justa causa somente pode ser realizado através de um processo lógico de exame das provas que instruem a inicial.[79] Aqui deve ser empregada na verificação da presença da justa causa a profundidade demandada pela complexidade do caso, o exame da prova seria amplo quanto ao aspecto da legalidade.
Percebe-se com isso, que se reluta em dar à justa causa a abrangência que parte da doutrina lhe atribui, a de efetivo filtro a ser utilizado para impedir a propositura de ações penais que não estejam fundadas em elementos de prova que permitam afirmar, de fato, ser legal o constrangimento trazido ao indivíduo pela propositura de ação penal em seu desfavor. Verificamos a falta, inclusive na jurisprudência, da incorporação dos princípios constitucionais no tema da justa causa.[80]
Para que se faça uma integração com os princípios constitucionais, é preciso que se adote, de acordo com esta nova concepção constitucional, uma real interpretação dos institutos à luz da Constituição.
Os nossos juristas, em sua grande maioria, encontram-se fundamentados no chamado sentido comum teórico, consistente, em síntese, na existência de pré-juízos e idéias pré-concebidas que estagnam as possibilidades interpretativas e de crítica ao direito. Uma bela frase do doutrinador, Luis Gustavo Grandinetti em muito elucida o assunto: “O conformismo dos operadores do direito limitam suas formas de interpretação”. Tal imobilismo exegético encontra-se em sua maioria, por conveniência acadêmica ou por comodidade intelectual, permanecendo inertes, ignorando o papel doa agentes transformadores da ordem social.[81]
Segundo Luis Lênio Streck:
“O sentido comum teórico sufoca as possibilidades interpretativas. Quando submetido à pressão do novo, (re)age institucionalizando a crítica. Para Tanto, abre possibilidade de dissidências apenas possíveis (delimitadas previamente). Ou seja, no interior do sentido comum teórico, permite-se, difusamente, (tão somente) o debate periférico mediante a elaboração de respostas que não ultrapassam o teto hermenêutico fixado (horizonte do sentido).”[82]
Logo, cabe aos juristas, no exercício do dogmatismo[83], uma tomada de posição crítica quanto ao real conteúdo das normas, jamais se desvencilhando do princípio democrático, não para buscar a qualquer custo a idéia individualista de segurança e estabilidade jurídica, senão para adequar a realidade social aos princípios de ordem constitucional de modo a efetivá-la em sua plenitude, despojando-se, outrossim, de idéias e noções preconcebidas e preconceituosas, que amesquinham o real alcance das normas.[84]
Temos, portanto que parte da doutrina, comprometida com a crítica do direito, redimensionou-se para, em sintonia com a realidade social, buscar seus fundamentos não mais nos códigos de concepção liberal-individualista e sim nos princípios constitucionais. O modelo democrático de Estado exige que a dogmática jurídica se paute na realidade social, tendo-a como a primeira referência para a interpretação das normas. Esse é o primeiro passo para adequarmos nossas normas infraconstitucionais à nova constituição. É abandonar a visão patrimonial-individualista, e partir para uma interpretação conforme a constituição.
Conclui-se que a interpretação do direito deve ser feita sempre de acordo com a cláusula implícita da vontade geral fundadora do Estado Democrático de Direito, cabendo, para isso, ao Judiciário, no resguardo da justiça democrática, a explicitação do contrato social na sua atividade interpretava.[85]Junto a essa idéia de Estado Democrático garantista, ganha relevo a importância da noção de “bem jurídico”.
Inserida no Direito Penal como indicadora dos valores sociais a serem protegidos pelas normas penais incriminadoras, a idéia de “bens jurídicos” também se encontra vinculada à concepção democrática assumida pela Constituição Federal de 1988.[86] Vemos que esta constitucionalização dos bens penais, também impõe o reconhecimento do Direito Penal como ultima ratio, ou seja, a última medida para tutela de tais bens jurídicos, a última fronteira para o agir punitivo do Estado. O Direito Penal visa a tutelar os interesses mais importantes da sociedade.[87]
É justamente nesse contexto de constitucionalização dos bens jurídicos penais que se propõe encontrar mais uma referência para o conceito de justa causa: se a tipicidade penal não prescinde de uma análise de necessidade e proporcionalidade em relação à sanção penal, o direito de ação também não pode prescindir da mesma análise em relação não só à sanção penal, mas à própria justificativa de submeter-se alguém a um processo penal. Há, pois, de forma induvidosa, estreita vinculação entre o que se deve entender por justa causa e a preservação do status dignitatis do indiciado, do mesmo modo que deve haver vinculação entre os bens jurídicos penais e princípio da dignidade da pessoa humana.[88]
Essa é a vinculação que se deve fazer. Justa causa com os princípios constitucionais. Atualmente, é imprescindível que vinculemos diretamente dois princípios à justa causa: princípio da presunção de inocência e dignidade da pessoa humana.
Porém, essa tarefa de buscar uma acepção constitucional para a justa causa não é tão simples. Segundo Maria Thereza Rocha de Assis, devemos impor um alcance da justa causa como ocorrem nos demais ramos do direito. A justa causa vista como amparo, ou proteção contra o abuso do direito, está presente também e de modo significativo no processo penal.[89] Afirma-se ainda que até hoje não se precisou bem o conceito processual penal de ‘justa causa’. A ambigüidade acarreta discussões. Temos uma concepção para justa causa para a prisão, para a ação penal e para a condenação tão controvertida na doutrina como na jurisprudência.
Podemos separar as definições em duas: causa legal e causa razoável. Como visto em todos os conceitos aqui anteriormente citados. Causa legal, aquela que teria tipicidade, e razoável que guarda a mesma imprecisão residente no conceito do que é justo, até porque os conceitos encontram-se vinculados. Ocorre que essa nova valorativa das normas jurídicas, em consonância com o principio da dignidade da pessoa humana, indica uma concepção material dessa causa legal.[90]
Temos aí, uma instituição protegida pela constituição. E essa garantia não pode deixar de ser a protegida. O fato de ser uma garantia institucional quer dizer que se reconhece a sua fundamental importância para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional. Segundo Bonavides, por instituições teríamos a propriedade, família e outras instituições protegidas como realidades sociais objetivas.[91]
Com tal assertiva, podemos concluir que, apesar da existência das garantias institucionais, estas estão vinculadas aos direitos fundamentais, e, por uma questão de opção política devem se submeter à concepção democrática.[92] Conclui-se, portanto, que, nesses termos, a justa causa tem uma dupla dimensão, de direito fundamental e institucional, eis que os tipos penais protegem institutos jurídicos, devendo a ponderação das referidas dimensões ser analisada à luz do princípio democrático da dignidade da pessoa humana, caso tenhamos um eventual embate.
Com isso, pretende-se sugerir que a justa causa não se limite apenas a um suporte probatório mínimo, ou que se restrinja ao conceito de interesse de agir, ou ainda a presença de tipicidade. Ela é tudo isso e ainda mais. Segundo Grandinetti, a justa causa é uma cláusula de encerramento, que concretiza, no âmbito processual penal, os preceitos constitucionais da dignidade, da proporcionalidade, além de exercer as outras funções já aqui mencionadas. A justa causa concretiza a legitimidade de submeter alguém a um processo criminal sob todas as perspectivas exigidas pela ordem constitucional.[93]
4) Sistemas de Investigação Criminal
Até o momento, o presente trabalho buscou elucidar a importância dos princípios constitucionais no ordenamento jurídico atual. Abordamos com ênfase as bases do sistema normativo, para podermos adentrar no tema que viola profundamente as garantias do indivíduo, que é a investigação criminal. Elucidaremos os principais sistemas de investigação que existem, para posteriormente abordar as questões que cercam sistema brasileiro de investigação criminal. Os direitos fundamentais conquistados e a efetivação dos mesmos devem ser cercados de proteção, não podendo ser atingidos sem a devida precaução que lhe é cabível.
Dentre os sistemas de investigação preliminar existentes, o Brasil utiliza a denominação inquérito policial, atendendo basicamente ao órgão encarregado da atividade. Já, outros países, de acordo com os seus procedimentos, adotam outras, tais como: inquérito preliminar, em Portugal; l’enquete preliminaire, e l’instruction, na França; prosecution e preliminary inquiry, na Inglaterra.[94] Frente a essa diversidade de denominações, que, em linhas gerais correspondem aos mesmos fins, iremos abordá-las sob uma mesma designação para podemos abranger todos os atos inerentes a elas, que será investigação preliminar.
