Resumo – Dentre as transformações geradas pelo processo de integração política e econômica dos países nas últimas décadas estão as que incidem no direito penal. O roteiro apresentado tem por objetivo promover o despertar para a reflexão sobre tais implicações, o que possibilitará o questionamento pessoal acerca da opção pelo discurso penal máximo vastamente propagado.
Palavras-chave: Globalização; Expansionismo Penal; Direitos Fundamentais; Flexibilização.
Sumário: Introdução. 1.Reflexos da globalização no direito penal. 2. O direito penal em expansão. 3. À título de reflexão: Nós, inimigos no direito penal pós-globalização. Referências.
INTRODUÇÃO
Vive-se em uma sociedade que é alvo de um constante processo de transformações políticas, econômicas, sociais, filosóficas, religiosas etc., em sua maioria frutos da globalização e consequente alteração de ideologias. Estas modificações também repercutem no âmbito jurídico e, dentro dele, na área do direito criminal, cuja reflexão embasa o presente enredo.
Nesse contexto, se mostra importante analisar de que modo o direito penal se posiciona frente ao processo de integração econômica dos Estados, verificando-se se a postura adotada atende às exigências de proteção e se, ao mesmo tempo, respeita os limites que devem permear um Estado Democrático de Direito.
A reflexão acerca das implicações da globalização nesse ramo do direito permitirá visualizar (provavelmente de modo mais nítido) que a opção pelo discurso do direito penal máximo vastamente propagada não é a melhor.
1. Reflexos da globalização no direito penal
Dentre as diversas consequências geradas pelo processo de integração econômica dos Estados-nação, estão as de ordem jurídica e, dentro destas, as que incidem na esfera do direito penal. As exigências da globalização, a exemplo da aceleração da produtividade com vistas ao lucro rápido, implicaram num enorme prejuízo a princípios básicos que respaldam o ser humano como sujeito de direitos. De acordo com Zaffaroni (2011, p. 53)
“A globalização foi precedida por uma revolução tecnológica que é, antes de tudo, uma revolução comunicacional. Este formidável avanço permite que se espalhe pelo planeta um discurso único, de características autoritárias, antiliberais, que estimula o exercício do poder punitivo muito mais repressivo e discriminatório, agora em escala mundial.”
Essa nova realidade que prioriza, a qualquer custo, o ganho (e acúmulo) desenfreado de capital, recebe colaboração de todos os campos, inclusive do sistema penal por meio da flexibilização de direitos. Trata-se do expansionismo do direito penal.
“Diferentemente do capital produtivo, o capital globalizado não é manejado por empresários, mas sim por administradores de conglomerados, tecnocratas que devem obter o maior lucro possível ao menor tempo, para evitar que seus investidores busquem outro tecnocrata mais eficaz a quem confiar seus recursos. É por isso que esses operadores vão perdendo seus escrúpulos, fazendo com que sua atividade entre, com frequência, numa zona que se confunde com a delinquência econômica, e algumas vezes caem, vítimas de seus embates com outros competidores, provocando catástrofes financeiras com surpreendentes desmoronamentos de impérios de papel”. (ZAFFARONI, 2011, p. 62-63).
As manifestações desta expansão decorrem daquilo que Silva (2007, p. 47) chama de porta de entrada da globalização no sistema penal: a política econômica e, de acordo com Diniz Neto (2010, p. 211), abrangem a administrativização do direito penal, regionalização do direito penal e progressiva desconstrução do paradigma liberal do direito penal.
A administrativização do direito penal é verificada quando o conteúdo material dos tipos penais passa por modificações: são introduzidos novos objetos sob a proteção do direito penal e, ao mesmo tempo, antecipam-se as fronteiras deste âmbito de proteção. Desse modo, transita-se rapidamente de um modelo de crimes de lesão a bens jurídicos individuais, para um modelo de crimes de perigo de lesão a bens jurídicos supraindividuais. (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 121).
Assim, como efeito da globalização, os objetos de incidência de proteção do direito penal passaram a superar aqueles do momento pré-industrial. O novo direito penal preocupa-se não apenas com os bens de ordem individual, mas também com aqueles denominados bens metaindividuais ou coletivos. Silva Sanchéz (2001, p. 122) ensina que
“[…]Junto a los delitos clássicos, aparecen otros muchos, em el ámbito sócio-económico de modo singular, que en poco recuerdan aquéllos. […]La protección penal del medio ambiente es uno de los ejemplos más claros de esta tendencia.”
