Resumo: As modernas técnicas reprodutivas levantam questões de direito referentes à utilização de embriões formados pela prática das técnicas de reprodução artificial após a morte de um dos genitores. O presente trabalho pretende analisar o posicionamento de estudiosos e operadores do direito sobre o tema e o cenário jurídico atual que o regulamenta, com o objetivo de analisar as formas que tais embriões podem ser utilizados. A metodologia empregada é a pesquisa bibliográfica e de dispositivos legais. A pesquisa demonstra que os embriões podem ser utilizados para futura tentativa de reprodução artificial ou para pesquisa e terapia científicos, mas que, de maneira geral, o ordenamento jurídico ainda não possui normas suficiente para regular as questões legais e éticas trazidas à tona por tais técnicas modernas.
Palavras-chave: Biodireito. Reprodução artificial. Reprodução post mortem.
Abstract: The modern reproductive techniques raise questions of law concerning the use of embryos formed by the practice of artificial reproduction techniques after the death of one of the parents. O presente trabalho pretende analisar o posicionamento da doutrina e de operadores do direito sobre o tema e o cenário jurídico atual que o regulamenta, com o objetivo de analisar as formas que tais embriões podem ser utilizados. The methodology used is bibliographic research and legal devices. The research shows that embryos can be used for future attempts at artificial reproduction or for scientific research and therapy, but that, in general, the legal system does not yet have sufficient norms to regulate the legal and ethical issues brought about by such techniques.
Keywords: Biolaw. Artificial reproductio. Post mortem reproduction.
Sumário: Introdução. 1. A história da reprodução artificial. 2. A reprodução artificial. 3. Situação Jurídica da reprodução artificial no Brasil. 4. O uso de embriões. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho abordará o tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro atual à utilização de embriões excedentes das modernas técnicas de reprodução artificial, advindas do constante avanço científico e tecnológico, com atenção especial ao uso do embrião após a morte de um dos seus genitores.
O tema abordado é de suma importância, tanto dos pontos de vista ético-jurídico quanto social, devido fato de tais técnicas servirem, primeiramente, para a satisfação da necessidade reprodutiva do casal interessado e, importarem-se em segundo momento com a criança pretendida, principalmente sob seu aspecto psicológico.
O trabalho pretende analisar as normas que regem a reprodução artificial e o uso de embriões, bem como bibliografias de estudiosos do direito, com objetivo de avaliar a suficiência das leis brasileiras para regular as modernas técnicas reprodutivas e como elas ocorrem atualmente no país.
Para tanto, serão abordados o surgimento e a evolução histórica da reprodução artificial e passará, então, a descrever as principais técnicas reprodutivas, para, logo após, avaliar o atual cenário jurídico que rege a reprodução artificial no Brasil. Por fim, a analisará o uso de embriões e sua utilização post mortem.
Para alcançar os objetivos propostos será utilizada a pesquisa bibliográfica e de dispositivos legais como metodologia científica, de forma a analisar o atual cenário jurídico em torno do tema, bem como o posicionamento doutrinário em torno do mesmo.
1. A HISTÓRIA DA REPRODUÇÃO ARTIFICIAL
A valoração da família está fortemente atrelada à história humana desde os tempos mais antigos, sendo possível encontrar, por exemplo, passagem da bíblia que afirma “não é bom que o homem esteja só […] por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gênese, 2, 18.24).
Tais relatos valorizam não apenas a família, mas também a reprodução, revelando uma relação intima entre ambas que decorrem de um papel social de perpetuamento a espécie, afirmando que “como flechas nas mãos do guerreiro são os filhos nascidos na juventude. Como é feliz o homem que tem a sua aljava cheia deles” (Salmos, 127, 3-5).
Ainda, Roberto Lisboa afirma que Gregos e Romanos acreditavam que a reprodução era um dever cívico em relação ao matrimônio e à família, objetivando a formação da prole (LISBOA, 2002 p. 27 apud CRUZ, 2008 p. 3). Assim, é possível notar que o papel da família se definiu conforme os princípios de reprodução, de procriação e de sociabilização dos filhos (CRUZ, 2008 p. 5).
Os relatos de incapacidade reprodutiva igualmente datam de muitos anos, sendo a valoração da capacidade de reprodução tão forte que, segundo Eduardo Leite, “[…] a mulher estéril era encarada como ser maldito, podendo ser banida do convívio social o que justificava, em Roma, o repúdio de seu marido, rejeição essa institucionalizada” (LEITE, 1995 p. 18 apud CRUZ, 2008 p. 4).