Seguindo a doutrina que nos orienta o presente, damos como principal objetivo da investigação preliminar a função de evitar acusações infundadas. O que significa, esclarecer o juízo de probabilidade e assegurar à sociedade de que não existirão abusos por parte do poder persecutório estatal. Se a impunidade causa uma grave intranqüilidade social, não menos grave é o mal causado por processar um inocente. Consideramos que essa atividade de “filtro processual”, expressão adotada pelo ilustre, Aury Lopes Junior, resta afirmada, já que consideramos fatores básicos em relação à instauração da ação penal, como: custo do processo, o sofrimento que causa ao sujeito passivo e a estigmatização social e jurídica que gera.[95]
4.1) Sistema de investigação coordenada pelo Magistrado
Seguiremos aos sistemas existentes de investigação preliminar. O primeiro deles será a investigação coordenada e controlada pelo magistrado. Tal investigação é controlada pelo chamado “juiz instrutor”. Nestes sistemas, temos este como a máxima autoridade responsável pelo impulso e instrução oficial. Ele é o protagonista, aquele que detém todos os poderes para realizar as investigações e diligências que entenda necessária para aportar elementos de convicção que permitam ao Ministério Público acusar, para a sua admissão ou não da acusação.[96]
O juiz de instrução tem um duplo papel, como investigador e como juiz. Como investigador, ele está encarregado de recolher as provas da infração, de elucidar a autoria e formalizar os autos; ele deve buscar elementos a favor e contra a pessoa investigada. Como juiz, ele pode requisitar o emprego da força pública e decidir sobre a realização de exames, mas eventualmente, da colocação da pessoa investigada em detenção provisória ou sob o controle judiciário. Uma vez que os autos estejam formalizados, ele determina as imputações e decide, a vista dos requerimentos do Ministério Público, seja pelo encaminhamento da pessoa a jurisdição de julgamento, seja pela decisão de não processar.[97]
Tal modelo advém de fortes raízes históricas, indelevelmente associado como símbolo de repressão criminal. De acordo com Fausi Hassan Choukr, o ancestral direto do ‘juiz instrutor’ foi o lieutenant criminel, raízes francesas, como dito símbolo da repressão criminal, criada pelo edito Henrique II. [98] Nesta época ele atuava como parte, como a figura do inquisidor. Ele mesmo investigava, dirigia a instrução, acusava e julgava. O procedimento era escrito, secreto e não-contraditório. Com relação à prova, vigorava o sistema o sistema da valoração taxada, a sentença não produzia coisa julgada e o estado de prisão do acusado era a regra geral. O processado era a melhor fonte de conhecimento e testemunha, logo, tinha o dever de declarar a verdade sob pena de incorrer nas sanções legais. Confundiam-se as atividades do juiz e do acusador, com claro prejuízo para o sujeito passivo, que se convertia em mero objeto da persecução.[99]
Atualmente o panorama mudou, e o modelo onde se adota tal sistema, não permite que o juiz instrutor seja um puro inquisidor, como o era historicamente. A principal alteração foi que o “juiz inquisidor” não mais acusa. Não se admitem mais acusações de oficio e o Ministério Público divide a titularidade da ação penal com os particulares, conforme as particularidades de cada país. Tampouco julga a causa que instruiu, pelo menos essa é a garantia observada pela maioria dos países que adotam o modelo de juiz de instrução, sob pena de caracterizarem seu sistema como inquisitório.[100]
Temos aqui a divisão do processo em duas fases distintas, com predomínio das características do acusatório na fase processual, afastando com isso o atual juiz inquisidor com a figura histórica do juiz inquisidor. Neste sistema de investigação preliminar a prova é colhida e produzida por ele mesmo, o juiz instrutor aqui atua de oficio. Cabendo a ele, dentre outras medidas: proceder ao interrogatório do sujeito passivo; utilizar medidas cautelares pessoais ou reais; conceder a liberdade provisória; designar defensor para o sujeito passivo, caso não o tenha feito; realizar inspeções judiciais e ordenar perícias; proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas; intimar e ouvir a vítima e testemunha, etc.[101]
Discordando da doutrina utilizada, não vemos tanta distância entre o juiz instrutor histórico com o atual. O fato de um órgão poder investigar e conceder medidas cautelares para a instrução do mesmo, nos soa um tanto estranho ao Estado Democrático de Direito. A título de exemplo, temos os seguintes países que seguem tal sistema de investigação preliminar: França, Espanha, Bélgica e Argentina.[102]
Seguindo no modelo de instrução investigatória, temos que a imparcialidade do juiz ordinária está mais garantida. Esse é o modelo, um sistema bifásico, instrutor só instrui, não julga, eliminando assim qualquer ‘pré-juízos’, nascidos no decorrer da instrução preliminar. O TEDH (Tribunal Europeu de Direitos Humanos) chegou a se manifestar a respeito da inconstitucionalidade do sistema, caso não se adotasse um juízo apenas para o julgamento. Segundo as palavras de Aury Lopes Jr, “teríamos um imenso prejuízo decorrente do pré-juízo”.[103] Logo, ficou decidido de forma absoluta a presunção de imparcialidade do juiz instrutor, em definitivo, a prevenção é uma causa de exclusão da competência[104] . Infelizmente, não sendo o posicionamento do ordenamento brasileiro.
O papel da polícia judiciária neste sistema é de ajudar nas investigações. O juizado de instrução, hoje, atua na dependência destas “enquêtes préliminaires”, expressão francesa do modo de proceder da Polícia Judiciária, onde passaram a constituir a verdadeira fonte de esclarecimento de fatos inicialmente tidos como criminosos. A Polícia Judiciária investiga os crimes, os delitos e as contravenções, amealhada as provas e encaminha os autores aos Tribunais encarregados de puni-lo. Ela recebe a notícia dos fatos criminosos, estes membros fazem as constatações materiais, agindo autonomamente ou por delegação da Magistratura.[105] Esse é o papel da Policia Judiciária, auxiliar do juízo de instrução.
Já o papel do Ministério Público neste sistema de investigação preliminar, é reconhecido em nível hierárquico com a Polícia Judiciária. Cabendo ao parquet fiscalizar os trabalhos policiais, que em termos formais são executados sob estrita vigilância do mesmo. Com efeito, a relação entre a Polícia Judiciária e o parquet podem se traduzir num necessário dever de informação daquela para com este, que não se limita à informação do inicio das investigações, mas se prolonga durante toda a duração da enquête. Ao lado do dever de comunicação existe a supervisão do parquet ao exercício da policia, assim como a possibilidade de interferir diretamente na sua duração ou, se necessário, determinar exames para a constatação da sua integridade física. No entanto, dados franceses anotam que esse controle é apenas teórico, já que cerca de 73% dos casos investigativos terminam sem que o parquet tenha sido informado de sua ocorrência.[106]
A vantagem principal deste sistema de investigação preliminar judicial a cargo do juiz instrutor é a garantia de ser realizada por um órgão suprapartes. Considerando o pressuposto lógico do mesmo não participar do julgamento. Aqui, encontramos maior efetividade, e qualidade nos resultados da investigação. Como na investigação preliminar são praticados atos de averiguação e comprovação que implicam a limitação de direitos fundamentais, especialmente pela via de medidas cautelares, exigindo que esta atividade seja levada a cabo por um órgão dotado de potestas jurisdicional, sendo inconcebível que tais atos sejam praticados por órgão sem tal poder, como o Ministério Público ou a Polícia.[107]
Como principal inconveniente está sem dúvida, a estrutura inquisitiva do modelo, que praticamente outorga a uma única pessoa as tarefas de investigar, acusar latu sensu (imputação) e inclusive defender, o que culmina por matar a própria posição de imparcial, de órgão suprapartes. Se entendermos que o sistema acusatório significa, simplesmente a separação das funções de acusar e julgar, não entenderemos que tal sistema seria inquisitivo, já que um juiz instrui, o MP acusa e outro juiz julga. Porém, o modelo acusatória propugna mais do que isso. Ele consubstancia pela igualdade das partes com relação 1as oportunidades no processo, mantendo-se o juiz como terceiro imparcial, alheio ao trabalho da investigação e passivo no que se refere ao recolhimento da prova, cujo procedimento deve ser em regra oral e com plena publicidade, configurando-se com isso um pleno contraditório.[108]
Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em guardião zeloso da segurança individual. É inegável, segundo as palavras do eminente doutrinador, Aury Lopes Junior, que “o bem inquisidor mata o bom juiz, o bom juiz desterra o inquisidor”.[109]
4.2) Sistema de Investigação Coordenado pelo Ministério Público
Temos neste sistema a figura do Promotor Investigador. Tal sistema adotado principalmente pela Alemanha, Portugal, Itália e Estados Unidos.[110] Neste sistema, a atuação do Ministério Público poderá vaiar substancialmente, desde um mero auxiliar do juiz instrutor, até a posição de titular da instrução. O que vamos abordar é este último caso, o promotor investigador.
