Resumo: As ações ajuizadas pelos cidadãos perante o Poder Judiciário no âmbito do Estado de Minas Gerais com pedido de fornecimento de medicamentos têm aumentado significativamente, devido à deficitária política pública implementada pelos entes federados na área da saúde. Recentemente, o Tribunal de Contas de Minas Gerais informou que o Governo, somente no ano de 2014, gastou em torno de R$ 222 (duzentos e vinte e dois) milhões de reais nessas demandas. Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo analisar a legitimidade constitucional do Poder Judiciário para intervir no campo das demandas não atendidas pelo Poder Executivo na área da saúde e, também, se o interesse individual deve-se sobrepor ao interesse coletivo no que tange ao fornecimento de medicamentos. Para tanto, serão analisadas jurisprudências do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para verificar quais são os principais argumentos utilizados pelos entes federados nos agravos de instrumentos interpostos por eles no âmbito do Tribunal. Sendo assim, por meio da pesquisa, constatou-se, que o Poder Judiciário tem legitimidade constitucional para intervir nas demandas de fornecimento de medicamentos, uma vez que verificada a omissão do Poder Executivo no caso concreto, bem como para garantir a efetividade do direito fundamental à saúde. [1]
Palavras-chave: Constituição da República; Judicialização; Medicamentos; Poder Judiciário; Saúde.
Abstract: The lawsuits filed by citizens with the Judiciary's approach in the State of Minas Gerais with a request for supply of drugs have increased significantly due to loss-making public policy implemented by federal entities in the health field. Recently, the Minas Gerais Court of Auditors reported that the Government, only in 2014, spent around R$ 222 (two hundred twenty-two million) these demands. Thus, this study aims to analyze the constitutional legitimacy of the judiciary to intervene in the field of unmet needs by the Executive in health area and also if the individual interest must outweigh the public interest in relation to the supply of drugs. Therefore, jurisprudence will be analyzed in the Honorable Court of Minas Gerais to check what are the main arguments used by federal entities in grievances instruments brought by them within the Court. Thus, through research, it was found that the judiciary has constitutional legitimacy to intervene in the demands of supply of drugs, since verified the omission of the executive power in this case and to ensure the effectiveness of the fundamental right for the health.
Keywords: Constitution of the Republic Drugs; Health; Judicialization; Judiciary's approach.
Sumário: 1 Introdução. 2 O Contexto da Saúde Pública no Brasil. 2.1 O fornecimento de medicamentos. 3 A atuação dos entes federados no contexto dos direitos sociais. 4 A judicialização da saúde no contexto da efetividade dos direitos fundamentais. 5 Conclusão. Referências.
Contents: 1. Introduction. 2 The public health context in Brazil. 2.1 The supply of drugs. 3 The role of federal entities in the context of social rights. 4 The judicialization of health in the context of the effectiveness of fundamental rights. 5 Conclusion.References.
INTRODUÇÃO
A judicialização da saúde é um fenômeno que vem ganhando destaque nas discussões sociais e jurídicas há bastante tempo. Com a deficitária efetivação das políticas públicas na área da saúde, percebe-se que há certa desproporcionalidade entre a demanda da população para o fornecimento de medicamentos e a efetiva entrega destes pelos entes públicos, de modo que o Poder Judiciário chega a interferir no âmbito do Poder Executivo.
O tema em questão possui relevância social uma vez que só no ano de 2014 as demandas na área da saúde representaram em torno de 80% (oitenta por cento) dos processos no âmbito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais[2], sendo que o Governo gastou em torno de R$ 222 (duzentos e vinte e dois) milhões de reais com o fornecimento de medicamentos nessas demandas, dados do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais[3].
A saúde é um direito fundamental social previsto nos artigos 6º e 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Nas palavras de Cury (2005, p. 17), o direito a saúde está “diretamente ligado ao princípio maior que rege todo o ordenamento jurídico pátrio: o princípio da dignidade da pessoa humana – razão pela qual tal direito merece tratamento especial”.
Nesse sentido, a pesquisa sobre a judicialização da saúde[4] justifica-se a partir do momento em que direitos constitucionais que deveriam ser garantidos pelo Poder Executivo passam pelo crivo do Poder Judiciário, obrigando aquele ente público, que em um primeiro momento, negou o fornecimento de medicamento para um cidadão, por diversos motivos, demonstrando-se, portanto, a importância do tema para o estudante de graduação em Direito, como é a situação desta pesquisadora.
O escopo deste trabalho é avaliar o fenômeno da judicialização da saúde na área do Direito, a fim de investigar como essa atuação do Judiciário deve se pautar. Além disso, buscará analisar também a relação conflituosa existente entre o interesse individual e o interesse coletivo no que tange ao fornecimento de medicamentos. Nesse sentido, esse trabalho problematizará as causas e conseqüências da judicialização da saúde no Brasil, a partir de uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial acerca do tema.
Em relação à metodologia usada, o presente trabalho será desenvolvido por meio de levantamentos de fontes bibliográficas e documentais como livros, artigos, teses, trabalhos de conclusão de curso, com o objetivo da construção do referencial teórico.
Esses levantamentos serão realizados durante todo o desenvolvimento da pesquisa, auxiliando nas etapas complementares. Para tanto, serão investigadas também jurisprudências do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Para tal análise, foram escolhidos acórdãos proferidos em sede de agravo de instrumento no mês de fevereiro de 2016 por todas as Câmaras Cíveis do Tribunal, totalizando um total de 26 (vinte e seis)[5] jurisprudências (termos de pesquisa: agravo de instrumento, direito à saúde e medicamentos)[6].
O recurso escolhido para análise dos argumentos utilizados pelos entes federados foi o agravo de instrumento, tendo em vista que esse recurso visa revisar decisões interlocutórias proferidas no curso do processo que geralmente defere/indefere antecipações de tutela ou medidas liminares, o que traria um possível ganho antecipado sobre o pedido de fornecimento de medicamentos para o autor de uma ação. Os resultados fornecidos e analisados durante a pesquisa poderão subsidiar a discussão e futura conclusão perante os objetivos estabelecidos.
2 O CONTEXTO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL
O conceito de saúde foi definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1946 como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”, enquanto que o Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986, p. 04), ao abordar o tema Saúde como Direito, definiu a saúde como “resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde”.
Em que pese as diversas conceituações doutrinárias sobre o tema abordado, verifica-se que as políticas públicas voltadas para a área da saúde no Brasil perpassou por diversos momentos históricos que culminaram na criação de organizações administrativas, bem como na criação de normas jurídicas voltadas para esse tema.
O início dessa história nos remonta ao período do Brasil Colônia (1500 – 1808). Nessa época, a figura do médico era exercida por duas pessoas: físico-mor, encarregado do controle da medicina e do cirurgião-mor, encarregado da cirurgia em si; eles se preocupavam não em prevenção, mas apenas na cura da doença existente. Nessa época havia um Tribunal voltado para a área da saúde chamado de Fisicatura que tinha como função básica, de acordo com Galvão (2007, p. 08), “punir os infratores com o objetivo de reservar para a medicina o espaço da doença”. Entretanto, ele afirma que “a existência da Fisicatura não revela, também, nenhuma preocupação com a formação de uma esfera autônoma e específica de conhecimento a que o poder político central deva recorrer”, o que ocasionou o redirecionamento das preocupações da saúde para a população em si, uma vez que a medicina nessa época era uma medicina de exclusão. Nesse sentido, elucida Foucault (1984, p. 88):
“O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano. Medicalizar alguém era mandá−lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros. […] A medicina era uma medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos, malfeitores, etc., em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema”.
Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil no ano de 1808 foi necessário a implementação de estruturas sanitárias básicas para atender aos indivíduos do centro econômico do Rio de Janeiro, uma vez que uma sociedade com saúde poderia garantir à Coroa mão-de-obra contínua. Entretanto, a preocupação com a saúde nessa época se restringia basicamente à fiscalização dos portos (Criação da Inspetoria Sanitária de Portos) para que se evitasse a propagação de doenças, sendo a sociedade em si deixada de lado novamente.
Na primeira década do século XX, diversas epidemias, como a febre amarela e a malária, aumentaram o índice de mortalidade nas cidades, sendo necessária uma reorganização da higiene pública do País. Foi então que surge o Movimento Sanitarista Campanhista. Esse modelo, segundo Andrade, Pontes e Martins Júnior (2000, s.p.) configurou-se em um processo de “elaboração de normas e organizações sanitárias e de mudança nas práticas dominantes até então […] visou principalmente sanear os espaços de circulação das mercadorias exportáveis e predominou até meados dos anos 60”, ou seja, a preocupação com a saúde ainda tinha um caráter eminentemente econômico, sendo deixado de lado as crianças e os idosos, uma vez que eles não faziam parte do mercado de trabalho.
Nessa época também, houve o início da reforma sanitária pelo cientista Oswaldo Cruz, que trouxe grandes avanços no combate à febre amarela, através do Serviço de Profilaxia e da Inspetoria de Isolamento e Desinfecção. Entretanto, como esses serviços eram feitos de forma obrigatória (agentes da polícia invadiam as casas e obrigavam as pessoas a tomarem as vacinas), isso culminou na Revolta da Vacina no ano de 1904 na cidade do Rio de Janeiro; Crescêncio (2010, p. 57) comenta sobre esse movimento:
“mais do que um movimento de indignação popular contra as decisões governamentais, a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro determinou uma comoção sediciosa que emergiu em meio a um contexto de confrontos políticos entre as autoridades brasileiras, conflitos que foram relatados diariamente pela imprensa, pretensamente preocupada em zelar pela saúde pública e também em definir suas posições políticas”.