Ao lado do bem jurídico meio-ambiente, muitas vezes atingido pela nefasta ação de empresas, figura como objeto de proteção dessa nova postura do direito penal a saúde pública, possível alvo de danos nucleares, inclusive.
Silva (2007, p. 44) entende que casos como o tráfico de drogas, tráfico de armas e material estratégico, tráfico de automóveis, furto de cartões de crédito, escravidão de crianças, adolescentes e mulheres para fins de exploração sexual e pornografia e tráfico de imigrantes clandestinos, são exemplos de atividades criminosas cujo incremento permite perceber o caráter coletivo dos danos que podem gerar.
O surgimento de novos bens jurídicos fez com que o direito penal, ao tutelá-los, extrapolasse as garantias previstas em sua sistemática, flexibilizando princípios como o da intervenção mínima e da ofensividade e implicando, com isso, na sua simbologia enquanto ramo do direito.
Neste contexto, o direito penal passou a adotar uma política preocupada não somente com os delitos de dano, mas também com os de perigo, ou seja, as condutas passaram a ser punidas sem que um dano efetivo ao bem jurídico fosse verificado, bastando, para tanto, apenas um perigo de dano. Além disso, ampliou-se a criação de tipos penais abertos e, desse modo, se agravou a arbitrariedade e o excesso de aplicação da lei penal.
Outro ponto desta modificação da atuação do direito penal foi a opção pela responsabilização penal objetiva, sempre abominada pelos sistemas penais garantistas, o que também provocou uma série de ofensas a princípios-chave do direito penal. Zaffaroni esclarece que
“Devido principalmente a esse fenômeno, estimulou-se uma legislação inquisitória, contendo elementos provenientes da Idade Média (espiões, delatores, procedimentos secretos, posições de garantias absurdas etc.), aplicável a um nebuloso conjunto de infrações, designadas genericamente como crime organizado, que motivou um número incrível de instrumentos internacionais”. (2011, p. 62-63).
A tutela de novos bens jurídicos resultou numa outra característica do expansionismo penal: a regionalização do direito penal, isto é, surgiu a preocupação com a proteção de bens jurídicos cuja ofensa extrapola as fronteiras do Estado, principalmente quando fruto da atuação de organizações criminosas.
Pelo fato das atividades criminosas desenvolvidas na era da globalização terem a possibilidade de ultrapassar os limites territoriais de um Estado (a exemplo do tráfico de drogas, tráfico de substâncias passíveis de causar danos nucleares, terrorismo etc.), a cautela com a proteção dos bens jurídicos penais também foi além: não se restringiu ao âmbito interno de atuação de um país e de seu correspondente ordenamento jurídico. Isso não era mais suficiente. Assim, os Estados-nação passaram a integrar-se também nesse sentido.
Neste ponto, merece menção a problemática da autonomia da ordem jurídica interna de um Estado frente às soluções de direito criminal apresentadas no cenário de integração internacional.
Cada país possui seu próprio direito positivado, sua própria evolução da dogmática penal e, o mais conflitante: seus próprios problemas quanto à criminalidade. Diante disso, a adoção de medidas internacionais com o objetivo de combater a criminalidade pode vir a contrariar o direito interno de cada Estado, gerando como consequência, por exemplo, a supressão de direitos e garantias fundamentais estabelecidos em sua Lei fundamental. (SILVA, 2007, p. 45).
Além disso, “[…]la tendencia a la universalización favorece hoy por hoy – al llevarse a cabo de modo parcial – um pronóstico global más de expansión que de restricción del Derecho penal”. (SILVA SANCHÉZ, 2001, p. 111).
Por tudo, percebe-se que o fenômeno da expansão do direito penal incide no efetivo afastamento deste ramo do direito das linhas do modelo liberal desenvolvido a partir do Iluminismo, com uma total relativização de seus princípios, à qual já se aludiu anteriormente. (DINIZ NETO, 2010, p. 211).
Silva (2007, p. 53–59) ainda aponta como traços característicos dessa expansão, a institucionalização da segurança, o descrédito das demais esferas de proteção e a atuação dos gestores atípicos da moral, como é o caso, por exemplo, de Organizações não governamentais e associações atuantes na defesa de determinados grupos.
Estas últimas características do processo de expansão do direito penal se tornam evidentes sobretudo quando se analisa um outro tipo de criminalidade derivada do processo de globalização: a microcriminalidade.