Tal instrução tem sido adotada pela maioria dos países europeus, como substituição ao modelo de instrução judicial anteriormente analisado. A Alemanha, por exemplo, em sua reforma de 1974, substituiu a figura do juiz instrutor para dar lugar ao promotor investigador. Temos aqui o promotor sendo diretor da investigação, cabendo-lhe receber diretamente a notícia-crime ou através da polícia, e investigar os fatos nela constantes. Para isso, poderá dispor e dirigir a atividade da Polícia, total dependência funcional ou praticar por si mesmo os atos que julgue necessários para formar sua convicção e decidir entre formular a acusação ou solicitar o arquivamento.[111]
Esse modelo veio em resposta às diversas críticas que estavam recebendo o modelo do juiz instrutor, as quais foram anteriormente expostas. Encarregado do inquérito, o Ministério Público conduz as investigações necessárias. Contudo, certos atos investigativos devem ser autorizados pelo magistrado encarregado de verificar a regularidade jurídica do ato, sem, contudo, adentrar no seu mérito. Esse magistrado não será o Juiz do mérito da causa e a sua atuação afeta diretamente a liberdade individual: determinar a prisão cautelar, oitiva de testemunhas, peritos de forma cautelar, decisões de urgência que não podem ser tomadas pelo Ministério Público, e etc.[112]
Neste sistema, segundo a tradução de Fausi Hassan Choukr do sistema alemão, o Ministério Público é o “dono da investigação” mas, ao mesmo tempo, é uma “cabeça sem extremidades”. Com isto se quer dizer que, para realizar as investigações pertinentes, o Ministério Público depende da cooperação da polícia, que deve seguir as ordens dos promotores.[113] Em regra, o MP dependerá de autorização judicial para realizar determinadas medidas limitativas de direitos fundamentais, como já dito anteriormente, medidas cautelares, busca domiciliares, intervenção telefônica, etc. caberá ao juiz da instrução – que fique claro que este juiz da instrução é diferente da figura do juiz instrutor-. Este juiz será um verdadeiro órgão suprapartes, pois diferente do anterior, não investiga, senão que intervém quando solicitado como controlador da legalidade dos atos de investigação levado a cabo pelo promotor. A essa figura, denominamos juiz garante da investigação preliminar, ou juiz de garantias.[114]
A prevenção ocorrida por tal juiz garante, de acordo com a presunção absoluta de imparcialidade mencionada anteriormente, acarretará o seu impedimento para o julgamento da possível ação penal. Os argumentos que sustentam este sistema se baseiam na atuação do promotor como parte formal, e ao mesmo tempo imparcial. Encontra seu fundamento na distinção entre parcialidade e partialidade[115], de modo que o promotor pode ser partial e imparcial ao mesmo tempo. Sendo relevante aqui a sua causa de atuação, sendo o desejo de atuar com justiça, segundo os critérios legais. Na esfera subjetiva, deverá esquecer-se de sua personalidade para atuar no processo penal com exatidão e a real intenção de proceder justa e legalmente.[116] Cabe a nossa dúvida em relação a este comportamento. Visto que, quem conseguiria desvirtuar-se de seus valores subjetivos, se os mesmos encontram-se intrínsecos às nossas idéias e valores? Tal agente deve, segundo as palavras de Aury Lopes Jr, colocar entre parênteses todas as considerações subjetivas do agente.[117]
Favorecendo este sistema, temos que a investigação é uma atividade preparatória e que deve servir somente para a formação da opinio delicti por parte do titular da ação penal pública, isto é, o Ministério Público. Cumpre ao promotor, e a ninguém mais. Por isso, a instrução preliminar deve ser uma atividade administrativa, e não judicial, dirigida por e para o promotor. Do ponto de vista da economia processual, é o melhor sistema, pois não implica em reiteração de atos judiciais, na medida em que os atos do promotor são de limitado valor probatório. A investigação preliminar a cargo do MP implica uma notável aceleração do processo penal, porque centra o autêntico valor da prova na fase processual, deixando que os atos realizados pelo promotor sirvam exclusivamente para fundamentar o exercício da acusação ou do pedido do arquivamento.[118]
Com efeito, ao Ministério Público cabe a condução do inquérito, cabendo à polícia o papel de recolher os elementos de informação destinados à formação de convicção do titular da ação, para lhe viabilizar ou não a sua propositura. À polícia é conferido o caráter de órgão auxiliar. Temos uma verdadeira interdependência funcional da policia judiciária para com o Ministério Público, traduzindo-se até mesmo uma relação de subordinação hierárquica, precisamente da que decorre da dependência meramente funcional.[119] Já o juiz, alheio à investigação preliminar (invocando-o somente quando necessário para autorizar determinadas medidas restritivas), fortalece a sua imparcialidade e aproxima a fase pré-processual da estrutura dialética de processo.[120]
Assim como no sistema de investigação preliminar antecedente, este também apresenta seus inconvenientes. O modelo está associado ao utilitarismo judicial, ao combate à criminalidade a qualquer custo, a uma época em que o Estado pretendia justificar os fins como abusivo dos meios. Segundo Ferrajoli, a democracia e o Estado de Direito se defendem precisamente com respeito às suas regras.[121] A história desse sistema na Alemanha foi produto do combate a qualquer custo do terrorismo. O que importava era dar armas para a acusação, aumentando a eficácia da instrução em respeito ao fim punitivo pretendido, ainda que isso trouxesse prejuízos ao sujeito passivo. No mesmo sentido teve a introdução de tal sistema na Itália, era uma justificação histórica no combate ao crime a qualquer custo, ainda que para isso cometesse injustiças. Para a configuração de tal objetivo, foi dado tal poder ao Ministério Público.[122]
Outro gravíssimo inconveniente, que não pode deixar de ser citado, é a construção da instituição como “parte imparcial”. Uma coisa é um doutrinador explicar no plano teórico tal lição. Na prática ela esbarra num irrefutável problema: a fragilidade do homem que é chamado para desempenhar tal função. Segundo James Goldshmidt, a exigência de imparcialidade, dirigida a uma parte acusadora, cai no mesmo erro psicológico que desacreditou o processo inquisitivo. E este erro é o de acreditar que uma mesma pessoa possa desempenhar tarefas tão antagônicas, como a de acusar e defender.[123]
A questão fica expressamente clara, quando nos fazemos a seguinte pergunta: no que difere o promotor inquisidor do juiz inquisidor? Não teríamos meios subjetivos que fizessem com que o promotor pudesse ser mais parcial do que o juiz. Ambos são pessoas, sujeitos, com sentimentos subjetivos, com intuições, com conceitos pré-concebidos, enfim. Se o Ministério Público foi uma parte fabricada, que nasceu para ser contraditor natural do imputado e com isso atender os requisitos do sistema acusatório, é ilógica sua construção a partir da imparcialidade.[124] Com isso o desequilíbrio é patente, e cai por terra qualquer pretensão de transformar o processo numa luta franca entre duas partes iguais, com igualdade de armas.
Adentraremos agora no sistema de investigação preliminar policial. Caracteriza-se esta por encarregar à Polícia Judiciária o poder de mando sobre os atos destinados a investigar os fatos e a suposta autoria, apontados da notitia criminis ou através de qualquer outra fonte de informação. Este modelo é seguido, principalmente, pelo ordenamento brasileiro. A Inglaterra até adota o sistema de investigação controlada pela polícia, mas sua estrutura é tão diferente, por não possuir um órgão incumbido da acusação, como o Ministério Público no Brasil, que fica difícil qualquer tipo de comparação. Lá a persecução penal é exercida pelos funcionários da polícia, mas muitas vezes não configura uma relação com o Estado, mas sim, sendo exercida pela sociedade civilmente organizada, ou individualmente pelo ofendido.[125]
4.3) Sistema de investigação coordenada pela Polícia Judiciária.
Abordando o sistema que importa para o presente trabalho, a investigação preliminar policial estabelecida pelo ordenamento brasileiro dá titularidade das investigações para Polícia Judiciária. Todas as informações sobre os delitos públicos serão canalizadas para a polícia, que decidirá e estabelecerá qual será a linha de investigação a ser seguida, isto é, que atos e de que forma ela irá prosseguir. Ela produzirá as provas técnicas que julgar necessárias, decidindo também quem será ouvido, como e quando. E, claro, para aqueles atos que impliquem a restrição de direitos fundamentais, como prisões cautelares, buscas domiciliares, intervenções telefônicas, deverá solicitar autorização ao órgão jurisdicional.[126]
Aqui a polícia não é auxiliar, como nos outros sistemas, ela é titular, o verdadeiro diretor da instrução preliminar, com autonomia total para dizer as formas e os meios empregados na investigação. Sendo errado, inclusive, dizer que exista subordinação funcional em relação aos juízes e promotores. A natureza do sistema de investigação aqui é administrativa, pois a polícia é um órgão da administração pública, que não está dotado de poderes jurisdicionais. Uma grande vantagem de tal sistema é a condição da polícia de atuar em qualquer lugar do país.[127] Desde os grandes centros povoados, até aqueles mais isolados e afastados, e num país grande como o Brasil, nada mais fundamental. A polícia é a única instituição que tem contato direto com o povo. Tem contato diário com a violência, e sabe, já que se encontra em todo território nacional, onde estão os problemas da sociedade.