Outra reforma ocorrida no ano de 1909 foi através do cientista Carlos Chagas que descobre a doença de Chagas; esse cientista era também um dos diretores do Instituto Oswaldo Cruz e no ano de 1920, virou diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública criado pelo Decreto Legislativo nº 3.987 de 02 de janeiro de 1920 que visava, basicamente, extender os serviços de saneamento urbano e rural para a população em geral.
No ano de 1923, na República Velha (1889-1930), foi criada a primeira norma jurídica voltada para a área da saúde pública: Lei Eloi Chaves. Através dela foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS) que eram basicamente fundos de contribuição tanto por parte do empregador quanto do empregado. Os benefícios dessa Caixa eram o direito à pensão, aposentadoria e assistência médica; os empregados vinculados às empresas ferroviárias foram os primeiros a receberem esse benefício, sendo posteriormente estendido aos marítimos e aos portuários.
Já no ano de 1933, na Era Vargas, agora com um modelo de assistência pública, foi criado o Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAPS), que diferentemente das CAPS, era organizado por categorias profissionais, o que acabou propiciando um maior atendimento na área da saúde para a população. Ademais, a contribuição virou tripartite, ou seja, além da contribuição dada pelos empregadores e pelos empregados, o Estado contribuía também com esse fundo. Nessa época foi promulgada a Constituição de 1937, que apesar “ser de inspiração fascista, de caráter marcadamente autoritário e com forte concentração de poderes nas mãos do Presidente da República”, como elucida Paulo e Alexandrino (2012, p. 28), possibilitou a consolidação dos IAPS, uma vez que Getúlio Vargas se preocupava bastante com as leis trabalhistas. Posteriormente em 1939 foi regulamentada a Justiça do Trabalho e em 1943 foi promulgada a Consolidação das Leis Trabalhistas
Na época do golpe militar em 1964 iniciou-se o modelo médico assistencial privatista que, de acordo com Merhy, Malta e Santos (2004, p. 06), o Estado se apresenta como “financiador direto e indireto, setor privado como o prestador e setor privado internacional como fornecedor de equipamentos biomédicos. O Estado oferta políticas compensatórias, através de ações simplificadas, para se legitimar”. Dentro desse modelo, no ano de 1966 houve a unificação dos IAPS no Instituto Nacional da Previdência Social (INPS). A priori, essa unificação foi benéfica, pois permitiu a centralização administrativa e financeira dos benefícios, mas ela ainda possuía um caráter excludente, pois atendia somente aos seus segurados.
Também dentro do regime militar, através da lei nº 6.439 de 01 de setembro de 1977, foi instituído o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS). Nesse sistema houve a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) responsável pela assistência médica dos seus segurados.
Por fim, houve a VIII Conferência Nacional de Saúde realizada no ano de 1986 que é considerada um marco histórico importante no contexto explanado, uma vez que o Sistema Único de Saúde (SUS), que trataremos mais adiante, foi idealizado nessa época.
2.1 O fornecimento de medicamentos
O fornecimento de medicamentos pelos entes federativos ocorre através do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal instituto está previsto no art. 198 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que informa que esse sistema possui certas diretrizes:
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo
dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade. (REPÚBLICA, 1988)”.
O SUS está regulamentado pela Lei federal nº 8.080/1990 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. No art. 2º desta lei, a saúde é colocada como direito fundamental do ser humano, bem como de que o Estado deve prover as condições ao seu pleno exercício. Os princípios e as diretrizes específicos do SUS estão preconizados no art. 7º da lei, como por exemplo, o princípio da universalidade e a diretriz de descentralização, sendo que esse primeiro, na visão de Teixeira (2011, p. 03) é um processo de extensão de “cobertura dos serviços, de modo que venham, paulatinamente, a se tornar acessíveis a toda a população. […] é preciso eliminar barreiras jurídicas, econômicas, culturais e sociais que se interpõem entre a população e os serviços”.
O art. 6º desta lei determina que a assistência farmacêutica integral está dentro do campo de atuação do SUS. Entretanto, a dispensação de medicamentos se refere somente aqueles que estão incluídos nas listas elaboradas pelos órgãos do SUS, conforme disposição do art. 19-M da referida lei; veremos a posição do TJMG em relação a este tópico mais adiante.
Essa lista de medicamentos está enunciada na Portaria nº 204/2007 do Ministério da Saúde que regulamenta o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde, na forma de blocos de financiamento, com o respectivo monitoramento e controle. Especificamente, esse bloco de financiamento é constituído por três componentes (art. 24): Componente Básico da Assistência Farmacêutica, Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica e Componente Especializado da Assistência Farmacêutica.
Nesse sentido, cada Componente possui uma relação de medicamentos que podem ser dispensados. Essa relação é conhecida como Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), sendo que tal lista é atualizada pela Comissão Técnica e Multidisciplinar de Atualização da Rename (Comare). O conceito de medicamento essencial foi preconizado pela World Health Organization (Organização Mundidal da Saúde), 2002 (apud RENAME, 2010, p. 15):
“[…] aqueles que servem para satisfazer às necessidades de atenção à saúde da maioria da população. São selecionados de acordo com a sua relevância na saúde pública, evidência sobre a eficácia e a segurança e os estudos comparativos de custo efetividade. Devem estar disponíveis em todo momento, nas quantidades adequadas, nas formas farmacêuticas requeridas e a preços que os indivíduos e a comunidade possam pagar”.
Vale ressaltar que a RENAME é uma das diretrizes da Política Nacional de Medicamentos (PNM), instituída pela Portaria nº 3.916/98 que tem como objetivo principal “garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais”.
Nos acórdãos pesquisados, um dos argumentos utilizado pelos entes federativos para o não fornecimento de um medicamento é de que o medicamento requerido pelo autor não se encontra padronizado, ou seja, não pertence à lista de medicamentos do SUS, o que não foi aceito pelos desembargadores (acórdão nº 1.0625.15.005192-2/001), pois demonstrado através de relatório médico de que o paciente precisa de um medicamento X, não é admitido que ele tenha que se utilizar de outro medicamento por somente estar naquela lista, pois o médico que o acompanha conhece o seu caso e seu quadro clínico.
Caso seja reconhecido esse argumento, o direito à saúde estaria sendo restringido, o que não é admitido em se tratando de um direito fundamental. Portanto, em que pese a existência dessa lista no âmbito do Sistema Único de Saúde, o fornecimento de medicamento pelo Poder Judiciário deve ser pautado na imprescindibilidade de tal dispensação, caso este não seja fornecido pelo SUS; vejamos outros argumentos utilizados pelos entes federados.
3 A ATUAÇÃO DOS ENTES FEDERADOS NO CONTEXTO DOS DIREITOS SOCIAIS
Antes de adentrarmos em outros argumentos dos entes federados, é necessário enfatizar que as normas da Constituição da República Federativa de 1988 têm como principal destinatário o povo. O povo, de acordo com Martins e Stigert (2014, p. 08) deve ser concebido “como instância de legitimidade dos atos estatais, pois possui legitimidade e soberania para escolher seus representantes que, de forma direta passará a agir em nome deles, bem como para atuar diretamente e participativamente na construção das decisões políticas da sociedade”.
Esse, na visão doutrinária de Müller (2013) se divide em vários: povo como povo ativo, povo como instância global de atribuição de legitimidade, povo como ícone, povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado. Esse último se refere ao nosso objeto de estudo, pois a relação entre indivíduo-Estado garante ao cidadão certas garantias legais, enquanto que o Estado só pode agir naquilo que a lei assim o permitir. Portanto, Müller (2013, p.75) afirma que o mero fato “de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo, menos irrelevante. […] Elas são protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente, gozam da proteção jurídica, têm direito à oitiva perante os tribunais”.
Ademais, Barroso (2009, p. 16) afirma que o direito como um todo sofreu um processo de constitucionalização, ou seja, todas as normas infraconstitucionais tiveram que se adequar ao previsto na Carta Magna. Sobre o tema, ele doutrina que:
“A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. […] Quanto ao Poder Judiciário, (i) serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado (incidental e por ação direta), bem como (ii) condiciona a interpretação de todas as normas do sistema”.
Assim, a saúde é um direito constitucional social, previsto no art. 6º da Carta Magna. Os direitos sociais na visão de Silva (2001, p. 285) é de que estes “[…] são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”.
Os direitos sociais tiveram seu início normativo no ano de 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos; essa declaração foi uma resposta da sociedade frente às atrocidades cometidas no contexto da Segunda Guerra Mundial. No art. 25 da referida declaração, o direito à saúde aparece:
“Artigo 25°:
1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. (ONU, 1948)”.
A saúde, portanto, deve ser prestada pelo Poder Público; é o que determina da forma expressa o art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Nesse sentido, outro argumento utilizado pelos entes federados – União, Estados, Municípios e Distrito Federal, mais precisamente Estado e Município, se refere a legitimidade passiva desses entes nas ações que visam o fornecimento de medicamentos. Em dois acórdãos proferidos (1.0701.15.022502-0/002 e 1.0073.15.003477-2/001), esse argumento foi utilizado pelos Municípios, sendo que no primeiro, o desembargador relator entendeu que a preliminar de ilegitimidade passiva se confundia com o mérito e deveria, portanto, ser analisada juntamente com ele. No segundo, o relator analisou de forma separada, rejeitando-a, sob fundamento de que no caso de promoção do direito à saúde, os entes são solidariamente responsáveis por tal efetivação; o art. 23, inciso II da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 vai ao encontro deste argumento:
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: […]
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; […] (REPÚBLICA, 1988)”.
No ano de 2015, o colendo Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a repercussão geral sobre esse tema, se pronunciou nesse mesmo sentido:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. (STF- Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 855178/PE, Relator: Ministro LUIZ FUX, julgamento em 05/03/2015, publicação da súmula em 16/03/2015)”.
Ainda em relação à ilegitimidade, desta vez em relação à ativa, observa-se que dos 26 (vinte e seis) acórdãos pesquisados, 12 (doze) deles tiveram como autor da ação o Ministério Público, seja nas Ações Civis Públicas ou nas Ações de Obrigação de Fazer. No segundo acórdão citado, o Município alega que o Ministério Público (MP) não teria legitimidade para a defesa de direito individual de um cidadão. Entretanto, conforme ressaltado pelo desembargador relator, nos termos do art. 127 da Carta Magna, o parquet tem a incumbência de defender os interesses individuais indisponíveis, ou seja, a saúde adentra nesse campo. Cabe-me ressaltar também que há legislação infraconstitucional que confere legitimidade ativa ao MP nas ações propostas em benefício das crianças, adolescentes e idosos, conforme art. 201, inciso V do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como o art. 74, inciso I do Estatuto do Idoso; portanto, não há que se falar em ilegitimidade do MP nas ações de direito à saúde; vejamos jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de MG a respeito desse tema:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – FORNECIMENTO MEDICAMENTOS- PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – REJEIÇÃO – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA -COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS – FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – POSSIBILIDADE. – Sendo a matéria debatida nos autos o direito constitucional à saúde de paciente menor de idade, resta patente a legitimidade ativa do Ministério Público, eis que há interesse individual indisponível, cuja defesa é atribuída ao parquet. – A tutela poderá ser antecipada, total ou parcialmente, com o intuito de garantir a efetividade e a celeridade processual, desde que estejam presentes a prova inequívoca capaz de convencer a verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. – Verificada a existência de provas suficientes que demonstram a verossimilhança das alegações da parte, bem como o perigo da demora do provimento final, além de demonstrado que o paciente não dispõe de recursos financeiros para arcar com o tratamento requerido, deve ser deferida a antecipação de tutela pleiteada. – Pacificado no Colendo Superior Tribunal de Justiça, a possibilidade de fixação de multa diária em face da Fazenda Pública. (TJMG – Agravo de Instrumento nº 1.0693.15.007536-6/001, Relator: Desembargadora YEDA ATHIAS, Órgão Julgador: 6ª Câmara Cível, julgamento em 16/02/2016, publicação da súmula em 26/02/2016)”.
Procurando conferir uma maior eficácia ao direito à saúde, observou-se que a Constituição contém diversas normas em relação à ele, inclusive normas de cunho tributário e de intervenção estatal, como as dos arts. 34, inciso VII, alínea “a” c/c art. 35, inciso III, bem como art. 167, inciso IV que enuncia sobre a vinculação de receitas de impostos. Entretanto, mesmo em uma democracia, não há direitos absolutos. Um dos limites desse direito é o princípio da reserva do possível. (REPÚBLICA, 1988)
Esse princípio, de acordo com Silva (2011, p. 26), “regula a possibilidade e a extensão da atuação estatal no que se refere à efetivação de alguns direitos sociais e fundamentais, tais como o direito à saúde, condicionando a prestação do Estado à existência de recursos públicos disponíveis”. Nos acórdãos pesquisados (1.0313.14.011656-4/001, 1.0378.15.001799-4/001, 1.0701.15.022502-0/002 e 1.0073.15.003477-2/001) esse argumento foi utilizado, mas foi rejeitado. A limitação financeira destes entes não pode ser invocada para o não cumprimento de uma ordem judicial, uma vez que essa conduta pode resultar na ineficácia do direito constitucional da saúde, direito esse essencial e fundamental. Sendo assim, o juiz tem papel relevante na eficácia desse direito, uma vez que não havendo hierarquia entre princípios constitucionais, este não pode fazer uma simples ponderação de valores; sobre a atuação do juiz veremos outras questões relevantes a seguir.
4 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO CONTEXTO DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS[7]
Conforme explanado anteriormente, o juiz é elemento-chave das decisões envolvendo o fornecimento de medicamentos, pois frente a uma demanda, este deve agir sempre que provocado; tal situação está prevista nos artigos 2º e 3º do Código de Processo Civil de 2015:
“Art. 2o O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.
Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. (REPÚBLICA, 2015)”
Desta forma, o particular decide se provoca ou não uma demanda para o juiz, mas uma vez provocado, este tem o dever legal de apreciar tal questão. Para Silva (2001, p. 63), o princípio da demanda, ou seja, a iniciativa obrigatória das partes em cunho processual, “constitui restrição quanto à postura do juiz no tocante ao direito subjetivo das partes”.
Em se tratando do recurso de agravo de instrumento (art. 1.015, inciso I do CPC/15), objeto desse estudo, a cognição feita pelos desembargadores é uma cognição sumária. Nessa cognição, o que se busca é o não perecimento do direito do autor pelo decurso do tempo, pois o agravo de instrumento é um recurso interposto em face das tutelas antecipadas que são concedidas pelos magistrados de primeiro grau. Sobre o tema, vejamos a lição de Pimenta (2004, s.p.):
“Como se vê, embora a regra geral seja a prestação da tutela jurisdicional através do procedimento de cognição plena e exauriente (capaz de produzir a certeza jurídica e os efeitos da coisa julgada material, que são o resultado da tutela jurisdicional padrão a todos prometida pelo estado), essa espera nem sempre é compatível com a natureza do direito afirmado, especialmente quando ele deve ser usufruído imediatamente, sob pena de perecimento ou de dano grave a seu titular. Em tais casos, a demora do processo é causa do denominado “dano marginal do processo”, causado pelo tempo estritamente necessário para o seu desenvolvimento normal. Para os ordenamentos processuais contemporâneos, o fator tempo tornou-se um elemento determinante para garantir e realizar o acesso à justiça”.
Portanto, no que tange ao fornecimento de medicamentos, os desembargadores devem-se pautar em sua fundamentação, de elementos de prova que informam, em sede de cognição sumária, de que o indivíduo necessita urgentemente de algum medicamento; tal cognição é pautada nos requisitos das tutelas provisórias de urgência.
As tutelas provisórias de urgência estão previstas no art. 300 do CPC/15 e visam garantir a efetividade da jurisdição, de forma que o titular de um direito possa antecipadamente usufruir deste; seus requisitos são probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, desde que não haja risco de irreversibilidade dos efeitos da decisão. Didier (2015, p. 587) elucida sobre a finalidade desta tutela antecipada:
“antecipar provisoriamente os efeitos da tutela significa adiantar no tempo […] se não tiver o condão de dar efetividade à tutela dos direitos, não deve ser concedida a tutela provisória. […] adiantar no tempo efeitos que provoquem ou impeçam mudanças no plano fático”.
O relatório médico é um elemento que pode demonstrar a probabilidade da existência do direito. Dentre os 26 (vinte e seis) acórdãos estudados, 03 (três) deles (1.0261.15.006455-6/001, 1.0313.14.011656-4/001 e 1.0702.15.049432-7/001), há a alegação por parte do Estado e dos Municípios de que o relatório médico particular não pode ser considerado como prova cabal para fins de decisão na demanda. Entretanto, os desembargadores alegaram que as informações prestadas pelo médico que acompanha o paciente deve ser presumido como verdadeiro, relativamente.
Nesse sentido, em se tratando de cognição sumária, o desembargador deve-se ater aos argumentos elencados pelo médico a respeito da necessidade e urgência de um medicamento, pois é o médico quem possui capacidade técnica para avaliar tal questão; o relatório médico deve ser um aliado do desembargador na hora da sua decisão. Este é o entendimento do colendo Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HEPATITE C. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LAUDO EMITIDO POR MÉDICO NÃO CREDENCIADO PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). EXAMES REALIZADOS EM HOSPITAL ESTADUAL. PROTOCOLO CLÍNICO E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. 1. A ordem constitucional vigente, em seu art. 196, consagra o direito à saúde como dever do Estado, que deverá, por meio de políticas sociais e econômicas, propiciar aos necessitados não "qualquer tratamento", mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento.(…) 7. Ademais, o fato de o relatório e a receita médica terem emanado de médico não credenciado pelo SUS não os invalida para fins de obtenção do medicamento prescrito na rede pública, máxime porque a enfermidade do impetrante foi identificada em outros laudos e exames médicos acostados aos autos (fls.26/33), dentre eles, o exame "pesquisa qualitativa para vírus da Hepatite C (HCV)" realizado pelo Laboratório Central do Estado, vinculado à Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Paraná, o qual obteve o resultado "positivo para detecção do RNA do Vírus do HCV" (fl. 26). 8. Recurso Ordinário provido, para conceder a segurança pleiteada na inicial, prejudicado o pedido de efeito suspensivo ao presente recurso (fls. 261/262), em razão do julgamento do mérito recursal respectivo provimento. (STJ- Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 24197/PR, Órgão Julgador: Primeira Turma – Relator: Ministro LUIZ FUX, julgamento em 04/05/2010, publicação da súmula em 24/08/2010 – grifei)”.