Nos séculos 2 e 4 a.C, Galeno e Aristóteles, respectivamente, produziram os primeiros textos importantes sobre estudos de desenvolvimento embrionário. Antes, em 5 a.C, os povos gregos também haviam desenvolvido pesquisas embriológicas (MACHADO, 2012 p. 28-29).
A humanidade continuou sua análise até os dias atuais, ocorrendo a primeira experiência humana de reprodução artificial no século XVIII, onde o inglês Jhon Hunter usou a esposa de um comerciante como cobaia de inseminação artificial (CRUZ, 2008 p. 6)[1].
Em 1947 foi desenvolvida a fertilização in vitro[2] a partir de experimentos com animais e, em 1953, foi desenvolvido estudo reconhecendo a utilização de sêmen congelado para realização de inseminação artificial humana, já existindo, neste ponto, divergências éticas e jurídicas em relação a bancos de sêmen e embriões (MACHADO, 2012 p. 30).
Muito embora vários aspectos legais e sociais da família tenham sido alterados com o transcurso do tempo, ainda está presente, em boa parte dos casos, a valorização da prole, não mais como um dever cívico ou como objetivo a ser cumprido por aqueles que se unem, passando a receber um aspecto predominantemente sentimental.
Hoje em dia muitas pessoas sonham com a possibilidade de gerar filhos frutos de suas próprias células reprodutivas. Assim, a reprodução artificial surgiu como uma resposta e solução aos casos de infertilidade e esterilidade que acometem parcela da população, obstruindo ou dificultando a realização do sonho desejado pelos possíveis genitores.
2. A REPRODUÇÃO ARTIFICIAL
A reprodução humana assistida, segundo Ana Cláudia Scalquette, “é aquela em que o casal recebe orientação de forma a programar a maneira de suas relações, visando a facilitação do encontro do espermatozoide com o óvulo” (SCALQUETTE, 2010 p. 58). Ainda, a referida autora afirma que “a assistência à reprodução pode se dar, destarte, de duas maneiras: apenas em forma de aconselhamento e acompanhamento da periodicidade da atividade sexual do casal, a fim de otimizar as chances de que ela resulte em uma gravidez, ou pelo emprego de técnicas médicas avançadas, de modo a interferir diretamente no ato reprodutivo, objetivando viabilizar a fecundação” (SCALQUETTE, 2010 p. 58).
De forma mais objetiva, Ivelise Cruz classifica as técnicas de reprodução assistida em métodos de alta e de baixa complexidade, estando entre estas o coito programado, enquanto naquelas encontram-se a fertilização in vitro, a inseminação artificial e a injeção intracitoplasmática de espermatozoide (CRUZ, 2008 p. 53).
Logo, percebe-se que a reprodução artificial consiste no conjunto de técnicas medicamente assistidas, de alta complexidade, com o objetivo de unir as células reprodutivas viabilizando a gravidez em casais acometidos por problemas de infertilidade ou esterilidade.
Os conceitos de infertilidade e esterilidade são distintos, sendo esta a condição do casal que mantem relações sexuais com intuito de procriar e não consegue obter a fecundação (MOREIRA, 2002 p. 1 apud SCALQUETTE, 2010, p. 60), enquanto aquela é a do casal que, nas mesmas condições, alcança a fecundação, porém o produto da concepção não possui viabilidade (SANTOS, 1996 p. 269-270 apud SCALQUETTE, 2010, p. 61).
Na fertilização in vitro serão colhidos óvulos e sêmen para que a fecundação ocorra fora do corpo da mulher, com a posterior introdução do embrião no útero (DINIZ, 2014 p. 279), ocorrendo em três etapas. Na primeira etapa o medicamente injetável estimulará a ovulação feminina, na segunda ocorrerá a coleta dos gametas e na terceira ocorrerá a manipulação para a fecundação extracorpórea e posterior tentativa de inseminação do embrião (CRUZ, 2008 p. 27-28).
O medicamento injetável será ministrado juntamente com doses de estrogênio e será colhido, na segunda etapa, mais de um ovulo, sendo todos fecundados gerando embriões, dos quais apenas os viáveis e saudáveis serão utilizados, crioconservando-se os excedentes, conforme o Item 2, da V secção do Anexo Único da Resolução nº 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina.
Na inseminação artificial o sêmen será introduzido diretamente no aparelho reprodutor feminino com ajuda de um cateter, havendo a fecundação dentro do corpo da mulher, sem que haja manuseio externo do óvulo ou embrião (DINIZ, 2014 p. 679), sendo este método indicado para casos de infertilidade sem causa aparente e presença de anticorpos antiesperma (CRUZ, 2008 p. 24).
Na injeção intracitoplasmática de espermatozoide ocorre com a retirada do espermatozoide diretamente do epidídimo[3] ou do testículo, passando, logo após, a serem realizadas todas as etapas descritas para a fertilização in vitro. Portanto, esta técnica pode ser considerada um desdobramento mais complexo daquela, devendo ser utilizada nos casos de infertilidade masculina grave (CRUZ, 2008, p. 32-33).
Conforme a doutrina predominante, as técnicas de reprodução artificial mencionadas podem ser classificadas em homóloga e heteróloga. Na homóloga a técnica reprodutiva empregada utilizará os óvulos e sêmen do respectivo casal interessado, enquanto na heteróloga o método escolhido utilizará células reprodutivas de um doador.
3. SITUAÇÃO JURÍDICA DA REPRODUÇÃO ARTIFICIAL NO BRASIL
Embora os estudos científicos em torno da reprodução assistida e da reprodução artificial venham ocorrendo há algum tempo, os avanços tecnológicos e científicos que possibilitam a realização dos referidos métodos são, na verdade, bastante recentes, logo, o ordenamento jurídico ainda não teve tempo suficiente para se adaptar a tais novidades.
Atualmente, umas das poucas normas que tentam regulamentar a reprodução artificial e a utilização de embriões são a Resolução do Conselho Federal nº 2.121/2015[4] e a Lei 11.105/2005 comumente chamada de “Lei de Biossegurança”[5]. Essa última foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510, proposta pelo Procurador-Geral da República que alegava ser inconstitucional a manipulação de células embrionárias, da qual o STF editou seu informativo nº 508:
“PLENÁRIO. ADI e Lei da Biossegurança – 6. Em conclusão, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei federal 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), que permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não usados no respectivo procedimento, e estabelece condições para essa utilização – v. Informativo 497. Prevaleceu o voto do Min. Carlos Britto, relator. Nos termos do seu voto, salientou, inicialmente, que o artigo impugnado seria um bem concatenado bloco normativo que, sob condições de incidência explícitas, cumulativas e razoáveis, contribuiria para o desenvolvimento de linhas de pesquisa científica das supostas propriedades terapêuticas de células extraídas de embrião humano in vitro. Esclareceu que as células-tronco embrionárias, pluripotentes, ou seja, capazes de originar todos os tecidos de um indivíduo adulto, constituiriam, por isso, tipologia celular que ofereceria melhores possibilidades de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais em situações de anomalias ou graves incômodos genéticos. Asseverou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal, quando se refere à "dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), aos "direitos da pessoa humana" (art. 34, VII, b), ao "livre exercício dos direitos… individuais" (art. 85, III) e aos "direitos e garantias individuais" (art. 60, § 4º, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim, numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de que trata seu art. 5º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado. ADI 3510/DF, rel. Min. Carlos Britto, 28 e 29.5.2008.” (grifo nosso).
Assim, ao julgar a improcedência da referida ADI, o Supremo Tribunal Federal assentou seu posicionamento quanto a teoria natalista para aquisição da personalidade civil. Para melhor entender o tema, faz-se necessário elencar os conceitos de “personalidade civil” e as teorias do momento de sua aquisição existentes na doutrina.
Primeiramente, cabe salientar que é facilmente perceptível, da análise dos dispositivos normativos brasileiros, a importância e rigidez do ordenamento jurídico no que trata da proteção da vida humana, conforme o inciso IV, do art. 3º da Constituição Federal de 1988: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Além disto, a Carta Magna estabelece o direito à vida no caput de seu art. 5º, garantindo “[…] aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Embora a Constituição contemple o direito à vida e a proteção da vida humana, não tratou de definir o entendimento que o ordenamento jurídico deverá adotar para que reconheça o momento no qual se inicia a proteção jurídica a vida humana. Para resolver tal questão o art. 2º do Código Civil de 2002 estabelece que, malgrado a personalidade civil da pessoa comece do nascimento com vida, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
A personalidade civil, que se inicia com o nascimento com vida, não deve ser confundida com a personalidade jurídica. Nas palavras de De Plácido e Silva, a personalidade civil exprime a qualidade da pessoa legalmente protegida, para que lhe sejam atribuídos direitos e obrigações, conforme a lei, sendo esta decorrente da existência natural ou jurídica (SILVA, 2008 p. 562). Enquanto a personalidade jurídica é aquela atribuída ou assegurada às pessoas jurídicas, que as tornam suscetíveis de direitos e obrigações e garantindo-lhes existência própria protegida por lei (SILVA, 2008 p. 562).
A personalidade civil se traduz na aptidão do ser humano para contrair direitos e deveres na ordem civil, conforme expresso no art. 1º do Código Civil. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves “para qualquer pessoa […] basta nascer com vida e, desse modo, adquirir personalidade” (GOLÇALVES, 2011 p. 100), entendimento este bastante parecido com o supracitado do Supremo.
Ainda, segundo Helena Diniz “quando o Código Civil enuncia, no seu art. 1º, que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, não dá a entender que possua concomitantemente o gozo e o exercício desses direitos, pois nas disposições subsequentes faz referência àqueles que tendo o gozo dos direitos civil não podem exercê-los, por si, ante o fato de, em razão de menoridade ou de insuficiência somática, não terem a capacidade de fato ou de exercício” (DINIZ in FIUZA; SILVA, 2012 p. 87).
Maria Helena Diniz afirma que “[…] a aptidão oriunda da personalidade para adquirir direitos e assumir deveres na vida civil dá-se o nome de capacidade de gozo ou de direito” (DINIZ in FIUZA; SILVA, 2012 p. 87). Então, o nascituro terá seus direitos resguardados a partir da concepção, porém concretizados com seu eventual nascimento com vida.
A doutrina elenca três teorias que tentam definir quando ocorre a aquisição da personalidade e, por consequência, o início da proteção desta. A teoria natalista diz que a personalidade do ser humano se inicia no nascimento com vida (PINTO, 2015 p. 36), sendo este o entendimento firmado pelo Supremo Tribuna Federal a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510.
A teoria da personalidade condicional, semelhante à teoria natalista, explica que a personalidade civil começa com o nascimento com vida e que os direitos do nascituro estão sujeitos a condição suspensiva do seu nascimento com vida. Enquanto a teoria concepcionista sustenta que o nascituro possui personalidade ainda que no ventre, devendo seus direitos serem resguardados pela lei desde a concepção. Esta é a teoria aceita pela maioria dos doutrinadores como Silmara Juny Chinellato, Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Pablo Stolze Gagliano, Maria Helena Diniz, dentre outros (TARTUCE, 2011 p. 70).
Em julgado de 2014, o Supremo Tribunal de Justiça, em seu informativo nº 547, explicita que “o ordenamento jurídico como um todo (e não apenas o CC) alinhou-se mais à teoria concepcionista – para a qual a personalidade jurídica se inicia com a concepção, muito embora alguns direitos só possam ser plenamente exercitáveis com o nascimento, haja vista que o nascituro é pessoa e, portanto, sujeito de direitos – para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea. Além disso, apesar de existir concepção mais restritiva sobre os direitos do nascituro, amparada pelas teorias natalista e da personalidade condicional, atualmente há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante, uma vez que, garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trânsito subsume-se ao comando normativo do art. 3º da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina. (REsp 1.415.727-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/9/2014.)” (grifo nosso).
Assim, não resta dúvida quanto a prevalência da teoria concepcionista no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo as teorias natalista e da personalidade condicional suficientes para resguardar os direitos da personalidade do nascituro, devendo seus direitos, dentre eles o à vida, ser garantido desde a concepção, devendo o embrião, por tanto, ser considerado nascituro e ter seus direitos resguardados.
4. O USO DE EMBRIÕES
A Lei nº 11.105/2005, também chamada “Lei de Biossegurança”, em seu art. 5º permite a utilização de células tronco embrionárias, para fins de pesquisa e terapia, de embriões excedentários da fertilização in vitro, desde que atendido um dos requisitos expostos em seus incisos I e II: sejam embriões inviáveis para o uso na reprodução artificial ou que estejam congelador há, no mínimo, três anos.
Porém, ante o fato da prevalência da teoria concepcionista no atual ordenamento jurídico, haveria que se pensar que a decisão da ADI 3.510 e a utilização de células tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia seja inconstitucional por ferir os direitos da personalidade civil adquiridos no momento da concepção, porém tal linha de raciocínio não deverá prevalecer.
Apesar dos preceitos concepcionistas, a Lei de Biossegurança trata apenas do uso de embriões em que o desenvolvimento jamais virá a acontecer, no caso dos inviáveis ou crioconservados por, no mínimo, três anos ocorrendo, segundo Flávio Tartuce, presunção de morte do embrião (TARTUCE, 2016 p. 82).
O referido autor elenca uma segunda justificativa “porque a partir de uma ponderação de valores constitucionais, os interesses da coletividade quanto à evolução científica devem prevalecer sobre os interesses individuais ou de determinados grupos, sobretudo religiosos. […] Por fim, insta repisar que os critérios para a utilização das referidas células são rígidos, o que traz a conclusão do seu caráter excepcional” (TARTUCE, 2016 p. 82).
Segundo a referida lei, células tronco embrionárias são as células do embrião humano que possuem a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido do organismo humano (art. 3º, XI). Ainda, o art. 5º, em seu parágrafo 3º, veda a comercialização do material biológico de que trata, tipificando tal conduta no crime descrito no art. 15 da Lei 9.434/97.
Em seu parágrafo 1º, o art. 5º estabelece a necessidade de consentimento dos genitores do embrião para utilização aos fins estabelecidos no caput do dispositivo. O comando em comento necessita especial atenção, tendo em vista que quando se tratar de embriões homólogos, será possível definir os genitores, porém o mesmo não ocorre no caso de embriões heterólogos.
O art. 21 do Código Civil estabelece que a vida privada da pessoa natural é inviolável, possibilitando ao juiz adotar providências para que cesse o ato contrário a tal comando legal a requerimento do interessado. Além disto, item 2, IV, da Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina prevê que “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”.
Logo, os embriões formados com participação de célula reprodutiva vinda de doador anônimo poderiam ser inseridos dentro do comando parágrafo 1º do art. 5º da Lei de Biossegurança? Dá análise dos textos legais, a resposta dedutível será negativa, cabendo tal comando tão somente aos embriões que se conhece os genitores, os homólogos.
A secção nº I do anexo da Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina inaugura o conteúdo da mesma estabelecendo normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, que servem como dispositivos deontológicos a serem seguidos pelos médicos.
Os itens da referida secção estabelecem o objetivo da reprodução assistida, estabelecendo-a como medida final a ser empregada quando demais formas terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para sanar os problemas reprodutivos do interessado (item 1), devendo ser adotada apenas quando exista probabilidade efetiva de êxito e não exponha o paciente ou seu possível descendente à risco grave, não podendo a idade da paciente ser superior a 50 anos (item 2), podendo haver exceções ao limite etário (item 3).
O paciente ou casal deverá preencher formulário especial de consentimento informado onde conste detalhadamente todos os aspectos médicos e riscos envolvendo a técnica reprodutiva, bem como os resultados já obtidos na unidade médica escolhida e, ainda, todos os dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico (item 4).
O dispositivo proíbe a seleção do sexo ou qualquer outra característica do futuro filho, salvo para evitar doenças ligadas ao sexo da criança (item 5), além de proibir, também, a fecundação de células reprodutivas humanas, através de métodos de reprodução assistida, com outra finalidade que não a reprodutiva (item 6).
A reprodução assistida possui o risco de multiparidade e, por tanto, o número de embriões a serem inseridos no corpo feminino nunca deve ser superior a quatro, sob pena de aumentar as chances do referido risco (item 7). Caso a multiparidade ocorra, é proibida a redução embrionária (item 8).
A secção V estabelece, em seu item 2, que o centro médico informe ao paciente o número de embriões produzidos em laboratório, decidindo-se quantos embriões serão implantados “a fresco”, devendo o número excedente ser crioconservado, ficando proibido o posterior descarte ou destruição, devendo, no momento da conservação, ser informado pelos cônjuges ou companheiros, por escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões em caso de morte, divórcio ou doença grave de um ou ambos e se desejam doá-los (item 3)
O item 4, da secção V, estabelece a possibilidade de descarte de embriões crioconservados a mais de cinco anos caso seja a vontade dos genitores, não sendo obrigatória a utilização para fins de pesquisa e terapia com células tronco, prevista no art. 5º da Lei de Biossegurança.
Assim, o uso de embriões excedentes crioconservados poderá ocorrer tanto para fins de pesquisa científica e terapia com células troncos, quando preenchido um dos requisitos previstos no art. 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), quanto para posterior tentativa de inseminação com finalidade de reprodução, seja no próprio casal interessado, seja havendo a doação de tais embriões, conforme sua vontade expressa, inclusive post mortem, permitida na secção VIII da Resolução CFM 2.121/2015.
No caso específico da utilização de embriões post mortem, ou seja, após a morte de um dos genitores, é possível deparar-se com dilema ético-jurídicos que gerará desafio para o direito e para a ciência jurídica, pela alegação de “coisificação” do ser humano (DINIZ, 2014 p. 680-681), estando o ordenamento jurídico atual, indubitavelmente em processo de adaptação em relação aos modernos métodos reprodutivos.
Nesse sentido, Diniz questiona “será que toda pessoa teria o direito, em qualquer condição, de ter um filho? Teria o direito à procriação artificial? A criança gerada artificialmente não correria o risco de ser considerada como um meio e não como um fim em si mesma? Parece-nos, então, que o sujeito primário da preocupação não seria a criança, mas sim o casal estéril. […] No porvir, poder-se-á ter uma legião de seres humanos feridos na sua constituição psíquica e orgânica… […] As novas técnicas conceptivas, de um lado, “solucionam” a esterilidade do casal, que terá seu filho, com interferência de ambos, de um só deles ou de nenhum deles, mas por outro lado, acarretam graves problemas jurídicos, éticos, sociais, religiosos, psicológicos, médicos e bioéticos”(DINIZ, 2014, p. 681-683).
CONCLUSÃO
Ante o exposto, foi possível constatar que a utilização de embriões homólogos crioconservados poderá ocorrer, conforme a disposição do art. 5º da Lei de Biossegurança, para fins de pesquisa e terapia com células tronco ou, conforme a Resolução CFM 2.121/2015, para nova tentativa de reprodução do casal ou sua doação, conforme a disposição de vontade expressa dos genitores, sendo, conforme a referida Resolução, possível o descarte de embriões conservados a, no mínimo, cinco anos e não sendo a utilização para os fins especificados na Lei de Biossegurança obrigatória.
Não restaram dúvidas quanto ao fato do ordenamento jurídico permitir a reprodução artificial post mortem sem antes analisar a totalidade seus reflexos e consequências ético-jurídicas e sociais, dentre elas a “coisificação” do ser humano e sua produção visando, em primeiro lugar, satisfazer necessidades reprodutivas e preocupando-se posteriormente com o aspecto, dentro outros, psicológico da criança gerada.
Constatou-se que para que o cônjuge ou companheiro sobrevivente utilize o embrião homólogo para reprodução post mortem, necessitará de anuência expressa feita pelo de cujus quando ainda em vida, estando ambos conscientes da responsabilidade assumida em eventual sucesso da técnica reprodutiva.
Dentre as opiniões dos estudiosos, ficou demonstrado que após a decisão, claramente natalista, dada para a ADI 3510, instaurou-se a prevalência da teoria concepcionista no ordenamento jurídico e que, tal fato, mesmo assim, não invalida a decisão do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a norma atacada ser constitucional por presumir a morte do embrião antes de sua utilização para fins de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. O mesmo entendimento se estende ao caso de descarte do embrião após cinco anos de crioconservação.
Foi possível constatar que o legislador necessita atentar para possíveis desafios ético-jurídicos surgidos com o nascimento de filho póstumo a morte do genitor, sendo exemplo dessa necessidade a adaptação do art. 1.597, III, do Código Civil, que passou a presumir a criança concebida na constância do casamento.
Assim, conclui-se pela necessidade de o legislador criar normas rígidas referentes a reprodução humana artificial post mortem, com o intuito e efeito de priorizar em primeiro lugar a criança pretendida e em segundo lugar a satisfação dos desejos ou necessidades reprodutivas do casal que pretende a concepção de filhos através das referidas técnicas.
Informações Sobre o Autor
André Luis Penha Corrêa
Advogado. Pós-graduando no curso de Mestrado em Direito e Justiça Social da FURG. Pós-graduando no curso de Especialização em Direitos Humanos da Faculdade Verbo Jurídico. Especialista em Direito Civil pela Rede de Ensino LFG. Graduado no curso de Direito da Faculdade Anhanguera do Rio Grande