Esse foi o argumento do legislador brasileiro, em 1941 para justificar a permanência do inquérito policial. Segundo à época, era o único modelo que abarcaria um país com dimensões territoriais tão grande quanto o Brasil. Na teoria, a atividade policial é mais célere, pois como está presente em todos os locais do país, chegaria mais rápido no combate à infração criminal. Além do argumento puramente econômico, visto que a investigação preliminar policial é mais barata, do que a investigação presidida pelo ministério público, por exemplo.[128] Pois, a demanda de recursos humanos com menor grau de especialização, em suma, a demanda constituída por policiais é muito mais barata do que aquela constituída por juízes ou promotores.
E para finalizar a argumentação da permanência da escolha do sistema de investigação presidida pela polícia, temo o viés político. Para o Governo esse sistema é o mais vantajoso, pois sendo a Polícia Judiciária um órgão de vinculado ao governo, sobre ele podemos ter um possível controle. Uma grande crítica a este sistema é o alto poder discricionário da polícia. Este poder viola qualquer ideal de igualdade jurídica. Não se pode escolher quem serão os punidos. A instituição, com isso, possui seus modelos já pré-concebidos. Impunidade para a classe mais elevada, estereótipos de prováveis criminosos, vítimas com maior ou menos verossimilitude, delitos que podem ou não ser esclarecidos.[129]
A polícia está muito mais suscetível de contaminação política, especialmente em relação aos mandos e desmandos de quem ocupa o governo, além de sofrer pressão dos meio de comunicação. Pois a instituição policial exerce sua função de maneira diferente das outras duas instituições (MP e Magistratura). A Polícia atua na rua, diretamente com a sociedade, logo, sofre pressão em relação à mesma. Para os meios de comunicação, a sua atuação é sempre notícia. O que pode levar, infelizmente a dois caminhos: a possibilidade de ser usada como instrumento de perseguição política e as graves injustiças que comete no afã de satisfazer a opinião da maioria. [130]
O papel do Ministério público neste sistema é o de fiscalizador, de acordo com a Constituição de 1988, em seu art.129, VII, cabe à intuição exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei. Logo, prevê-se aqui um limitador da atividade da polícia judiciária[131].
Um grande problema atual conferido ao inquérito policial é que o mesmo não vem atendendo ao titular da ação penal pública, e tampouco à defesa e resulta de pouca utilidade para o juiz (principalmente pela pouca qualidade e confiabilidade do material fornecido). Entre a polícia e os membros da Magistratura e do Ministério Público existe um contraste substancial no que se refere à situação econômica, cultura, e, principalmente, concepção do direito e da própria sociedade. Os membros da polícia em geral são provenientes de extratos mais baixos e revelam grande apego ao positivismo e à rigidez da norma, identificando-se com o Estado-Policial, em detrimento do Estado de Direito. Os juízes e promotores são vistos como burocratas que não compreendem a chamada “justiça de rua”. Em definitivo, essa falta de entrosamento só pode gerar uma coisa: elevação dos índices de criminalidade.[132]
Sob o ponto de vista da defesa, este é um dos problemas mais graves do sistema policial. A polícia assimila as normas de forma diferente dos juízes e promotores e isso influi no grau e na forma do intervencionismo policial. Interpreta-se no meio policial, as garantias do acusado, de forma restritiva. Numa atitude de resistência aos avanços democráticos da Constituição. Em nome do poder, habitualmente a polícia nega efetividade às garantias constitucionais. Ademais, nas comunidades afastadas dos centros de produção legislativa, a polícia tende a adaptar a norma ao perfil da pequena comunidade, ainda que não seja essa a melhor interpretação ou aplicação.[133]
O baixo nível cultural e econômico de seus agentes faz com que a polícia seja um órgão facilmente pressionável pela imprensa, por políticos e pelas camadas mais elevadas da sociedade. A credibilidade de sua atuação é constantemente colocada em dúvida pelas denúncias de corrupção e de abuso de autoridades. Toda essa gama de problemas que possui a instrução policial, para alguns, leva ao necessário descrédito probatório do material recolhido e à necessidade de completa repetição em juízo.[134] Este aumento diário da criminalidade a muito se atribui ao falecimento da instituição policial. O atual sistema investigatório põe a polícia como linha de frente do combate. Frente a seu menor grau cultural, atribui-se de forma constante o aumento da criminalidade com a fraca atuação policial, fazendo com que insurjam novas formas de investigação, como se com isso, os níveis de criminalidade fossem diminuir. Um governo corrupto que não investe nos problemas sociais procura um álibi para a sua fraca atuação, e a instituição policial se encaixa perfeitamente nessa posição.
A constante ideia de crise no processo penal brasileiro nos faz refletir sobre o uso reiterado do vocábulo. A cada influxo de tais manifestações sociais, saídas de emergências são tentadas, muitas vezes insufladas pelos meios de comunicação. Cuida-se muito do vocábulo “crise” em todos os ramos da vida nacional, sendo eles: economia, saúde, educação e, por certo, justiça. Crise nesse sentido é algo puramente presente, originada pela falha de algum componente estrutural, mas que, solucionada, recolocará o organismo dentro de seu funcionamento “normal”. É com base nesse raciocínio que funcionam as críticas e pretensas soluções para a “crise do sistema penal”. Mas a falácia dessa proposta é notória, sobretudo quando se indaga qual foi o momento em que a justiça criminal funcionou aos reclames sociais que deveria regular, às liberdades individuais que deveria proteger e aos condenados que deveria reeducar.[135]
A ideia de crise, além de sustentar uma falsa premissa para a solução do quadro problemático, tem um efeito colateral devastador. É, por assim dizer, um raciocínio que induz uma “volta ao passado”, na busca de uma “época de ouro” onde tudo funcionava a contento quando, por alguma mazela do destino, foi perdido o padrão ideal de funcionamento da máquina judicial. O efeito devastador reside justamente nesse eterno retorno a um passado inexistente, induzindo, até inconscientemente, à rejeição de regras “modernas”, vez que projetadas para um futuro incerto e temeroso, onde a terra é desconhecida. Daí entende-se o caráter altamente conservador do discurso doutrinário processual penal.[136] A insistência em conceder poderes instrutórios ao juiz, a dificuldade em interpretar o Código de Processo Penal de acordo com a Constituição, a restrição às garantias constitucionais do acusado, são exemplos desse conservadorismo que ocupa o processo penal.
Junto a este cenário, encontramos parte da doutrina, na tentativa de solucionar os problemas, com mais uma solução pontual, conceder poderes investigatórios ao Ministério Público, vindo de encontro com o sistema adotado pelo ordenamento brasileiro, que, como dito anteriormente, foi o Sistema de Investigação Preliminar Policial.
5) Poderes Investigatórios do Ministério Público
A busca de concessão de poderes investigatórios ao Ministério Público não é atual. Na pesquisa para a propositura da presente monografia, tem-se como mais antigo julgamento a respeito do assunto datado de 1957. Foi um julgamento do plenário do Supremo Tribunal Federal, do Recurso de Habeas Corpus 34.827/AL, de relatoria no ilustríssimo Ministro Nélson Hungria, que dispusera: “O Código de processo Penal não autoria a deslocação da competência, ou seja, a substituição da autoridade policial pela Judiciária e membro do Ministério Público, na investigação de crime”.[137]
O aumento da criminalidade no país – especialmente a criminalidade organizada – e a notória e lamentável falta de recursos materiais destinados à polícia judiciária pelo Estado (o que vem implicando na consequente impunidade dos agentes criminosos), dentre outros fatores, trouxeram a lume esta importante discussão. Poderia o Ministério Público atuar diretamente na fase preliminar à ação penal, vale dizer, instaurando, conduzindo, e, finalmente, concluindo a investigação criminal para, ato contínuo, oferecer a denúncia em juízo?[138]
A doutrina encontra-se por demais dividida. E infelizmente, os tribunais que deveriam cumprir com suas funções tanto de resguardar a legislação infraconstitucional, como constitucional, ainda não proferiram um entendimento final. Temos grandes doutrinadores para ambas as posições. A favor da investigação ministerial como exemplo, temos Júlio Fabbrini Mirabete[139], Hugo Nigro Mazzilli[140], Eugênio Pacelli[141], Lenio Luiz Streck[142], Luciano Feldens[143], Marcellus Polastri Lima[144], Paulo Rangel[145], e Aury Lopes Junior.[146] Já se posicionando pela inconstitucionalidade desta medida, temos como exemplo Antonio Scarance Fernandes[147], Antônio Evaristo de Moraes Filho[148], Rogério Lauria Tucci[149], Guilherme de Souza Nucci[150], Luis Roberto Barroso[151], Fernando da Costa Tourinho Filho[152], Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[153], José Carlos Fragoso[154].