Diferentemente da desempenhada no âmbito das grandes empresas, por organizações criminosas e com alto vulto de capital envolvido (macrocriminalidade), a microcriminalidade passa a ser desenvolvida, principalmente, pelo corpo proletariado não absorvido pelo sistema. Silva Sanchéz explica:
“La globalización como fenómeno económico no se limita, efectivamente, a producir o facilitar la actuación de la macrocriminalidad. También incide sobre la microcriminalidad, em tanto que criminalidad de masas. Así, los movimientos de capital y de mano de obra que se derivan de la globalización de la economia determinan la aparición em occidente de capas de subproletariado, de las que puede proceder um incremento de la delincuencia patrimonial de pequeña y mediana entidad”. (2001, p. 104).
Com efeito, as alterações promovidas em regras gerais do direito penal em decorrência da nova criminalidade, também incidem nas modalidades clássicas de violência. Nas palavras de Silva Sanchéz (2001, p. 91), “[…]las modalidades clásicas de la delincuencia vean modificadas las reglas por las que se han venido rigiendo”.
Destarte, apontados os traços característicos da influência da globalização no direito penal, faz-se necessário analisar a postura criminal que passou a ser adotada.
2. O direito penal em expansão
Conforme verificou-se, no contexto de integração econômica entre os Estados surgiram bens jurídicos desprovidos de adequada proteção, conflitos criminais foram internacionalizados e, diante disso, uma nova postura penal foi projetada.
O direito penal expandiu sua atuação para além dos limites que deveria incidir enquanto ciência jurídica. A fim de efetivar o controle social, se impôs de maneira injustificada e arbitrária, assumindo um caráter eminentemente simbólico e instrumental.
A atuação desenfreada típica desta nova roupagem adquirida pelo direito penal resulta numa superinflação legislativa e, por consequência, na hipertrofia da produção legal em matéria criminal. Na prática isso significa a criação de condutas penais típicas inclusive quanto a comportamentos que não geram lesão aos bens jurídicos que se objetiva proteger. Greco, referindo-se ao movimento de lei e ordem, no qual o direito penal assume as características que aqui se expõe, resume:
“[…]o Direito Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas”. (2011, p. 16).
Surgem leis totalmente desarmônicas e incompatíveis entre si, com o conjunto normativo dos diplomas legais existentes, com a Constituição Federal, com instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos e, direta ou indiretamente, com princípios e garantias básicas dos indivíduos, tudo pura e simplesmente para satisfazer a falsa ideia de proteção implantada na sociedade.
Nos dizeres de Silva:
“A ampliação do rol […]acarreta na elaboração constante de leis penais assistemáticas. Assim o são, pois não se preocupam, no momento da elaboração, com a compatibilidade dessa eventual norma com o atual sistema penal garantista: não vislumbram, nem mesmo na Comissão de Constituição e Justiça (que para isso existe), se há compatibilidade entre a nova lei penal e a Constituição; se há compatibilidade com a dogmática penal existente; se a forma como foi redigida respeita a taxatividade; se já existem outras leis tutelando o mesmo bem jurídico, etc”. (2007, p. 60–61).
É de se notar que algumas das constantes implicações da incongruência cada vez mais presente nos acervos normativos são as discussões acerca de sua (in) constitucionalidade e os desdobramentos que delas decorrem, destacando-se o infindável número de processos judiciais que visam analisar a matéria e o dispêndio temporal que levam para tanto. Isso tudo sem contar as violações de direitos básicos que sofrem aqueles que encontram-se privados de liberdade dependendo do acordo ou prevalência de entendimento sobre a questão debatida para que, então, possam visualizar meios de defender-se. H. Packer (apud DIAS e ANDRADE, 1997, p. 411) elucida que
“[…]cada hora de labor da polícia, do Ministério Público, do tribunal e das autoridades penitenciárias gasta nos domínios marginais do direito criminal, é uma hora retirada à prevenção da criminalidade séria. Inversamente, cada infracção trivial ou duvidosa eliminada da lista das infracções criminais representa libertação de recursos essenciais para uma resposta mais eficaz às propriedades cimeiras do sistema penal.”
Inconteste que quando o debate envolve indivíduos e/ou situações relacionadas a crimes frutos de ações e/ou omissões vinculadas ao abuso do poder econômico, desvio de verbas (principalmente públicas), corrupção, lavagem de dinheiro, etc., o que muitas vezes só ocorre por meio da sincronia minuciosa de agentes organizados em esquemas cujo objetivo converge sempre para um mesmo fim (ganho e acúmulo de capital), as projeções práticas do expansionismo penal nem sempre são as mesmas.
Neste caso, a caminhada rumo ao poder (econômico e/ou político) e à sua manutenção encontra no direito penal um aliado. Assim, ao invés de ser utilizado para a prevenção e proteção de bens jurídicos legitimados pela Constituição Federal, agindo em prol da boa convivência social, “[…]o Direito Penal é utilizado, em muitas ocasiões, como instrumento de manutenção de privilégios e vantagens de poucos, em detrimento do restante da coletividade” (SILVA, 2007, p. 61), e os direitos fundamentais, base inseparável do Estado Democrático de Direito, são desrespeitados.
À respeito, importante é a colocação de Batista:
“Quando alguém fala que o Brasil é ‘o país da impunidade’, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões corporais, homicídios, estupros, etc.). Porém essa punição permeia principalmente o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica. Os brasileiros pobres conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem rápido emprego e desfrutem do salário mínimo (punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para discutir o salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos)”. (1990, p. 38-39).
Incoerências à parte, o fato é que, pelo menos no que se refere ao criminoso clássico (e à margem do sistema), o direito penal em expansão não se oculta. Pelo contrário: mostra sua verdadeira face e vai de encontro à proposta de princípios penais básicos identificados outrora, ou seja, vai em sentido totalmente contrário ao objetivo de limitar o jus puniendi estatal. Com isso, o sistema penal na América Latina “serve para controlar os excluídos do emprego, tornar-se brutalmente violento e as polícias autonomizadas e em dissolução sitiam os poderes políticos”. (ZAFFARONI, 2011, p. 73).
Este ramo do direito passa a ser a prima ratio e, por isso, restrito se torna o espaço para princípios como o da intervenção mínima, segundo o qual, em uma de suas vertentes, “deixa entrever a necessidade de o Direito Penal ser aplicado de forma subsidiária, tendo em vista a drasticidade de sua resposta[…]” (GRECO, 2011, p. 75), o que priorizaria a proteção de bens jurídicos por outras esferas jurídicas.
Dessa maneira, o direito penal passa a ter um caráter puramente simbólico e demagógico, baseado na falsa crença de que a desmedida criação de leis e aumento de penas atenderá aos anseios de proteção de uma população amedrontada pela criminalidade que, na verdade, é desenvolvida como reflexo de uma carência da qual também é vítima e frequentemente por sujeitos que, de alguma forma, lhes são próximos. Zaffaroni explica que
“Nas sociedades mais desfavorecidas pela globalização, como as latino-americanas, a exclusão social constitui o principal problema, pois não costuma ser controlada pela repressão direta, mas sim neutralizada, o que aprofunda as contradições internas. A mensagem vindicativa é funcional para reproduzir conflitos entre excluídos, pois os criminalizados, os vitimizados e os policizados são recrutados neste segmento, ocorrendo uma relação inversa entre a violência dos conflitos entre eles e a capacidade de coalizão e protagonismo desses mesmos atores”. (2011, p. 72)
A propagação e o estímulo da certeza de efetividade do direito penal como forma de resolução dos conflitos sociais desenvolvem-se, principalmente, pelos centros midiáticos e pelos partidos políticos que muitas vezes lhes financiam os interesses.
A mídia se ocupa em alarmar a população acerca de chocantes eventos criminosos, fazendo-o sob uma perspectiva sensacionalista. Batista (1990, p. 138) faz menção ao julgamento pela imprensa, cuja caracterização se dá quando “fatos relacionados a um processo criminal em andamento são noticiados ou comentados com teor opinativo, claro ou subliminar”. Por meio disso, “A imprensa tem o formidável poder de apagar da Constituição o princípio da presunção de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. (BATISTA, 1990, p. 138).
Os políticos, por sua vez, aproveitando-se da comoção social gerada pela veiculação de eventos chocantes, prontamente apresentam pautas aptas a resolver, de uma vez por todas, o problema da criminalidade (a exemplo dos discursos em prol da redução da maioridade penal). De acordo com Zaffaroni
“Por todos estes meios pouco éticos ou diretamente criminosos, vende-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito comum sancionando leis que reprimam acima de qualquer medida os raros vulneráveis e marginalizados tomados individualmente (amiúde são débeis mentais) e aumentando a arbitrariedade policial, legitimando direta ou indiretamente todo gênero de violência, inclusive contra quem contesta o discurso publicitário”. (2011, p. 75).
A legislação que produzem nesse sentido é desprovida de ideologia. O desastre autoritário que representa “não corresponde a nenhuma ideologia, porque não é regido por nenhuma ideia, e sim justamente pelo extremo oposto: é o vazio do pensamento”. (ZAFFARONI, 2011, p. 79). Os parlamentares produzem-na pelo receio de tornarem-se vítimas de uma publicidade que lhes seja contrária: “[…]intimidados pela ameaça de uma publicidade negativa provocam o maior caos legal autoritário – incompreensível e irracional – da história de nossas legislações penais desde a independência”. (ZAFFARONI, 2011, p. 79).
A flexibilização das garantias que devem reger qualquer Estado Democrático de Direito norteia a incidência daquilo que se denomina direito penal do inimigo, enquadrado nas linhas de funcionalistas como Roxin e Jakobs. Diniz Neto (2010, p. 210) assim destaca:
“O “novo direito penal” decorrente da necessidade de mudanças do paradigma clássico para o enfrentamento da novel realidade fenomênica da criminalidade surgida com a “sociedade de riscos”, nessa orientação, mais se aproxima das bases epistemológicas ditas funcionalistas ou normativistas, plasmadas em suas principais vertentes sistêmica (JAKOBS, 2000 e 2003) e teleológica” (ROXIN, 2002).
Reservando-se a tratativa deste assunto para outra oportunidade, dado o conjunto de detalhes que merecem pautá-lo, neste momento mostra-se suficiente apenas seu delineio. Desse modo, importa notar que o direito penal do inimigo se caracteriza, basicamente, pelo tratamento diferenciado que confere aos indivíduos considerados estranhos à sociedade, punindo-os simplesmente por aparentarem trazer perigo àqueles que o cercam, bem como por não ser possível recuperá-los do mal que lhes é inerente.
De acordo com Greco
“Dizer que a sociedade, na qual todos nós estamos inseridos, é composta por cidadãos e por inimigos, para os quais estes últimos devem receber tratamento diferenciado, como se houvesse um estado de guerra, é voltar ao passado, cuja história a humanidade quer, na verdade, esquecer.” (2011, p. 28).
Admitir o direito penal do inimigo jamais será uma resposta adequada e efetiva à criminalidade. O massacre aos direitos e garantias individuais que ele promove somente aumenta o percurso para que a sociedade alcance esse fim. Greco bem analisa que
“Não podemos afastar todas as nossas conquistas que nos foram sendo dadas em doses homeopáticas ao longo dos anos, sob o falso argumento do cidadão versus inimigo, pois que, não sendo possível conhecer o dia de amanhã, quem sabe algum louco chegue ao poder e diga que inimigo também é aquele que não aceita a teoria do Direito Penal do Inimigo, e lá estarei eu sendo preso, sem qualquer direito ou garantia, em troca de um argumento vazio e desumano”. (2011, p. 29).
Pois bem. Quem sabe quem será o inimigo de amanhã? A resposta para esta questão somente pode ser conferida por aquele que está no poder. O problema é que aquele que se encontra no poder hoje pode lá não permanecer amanhã e, com isso, a chance de ser considerado inimigo também passa a existir.
3. À título de reflexão: Nós, inimigos no direito penal pós-globalização
Refletindo a respeito do panorama apresentado, verifica-se que apesar de todas as transformações decorrentes da globalização, jamais pode ser dado espaço para a relativização de direitos cujo reconhecimento exigiu décadas a fio.
Entretanto, é o que vem ocorrendo com a atual postura criminal, cercada cada vez mais por um caráter simbólico, instrumental e sem limites por parte dos Poderes. O Estado, por meio da “ação, negligência ou omissão, extermina ou tolera que se exterminem, direta ou indiretamente, as ‘classes perigosas’, os inúteis ou incômodos grupos marginalizados” (BATISTA, 1990, p. 49).
Diante disso, por meio de uma análise ainda superficial das transformações sofridas pós-globalização, é possível perceber que a flexibilização de direitos e garantias promovidas pela expansão do direito penal no qual se insere, inclusive, a concepção de inimigo, apenas encontra lugar quando aquele que recebe os reflexos desse sistema é o outro, pois “somente concebemos a aplicação de um Direito Penal Máximo quando tal raciocínio não é voltado contra nós mesmos, contra nossa família, contra nossos amigos[…]” (GRECO, 2011, p. 16).
Portanto, a hipótese inimaginável de um dia nos encontrarmos na mesma situação que a daquele que hoje é rotulado como inimigo deve fazer parte de nossas reflexões para que, desse modo, talvez enxerguemos que a figura de um aparente algoz é, na verdade, vítima de um direito penal pós-globalização.
Informações Sobre o Autor
Adelle Rojo
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília UNIVEM; Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina UEL; Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília UNIVEM