Entretanto, apesar do relatório médico indicar ao desembargador que um paciente necessita de um medicamento específico, é necessário que o membro do Poder Judiciário tenha alguns cuidados para que esse fornecimento não dure para sempre, ou seja, deve haver um período para obrigar o ente estatal a fornecer o medicamento, pois o paciente pode depois de alguns meses, por exemplo, não necessitar mais de tal prestação.
Nesse sentido, os desembargadores têm adotado a posição, quando garantem o fornecimento do medicamento, que tal prestação do ente deve ser condicionada à apresentação pelo indivíduo de receita médica atualizada. Vejamos a argumentação do relator no acórdão de nº 1.0071.15.004760-4/001 referente à retenção da receita médica atualizada: “[…] a retenção da receita médica atualizada […] prestigia o cumprimento racional da obrigação judicialmente imposta, e impede o fornecimento indiscriminado de tratamento médico em favor da coletividade”.
Para garantir a efetividade das decisões judiciais, os juízes têm imposto multa diária para os entes federados em caso de descumprimento da obrigação imposta. Nas razões recursais, o Estado e o Município alegam acerca da impossibilidade de fixação de multa diária em face da Fazenda Pública (1.0301.15.006703-3/001, 1.0184.14.002709-7/001 e outros). Entretanto, nos termos do art. 537 do CPC/15 (antigo §4º do art. 461 do CPC/73), o juiz pode impor multa diária ao réu, independente de pedido do autor, desde que haja razoabilidade e compatibilidade com a obrigação; é o que tem entendido o colendo Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. CABIMENTO DE IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA, CONTRA A FAZENDA PÚBLICA, POR DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO DO VALOR ARBITRADO. AGRAVO REGIMENTAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O entendimento adotado pela Corte de origem não destoa da jurisprudência do STJ, segundo a qual é cabível a cominação de multa contra a Fazenda Pública por descumprimento de obrigação de fazer. No caso em tela, a apreciação dos critérios previstos no art. 461 do CPC para a fixação de seu valor demandaria o reexame de matéria fático-probatória, o que encontra óbice na Súmula 7 desta Corte. Excepcionam-se apenas as hipóteses de valor irrisório ou exorbitante. 2. Na hipótese, o valor de R$ 1.000,00 não se mostra excessivo, a ensejar a sua revisão por esta Corte Superior, especialmente por se tratar de hipótese de fornecimento de medicamentos e tratamento de saúde. 3. Agravo Regimental do ESTADO DE PERNAMBUCO a que se nega provimento. (STJ – Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 575203/PE, Órgão Julgador: Primeira Turma – Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgamento em 18/02/2016, publicação da súmula em 02/03/2016 – grifei)”.
Dentre todos os argumentos explanados, observa-se que o Poder Judiciário adentra de forma efetiva no campo da saúde, de forma a garantir este direito fundamental; a esse fenômeno dá-se o nome de judicialização da saúde.
Conforme explanado na introdução deste trabalho, este processo ocorre quando questões sociais são decididas pelo Poder Judiciário, sendo que inicialmente, esta resolução caberia ao Poder Executivo. Segundo Barroso (2009, p. 03) três são as causas desse processo:
“A primeira grande causa da judicialização foi a Redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico – especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. […] A segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária. […] A terceira e última causa da judicialização, a ser examinada aqui, é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do mundo”.
Observa-se, portanto, que a judicialização da saúde tem ganhado bastante destaque nas discussões sociais e jurídicas, uma vez que, de acordo com o relatório sobre Judicialização da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015, p. 23), nos anos de 2011 e 2012, no âmbito do TJMG, foram encontrados cerca de mais de 3.500 (três mil e quinhentos) acórdãos com o tema saúde pública. Esse relatório traz conclusões importantes sobre o tema, pois ele analisou diversos Tribunais de Justiça, dentre eles o do TJMG. Uma das conclusões da pesquisa sobre o tema debatido é de que as demandas possuem um foco curativo (CNJ, 2015, p. 43), ou seja, as ações buscam mais medicamentos do que vacinas, por exemplo, demonstrando que o Poder Público é deficitário nessa área.
A audiência pública nº 04 realizada em 2009 pelo colendo Supremo Tribunal Federal convocada pelo Ministro Gilmar Mendes teve um papel fundamental no cenário da judicialização da saúde. Nesta, foram ouvidos mais de 50 (cinqüenta) especialistas que buscaram apresentar suas visões sobre o tema, demonstrando pontos positivos e negativos. Foi através da mesma que o CNJ criou um grupo de trabalho para desenvolver medidas concretas na área da saúde, o que culminou na aprovação em 31 de março de 2010 da Recomendação nº 31. Essa recomendação possui diversas diretrizes, dentre elas, a recomendação de que os magistrados evitem autorizar o fornecimento de medicamentos em fase experimental, instrução das ações com relatórios médicos e também que as Escolas de Magistrados promovam a realização de seminários sobre a área da saúde.