A partir da promulgação da Carta da República de 1988, o Ministério Público, lastreado em fundamento que dizem lhe dar supedâneo legal, vem, amiúde, realizando diretamente investigações criminais (principalmente naqueles emblemáticos casos midiáticos ou naqueles em que a opinião pública rotula como gravoso), sem requisitar, à autoridade policial, a instauração de inquérito. Sustentam, que sendo os titulares da ação penal pública, não podem ser um mero convidado durante a realização do procedimento adminicular, motivo pelo qual podem não só requisitar diligências ao delegado de polícia, mas realizá-la diretamente, se for necessário e conveniente (alegando a teoria dos poderes implícitos, já que quem pode o mais pode o menos). Tudo em nome da segurança pública que está a impor a todos uma adequação à realidade moderna, ditada pela criminalidade dita organizada e violenta.[155]
5.1) Argumentos favoráveis à investigação ministerial
Segundo esta corrente doutrinária, seus argumentos basicamente se dividem em três grupos: interpretação de normas constitucionais, interpretação de normas infraconstitucionais e considerações de ordem prática.[156] Iniciando a argumentação baseando-se na Constituição, daremos início partindo da seguinte questão: A investigação criminal seria exclusiva da polícia judiciária no Brasil?
A base argumentativa deste grupo doutrinário primeiramente baseia-se na interpretação do art. 144, § 1º, IV, da Constituição Federal de 1988. Segue o artigo para melhor elucidação:
“Art 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
§1º – A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.”
Para esta corrente, a exegese deste artigo, se bem compreendidas, não asseguram às Polícias, exclusividade na investigação criminal. Logo, dizer que o Ministério Público não poderia investigar por se tratar de uma função exclusiva da policia judiciária cai por terra, não resta configurada uma indébita invasão de competências, por parte do parquet.[157] Percebe-se ainda, que há uma distinção no texto, correta ou não entre as funções de apuração de crimes e polícia judiciária. Diante disso, ressalva-se que, ao tratar da Polícia Federal, o Constituinte só reservou exclusividade quanto à função de polícia judiciária, e não quanto à apuração de crimes. Em relação a Policia Civil, a diferenciação também se manifesta, como se percebe pela leitura do §4º do art. 144 da Constituição Federal.[158]
Levando a cabo a interpretação do dispositivo em questão, resta assentado que à Polícia Federal é reservada, com exclusividade, a função de polícia judiciária da União, ou seja, não há exclusividade quanto à apuração de crimes e a exclusividade referida se opera em relação ao âmbito de atuação das funções de polícia judiciária federal, em contrapartida ao das civis. Assim, não há exclusividade constitucionalmente garantida aos órgãos que exercem função de polícia judiciária para as apurações de infrações criminais. Concordando ainda com essa interpretação, temos um julgado do Ministro Hamilton Carvalhido, Recurso Ordinário em HC n.13.728-SP, donde se reproduz:
“Diversamente do que se tem procurado sustentar, como resulta da letra do seu art.144, a Constituição da República não fez na investigação criminal uma função exclusiva da Polícia, restringindo-se, como se restringiu, tão-somente a fazer exclusivo, sim, da Polícia Federal o exercício da função de polícia judiciária da União. Essa função de polícia judiciária – qual seja, a de auxiliar do Poder Judiciário – não se identifica com a função investigatória, isto é, a de apurar infrações penais, bem distinguidas no verbo constitucional…”[159]
Além de tais premissas, a própria Constituição estabeleceu outras formas de investigação criminal, que não o inquérito policial, o que desconstituiria de vez pela sua exclusividade. Seriam as Comissões Parlamentares de Inquérito, no art.58 §3º, CF e as investigações estabelecidas pelo Tribunal de Contas nos art. 71, 74, §2º, também da CF. Além dessas, temos ainda a Receita Federal e o Banco Central. Como se vê, o ordenamento brasileiro não adotou o inquérito policial como única e exclusiva forma de investigação criminal.
Temos que, além da Constituição de 1988, não ter atribuído a exclusividade das investigações à polícia, judiciária, a mesma conferiu ao MP importantes funções no Estado Democrático atual. o Ministério Público passou a ter um perfil constitucional peculiar, na condição de defensor dos interesses sociais indisponíveis.[160] Já as suas funções ficaram estabelecidas no art. 129 da CF, dentre elas, destaca-se o monopólio da ação penal (art.129, I); o poder de requisição de diligências investigatórias e de instauração de inquérito policial (art.129, VIII) e a faculdade de exercer outras funções que lhe forem conferidas em Lei, desde que compatíveis com a sua finalidade institucional, sendo vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (art.129, IX).[161]
Como se vê, o constituinte não conferiu taxatividade no rol que explicita as funções do Ministério Público. A possibilidade de ampliação destas funções, é expressamente prevista no art.129, inciso IX, da Constituição Federal, o qual permite a atribuição legal de “outras funções” à Instituição, desde que compatíveis com as finalidades que lhe foram realizadas na atual Magna Carta. Logo, numa interpretação ontológica com o art 127 do texto constitucional, pode-se conferir ao MP funções que sejam compatíveis com as finalidades reservadas à Instituição, sendo elas: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art.127, caput, CF).[162]
Segundo Paulo Rangel, o exercício da função investigatória preliminar é inerente à exclusividade da ação penal pública, sendo possível ao Ministério Público, assim, preceder as investigações que forem necessárias à apuração dos fatos criminosos, especialmente frente à ausência de atividade investigatória conduzida pela polícia judiciária.[163] Mazzilli, por sua vez, ressalta que as investigações independentes do Ministério Público ganham relevância ainda, em casos em que a polícia não esteja em adequadas condições de apurar os fatos, mormente quando as investigações buscarem a apuração de atos praticados por autoridades; isto em razão de a polícia judiciária constituir organismo subordinado ao governo e à administração.[164] E o Ministério Público seria ideal para uma real e efetiva investigação, já que o mesmo possui garantias constitucionais indispensáveis a tal requerimento, como a autonomia, inamovibilidade, e vitaliciedade.
E ainda, se o constituinte concedeu a determinado órgão ou instituição uma função (atividade-fim), implicitamente estar-lhe-á concedendo os meios necessários à consecução de seus objetivos, sob pena de ver frustrado o exercício do múnus constitucional que lhe foi cometido. De que adiantaria a Constituição dotar o MP de seu atual perfil defensor do Estado Democrático de Direito, se não lhe proporcionasse os meios para atingi-los?[165] Concordando com tal entendimento, temos o ilustríssimo Ministro do STF, o Min. Joaquim Barbosa, que em seu voto proferido no inquérito policial nº 1968, em que estava sendo indiciado o Deputado Remy Abreu Trinta:
…O que a Constituição e a teoria Constitucional moderna asseguram é que, sempre que o texto constitucional atribui uma determinada missão a um órgão institucional, há de se entender que a esse órgão ou instituição são igualmente outorgados os meios e instrumentos necessários ao desempenho dessa missão. Esse é, em síntese, o significado da Teoria dos Poderes Implícitos….
Esclarecendo ainda a teoria, temos a explicação de Pinto Ferreira, já que foi o mesmo que sintetizou para nós a mesma. Segundo Ferreira, as constituições não procedem a enumerações exaustivas das faculdades atribuídas aos poderes dos próprios Estados Elas apenas enunciam os lineamentos gerais das disposições legislativas e dos poderes, pois normalmente cabe a cada órgão da soberania nacional o direito ao uso dos meios necessários à consecução dos seus fins. [166]
Cabe elucidar os argumentos de natureza infraconstitucional, os quais na visão desta corrente, possibilitam a investigação ministerial. Cite-se a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei Federal n 8625/93, art 26, a Lei Complementar n 75/93, art 7, o art. 201, VII da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e art. 74, VI da Lei 10741 (Estatuto do Idoso) que estabelecem textualmente competir ao parquet instaurar sindicâncias para apurar ilícitos penais, bem como os arts. 356, §2º do Código Eleitoral e art 29 da Lei 7492/96, que dispõe expressamente sobre a investigação criminal direta do Ministério Público. Urge salientar ainda, o art 4, do CPP, que prevê a universalidade das investigações serem levadas a cabo por outras instituições, como já dito aqui.[167]
Continuando na argumentativa, temos ainda a Lei 7.347/85, Lei de Ação Civil Pública. O inquérito civil constituiu importante instrumento investigatório trazido ao Ministério Público para a verificação dos fatos que autorizem o ajuizamento da ação civil pública para a defesa de interesses coletivos e difusos. Segundo a orientação de Hugo Nigro Mazzilli: “O inquérito civil é um instrumento de investigação prévia, presidido e arquivado pelo Ministério Público, destinado a apurar a autoria e materialidade de fatos que possam ensejar uma atuação a cargo da instituição”. [168] Vemos que não é estranha ao Ministério Público a incumbência de investigações. A Constituição deu a titularidade do inquérito civil ao Ministério Público, onde a mesma nem lhe incumbiu a titularidade da ação civil pública. Já a ação penal o parquet é titular, logo, fazem parte do consectâneo lógico os poderes investigatórios para a mesma.[169]
Adentrando agora na seara do terceiro grupo argumentativo, aquele estabelecido como “outros elementos”. O fato de o Ministério Público ser parte, não inibe a sua atuação como custos legis, defensor da ordem jurídica. Não há impedimento, nem causa de nulidade da denúncia, o fato do promotor que participou das investigações criminais oferecer também a exordial. Pois, ao mesmo tempo em que é parte, detentor da legitimatio ad causam, atua também como fiscal da lei, por ser imparcial quanto ao direito material. E o rol taxativo dos arts.252, 254 e 258 do CPP, não estabelecem tal hipótese de suspeição e impedimento. Cumulando com tais assertivas, o Superior Tribunal de Justiça já pacificou essa questão, através da Súmula 234: “A participação de membro do Ministério público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”. [170]
Imprescindível salientar que a tendência das legislações modernas e do países democráticos é de ampliar os poderes investigatórios levados a cabo pelo Ministério Público. Em alguns Estados, como já aqui elucidado, a instituição possui tal poder. A Itália, na busca do combate a criminalização organizada concedeu ao Ministério público tais poderes investigatórios. Logo, no Brasil, com o avanço da criminalidade, retirar do órgão essa atribuição seria um retrocesso, um verdadeiro desastre para a sociedade.[171] Temos vários exemplos de que tal prática vem contribuindo para a apuração de infrações penais que envolvem políticos, autoridades, e pessoas influentes, como no crime de abuso de autoridade por parte dos policiais, sonegação fiscal, fraude contra o sistema financeiro e corrupção. Podemos registrar alguns, como o famoso caso de desvio de recursos do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, que envolveu o Juiz Nicolau, o caso do Deputado Remi Trinta, o qual desviou recursos do SUS pela Clínica Santa Luiza, em São Luís, Maranhão, irregularidades praticadas pelo famoso empresário Marcos Valério, por ocasião do “mensalão”, o Escândalo dos Gafanhotos (Roraima), o Escândalo da Mandioca (Pernambuco), Máfia dos Combustíveis (Minas Gerais), Propinoduto (Rio de Janeiro), Caso Pitta (São Paulo).[172] Enfim, numerosas atuações exitosas, que fizeram com que o Ministério Público cumprisse o seu papel de defensor da sociedade e da ordem pública.
