Resumo: O homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, o qual, corriqueiramente, se materializada na busca pela felicidade, competindo à sociedade, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizando a todos viver juntos, de forma benéfica. Impostergável se faz o reconhecimento do afeto e da busca pela felicidade, enquanto valores impregnados de juridicidade, porquanto abarcam a todos os indivíduos, suplantando qualquer distinção, promovendo a potencialização do superprincípio em destaque. Ademais, em se tratando de temas afetos ao Direito de Família, o relevo deve ser substancial, precipuamente em decorrência da estrutura das relações mantidas entre os atores processuais, já que extrapola a rigidez jurídica dos institutos consagrados no Ordenamento Pátrio, passando a se assentar em valores de índole sentimental, os quais, conquanto muitas vezes sejam renegados a segundo plano pela Ciência Jurídica, clamam máxima proteção, em razão das peculiaridades existentes. Destarte, cuida reconhecer que o patrimônio, in casu, não é material, mas sim de ordem sentimental, o que, por si só, inviabiliza qualquer quantificação, sob pena de coisificação de seu detentor e aviltamento à própria dignidade da pessoa humana. Neste passo, o presente se debruça em analisar a influência do princípio da vedação ao retrocesso social em sede de liberdade de constituição familiar.
Palavras-chaves: Liberdade de Constituição Familiar. Vedação ao Retrocesso Social. Busca pela Felicidade. Vetor de Interpretação.
Sumário: 1 Ponderações Introdutórias: Breves Comentários à Evolução da Acepção de Dignidade da Pessoa Humana; 2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro; 3 Do Reconhecimento ao Direito Constitucional de Constituir Família: Os Influxos da Dignidade da Pessoa Humana na Pluralidade Familiar; 4 Liberdade de Constituição Familiar e o Princípio da Vedação ao Retrocesso Social
1 Ponderações Introdutórias: Breves Comentários à Evolução da Acepção de Dignidade da Pessoa Humana
Em uma primeira plana, cuida assinalar que a acepção originária de dignidade rememora a priscas eras, tendo seu sentido evoluído, de maneira íntima, com o progresso do ser humano. Em sua gênese, as bases conceituais da dignidade se encontravam sustentadas na reflexão de cunho filosófico, proveniente de um ideal estoico e cristão. Por oportuno, prima evidenciar que o pensamento estoico, ao edificar reflexões no que tange ao tema, propunha que “a dignidade seria uma qualidade que, por ser inerente ao ser humano o distinguiria dos demais. Com o advento do Cristianismo, a ideia grande reforço, pois, a par de ser característica inerente apenas ao ser humano”[1]. No mais, ainda nesta trilha de raciocínio, não se pode olvidar que o pensamento cristão, em altos alaridos, propugnava que o ser humano fora criado à imagem e semelhança de Deus.
Ora, salta aos olhos que aviltar a dignidade da criatura, em último estágio, consubstanciaria violação à própria vontade do Criador. Com efeito, a mensagem, inicialmente, anunciada pelo pensamento cristão sofreu, de maneira paulatina e tímida, um sucedâneo de deturpações que minaram o alcance de suas balizas, maiormente a partir da forte influência engranzada pelos interesses políticos. Desta sorte, uma gama de violações e abusos passou a encontrar respaldo e, até mesmo, argumentos justificadores, tendo como escora rotunda o pensamento cristão, subvertido e maculado pelas ingerências da ganância dos detentores do poder.
Nesse prisma, impende realçar que o significado da dignidade da pessoa foi, de modo progressivo, objeto de construção doutrinária, sendo imprescindível sublinhar as ponderações, durante a Idade Média, de São Tomás de Aquino que, na festejada obra Summa Theologica, arquitetou significativa contribuição, precipuamente quando coloca em evidência que “a dignidade da pessoa humana encontra fundamento na circunstância de que o ser humano fora criado à imagem e semelhança de Deus”[2], ajustado com a capacidade intrínseca do indivíduo de se autodeterminar. Resta evidenciado, a partir do cotejo das informações lançadas alhures, que o ser humano é livre, orientando-se, negrite-se com grossos traços, segundo a sua própria vontade.