Ainda na audiência pública nº 04 constatou-se que de 51 (cinqüenta e um) palestrantes, 16 (dezesseis) desses são a favor da judicialização, enquanto que outros 16 (dezesseis) não tomaram uma posição específica, segundo dados do artigo de Gomes e outros (2014, p. 144). Segundo os autores (2014, p. 145), a crítica mais recorrente “refere-se ao fato de o juiz conceder qualquer tipo de tecnologia em saúde que, supostamente, traria benefícios clínicos ao estado de saúde da parte requerente sem levar em consideração a evidência científica disponível ou o registro da Anvisa”.
Por todo o explanado, observa-se que a judicialização da saúde é um processo inevitável, mas que pode ter seus efeitos diminuídos, caso o Poder Público interfira com políticas de saúde eficazes; a efetividade do direito à saúde depende da judicialização.
5 CONCLUSÃO
A saúde pública no Brasil perpassou por diversos momentos históricos, com seu início no período do Brasil Colônia, onde a medicina era de exclusão, pois buscava acabar com os enfermos das cidades. Tal paradigma foi modificado quando da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil em 1808, onde esta procurou melhorar as questões sanitárias das cidades, mas ainda com uma visão puramente econômica, pois uma população saudável era mão-de-obra disponível.
Nosso objeto de estudo foi ganhando relevância nas políticas públicas dos Estados quando estes perceberam que era necessário garantir pequenos direitos aos trabalhadores para proporcionar à estes um ambiente melhor de trabalho e de vida, o que teve origem com a primeira norma jurídica voltada para a saúde pública: a Lei Eloi Chaves. Diversos institutos foram criados (CAPS, IAPS, INPS E SINPAS), culminando posteriormente na criação de um Sistema Único de Saúde, o SUS (1988).
O fornecimento de medicamentos ocorre através desse sistema que tem como base normativa a Lei federal nº 8.080/1990, possuindo princípios e diretrizes na formulação de suas políticas de distribuição. Tal distribuição está regulada pela Portaria nº 204/2007 do Ministério da Saúde que enuncia blocos de financiamento para cada ente da federação, garantindo assim, um mínimo de medicamentos gratuitos para a população. Entretanto, tal fornecimento através dessa lista nem sempre garante a efetividade do direito a saúde.
Neste momento, aparece no cenário a figura da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que tem como destinatário o povo, que coloca o direito à saúde como um direito fundamental social, previsto no art. 6º da Carta Magna. Ademais, conforme norma do art. 196, o Poder Público tem o dever de garantir à população a efetividade desse direito, através de políticas sociais e econômicas. Portanto, a responsabilidade entre os entes é solidária, mas não é esse entendimento que os entes possuem.
Observa-se que nos recursos de agravo de instrumento interpostos perante o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tanto o Estado, quanto o Município, utilizam-se de argumentos para frear as demandas dos indivíduos no que tange a obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos, como por exemplo o argumento da ilegitimidade passiva e da cláusula da reserva do possível.
Esses argumentos não tendem a prevalecer no Judiciário, uma vez que o juiz, sempre que provocado, tem o dever legal de resolver a demanda e o art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 coloca o direito à saúde como um direito de todos. Em relação aos desembargadores, estes fazem uma cognição sumária a respeito da demanda de medicamentos, mas na maioria das vezes, deferem tal pedido com base nos argumentos de necessidade, urgência, pois o relatório médico indica esses requisitos.
Essa postura ativa do juiz frente ao fornecimento de medicamentos culmina no processo da judicialização da saúde. Esse fenômeno teve início na década de 90 com as demandas judiciais para o fornecimento de medicamentos e de tratamento perante os portadores de HIV/AIDS e só no ano de 2014, as demandas na área da saúde representaram 80% (oitenta por cento) da matéria dos processos no TJMG.
Desta forma, resta configurada a hipótese de que as demandas individuais devem prevalecer frente aos recursos despendidos para a coletividade, pois o juiz não pode impedir a eficácia do direito à saúde com argumentos de cunho orçamentário.
A judicialização da saúde, portanto, é um processo favorável na medida em que há uma defasagem de atendimento à população por Parte do Poder Público. Entretanto, tal prestação positiva jurisdicional no que tange ao fornecimento de medicamentos deve-se pautar por critérios objetivos, como por exemplo, observância do relatório médico, bem como de exames atuais feitos pelos pacientes que de fato demonstrem a necessidade da prestação, além de buscar enxergar o humano que existe em cada solicitação.
Informações Sobre o Autor
Cristiane Estanislau Ciccarini Pesso
Acadêmico de Direito no Centro Universitário Newton Paiva