5.2) Argumentos Contrários à Investigação Ministerial
Inicialmente, não custa rememorar, que toda essa discussão foi sopesada pelo Constituinte, em 1988. O constituinte optou por manter o sistema vigente, que, dá a autoridade policial, atribuição exclusiva para presidir inquéritos criminais, salvo raríssimas exceções, todas expressas em lei.[173] Logo, qualquer interpretação doutrinária em sentido contrário é extensiva, o que não cabe quando estamos nos referindo a restrição de direitos fundamentais, como a liberdade. De início, cabe salientar que o silêncio do legislador foi eloquente, argumento este que poderia derrubar qualquer tese doutrinária em sentido contrário.
Esse cuidado do constituinte de 1988 tem razões históricas, que puderam ser colhidas do período em que vivemos em regime de exceção, quando procedimentos investigatórios sobre a conduta do cidadão podiam (e eram) instaurados por diversos órgãos ligados ao sistema estatal, investigações essas que muitas vezes deram origem a prisões de cidadãos, que ficavam detidos pelos órgãos de segurança, restando aos seus familiares e amigos procura incessante, para saber onde e porque se encontrava o “desaparecido” detido. Diante desse quadro bastante conhecido pelo constituinte, que pretendia editar a Constituição que assegurasse ao cidadão todas as garantias do regime democrático, procurou ele ajustar o texto constitucional, de sorte que o cidadão só pudesse ser investigado por um e determinado órgão estatal, previsto constitucionalmente.[174]
Podemos considerar como leading case do tema em questão, o HC 81.326-7, pela 2ª Turma do STF. Em seu voto vista, o Ministro Nelson Jobim, diz que historicamente, no direito processual brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, as quais tem prevalecido a ponto de todas as iniciativas de mudar as regras nessa matéria terem sido repelidas, desde a proposta de instituir Juizados de Instrução feita pelo então Ministro da Justiça, Vicente Raó. Quando em 1953, passando pela elaboração da Constituição de 1988, pela feitura da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até a proposta de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao parquet.[175]
Como vimos, a análise do então ministro não nos deixa dúvida. A investigação que o Ministério Público vem fazendo é inconstitucional. Se já ocorreram várias tentativas em atribui tais poderes pelas vias legais, com projetos de lei e emendas constitucionais, e todas foram negadas, é porque não existe tal atribuição constitucional. Caso existissem, não seriam necessárias tantas iniciativas no sentido de tal atribuição. Os legisladores constituintes e ordinários sempre rejeitaram a ideia de transformar o Ministério Público em “grande inquisidor”, reservando a ele o papel superior de controlador/fiscalizador das atividades policiais. Destarte, o Ministro Jobim, que foi parlamentar constituinte, afirma, com autoridade e segurança de quem faz a interpretação autêntica, que a mens legis das normas em vigor é, seguramente, na direção de manter as investigações criminais com atribuição exclusiva da polícia judiciária.[176]
De acordo com a Desembargadora Federal, Suzana Camargo, devemos relembrar que vivenciamos um sistema jurídico que, embora sua unidade absoluta seja uma utopia, dada a vastidão, complexidade e multiplicidade das normas, incumbe ao intérprete realizar sempre que possível, a compatibilizarão das normas, afastando as antinomias. Segundo seu voto, o ordenamento jurídico não representa um mero amontoado de normas destituídas de sincronia e de vínculos gregário, ele deve ser concebido com um sistema normativo dotado de unicidade e harmonia, pelo que as normas que o integram hão de ser interpretada de molde a que umas não excluam as outras.[177] Conforme dito, as interpretações devem ser compatíveis com o ordenamento, pois o Brasil adotou o sistema de investigação preliminar policial, logo, conceder poderes investigatórios ao Ministério Público causa uma antinomia indesejada, o que não contribui para a unidade e harmonia do ordenamento jurídico.
Daí, de pronto a inafastabilidade da interpretação conjugada das preceituações constitucionais respeitantes às atuações das polícias civis, especialmente como polícia judiciária (art. 144, IV, e §4º, CF) e do Ministério Público no tocante às “diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial” (art. 129, VIII CF) e, ao “controle externo da atividade policial” (art. 129, VII CF). O §4º da primeira dessas indicadas disposições não deixa qualquer margem de dúvida a respeito de que às polícias civis “incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”, tal clareza não reclama qualquer esforço (in claris cessat interpretatio). Do mesmo modo, a simples leitura do art. 129, onde se tem que é dado ao Ministério Público “requisitar a realização de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”, supervisionando toda a atuação desenvolvida na tramitação deste, isto é, controlado externamente a “atividade policial”. [178]Como vemos, novamente o legislador foi muito claro. Ele utilizou os verbos “requisitar” e “instaurar”, não deixando margens para possíveis interpretações extensivas, tendo em vista a clareza das expressões.
A constituição atribui ao Ministério Público a função de exercer o controle externo da atividade policial (CF, art. 129, VII) e não de substituí-la. Se à referida instituição cabe a incumbência de investigar, quem irá fiscalizá-la? A ausência da fiscalização nos traz à tona a figura do super poder a uma instituição, o que não cabe no sistema democrático adotado pelo ordenamento. A Carta de 1988 consagrou o sistema de freios e contrapesos entre as diversas instituições e poderes existentes no ordenamento pátrio, de forma que tivesse sobre si uma forma de controle externo. Nesse sentido, tal sistema de fiscalização é típico de qualquer Estado Democrático. Isso se deve ao fato de que todos se sujeitam aos mecanismos de controle recíprocos, de modo a evitar a exorbitância por parte de cada um, sem que incorra na censura e correção por parte dos demais.[179] Nesse sentido, trazemos a colação a palavra do mestre Afrânio da Silva Jardim: “Temos asseverado, em outras oportunidades, que o verdadeiro Estado de Direito não pode prescindir de mecanismos de controle de seus órgãos públicos. Este controle deve ser efetivado seja pelas instituições da sociedade civil, de forma difusa, sejam pelos próprios órgãos estatais”.[180]
Além destes dispositivos constitucionais, aqueles que se posicionam a favor da investigação, utilizam-se de legislações infraconstitucionais. A LC 75/93, em seu art. 7º, incumbir-lhe, “… sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais: I – instaurar inquéritos civis e outros procedimentos administrativos correlatos; II – requisitar diligencias investigatórias e a instauração de inquérito policial, e inquérito policial militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas, III – requisitar à autoridade competente a instauração de procedimentos administrativos, ressalvados os de natureza disciplinar, podendo acompanhá-los e produzir provas”. Na mesma linha ainda, a Lei Orgânica Nacional 8.625/93, ao regulamentar a matéria, restringe a atuação ministerial à instauração de “inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes…” Evidenciando-se, que estes nada têm a ver com a investigação criminal.[181]
Cabe salientar ainda crítica à Teoria dos Poderes Implícitos, mencionada pelo Ministro Joaquim Barbosa, como dito aqui anteriormente. Ao nosso ver, tal interpretação seria uma tentativa de ludibriar a todos. Se quem pode o mais pode o menos, aquele que profere sentença criminal também pode oferecer a denúncia. A doutrina dos poderes implícitos, invocada pelo Ministério Público, só poderia ser aplicada se a Constituição não atribuísse à Polícia função exclusiva. Não se pode tentar desestabilizar o equilíbrio dos poderes inseridos na Constituição sem que haja, previamente, ampla e democrática discussão no Congresso Nacional.[182] Tal teoria nunca pode ser admitida no ordenamento democrático. Caso contrário, todos poderíamos nos valer de indeterminados poderes, já que o Congresso determina a vontade do povo, logo ao povo tudo poderia.