Ainda no que concerne ao desenvolvimento dos axiomas edificadores da acepção da dignidade da pessoa humana, durante o transcurso dos séculos XVII e XVIII, cuida enfocar a atuação de dois pensadores, quais sejam: Samuel Pufendorf e Immanuel Kant. Aduzia Samuel Pufendorf que incumbia a todos, abarcando o monarca, o respeito da dignidade da pessoa humana, afigurando-se como o direito de se orientar, atentando-se, notadamente, para sua razão e agir em consonância com o seu entendimento e opção. Immanuel Kant, por sua vez, “talvez aquele que mais influencia até os dias atuais nos delineamentos do conceito, propôs o seu imperativo categórico, segundo o qual o homem é um fim em si mesmo”[3]. Destarte, não pode o homem nunca ser coisificado ou mesmo empregado como instrumento para alcançar objetivos.
Afora isso, destacar se faz necessário que as coisas são dotadas de preço, já que podem ser trocadas por algo que as equivale; as pessoas, doutro modo, são dotadas de dignidade, sendo defeso a entabulação de uma troca que objetive a troca por algo similar ou mesmo que se aproxime. Oportunamente, Martins[4] leciona, em conformidade com os ideários irradiados pelo pensamento kantiano, que todas as ações norteadas em favor da redução do ser humano a um mero objeto, como instrumento a fomentar a satisfação de outras vontades, são defesas, eis que afronta, de maneira robusta, a dignidade da pessoa humana. No intento de fortalecer as ponderações estruturadas até aqui, há que se trazer o magistério de Schiavi:
“No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. A dignidade da pessoa humana era considerada como a liberdade do ser humano de optar de acordo com a sua razão e agir conforme o seu entendimento e opção, bem como – de modo particularmente significativo – o de Immanuel Kant, cuja concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia) como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar o ser humano (o indivíduo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto. É com Kant que, de certo modo, se completa o processo de secularização da dignidade, que, de vez por todas, abandonou suas vestes sacrais. Sustenta Kant que o Homem e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”[5].
Não se pode perder de vista que, em decorrência da sorte de horrores perpetrados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, os ideários kantianos foram rotundamente rememorados, passando a serem detentores de vultosos contornos, vez que, de maneira realista, foi possível observar as consequências abjetas provenientes da utilização do ser humano como instrumento de realização de interesses. Além disso, há que se salientar que “os direitos humanos foram extremamente suprimidos pelo fanatismo nazista e a dignidade da pessoa humana foi reduzida a um mero e utópico conceito, sem qualquer atuação, tendo como limite imposto, a vontade de um governante”[6]. A fim de repelir as ações externadas durante o desenrolar da Segunda Grande Guerra Mundial, o baldrame da dignidade da pessoa humana foi maciçamente hasteado, passando a tremular como flâmula orientadora da atuação humana, restando positivado em volumosa parcela das Constituições promulgadas no pós-guerra, mormente as do Ocidente, tal como na Declaração Universal das Nações Unidas, em seu artigo 1º[7].
2 A Valoração dos Princípios: A Influência do Pós-Positivismo no Ordenamento Brasileiro
Ab initio, ao se dispensar um exame mais aprofundados acerca dos princípios, cuida salientar que os postulados e dogmas se afiguram como a gênese, o ponto de partida ou mesmo o primeiro momento da existência de algo. Nesta trilha, há que se gizar, com bastante ênfase, que os princípios se apresentam como verdades fundamentais, que suportam ou asseguram a certeza de uma gama de juízos e valores que norteiam as aplicações das normas diante da situação concreta, adequando o texto frio, abstrato e genérico às nuances e particularidades apresentadas pela interação do ser humano. O objetivo principal, por conseguinte, com a valoração dos princípios, reside em buscar vedar a exacerbação errônea do texto da lei, conferindo-lhe dinamicidade ao apreciar as questões colocadas em análise.
Com supedâneo em tais ideários, salientar se faz patente que os dogmas, valorados pelas linhas do pós-positivismo, são responsáveis por fundar o Ordenamento Jurídico e atuar como normas vinculantes, verdadeiras flâmulas desfraldadas na interpretação do Ordenamento Jurídico. Desta sorte, insta obtemperar que “conhecê-los é penetrar o âmago da realidade jurídica. Toda sociedade politicamente organizada baseia-se numa tábua principiológica, que varia segundo se altera e evolui a cultura e modo de pensar”[8]. Ao lado disso, em razão do aspecto essencial que apresentam, os preceitos podem variar, de maneira robusta, adequando-se a realidade vigorante em cada Estado, ou seja, os corolários são resultantes dos anseios sagrados em cada população. Entrementes, o que assegura a característica fundante dos axiomas, é o fato serem alicerçados na condição de cânone escrito, positivado pelos representantes de determinada nação ou mesmo decorrentes de regramentos consuetudinários, aderidos, de maneira democrática, pela população.
Nesta senda, os dogmas que são salvaguardados pela Ciência Jurídica passam a ser erigidos à condição de elementos que compreendem em seu bojo oferta de uma abrangência mais versátil, contemplando, de maneira singular, as múltiplas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Ao lado do apresentado, com fortes cores e traços grossos, há que se evidenciar que tais mandamentos passam a figurar como super-normas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[9]. Os corolários passam a figurar como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[10]. Com efeito, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que integram ao ramo Civilista da Ciência Jurídica, mormente o Direito das Famílias e o aspecto afetivo contido nas relações firmadas entre os indivíduos.
Em decorrência de tais lições, destacar é crucial que a Lei N° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[11], que institui o Código Civil, deve ser interpretada a partir de uma luz emanada pelos valores de maciça relevância para a Constituição Federal de 1988[12]. Isto é, cabe ao Arquiteto do Direito observar, de forma imperiosa, a tábua principiológica, considerada como essencial e exaltada como fundamental dentro da Carta Magna do Estado Brasileiro, ao aplicar a legislação abstrata ao caso concreto. A exemplo de tal afirmativa, pode-se citar tábua principiológica que orienta a interpretação das normas atinentes ao Direito das Famílias. Com o alicerce no pontuado, salta aos olhos a necessidade de desnudar tal assunto, com o intento de afasta qualquer possível desmistificação, com o fito primordial de substancializar um entendimento mais robusto acerca do tema.
3 Do Reconhecimento ao Direito Constitucional de Constituir Família: Os Influxos da Dignidade da Pessoa Humana na Pluralidade Familiar
À luz de tais ponderações, ao se analisar o direito em comento, cuida reconhecer que toda pessoas tem o direito de constituir uma família, independente de sua condição sexual ou identidade de gênero. Igualmente, as famílias existem em diversas formas, não se admitindo que uma célula familiar seja sujeitada à discriminação com base na condição sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. Ora, denota-se que o direito em análise deflui, obviamente, do primado republicano e democrático que abaliza o Estado Democrático de Direito e do superprincípio da dignidade da pessoa humana, sobretudo como pilar conformador da interpretação do ordenamento jurídico nacional e assegurando, via de consequência, a realização do ser humano.
Ora, ao reconhecer o direito em comento, está-se, de igual modo, admitindo a densidade jurídica assumida pelos corolários da busca da felicidade e da afetividade como pilares sustentadores daquele, tal como núcleo denso em que se prima pela realização do ser humano, sobretudo no que materializa a liberdade, na condição de direito fundamental, complexo e que se desdobra em plural incidência. Nesta esteira, ainda, infere-se que o afeto se apresenta como a verdadeira moldura que enquadra os laços familiares e as relações interpessoais, impulsionadas por sentimentos e por amor, com o intento de substancializar a felicidade, postulado albergado pelo superprincípio da pessoa humana. Quadra sublinhar que tal preceito encontra-se hasteada como flâmula a orientar a interpretação das normas, inspirando sua aplicação diante do caso concreto, dando corpo a um dos fundamentos em que descansa a ordem republicana e democrática, venerada pelo sistema de direito constitucional positivo.
Nessa linha de exposição, conforme se tem colhido em atuais entendimentos jurisprudenciais, notadamente os consolidados pelo Supremo Tribunal Federal, o afeto e a busca pela felicidade passaram a ser reconhecidos como valores jurídicos imersos em natureza constitucional, apresentando-se como novos paradigmas que informam e inspiram a formulação da própria acepção de entidade familiar. Ora, os reconhecimentos do afeto e da busca pela felicidade encontram robusto descanso na extensa rubrica de direitos compreendidos pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, cuida trazer a lume o seguinte aresto:
“Ementa: União Civil entre pessoas do mesmo sexo – Alta relevância social e jurídico-constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas – Legitimidade Constitucional do reconhecimento e qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar: Posição consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) – […] A dimensão constitucional do afeto como um dos fundamentos da família moderna. – O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. Doutrina. Dignidade da Pessoa Humana e Busca pela Felicidade – O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. – O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. – Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado […]” (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ RE 477554 AgR/ Relator Ministro Celso de Mello/ Julgado em 16.08.2011/ Publicado no DJe-164/ Divulgado em 25.08.2011/ Publicado em 26.08.2011). (destaque nosso)
Por oportuno, torna-se forçoso o reconhecimento que o novel ideário, no âmbito das relações familiares, com a promulgação da Constituição Federal de 1988[13], com o fito de estabelecer direito e deveres decorrentes de vínculo familiar, consolidando na existência e no reconhecimento do afeto, tal como pela busca da felicidade. Consoante se extrai do entendimento jurisprudencial coligido, os preceitos mencionados algures, decorrem do feixe principiológico advindo da dignidade da pessoa humana, sendo dotados de proeminência e maciço destaque na caminhada pela afirmação, gozo e ampliação dos direitos fundamentais. Ao lado disso, não se pode olvidar que sobreditos paradigmas se revelam como instrumentos aptos a neutralizar práticas ou mesmo omissões lesivas que comprometem os direitos e franquias individuais. Nesta senda de exposição, “o direito de família é o único ramo do direito privado cujo objeto é o afeto”[14].
Forçoso, ainda, colocar em destaque que o direito à busca da felicidade representa derivação do superprincípio da dignidade da pessoa humana, apresentando-se como um dos mais proeminentes preceitos constitucionais implícitos, cujas raízes imergem, historicamente, na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776. Ao lado disso, em ordem social norteada pelo racionalismo, em de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana consonância com a teoria iluminista, o Estado “existe para proteger o direito do homem de ir em busca de sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar”[15]. Nesta linha de dicção, o homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, o qual, corriqueiramente, se materializada na busca pela felicidade, competindo à sociedade, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizando a todos viver juntos, de forma benéfica.
Impostergável faz-se o reconhecimento do afeto e da busca pela felicidade, enquanto valores impregnados de juridicidade, porquanto abarcam a todos os indivíduos, suplantando qualquer distinção, promovendo a potencialização do superprincípio em destaque. Ora, de tais dogmas decorre o direito constitucional de constituir família, sobretudo na visão contemporânea em que a célula familiar é o microambiente em que o ser humano se desenvolve. Ademais, em se tratando de temas afetos ao Direito de Família, o relevo deve ser substancial, precipuamente em decorrência da estrutura das relações mantidas entre os atores processuais, já que extrapola a rigidez jurídica dos institutos consagrados no Ordenamento Pátrio, passando a se assentar em valores de índole sentimental, os quais, conquanto muitas vezes sejam renegados a segundo plano pela Ciência Jurídica, clamam máxima proteção, em razão das peculiaridades existentes. Destarte, cuida destacar que o patrimônio, in casu, não é material, mas sim de ordem sentimental, o que, por si só, inviabiliza qualquer quantificação, sob pena de coisificação de seu detentor e aviltamento à própria dignidade da pessoa humana.
4 Liberdade de Constituição Familiar e o Princípio da Vedação ao Retrocesso Social
Com destaque, como lídimo desdobramento da concepção jurídico-filosófica existente sobre a presença de um mínimo existencial social, o princípio da proibição ao retrocesso social emerge como cláusula densa de proteção à dignidade da pessoa, exigindo, via de extensão, uma atuação positiva do Estado, ultrapassando, hodiernamente, a teoria da reserva do possível. Ora, em tema de direitos fundamentais de caráter social, o princípio da proibição ao retrocesso social impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. Ao lado disso, na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à saúde e o direito à educação), impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto na hipótese – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais. Em plasmado entendimento jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal cristalizou o entendimento que:
“Ementa: Recurso Extraordinário com Agravo (Lei nº 12.322/2010) – Manutenção de rede de assistência da criança e do adolescente – Deve estatal resultante da norma constitucional – Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão estatal (RTJ 183/818-819) – Comportamento que transgride a autoridade da Lei Fundamental da República (RTJ 185/794-796) – A questão da reserva do possível. Reconhecimento de sua inaplicabilidade, sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-197) – O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo Poder Público – A fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao Poder Público – A teoria da “restrição das restrições” (ou da “limitação das limitações”) – Caráter cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusiva daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas, especialmente na área da saúde (CF, arts. 6º, 196 e 197) – A questão das “escolhas trágicas” – A colmatação de omissões constitucionais como necessidade institucional fundada em comportamento afirmativo dos Juízes e Tribunais e de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do Direito – Controle jurisdicional de legitimidade da omissão do Poder Público: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição do retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de excesso) – Doutrina – Precedentes do Supremo Tribunal Federal em tema de implementação de políticas públicas delineadas na Constituição da República (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – Existência, no caso em exame, de relevante interesse social – Recurso de Agravo Improvido”. (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ ARE 745.745 AgR/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 02 dez. 2014/ Publicado no DJe em 19 dez. 2014).
“Ementa: Criança de até cinco anos de idade – Atendimento em creche e em pré-escola – Sentença que obriga o Município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, sob pena de multa diária por criança não atendida – Legitimidade jurídica da utilização das “astreintes” contra o Poder Público – Doutrina – Jurisprudência – Obrigação estatal de respeitar os direitos das crianças – Educação infantil – Direito assegurado pelo próprio Texto Constitucional (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC nº 53/2006) – Compreensão global do direito constitucional à educação – Dever jurídico cuja execução se impõe ao Poder Público, notadamente ao Município (CF, art. 211, §2º) – Legitimidade constitucional da intervenção do poder judiciário em caso de omissão estatal na implementação de políticas públicas previstas na constituição – Inocorrência de transgressão ao postulado da separação de poderes – Proteção judicial de direitos sociais, escassez de recursos e a questão das “escolhas trágicas” – Reserva do possível, mínimo existencial, dignidade da pessoa humana e vedação do retrocesso social – Pretendida exoneração do encargo constitucional por efeito de superveniência de nova realidade fática – Questão que sequer foi suscitada nas razões de recurso extraordinário – Princípio “jura novit curia” – Invocação em sede de apelo extremo – Impossibilidade – Recurso de Agravo Improvido. Políticas públicas, omissão estatal injustificável e intervenção concretizadora do poder judiciário em tema de educação infantil: possibilidade constitucional. – A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. […] A proibição do retrocesso social como obstáculo constitucional à frustração e ao inadimplemento, pelo Poder Público, de direitos prestacionais. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. […]” (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ ARE 639.337 AgR/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 23 ago. 2011/ Publicado no DJe em 15 set. 2011).
A partir do excerto colacionado, tal como imerso no escólio apresentado até o momento, cuida reconhecer que o corolário da proibição ao retrocesso social traduz-se como vedação à contrarrevolução ou evolução reacionária por parte dos direitos sociais. Isto é, quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos, uma vez conquistado determinado grau de realização passam a materializar, concomitantemente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (a denominada reversibilidade fática), mas o corolário em exame limita a reversibilidade dos direitos adquiridos – a exemplo da segurança social, subsidio desemprego, prestações de saúde e educação -, em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos em sede econômica, social e cultural, bem como núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.
Ora, o reconhecimento da proteção de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente adquiridos, substancializa um limite jurídico do legislador e, concomitantemente, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjetivamente alicerçadas. Assim sendo, a violação do núcleo essencial efetivada justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da denominada justiça social. Desta feita, o princípio da proibição ao retrocesso social encontra identificação no núcleo essencial dos direitos já realizados e efetivados através de medida legislativas, considerando-se inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, são traduzidos na prática de “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial.
Nesta toada, impende reconhecer que o principio da vedação ao retrocesso social, comumente incidente sobre os direitos fundamentais de primeira e segunda dimensão, reclama uma visão ampliada. Trata-se de um comando imperativo ao legislador ou, ainda, ao constituinte reformador para que não pise nos próprios passos. Assim, é vedado, em decorrência do corolário em comento, afronta a legitima expectativa dos cidadãos de que haverá apenas evolução, melhora e manutenção no que atina ao oferecimento e à salvaguarda de direitos constitucionalmente tutelados. Ora, o escopo do dogma em destaque repousa na busca da segurança jurídica na aplicação da Constituição e das normas infraconstitucionais, estabelecendo-se, de maneira robusta, mecanismos contra as ações retrocessivas do Estado.
Dentre os dogmas que orientam o Direito das Famílias, cuida salientar, inicialmente, acerca da pluralidade das entidades familiares, ressoando, de forma determinante, com a realidade contida nas interações sociais, refletindo, pois, o corolário da vedação ao retrocesso social. Anote-se, por oportuno, que o Ordenamento Pátrio, até a promulgação da Constituição da República Federativa de 1988, jungido em valores patrimoniais, assentava como núcleo familiar tão somente o constituído pelo vínculo matrimonial, renegando às demais entidades a uma situação de subcategoria, à margem do considerado como aceitável pela sociedade. “O Texto Constitucional alargou o conceito de família, permitindo o reconhecimento de entidades familiares não casamentárias, com a mesma proteção jurídica dedicada ao casamento”[16], como bem alude Farias e Rosenvald. Ao lado disso, cuida salientar que, de maneira expressa, a Carta Cidadã, no caput do artigo 226 consagrou que: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”[17].
Ora, há que se reconhecer que o Constituinte tão somente positivou uma situação que vigorava em milhares de famílias brasileiras, reconhecendo, por via de consequência, que a constituição de um núcleo familiar é algo natural, oriundo das interações afetivas nutridas entre indivíduos. De outra banda, o casamento se afigura como uma solenidade, uma convenção estabelecida pela sociedade. Nesta esteira, com o escopo de adaptar a Ciência Jurídica aos anseios da sociedade, conferindo aos Diplomas Legais congruência com a atmosfera social em que incidem, mister se fez a adequação das normas a um cenário consolidado pela coletividade e que reclamava do Estado a devida proteção. Destarte, conforme se extrai do artigo supra, Farias e Rosenvald salientam que “não somente a família originada através do casamento, bem como qualquer outra manifestação afetiva como a união estável e a família monoparental – formada pela comunidade de qualquer dos pais e seus descendentes” [18].
Nessa linha de exposição, ainda, há que se obtemperar que a família se apresenta como base da sociedade, como expressamente referência faz o artigo 226 da Constituição Federal[19], gozando de especial proteção do Estado, eis que cumpre a função que a sociedade contemporânea destinou à entidade, qual seja: transmitir a cultura e formar a pessoa humana. Em razão do pontuado, mister se faz a sua compreensão como sistema democrático, afigurando-se como um espaço aberto ao diálogo entre os seus integrantes, na qual se ambiciona a felicidade e a realização plena. “Ademais, ao reservar 'especial proteção do Estado' ao núcleo familiar, o Texto Constitucional deixa antever que o pano de fundo da tutela que lhe foi emprestada é a própria afirmação da dignidade da pessoa humana” [20]. Convém destacar, neste quadrante, que a proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida com a visão orientada ao respeito às diferenças interpessoais, no sentido de vedar comportamentos preconceituosos, discriminatórios e estigmatizantes, sob o robusto broquel dos princípios fundamentais da igualdade, da dignidade e da liberdade do indivíduo[21].
Destarte, a proteção da entidade familiar tem como ponto de alicerce a premissa que aquela se revela como tutela avançada da pessoa humana, substancializando no plano concreto, real, a dignidade erigida de modo abstrato. Trata-se, com destaque, da utilização do núcleo como instrumento apto ao desenvolvimento da personalidade humana, salvaguardando, por conseguinte, a realização plena de seus membros. Igualmente, retira-se o aspecto essencialmente econômico e reprodutivo da entidade familiar, não mais prosperando a aproximação daquela com o ideário de produção, avançando, por extensão, para uma compreensão arrimada em aspectos socioafetivos, nos quais se verifica a formação de uma unidade e de mútua ajuda, logo, é fato que restam materializados novos arranjos familiares.
O casamento, com a nova sistemática consolidada no Texto Constitucional, é descrito como ponto robusto para buscar a proteção e o desenvolvimento da personalidade do indivíduo. A dignidade da pessoa humana, desfraldada como superprincípio do Ordenamento Pátrio, passa a sobrepujar, de forma determinante, os valores simplesmente patrimoniais. A inegável superação de antigos modelos do direito de família tem se operado pela gradativa evanescência da função “procriacional” a definir a entidade familiar, bem como pela dissipação do conteúdo de cunho marcadamente patrimonialista, para dar lugar à comunhão de vida e de interesses pautada no cuidado e na afetividade, tendo como suporte a busca da realização pessoal de seus integrantes. É cediço que o Direito não confere regulamentação aos sentimentos, contudo, define os liames com base neles produzidos, o que obsta que a própria norma, que estabelece a vedação a qualquer espécie de segregação, seja agasalhada por conteúdo discriminatório.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES