Resumo: Este trabalho pretende fomentar o debate acerca da aplicação dos institutos da reserva do possível e o mínimo existencial em face do dever estatal de concretização dos direitos sociais.
Palavras-chave: Reserva do possível. Mínimo existencial. Direitos Fundamentais. Direitos Sociais.
Abstract: The present article pretends to establish a dialogue regarding institutes of the reservation of the possible and the minimum existential in face of the state’s duty to promote the social rights.
Keywords: Reservation of The Possible. Minimum Existential. Fundamental Rights. Social Rights.
Sumário: Introdução. 1. Definição de Conceitos. 1.1. Direitos Sociais. 1.2. Reserva do Possível. 1.3. Mínimo Existencial. 2. A exigibilidade de concretização do núcleo essencial dos direitos sociais. Conclusão.
Introdução.
Denominados direitos fundamentais de segunda dimensão, os direitos sociais surgem no século XX com vias à implementação de prestações, materiais e jurídicas, necessárias para a redução das desigualdades socioeconômicas no plano fático, construindo-se uma sociedade na qual todos possuam, pelo menos, um padrão mínimo de recursos sociais, econômicos e culturais, capaz de propiciar-lhes uma vida digna.
Segundo o entendimento majoritário da doutrina brasileira, os direitos sociais devem ser considerados direitos materialmente fundamentais, por serem pressupostos para que o indivíduo possa usufruir dos direitos individuais em toda a sua plenitude.
Assim, os direitos sociais expressam direitos subjetivos exigíveis em face do Poder Público, que possui o dever de implementá-los concretamente, sob pena de violação, por omissão, destes preceitos constitucionalmente previstos.
Exemplificando, o direito fundamental à liberdade tem sua efetividade esvaziada quando não são asseguradas, por meio dos direitos sociais prestacionais, as condições materiais mínimas para que as pessoas possam desfrutá-lo de forma plena e consciente.
Ora, não se pode falar em efetividade de direitos fundamentais daqueles que sequer têm o mínimo exigível para a existência digna de qualquer ser humano, trata-se, portanto, da inobservância cláusula do mínimo existencial, cujo conceito será explanado em tópico próprio.
Nesse sentido, valiosa a lição de Isaiah Berlin, ipsis literis:
“Oferecer direitos políticos ou salvaguardas contra a intervenção do Estado a homens seminus, analfabetos, subnutridos e doentes é zombar de sua condição: eles precisam de ajuda médica ou educação antes de poderem compreender ou aproveitar um aumento em sua liberdade” (BERLIN, 2002, p. 231).
Logo, enquanto o núcleo essencial (“núcleo duro”) dos direitos fundamentais sociais não for devidamente observado, restará infrutífera qualquer discussão acerca dos limites máximos para a sua efetivação.
Todavia, a realidade contemporânea aponta paradigma em sentido oposto, no qual os representantes do Poder Público, resguardados por entendimento doutrinário dissonante, lançam mão de institutos extraídos de ordenamentos alienígenas para legitimar sua incapacidade de garantir aos cidadãos brasileiros sequer o núcleo essencial dos direitos sociais, alegando inexistirem recursos financeiros para tanto.
Sob tal perspectiva, o presente estudo visa suscitar discussões acerca da exigibilidade de concretização do núcleo essencial dos direitos sociais expressamente previstos na Constituição Federal de 1988.
Objetiva, também, abordar os limites à aplicação da Reserva do Possível, em face da necessidade de concretização do mínimo existencial, sem olvidar os demais princípios constitucionais, como, por exemplo, o da moralidade administrativa.
1. Definição de conceitos.
Para que possamos iniciar a discussão principal do presente estudo, inicialmente, faz-se necessário proceder à conceituação dos institutos relacionados à temática dos direitos sociais.
1.1. Direitos Sociais.
Primeiramente, ressalta-se que o presente estudo não pretende esgotar a temática dos direitos sociais, tendo em vista a vasta gama de perspectivas por ela suscitadas.
Por isso, deixamos claro, desde já, que adotaremos a terminologia de Robert Alexy para a conceituação de “direitos sociais”, aos quais se refere como “direitos sociais prestacionais em sentido estrito”.
São direitos sociais, portanto, aqueles que têm por objeto a exigência de uma atuação positiva do Estado (são direitos de status positivus), resultando numa prestação concreta nas esferas econômica e social.
Fundamentando o disposto, valemo-nos das palavras do supracitado doutrinador:
“Direitos a prestação em sentido estrito são direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares. Quando se fala em direitos fundamentais sociais, como, por exemplo, direito à assistência à saúde, ao trabalho, à moradia e à educação, quer-se primariamente fazer menção a direitos a prestação em sentido estrito. ” (ALEXY, 2012, p. 499).
Nada obstante, embora não se negue a existência de uma dimensão negativa dos direitos sociais, respeitando-se os desígnios do titular de tais direitos de exigir sua efetivação ou não, como bem pondera o professor Ingo Sarlet, a mesma não será objeto do presente estudo (SARLET, 2012, p. 283).
Para tanto, focaremos apenas nas prestações de status positivo, conforme a teoria dos quatro status desenvolvida por Georg Jellinek.
Realizando superficial revisão histórica, constatamos que os direitos sociais, junto dos direitos econômicos e culturais, surgem no século XX, quando a segunda dimensão dos direitos fundamentais aparece para corrigir as desigualdades materiais observadas no plano concreto.
No que concerne a tais desigualdades, Jorge Miranda aduz:
“Nos direitos sociais, parte-se da verificação da existência de situações de necessidade e de desigualdades de facto – umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de condicionalismos exógenos (económicos, sociais, geográficos, etc.) – e da vontade de as vencer para estabelecer uma relação solidárias entre todos os membros da mesma comunidade política” (MIRANDA, 2012, p. 100).
Neste ponto, observamos que os direitos sociais refletem a persecução da igualdade material, que vai muito além da igualdade meramente formal, exprimida pelo critério de justiça aristotélico[1].
Para tanto, a igualdade material consiste no tratamento diferenciado àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social, conferindo-lhes direitos sociais substanciais.
Necessária, portanto, atuação positiva do Estado, devendo, este, intervir na igualdade jurídica dos cidadãos, a fim de proporcionar aos menos favorecidos condições para que alcancem igualdade em relação aos demais membros da coletividade.
Alinhamo-nos, portanto, à definição de José E. Faria, que preconiza:
“Os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme, são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios” (FARIA, 1994, p. 105).
No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos fundamentais sociais básicos estão expressamente elencados no art. 6º da Constituição Federal de 1988, que prevê:
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Todavia, importante apontar que, segundo as lições de Ingo Sarlet, embora o objeto de tais prestações dependa do reconhecimento e previsão em cada ordem constitucional, as diversas modalidades de prestações não constituem rol exaustivo e fechado, insuscetível de expansão. Pelo contrário, são positivados em texto aberto, o que lhes permite acompanhar as evoluções sociais e a necessidade de se tutelar bens jurídicos não previstos anteriormente (SARLET, 2012, p. 284).
Ainda, ressalta-se a opção do legislador constituinte pela textura aberta das normas que regulam direitos sociais, estruturando-as como princípios (normas programáticas[2]), como forma de conferir-lhes maior flexibilidade de adimplemento pela Administração Pública.
Nestes casos, ao invés de regular direta e imediatamente um interesse, o legislador optou por traçar apenas princípios indicativos dos fins e objetivos do Estado, impondo aos seus órgãos uma finalidade a ser cumprida, sem, no entanto, apontar quais os meios a serem adotados para tanto.
Assim, tais normas reclamam a intervenção dos Poderes Executivo e Legislativo para verem irradiados todos os seus efeitos ou, nos dizeres de Luís Roberto Barroso, para que desempenhem concretamente sua função social (BARROSO, 2011, p. 221).
Corroborando com o disposto, trazemos à baila os ensinamentos de Andreas Joachim Krell, que leciona:
“As normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais que hoje encontramos na grande maioria dos textos constitucionais dos países europeus e latino-americanos definem metas e finalidades as quais o legislador ordinário deve elevar a um nível adequado de concretização. Essas “normas-programa” prescrevem a realização, por parte do Estado, de determinados fins e tarefas; no entanto, elas não representam meras recomendações ou preceitos morais com eficácia ético-política meramente diretiva, mas constituem direito diretamente aplicável. ” (KRELL,1999, p. 240).
Neste ponto, importante ressaltar que, embora ainda se encontre na doutrina e jurisprudência nacional quem defenda a ausência de juridicidade das normas de conteúdo social, partilhamos da corrente que entende por superado tal paradigma, defendendo o caráter vinculante de todas as normas constitucionais, incluindo-se aquelas de cunho programático, às quais se atribui idêntico valor jurídico dos demais preceitos constitucionais.
Retirar dos direitos sociais sua exigibilidade, alegando sua baixa densidade normativa, decorrente de seu conteúdo programático, é legitimar a omissão do Poder Público, que se escora em tal recurso hermenêutico para a imposição de obstáculos à efetivação destes direitos.
Por isso, valemo-nos do entendimento adotado pelo ilustre Ministro Celso de Mello, proferido no Recurso Extraordinário nº 393175 – SC[3]:
“As normas programáticas não podem se transformar em promessas constitucionais inconsequentes, sob pena de fraudar justas expectativas depositadas nos Poderes Públicos pelos cidadãos. ” (STF, RE 393175 – SC, Rel. Min. Celso de Mello).
Em suma, não restam dúvidas acerca da exigibilidade e vinculatividade das normas que preveem direitos sociais, vez que superada a concepção de norma programática como mera exortação moral destituída de qualquer normatividade.
1.2. Reserva do Possível.
A expressão “Reserva do Possível” teve origem na Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão em 1972, mais precisamente no case numerus clausus entscheidung, que discutiu a concessão de vagas em universidades para todos os candidatos, inclusive para aqueles que tinham condições de pagá-las com seus próprios recursos, como condição para a observância do direito de liberdade de escolha profissional, que exigiria, em certa medida, o acesso ao ensino superior.
Segundo o entendimento adotado pela Corte Constitucional Alemã, os direitos às prestações positivas estariam sujeitos à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, poderia esperar (exigir) da sociedade, observando-se as condições fáticas e econômico-financeiras vigentes.
Nesse sentido, o Tribunal Alemão rejeitou a existência de um dever Estatal de criar um número de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos, por considerá-lo fora dos limites do razoável, uma vez que a prestação desta assistência social abarcaria aqueles que não fazem jus a tal benefício por disporem de recursos próprios para alcançá-lo independentemente da ajuda governamental.
Grande parcela da doutrina nacional, como Andreas Krell, sustenta que a reserva do possível não teria aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a grande carência de direitos sociais da nossa sociedade, cuja realidade demonstra ser diametralmente oposta àquela encontrada na Alemanha, berço de tal instituto.
Segundo Ingo Sarlet, a reserva do possível teria de ser analisada em três dimensões: a) Possibilidade Fática; b) Possibilidade Jurídica; e c) Razoabilidade da exigência e proporcionalidade da prestação (SARLET, 2012, p. 288).
A possibilidade fática consistiria na existência de recursos necessários à satisfação do direito prestacional.
Não se nega, para tanto, que os direitos sociais têm uma maior dificuldade de implementação do que os direitos de defesa, pois são, em sua maioria, direitos prestacionais, ou seja, exigem do Estado prestações (materiais ou jurídicas) que possuem um notório custo aos cofres públicos.
Assim, alguns doutrinadores defendem que para que se possa exigir do Estado uma determinada prestação, seria necessária a existência de recursos financeiros que permitissem ao Estado arcar com as despesas a ela correspondentes (possibilidade fática).
Exemplificando, embora o direito à moradia esteja previsto no art. 6º da CF/88 e, ainda que fosse desejável que o Estado propiciasse uma moradia para todos aqueles que não tivessem onde morar, seria impossível exigir dele a construção de uma moradia para cada um destes indivíduos, ante a ausência de recursos financeiros suficientes para tanto.
Assim, a Reserva do Possível, defendem, estaria sendo observada quando da construção de abrigos coletivos para tais cidadãos, sendo razoável exigir do Estado tal prestação em face dos recursos necessários para sua implementação.
Já a possibilidade jurídica consistira na existência de autorização orçamentária para cobrir as despesas e na análise das competências federativas.
Logo, deve existir autorização orçamentária prevendo que aquela despesa possa ser custeada, uma vez que, embora o orçamento possa custeá-la, deve haver previsão expressa a especificando para cada caso concreto.
Embora a necessidade de prévia dotação orçamentária não seja um obstáculo intransponível, ele deve ser levado em consideração.
Nada obstante, embora esteja prevista na dotação orçamentária, muitas vezes o próprio orçamento não é suficiente para custear aquela despesa.
Para tanto, deve-se observar, defende o supracitado autor, de quem é a competência orçamentária para que se possa exigir o cumprimento da obrigação, uma vez que os recursos orçamentários variam de acordo com o ente federativo competente.
Temos por derradeira a dimensão que trata da razoabilidade da exigência e proporcionalidade da prestação. Neste ponto, deve-se analisar se seria razoável exigir do Estado determinada prestação, ou seja, a razoabilidade da universalização da prestação exigida, considerando os recursos efetivamente existentes.
Sendo assim, não se deve analisar a prestação da demanda somente em face do individuo que a solicitou, mas em termos universais, pois se aquela pessoa possui o direito, todos aqueles que se encontrarem na mesma situação fática também o possuirão, o que decorre da necessidade de observância do Principio da Isonomia, uma vez que aqueles que se encontram em situação de igualdade devem ser tratados de forma igual, resguardando-se, é claro, o tratamento desigual no limite de sua desigualdade[4].
Quanto à proporcionalidade, como o próprio nome já indica, prevê que a prestação deve ser proporcional, ou seja, deve-se sopesar as desvantagens na utilização dos recursos públicos em relação às vantagens da efetivação dos direitos sociais.
Por fim, constatamos que a Reserva do Possível tem sido utilizada como matéria de Defesa do Estado, quando este quer se negar ao cumprimento de determinada prestação positiva, sob a justificativa de ausência de recursos orçamentários.
Todavia, ressalta-se que é do Estado o ônus de provar a existência de justo motivo, objetivamente aferível, para se eximir de cumprir a prestação, ou seja, cabe ao Estado demonstrar, cabalmente, que não possui recursos orçamentários necessários para cumprir com a prestação.
Além disso, conforme restará demonstrado a seguir, não poderá ser aceita nenhuma motivação tendente a justificar a mitigação da efetividade do núcleo essencial de um direito fundamental, que deverá ser necessariamente concretizado, cabendo ao Administrador Públicos zelar pela boa administração dos recursos públicos necessários para efetivá-lo.
1.3. Mínimo Existencial.
O conceito de “mínimo existencial” também possui berço germânico, originário do Tribunal Federal Administrativo Alemão, mais precisamente em decisão proferida em 1953, sendo, posteriormente, integrada à jurisprudência deste tribunal.
Importante salientar que o mínimo existencial é uma construção doutrinária e jurisprudencial que, nas palavras de Luís Roberto Barroso, “expressa o conjunto das condições materiais essenciais e elementares cuja presença é pressuposto da dignidade para qualquer pessoa” (BARROSO, 2011, p. 180).
Ao contrário do que a supracitada interpretação possa indicar, o Estado não deve ter um papel meramente assistencialista, mas, ao contrário, numa interpretação conforme a Constituição, deve preservar a cada pessoa um mínimo de direitos sociais e utilidades básicas imprescindíveis para que elas tenham uma vida digna e não apenas subsistam.
Assim, tal como ocorre na Constituição Alemã, o mínimo existencial não está previsto na Constituição Brasileira, tendo sido inserido em nosso ordenamento jurídico por meio da doutrina – muitos consideram Ricardo Lobo Torres o precursor desta teoria no Brasil – e da jurisprudência.
Para tanto, o mínimo existencial resulta da conjugação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade (em sentido material) e do Estado Social.
Neste ponto, ressaltamos existência de uma divergência doutrinária quanto à definição do conteúdo do mínimo existencial.
De um lado, temos o entendimento adotado por Ricardo Lobo Torres, segundo o qual o mínimo existencial não contemplaria um rol de direitos pré-definidos, devendo ser determinado de acordo com a época e as necessidades sociais, pois, do contrário, tornar-se-ia rígida e inflexível sua consagração.
Ao contrário, Ana Paula de Barcelos defende a existência de direitos sociais pré-determinados que constituiriam o conteúdo do mínimo existencial, quais sejam: saúde, educação básica, assistência em caso de necessidade e o acesso à justiça – que, diferentemente dos demais direitos, configura direito instrumental, expediente necessário para reivindicar, junto ao Poder Judiciário, a atuação positiva do Estado no plano fático.
Neste ponto, observa-se que todos os direitos mencionados por Ana Paula de Barcelos estão expressamente consagrados na Constituição Federal de 1988 como direitos sociais elementares.
Para tanto, invoca-se o conceito do mínimo existencial para que seja atribuída uma maior efetividade aos direitos sociais básicos, compelindo o Poder Público a efetivá-los, ainda que minimamente, independentemente de qualquer alegação quanto à existência de restrição orçamentária.
Logo, ainda que se valha das chamadas “escolhas trágicas” – conceito desenvolvido por Guido Calabrese e Philip Bobbit, segundo o qual a alocação de recursos financeiros em um direito social invariavelmente irá comprometer a efetivação de outro direito social, do qual se retira tais recursos – o Poder Público não poderá deixar de atender o mínimo existencial, por meio da efetivação do núcleo essencial de todos os direitos sociais básicos elencados no supramencionado artigo 6º do texto constitucional, que devem ser tratados como prioridade orçamentária.
Assim, partilhamos do posicionamento adotado por Ingo Sarlet, segundo o qual o mínimo existencial seria absoluto e, portanto, os direitos que o compõem não se submeteriam à reserva do possível[5].
Tal entendimento foi também adotado por Celso de Mello[6], decano do Supremo Tribunal Federal, ao proferir decisão no julgamento do Recurso Extraordinário nº 482611, defendendo a “impossibilidade de invocação pelo Poder Público da Cláusula da Reserva do Possível sempre que puder resultar, de sua aplicação, comprometimento do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial”[7].
Sintetizando, nas palavras de Marcos Sampaio:
“Qualquer digressão em torno do conteúdo essencial dos direitos sociais remente, imediata e quase intuitivamente, ao mínimo existencial na expectativa de que ele represente uma parcela elementar do próprio direito, aquém da qual perde significado concreto, desfigurando-se completamente. ” (SAMPAIO, 2013, p. 222).
Assim, a concretização do núcleo essencial dos direitos fundamentais está intimamente ligada à noção do mínimo existencial, uma vez que este somente poderia ser alcançado com a delimitação de limites instransponíveis no âmbito de proteção dos direitos sociais fundamentais, dentro dos quais não seria permitida a interferência do legislador.
Em suma, a delimitação deste núcleo contém o ímpeto do Poder Público em restringir a efetividade dos direitos sociais, que deverão ser implementados de forma a permitir que os cidadãos tenham o mínimo de recursos necessários à observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
2. A exigibilidade de concretização do núcleo essencial dos direitos sociais.
Ante o exposto, temos que a omissão Estatal na efetivação do núcleo essencial dos direitos sociais configura verdadeira inconstitucionalidade por omissão.
Isso porque, quando nenhuma medida tenha sido tomada, ou tenha sido insuficiente, para a concretização de tais preceitos constitucionais, é inválida qualquer justificativa alegando desnecessidade de sua efetivação ante o conteúdo programático de tais direitos, uma vez que isto não lhes retira, de forma alguma, sua efetividade e exigibilidade.
Cumpre esclarecer que o presente estudo não pretende negar o conteúdo pecuniário destes direitos prestacionais. Defende-se, todavia, que sua relevância econômica deve servir de alerta aos representantes do Poder Público quando da administração dos recursos públicos. Logo, a efetivação do núcleo essencial dos direitos sociais deve ser tida como prioridade orçamentária.
Entretanto, a realidade contemporânea mostra-se distante do plano teórico, uma vez que os representantes do Estado, diante dos elevados valores necessários para a concretização dos direitos em tela, optam por caminhos tortuosos, utilizando-se desta “justificativa” para não os efetivar, ao invés de adotarem uma postura condizente com o principio da boa administração, deixando de alocar recursos orçamentários para o pagamento de serviços menos essenciais.
Tal entendimento encontra guarida nos ensinamentos de Fernando Santos, que prescreve:
“Ninguém pode negar a relevância econômica suscitada pelos direitos prestacionais em sentido estrito. Porém essa repercussão econômica não pode conduzir à negativa, pura e simples, que os direitos sociais fundamentais possuam a natureza de direitos ou que devam ser abandonados à liberdade de conformação do legislador ordinário, impedindo, assim, a possibilidade de qualquer controle. ” (SANTOS, 2007, p. 221)
Ainda, o que se tem observado é a utilização leviana da cláusula da Reserva do Possível como simples justificativa para a não concretização destes direitos sem a necessária demonstração de justo motivo.
Tal fato foi constatado por Liana Cirne Lins:
“No Brasil, entretanto, o princípio da reserva do possível tem, muitas vezes, exercido função de mero topos retórico destinado à desqualificação a priori dos direitos sociais, visto que é lançado mão à revelia mesmo da verificação da disponibilidade efetiva do livro-caixa do Estado, como se partisse do pressuposto de que o Estado não terá recursos financeiros suficientes à efetivação daqueles direitos. A pressuposição de que a alegação de ausência de recursos não necessita de demonstração acaba por conferir ao instituto certos contornos místicos. ” (LINS, 2009, p. 63)
Ora a jurisprudência pátria já se manifestou contrariamente a tais práticas estatais, conforme podemos extrair do voto do Min. Celso de Mello na ADPF 45/STF:
“Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. ” (STF, ADPF 45-9 DF, Rel. Min. Celso de Mello, 2004, p. 04).
Logo, embora não se negue que a efetivação de tais direitos possui sim um reflexo orçamentário, tendo em vista a vasta gama de recursos necessários para a sua efetivação no plano fático, temos que a utilização da cláusula da reserva do possível somente poderia ser invocada pelo Estado desde que presente justo motivo.
Nesse sentido se posiciona a supracitada autora:
“O ônus de comprovar a incapacidade financeira da administração é dela própria (…) em sendo o ônus da prova um critério para a formação do convencimento e da decisão do juiz, tem-se que a mera alegação da reserva do possível em processo em que se defende a administração-ré, desacompanhada de meios de prova suficientes para demonstração da sua incapacidade financeira imediata, não a isenta do cumprimento do seu dever constitucional determinado, obrigando ao adimplemento da prestação fática em que consiste o direito social exigido.” (LINS, 2009, p. 66).
Por mais óbvia que tal assertiva possa parecer, constata-se que os representantes do Poder Público insistem na alocação de vultosas somas de recursos públicos em prestações de interesse social secundário (ou inexistente), como, por exemplo, para o custeio da propaganda e do marketing governamental, dos quais dificilmente são deslocados recursos para a concretização de direitos de maior relevância social, como a saúde e a educação.
Por outro lado, reitera-se que a reserva do possível não poderá ser invocada, ainda que presente justo motivo, para o descumprimento do núcleo essencial dos direitos sociais, uma vez que isto configura, conforme já explanado, verdadeiro descumprimento de preceito constitucional, consistindo em uma abstenção indevida do Estado, o que caracteriza a inconstitucionalidade por omissão.
Assim, temos que a utilização da Reserva do Possível deve ser vista com ressalvas, tendo em vista as discrepantes realidades brasileira e alemã.
Isso porque o Brasil, país em desenvolvimento, sequer conseguiu efetivar os direitos fundamentais de segunda geração (há quem defenda que ainda estamos vivenciando o período iluminista), sendo conhecido mundialmente por suas desigualdades sociais e pela má-distribuição de renda.
Não por menos, segundo Ranking Global do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, publicado em 2012[8], o Brasil está em 85º, com um Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de 0,730, enquanto a Alemanha situa-se na 5ª colocação, com um IDH de 0,920.
Assim, notoriamente desarrazoada e prejudicial a aplicação deste conceito tal como é feito em seu ordenamento de origem (alemão), devendo adequar-se sua aplicabilidade em face da realidade brasileira.
Engenhosa técnica hermenêutica permite a utilização da reserva do possível para incentivar comportamentos omissivos do Estado, que acabam por ferir o princípio da moralidade administrativa, pois, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, ocorrerá “violação a uma norma da moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado” (BANDEIRA DE MELLO, 2008, p. 120).
Por esse motivo, tal preceito não poderá ser utilizado como instrumento de flexibilização da efetividade do núcleo essencial dos direitos sociais, tendo em vista seu conteúdo absoluto, cuja rigidez e exigibilidade se faz necessária como forma de compelir o Poder Público a concretizá-los definitivamente, com vias a reduzir de maneira eficaz as notórias desigualdades da sociedade brasileira.
Conclusão.
Diante do exposto, necessária a delimitação de um conteúdo essencial (absoluto) dos direitos sociais, o qual não poderia ser restringido, nem sofrer interferências do legislador, como forma de compelir o Estado a elaborar os orçamentos públicos de maneira mais responsável, colocando como prioridade a destinação de recursos públicos para o financiamento dos direitos sociais.
Não podemos esquecer, portanto, o dever do Estado em propiciar aos seus administrados uma atmosfera social capaz de propiciar-lhes um desenvolvimento humano saudável.
Sobre tal incumbência estatal, se posiciona Miranda:
“Incumbência do Estado em promover o aumento do bem-estar social e econômico e da qualidade de vida das pessoas, em especial, das mais desfavorecidas, de promover a justiça social, de assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento” (MIRANDA, 2012, p. 475),
Para tanto, é preciso exigir-lhe a concretização das prestações positivas previstas no texto constitucional, atentando-se para quaisquer tentativas de flexibilização destes deveres, bem como a utilização de conceitos extraídos de ordenamentos alienígenas, os quais não podem ser aqui inseridos sem um prévio estudo e ponderação com nosso paradigma social.
Conforme já explanado anteriormente, o descumprimento dos supracitados deveres configura verdadeira inconstitucionalidade por omissão estatal, passível de ser judicializada.
Sendo assim, deve-se exigir dos representantes do Poder Público o estrito cumprimento de seu dever legal, fazendo-o sob a égide do princípio da boa administração.
Para tanto, devem ser tidos como seus objetivos fáticos fundamentais aqueles previstos expressamente no texto constitucional de 1988, mais precisamente em seu artigo 3º, para que possamos construir uma sociedade livre, justa, solidária e igualitária.
Informações Sobre o Autor
Leonardo Palucci Marziale
Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Advogado