Nesse derradeiro enfoque, insta ao analista do tema considerar, também, que a realização da investigação criminal pelo Ministério Público consubstancia-se numa atuação afrontosa do due process of law, e, especificamente, das preceituações contidas nos incisos LIV e LV do art. 5º da CF. No tocante à primeira parte da asserção, não constituirá demasia, por certo, a relembrança de que o processo somente se presenta como legalmente devido, quando conjugadas a elaboração regular e correta da lei, envolta de razoabilidade, sendo de justiça e enquadramento nos preceitos constitucionais pertinentes, a sua aplicação, mediante instrumento hábil à sua concretização e realização, que é o processo, e a asseguração, neste a paridade de armas, entres as partes, visando à igualdade substancial. E, quanto à outra, tem-se, a teor do referido inciso LV, a inafastabilidade de observância, em favor dos “acusados em geral”, do contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, em qualquer processo judicial ou administrativo.[183]
Assim sendo, à evidência que, mesmo para os que entendem ser admissível, apenas, a efetividade da defesa no âmbito da investigação criminal, no qual não haveria lugar para o contraditório, a realização desta pelo Ministério Público implica, inequivocamente, inadmissível desequilíbrio entre as partes na persecutio criminis. Realmente, ainda que se tenha o “absurdo psicológico” de o membro de o parquet ser, ao mesmo tempo, “um advogado sem paixão” e um “juiz sem imparcialidade”; não há como desconsiderar que quem não é juiz, em sede processual, assume a posição de parte. Daí, porque seria, como de fato é, um contrassenso a outorga, a sujeito parcial, qual seja o órgão ministerial, do poder de realizar a investigação criminal, colhendo elementos probatórios determinantes de acusação preconcebida, numa insólita atuação, posto que dirigida ao resultado exitoso de subsequente postulação condenatória.[184]
Logo, não deve existir qualquer instituição superpoderosa, mesmo que a intenção dos membros do Ministério Público seja a melhor possível. A investigação criminal isoladamente, sem qualquer vigilância ou fiscalização, significaria quebrar a harmônica e garantista investigação de uma infração penal. Mais do que isso representaria, como de fato representa, uma ditadura ministerial, na fase pré-processual da persecutio criminis, com afronta aos direitos e garantias constitucionais do investigado, e determinante da ilicitude de toda a sua atuação, e, outrossim, da nulidade dos atos praticados, bem como de todos os que deles venham a ser consequentes.[185]
A posição que configuraria o Ministério Público, nessas atuações, sem uma instituição quem o fiscalize (já que a mesma é responsável por tal ato), seria uma posição totalitária, o que nos converge às primeiras preocupações, que é a do Estado Democrático de Direito. Embora a Constituição não tenha feito de forma explícita, ela adotou o sistema acusatório. Conferiu ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, consagrando o devido processo legal, a imparcialidade do órgão julgador, a ampla defesa, o contraditório, dentre outras garantias. O sistema acusatório é expressão da democracia. Nesse sentido, leciona Geraldo Prado:
“O processo penal não pode fugir, na essência, à estrutura do Estado e da sociedade onde está falado a atuar. (…)A estrutura democrática se contrapõe à forma autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal democrático as funções acabam distribuídas entre os órgãos distintos obedecendo esta mesma lógica”.[186]
Não podemos nos esquecer, que a problemática que estamos aqui desenvolvendo já ocorre no ordenamento atual. O Ministério Público registra, investiga e denuncia, quando não raro, antecipam pela imprensa, “sentença penal irrecorrível” proferida em desfavor de quem há de ter preservado a presunção de inocência, como determina a Constituição da República. Nesse passo, principalmente no atinente às inescrupulosas, às antiéticas e às sensacionalistas revelações midiatizadas, por vezes fornecidas sem o consentimento de ninguém (Os veículos de comunicação, sempre ávidos por furos de reportagem, são testemunhas vivas do que afirmamos, tendo como exemplo as declarações do então, na época, Ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil da Presidência da República, acerca do vazamento clandestino de notícias provenientes de processos sigilosos), devemos salientar, em honra à importante instituição e à maioria de seus integrantes, que este procedimento não é por todos adotado, mas eles “aparecem mais”, talvez porque, tenhamos um interesse que envolve tal “midiatização”.[187]
A mídia a todo o momento fomenta o povo, insurgindo-o contra o sistema, dizendo o mesmo ser injusto, pouco penoso, e que apenas agracia a minoria. Porém, nós, atuantes na doutrina processualista, não podemos nos deixa levar por argumentos tão insólitos. A criminalidade verificada nos jornais não pode ser capaz de desestruturar todo um sistema, construído há anos, em meio a tantas lutas e sofrimentos. A correta aplicação da lei não significa atender aos reclamos da opinião pública, que, muitas vezes é manipulada pela mídia interesseira ou, pior, movida por interesse político-econômico escusos. O exagero das normas esparsas, como ocorre no Brasil, leva o Estado ao descrédito no campo penal, diante de sua incapacidade de aplicar a lei a todos os crimes. Surge a política do etiquetamento e a polícia escolhe os crimes que serão objetos de investigação. Isso leva à fuga da jurisdição, à justiça privada. Os bens jurídicos tutelados não podem ser escolhidos por darem mais audiência, ou por qualquer outro interesse econômico.[188]
Sobre a eficiência do direito penal e do processo penal num modelo garantista, Ferrajoli arremata: “Para o direito penal, há uma submissão da lei penal à lei fundamental, e o sistema processual será eficiente se realizar a tutela dos direitos fundamentais…”.[189] A crítica que é feita ao garantismo no campo da efetividade da prestação jurisdicional reside em conciliar eficiência e o respeito ao sistema de garantias. Ferrajoli tem a resposta, ao apregoar que as expressões “garantias “e “eficiência” tendem a se confundir, na medida em que devem traduzir a menos intervenção penal possível e a máxima realização da proteção dos direitos fundamentais. Não é pela punição a um maior número de pessoas, muitas vezes por infrações ridículas, que se pode dizer que a temos justiça e que a mesma é eficiente.[190]
Assim vem se justificando a atuação do Ministério Público. Na busca pelo crescente anseio da sociedade em punir os criminosos, na busca pela efetividade do sistema penal, na busca por reprimir o crescimento de organizações criminosas, enfim. Inúmeras questões que afetam diretamente os direitos fundamentais que não podem ser resolvidas sem qualquer discussão constitucional.[191] A busca pela verdade real. Este é o limite da atuação ministerial. Dizem ser superiores às atuações policiais, pois as mesmas estão em volta a corrupções, fraudes, com estrutura arcaica, sem meio técnicos para uma boa investigação. Mas, neste contexto pode-se observar que o homem é incapaz de reconstruir um fato histórico, porque o tempo encarregou-se de extingui-lo no exato instante em que o tornou passado, ou seja, o instante não é mais o presente. Portanto, não pode existir uma verdade sobre um fato que está no passado, por mais que a doutrina insista em denominar a solução judicial sobre um caso de “reconstrução da verdade”. Qualquer estudo sobre a verdade, concluirá que a mesma não pode ser alcançada.[192]
A questão que ainda se coloca pertinente à realidade diuturna da efetividade da investigação ministerial. Como já abordado aqui, a investigação realizada pelo parquet foi emblemática. Mas, devemos observar que foram alguns casos. Logo, avulta, nesse particular, a falta de estrutura do Ministério Público para realizá-las, sendo certo que, outrossim, que não se pode considerar como efetivamente existente, pelo simples fato de alguns membros do Ministério Público, ávidos por promoção pessoal e de publicidade, e até mesmo desprezando inafastáveis valores éticos, assumirem a condição de inquisidores, travestindo-se de “investigadores”.[193] Há de se lembrar que não foram quaisquer casos que o Ministério Público optou por investigar, mas sim aqueles com, sem dúvida, maior repercussão geral. Mais uma vez desrespeitando mais uma vez a carta constitucional, pois o “João da silva”, em nada se diferencia, frente aos direitos fundamentais, do ex- prefeito de Santo André, o Celso Daniel, ou do Juiz Nicolau dos Santos Neto. Porque só eles foram investigados pelo Ministério Público? E caso eles venham a participar realmente de todas as investigações, como dizer ter direitos, será que a mesma será tão brilhante assim?
De sorte que como vemos, apesar de corroborarmos pela inconstitucionalidade da investigação ministerial, ela vem sendo feita, necessitando urgentemente de regulações. Há mais de dez anos tal problema se encontra sem uma posição definitiva do Superior Tribunal Federal. Muitos recursos e habeas corpus interpostos, sem que a jurisprudência conseguisse estabelecer uma real posição jurisprudencial. Vejamos como andam os Tribunais a respeito do tema.
5.3 Atual posicionamento jurisprudencial
5.3.1 STJ
O Superior Tribunal de Justiça vem decidindo de forma reiterada e pacífica pela possibilidade ampla de o Ministério Público realizar investigação criminal de forma direta. Ambas as Turmas com competência criminal são unânimes neste sentido, não havendo nota destoante seque na Corte Especial, sendo tema de súmula:
“S. 234 STJ: “A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”.
Exemplos desta orientação jurisprudencial são abundantes, sendo possível selecionar trechos das decisões mais contundentes:
“A legitimidade do Ministério Público para realizar diligências investigatórias decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar 75/93. É consectário lógico da própria função do órgão ministerial – titular exclusivo da ação penal pública – proceder à coleta de elementos de convicção, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indícios de autoria. A competência da polícia judiciária não exclui a de outras autoridades administrativas. Inteligência do art. 4º, parágrafo único do Código de Processo Penal. Precedente do STJ. No caso dos autos, a denúncia foi lastreada em elementos coligidos pelo Ministério Público a partir do resultado de trabalhos realizados por Comissão Parlamentar de Inquérito do Poder Legislativo, além de depoimentos e documentos levantados pelo próprio órgão ministerial. Inexistência de ilegalidade.” (Rel. Ministra Laurita Vaz, RHC, 38.181 – BA, 5ª Turma).
“Na esteira de precedentes desta corte, malgrado seja defeso ao Ministério Público presidir o inquérito policial propriamente dito, não lhe é vedado, como titular da ação penal, proceder investigações. A ordem jurídica, aliás, confere explicitamente poderes de investigação ao Ministério Público – art.129, incisos VI, VII, da CF, e art.8º, incisos II e IV, e §2º, da Lei Complementar nº75/93.” (RHC 15469/PR, 2004, sublinhamos).
Em recentíssimo acórdão, publicado em 18.08.2016, a 6ª Turma do STJ, através do Min Rel. Nefi Cordeiro, assentou que o Ministério Público dispões de atribuição para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, a investigação de natureza penal. Segue trecho:
“PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. POSSIBILIDADE. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE ELEMENTOS CONCRETOS A JUSTIFICAR O DEFERIMENTO DA MEDIDA. NULIDADE DAS PRORROGAÇÕES SUBSEQUENTES E PROVAS DERIVADAS.
1. Restou pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 593.727, submetido ao rito da repercussão geral, o entendimento de que o Ministério Público dispõe de atribuição para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal. 2. É exigida da gravosa decisão de quebra do sigilo telefônico a concreta indicação dos requisitos legais de justa causa e imprescindibilidade dessa prova, que por outros meios não pudesse ser feita. 3. Diante da ausência de fundamentação casuística, em genérico decreto de quebra cabível a qualquer procedimento investigatório, é reconhecida a nulidade dessa decisão e das decisões subsequentes de prorrogação e de ampliação, assim como das provas derivadas, estas a serem aferidas pelo juiz do processo. 4. Calcando-se a decisão em questão de caráter objetivo, mister a extensão dos efeitos benéficos do julgado aos demais corréus atingidos pela decisão de quebra do sigilo telefônico ora anulada, nos moldes do art. 580 do CPP. 5. Recurso em habeas corpus parcialmente provido, para declarar nula a decisão inicial de quebra do sigilo telefônico na Ação Penal n. 3007643-17.2013.8.26.0320, assim como das prorrogações e ampliações subsequentes, bem assim das provas consequentes, estas a serem aferidas pelo magistrado na origem, devendo o material respectivo ser retirado dos autos, estendendo os efeitos dessa ordem aos demais corréus atingidos pela decisão de quebra do sigilo telefônico ora anulada.”
5.3.2 STF
A questão já esteve em debate perante o Supremo Tribunal Federal em mais de uma ocasião. E agora, juntamente com o STJ, o plenário do STF, submetido à repercussão geral, decidiu pacificar a emblemática discussão, reconhecendo o poder investigatório do Ministério Público, contudo, traçando limites. O julgamento emblemático foi o RE 593727, o qual foi apreciado no dia 14.05.2015.
Os parâmetro trazidos pelo STF para que a investigação conduzida diretamente pelo MP seja legítima são os seguinte:
– Devem ser respeitados os direitos e garantias fundamentais dos investigados;
– Os atos investigatórios devem ser necessariamente documentados e praticados por membros do MP;
– Devem ser observadas as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição, ou seja, determinadas diligências somente podem ser autorizadas pelo Poder Judiciário, nos casos em que a CF/88 assim exigir (ex: interceptação telefônica, sigilo bancário, etc.);
– Devem ser respeitadas as prerrogativas profissionais asseguradas por lei aos advogados;
– Deve ser assegurada a garantia prevista na Súmula Vinculante 14 do STF (É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”);
– A investigação deve ser realizada dentro de prazo razoável;
– Os atos de investigação conduzidos pelo MP estão sujeitos ao permanente controle do Poder Judiciário.
Inclusive, a foi fixada uma tese geral, já que foi decidido em sede de repercussão geral. Segue tese fixada pela Corte:
“O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”. STF. Plenário. RE 593727/MG, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/5/2015.
Conclusão
O presente trabalho procurou questionar a prática que vem ocorrendo constantemente, pois, é sabido que tendo poderes ou não, o Ministério Público já atua diretamente nas investigações. Mesmo tendo sido decidido pelo plenário do STF como legítimas as investigações, a licitude dessas provas incorre numa grande incerteza. Como discutido anteriormente, o nosso sistema penal é o acusatório, e burlar este sistema com interpretações extensivas, analógicas dos arts.144 e 129, nos traz uma grande insegurança jurídica. Os Tribunais Superiores não podem ser os únicos responsáveis pelos contornos do nosso sistema. É preciso que o Poder Legislativo entre em ação, e regule de forma ampla a investigação criminal no Brasil.
Buscamos abranger a visão do referido tema, iniciando o trabalho com o mais importante item, que é o Estado Democrático de Direito. Aqui encontramos a base de toda discussão, que muitas vezes passa despercebida na argumentativa. Deste item, passamos para outro de igual importância, que foi o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Novamente importantíssima abordagem, que muitos esquecem, na ânsia da punição e do direito penal máximo.
O atual sistema penal perpassa por problemas que vemos e sentimos a todo o momento. Como vimos, a solução dada por muitos é aumentar a quantidade de membros e instituições na investigação, para que possamos deter os criminosos. Contudo, esta solução torna-se um problema por dois motivos. Primeiro porque estaremos combatendo as consequências da criminalidade, e não a causa. Segundo que já existe uma instituição responsável por esta determinação, e que precisa de muitos reparos, ajustes e investimentos.
Não é incluindo o Ministério Público no pólo investigativo que vamos melhorar a sistema penal brasileiro. E sim remunerando melhor delegados e policiais, investindo na instituição, nos treinamentos, na cultura, no armamento, no estudo dos mesmos. Como já dito anteriormente, não são soluções pontuais que mudarão o sistema. Aliás, o mesmo não precisa ser mudado, ele precisa é ser creditado. Mutatis Mutantis, não são penas maiores que diminuirão a criminalidade, ou não será reduzindo a maioridade penal que teremos mais segurança no país. A questão anterior, ela é social.
Enquanto isso, estamos envoltos a argumentos muitas vezes oligárquicos, eleitoreiros, sobretudo quando a mídia se encontra por perto. E, aí que o Ministério Público ganha forças (se é que ele precisa de mais alguma), no sentido de que a segurança “faliu”, a polícia judiciária “faliu”, é corrupta, não está equipada, preparada. Então porque não melhorá-la? Optar por mais uma instituição na investigação não resolveria o problema, pois além de não privilegiar uma instituição que já existe e precisa de atenção, estaríamos criando mais um problema, pois teríamos uma instituição investigatória sem fiscalização, ávida por violar garantias constitucionais, fazendo de tudo para solucionar os casos e punir os criminosos.
Todavia, caso tal “solução” seja de suma importância, que a mesma seja regulada urgentemente, através do Poder Legislativo, eleito democraticamente pelo povo. Pois a forma com que se tem levado esse procedimento, sem ao menos um órgão fiscalizador, capaz de limitar os atos ministeriais, estaremos rasgando todos os preceitos que fundam o Estado Democrático de Direito, e consequentemente, a Constituição Brasileira.
Informações Sobre o Autor
Juliana Vieira Bernat de Souza
Advogada Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro