Resumo: A autora problematiza a relação do abuso do poder diretivo com o assédio moral organizacional, a fim de demonstrar como a melhor compreensão daquele impacta no efetivo combate a este.
Sumário. Introdução. 1. A caracterização da relação de emprego e a subordinação. 2. As formas de expressão do poder diretivo e sua natureza jurídica. 3. Os limites ao poder diretivo como elementos essenciais de sua caracterização. 4. Abuso do poder diretivo e o assédio moral organizacional.Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa usa da abordagem qualitativa a fim de delinear a transgressão aos limites do poder diretivo como traço definidor essencial do assédio moral organizacional. Revela-se, assim, como a própria alteração histórica da definição do poder diretivo mostra uma nova compreensão do papel teleológico que exerce dentro da relação de trabalho e que, quando o empregador dele se afasta, recai em abuso, sendo uma das formas de tal abuso o chamado assédio moral organizacional. A primeira seção dedica-se a discutir a subordinação como elemento da relação de emprego; após, são apresentadas as diferentes concepções sobre poder diretivo e seu elemento comum limitativo de seu uso, mormente nas visões contemporâneas; por fim, discute-se a definição do assédio moral organizacional nesse contexto.
1. A CARACTERIZAÇÃO DA RELAÇÃO DE EMPREGO E A SUBORDINAÇÃO.
A presença do assédio moral não é exclusiva da relação de emprego, no entanto, ela se faz mais presente ou mais evidente, dada a presença das características que lhe são inerentes, como a subordinação, por exemplo. Por isso, será feita uma concentração de análise do fenômeno neste tipo de relação laboral.
Entende-se a relação de emprego como uma espécie da relação de trabalho, esta que “traduz, portanto, um gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual”[1]. A relação de emprego corresponde a um tipo legal próprio e específico, distinta das demais modalidades de relação de trabalho vigentes.
A relação de emprego configura-se quando reunidos alguns elementos que lhe são próprios e necessários, conhecidos como elementos fático-jurídicos da relação de emprego. São eles: a prestação de trabalho por pessoa física; de forma pessoal, ou seja, intuito personae; não eventual; subordinada e onerosa[2].
O sujeito empregado tem que ser sempre uma pessoa física, afastadas as situações de simulação, em que se cria uma pessoa jurídica para burlar a aplicação do Direito do Trabalho. Outro elemento da relação de emprego é a pessoalidade que, apesar de guardar relação com a exigência de o empregado ser pessoa física, dela se distingue por exigir mais do que um sujeito natural, exige a prestação de serviço com caráter personalíssimo. O empregado contratado não pode se fazer substituir intermitentemente ao longo da prestação de serviço[3].
O elemento da não eventualidade se traduz pela necessidade de que a prestação de um serviço, para ser considerada uma relação de emprego, não seja meramente esporádica[4].
A onerosidade é o elemento que determina que, para haver uma relação de emprego, é preciso que os sujeitos envolvidos na relação entendam-na como uma troca entre o valor econômico da força de trabalho e a contrapartida econômica em benefício do obreiro. A onerosidade se manifesta em dois planos: o objetivo e o subjetivo. No plano objetivo, a onerosidade traduz-se pelo pagamento pelo empregador de parcelas para remunerar o empregado de acordo com o contrato empregatício. No plano subjetivo, a onerosidade representa a intenção contraprestativa de ambas as partes com relação ao trabalho prestado[5].
A relação empregatícia para se concretizar precisa de reunião dos cinco elementos fático-jurídicos citados, no entanto, a subordinação destaca-se entre eles, sendo responsável por distinguir diversas relações de trabalho da relação de emprego[6]. É por meio da subordinação que o empregador exerce poder sobre o empregado, fazendo-o seguir e obedecer às ordens impostas sobre o modo de prestação laboral. Trata-se de um fenômeno jurídico, derivado do contrato de trabalho, em que o empregado acolhe o direcionamento objetivo do empregador no que atinge à prestação de trabalho. [7]
A subordinação sofreu modificações ao longo dos últimos dois séculos, adotando diferentes formas e abordagens, por isso existem ao menos três dimensões sobre o fenômeno da subordinação: a clássica, a objetiva e a estrutural.
A dimensão clássica da subordinação é aquela que a vê como uma situação jurídica, derivada do contrato de trabalho, que leva o empregado a observar o poder de direção empresarial quanto à realização da prestação laborativa. Ligada ao conceito clássico de subordinação estava a ideia de dependência econômica e social do empregado em relação ao empregador[8].
A dimensão objetiva manifesta-se pela integração do empregado nos fins e objetivos da empresa, ainda que mais dispersas. O que define o trabalho subordinado, na dimensão objetiva, é a integração do empregado aos objetivos empresarias[9].
A estrutural é a dimensão que entende a subordinação como a vinculação do empregado à dinâmica operativa da atividade da empresa, não importando o quanto ele se integre aos objetivos ou recebe ordens diretas. O que determina a subordinação é a inserção do trabalhador à dinâmica da empresa[10].
Essas três dimensões não são excludentes, na verdade, se harmonizam para demonstrar as diversas formas como o empregado pode estar subordinado na relação de emprego. Maurício Godinho Delgado esclarece que:
“Na essência, é trabalhador subordinado desde o humilde e tradicional obreiro que se submete à intensa pletora de ordens do tomador ao longo de sua prestação de serviços (subordinação clássica), como também aquele que realiza, ainda que sem incessantes ordens diretas, no plano manual ou intelectual, os objetivos empresariais (subordinação objetiva), a par do prestador laborativo que, sem receber ordens diretas das chefias do tomador de serviços, nem exatamente realizar os objetivos do empreendimento (atividades-meios, por exemplo), acopla-se, estruturalmente, à organização e dinâmica operacional da empresa tomadora, qualquer que seja sua função ou especialização, incorporando, necessariamente, a cultura cotidiana empresarial ao longo da prestação de serviços realizada (subordinação estrutural)”[11]
A subordinação, portanto está diretamente ligada ao exercício de poder dentro da relação de emprego. Como afirma Maurício Godinho Delgado, o fenômeno do poder é um dos mais relevantes na experiência histórico-social do homem, e uma das mais importantes manifestações de poder no mundo contemporâneo se expressa no contexto empregatício. Para o autor, o poder empregatício pode ser conceituado como “conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços”[12].
Segundo o conceito lançado por Maurício Godinho Delgado, fazem parte do conjunto de prerrogativas que compõem o poder empregatício o poder diretivo, o poder regulamentar e poder fiscalizatório ou poder disciplinar.[13] Há quem defenda que, na verdade, que todas as formas de poder citadas são expressões ou derivações do poder diretivo, sendo este a única expressão autônoma de poder, por isso mesmo, a Consolidação das Leis Trabalhistas, ao lançar o conceito de empregador, em seu artigo 2º, faz menção ao poder de dirigir[14].
2. AS FORMAS DE EXPRESSÃO DO PODER DIRETIVO E SUA NATUREZA JURÍDICA.
Para compreender a relação entre o poder empregatício, a qualidade do meio ambiente do trabalho e o assédio moral organizacional, faz-se necessária uma, ainda que breve, análise do poder empregatício em suas diversas faces. O poder empregatício, como dito, divide-se em quatro formas de expressão: o poder diretivo, poder regulamentar, poder fiscalizatório e poder disciplinar.
O poder diretivo volta-se para a organização da estrutura e do espaço empresariais, incluídas as especificações e orientações sobre a prestação de serviços. O poder diretivo concentra-se na figura do empregador, o que se explica pelo controle jurídico que exerce sobre o conjunto da estrutura empresarial e por sua assunção dos riscos do empreendimento[15].
O poder regulamentar revela-se pela prerrogativa que cabe ao empregador de determinar regras gerais a serem observadas no âmbito da empresa. Para a doutrina dominante, a atividade regulamentar é a instrumentalização do poder diretivo, sem a prerrogativa de criar regras, não seria possível a direção da empresa[16]. Inegável, no entanto, que a prerrogativa de criar cláusulas contratuais pelo empregador que vinculem os trabalhadores existe.
O poder fiscalizatório manifesta-se por meio de diversas medidas adotadas pelo empregador para acompanhar continuamente a prestação de trabalho e para vigiar o espaço empresarial interno. Como todas as demais formas de poder acima apresentadas, o poder fiscalizatório não pode ser utilizado pelo empregador de forma arbitrária, causando constrangimentos e humilhações aos trabalhadores. Como assevera Maurício Godinho Delgado, a Constituição Federal de 1988 rejeita condutas fiscalizatórias e de controle da prestação de serviços que firam a liberdade e dignidade do trabalhador[17].
Nesta mesma linha, afirma Sérgio Pinto Martins que são limites constitucionais ao poder fiscalizatório – que o autor denomina poder de controle -, os preceitos do artigo 5º, que determinam a preservação da intimidade dos empregados (art. 5º, X) e a vedação ao tratamento desumano e degradante (art. 5º, III)[18].
Por último, há o poder disciplinar que se revela como o conjunto de prerrogativas do empregador para impor sanções aos empregados que tenham descumprido obrigações contratuais. Assim como o poder diretivo, o disciplinar passou por um processo de democratização, aplicando-se diversos temperamentos à autonomia do empregador. Isto porque se reconhece que o abuso ao poder disciplinar tem condão de afetar direta e enfaticamente a personalidade dos trabalhadores[19].
Quanto à natureza jurídica do poder empregatício, são quatro concepções tradicionalmente referidas pela doutrina: direito potestativo, direto subjetivo, fenômeno de caráter hierárquico e poder como direito-função. As três primeiras dimensões, de acordo com Maurício Godinho Delgado, têm muito em comum, pois percebem no empregador o titular quase absoluto no exercício desse poder[20].
O poder empregatício como direito potestativo o analisa como uma prerrogativa garantida pelo ordenamento jurídico que assegura ao seu titular atingir efeitos jurídicos mediante exercício exclusivo de sua vontade. A existência de um direito potestativo faz nascer para as partes contrárias um dever de não violação a esse direito. Trata-se de uma visão individualista da relação entre empregador e empregados, capaz de gerar verdadeiro despotismo dentro das empresas. O poder empregatício deixou de ser entendido como um direito potestativo do empregador, especialmente com a emergência da participação democrática obreira no estabelecimento e na empresa[21].
O significado de classificar o poder empregatício como um direito subjetivo é dizer que se trata de uma prerrogativa conferida ao empregador garantindo que possa agir para satisfazer seus interesses em estrita conformidade com a norma ou cláusula contratual, seu ponto contraposto é uma obrigação. Trata-se de um avanço com relação à classificação como direito potestativo, mas ainda tímido, permanecendo a concepção unilateral e rígida. [22].
O poder empregatício já foi visto como fenômeno de natureza hierárquica, cujo fundamento está em entender a natureza hierárquica como inerente à estrutura da empresa ou como uma decorrência necessária do contrato empregatício. Via-se uma clara ideia de que os interesses institucionais se sobrepunham aos interesses obreiros. Trata-se de uma análise corporativista e autoritária da relação de emprego[23].
As três primeiras classificações apresentadas têm viés de reconhecer o poder dentro da empresa como unilateral, impenetrável pelos trabalhadores, sendo fundamento para concepções despóticas de empresa e incompatíveis com as transformações democráticas conquistas pelos trabalhadores ao longo do século XX. Diante das limitações e incompatibilidades das teorias existentes, foi classificado o poder empregatício como um direito-função.
Como sustenta Renato Muçouçah, a institucionalização do poder empregatício o torna poder hierárquico, havendo uma intenção clara ao longo de toda a rede hierárquica de que o que se pretende é a satisfação dos interesses da empresa[24].
De acordo com a classificação como direito-função, o poder empregatício é uma prerrogativa dada a um titular para que possa agir em tutela de interesse alheio. O empregador, desta forma, agiria baseando-se não apenas nos interesses próprios, mas nos da comunidade dos trabalhadores.[25]
Um dos defensores do poder empregatício como direito-função é Octavio Bueno Magano, que defendia a superioridade do interesse alheio ao do titular do poder, comparando-o com o poder familiar, em que os interesses da família devem se sobrepor aos interesses individuais. Ao mesmo tempo em que defende o interesse comunitário, Magano reconhece que a prerrogativa do poder empregatício é do empresário[26], o que Maurício Godinho Delgado critica, afirmando que, apesar de reconhecer uma mudança, esta classificação mantém a unilateralidade do exercício do poder[27].
Em contraponto às quatro teorias apresentadas, Maurício Godinho Delgado propõe a concepção do poder empregatício como uma relação jurídica contratual complexa, qualificada pela “plasticidade de sua configuração e pela intensidade variável do peso de seus sujeitos componentes”[28].
A classificação proposta consegue abarcar os diversos momentos históricos de conformação de poder dentro das empresas, com maior ou menor participação dos empregados nessa construção. A noção do poder empregatício como relação reconhece a participação do trabalhador no exercício do poder, ainda que entenda que, em determinados contextos históricos, essa participação possa ser mitigada ou praticamente inexistente, reconhecê-la como parte integrante do poder é afirmá-la e até mesmo fortalecê-la.
No entanto, muitos são aqueles que se negam a reconhecer a participação dos trabalhadores na titularidade do poder empregatício, especialmente, entre empregadores. A prevalência de organizações empresariais em que há o exercício do poder empregatício unicamente pelo empregador faz com que ainda se acredite que somente a ele cabe dirigir, fiscalizar, normatizar e disciplinar a empresa, que é dele o interesse que deve sempre prevalecer. Ao empregador caberia, apenas, obedecer às imposições[29].
Diante dessa negativa de participação dos trabalhadores, Renato Muçouçah define o poder empregatício como força, que serve para organizar as atividades produtivas, mas também para eliminar os antagonismos de classe[30].
3. OS LIMITES AO PODER DIRETIVO COMO ELEMENTOS ESSENCIAIS DE SUA CARACTERIZAÇÃO.
Independentemente da corrente que se adota, tem-se, como traço essencial das releituras do poder diretivo, o destaque dado aos seus limites, matéria ontologicamente afeita ao abuso de direito.
Assim, em todas as acepções afirma-se que a subordinação ou mesmo o poder empregatício não são absolutos. O empregado só é subordinado quanto a sua forma de prestar serviços e, ainda quanto a isso, não pode o empregador exigir jornadas excessivas, exposição a riscos desnecessários, cobrá-lo de modo abusivo, por exemplo.
Desta forma, existem limites ao poder empregatício e estão eles expressos na Constituição Federal, nas leis, nas normas coletivas, dentre outros instrumentos de proteção dos trabalhadores[31]. Para Adriane Reis de Araújo podem ser considerados, resumidamente, limites ao poder diretivo:
“(…) é proibido ao empregador exigir a prática de uma conduta ilícita ou que exponha as outras pessoas e o próprio empregado a situações nocivas, de grave perigo ou vexatórias, bem como exigir a prestação de serviços incompatíveis com a qualificação profissional correspondente à função para a qual o trabalhador foi contratado. As exigências empresariais desligadas da prestação de serviços são fundamentadas na obrigação de o empregado zelar pelo patrimônio da empresa e atuar com eticidade, lealdade, boa-fé e diligência, princípios igualmente dirigidos ao empregador. A prática empresarial faz vista grosso ao fato de a indeterminação desses conceitos não compactuar com toda sorte de ordens, por exemplo: é certo que a lealdade do empregado não pode ser postulada diante de um comportamento ilícito da empresa, ou então a diligência pressupor a disponibilidade diuturna do empregado. Logo, ao assalariado é reconhecido, mesmo na empresa, o exercício dos direitos fundamentais, notadamente, igualdade e liberdade, as quais devem ser consideradas no caso concreto”[32]
Adriane Reis de Araújo bem pondera que o Direito do Trabalho, ao longo de toda sua história, foi e ainda é marcado pela tensão entre os interesses daqueles que vendem sua força de trabalho e aqueles que a compram. É função teleológica do Direito do Trabalho a busca contínua por identificar as possibilidades de abuso decorrentes da desigualdade material das partes envolvidas na relação de emprego, com intuito de reconhecer o trabalhador como titular de direitos fundamentais à liberdade e igualdade, garantindo sua integridade física e moral no curso dessa relação[33].
Conforme expressa a autora, o assédio moral organizacional é uma situação limite de abuso do poder empregatício, em que, muitas vezes, pode haver uma aparente situação de normalidade, sem agressões físicas ou verbais evidentes. O que constrange, humilha e assedia é a estrutura da empresa, é sua política de gestão, claramente ligadas ao exercício do poder empregatício e à subordinação do empregado[34].
4. ABUSO DO PODER DIRETIVO E O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL.
A prática do assédio moral tornou-se objeto de discussão e estudos no Brasil com maior intensidade a partir dos anos 2000, com importantes trabalhos como de Margarida Barreto (2000, 2003 e 2005), Maria Ester Freitas (2001), Roberto Heloani (2003, 2004), a traduções dos livros de Marie-France Hirigoyen (2000, 2002) e Márcia Novaes Guedes (2004)[35].
A caracterização e o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do conceito de assédio moral permitiu que, mais recentemente, fosse revelada uma nova face desta antiga prática: o assédio moral organizacional. Não se trata de um fenômeno tão recente, mas altamente contemporâneo. O assédio moral organizacional se insere em uma lógica de alto controle dos empregados por meio de técnicas de gestão que visam o aumento de produtividade e extinção de qualquer forma de tempo não dedicado exclusivamente à atividade.
Segundo Adriane Reis de Araújo, trata-se, portanto, da utilização da lógica e das técnicas desenvolvidas pela Sociedade Disciplinar, adaptadas pela Sociedade de Controle e inseridas nas empresas e fábricas por meio de modelos de gestão empresarial. É uma forma mais mascarada e encoberta do assédio moral[36].
Apesar de incomparáveis as dores daqueles que sofrem qualquer forma de assédio, principalmente em seu ambiente de trabalho, o assédio moral organizacional mostra-se de grande perniciosidade, uma vez que muitos não conseguem identificá-lo, visualizando nas empresas uma situação de normalidade. Por ser menos visível e pelas vítimas não se resumirem a um número pequeno ou mesmo a um único indivíduo, sendo direcionado a todos os empregados, o assédio moral organizacional passa muitas vezes despercebido.
Adriane Reis Araújo apresenta o seguinte conceito de assédio moral organizacional:
“(…) o conjunto de condutas abusivas, de qualquer natureza, exercido de forma sistemática durante certo tempo, em decorrência de relação de trabalho, e que resulte no vexame, humilhação ou constrangimento de uma ou mais vítimas com a finalidade de se obter o engajamento subjetivo de todos os grupos às políticas e metas da administração, por meio de ofensa a seus direitos fundamentais, podendo resultar em danos morais, físicos e psíquicos”[37]
Do conceito traçado pela autora, há vários aspectos que merecem destaque. O primeiro revela-se no fato de que o assédio moral organizacional se dá em decorrência das relações de trabalho, ou seja, está diretamente relacionado com “ser trabalhador”. Assim, não se admite a ideia de assédio moral organizacional seja aquele praticado apenas dentro do espaço físico da empresa ou fábrica, mas todo aquele que alcance o trabalhador enquanto tal. Para ilustrar, Adriane Reis aponta exemplo de trabalhadores assediados quando saiam da empresa para realizar atividade sindical.[38]
Outro aspecto importante está na afirmação de que a prática lesiva consiste na ofensa a direitos fundamentais dos trabalhadores, desta forma, independente das vítimas apresentarem algum tipo de estresse ou doença psicossomática, o assédio moral organizacional ainda se configura. Trata-se de uma afronta objetiva ao trabalhador enquanto livre e igual[39].
Além disso, permitir que o conceito seja aberto a toda conduta que viole direitos fundamentais e, assim, a dignidade do trabalhador, permite uma maior proteção, na medida em que não considera assédio somente atitudes pré-definidas, como a exclusão do trabalhador, imposição de punições humilhantes, entre outras. Toda e qualquer atitude que, por sua sistematicidade, viole a dignidade do trabalhador expondo-o a práticas vexatórias e humilhantes deverá ser considerada um assédio. “A conduta poderá ser exercida por meios quaisquer, desde que agrida a integridade moral do ser humano por ela afetado, e existe independentemente de seus efeitos”[40].
Conforme afirma Adriane Reis de Araújo, a demonstração de qualquer tipo de comprometimento da integridade física ou mental do trabalhador deve servir como fator para aumentar o valor de uma indenização e não como critério para aferir a existência do assédio[41].
Diante disto, o assédio moral é visto por Renato Muçouçah como:
“(…) definimos o assédio moral coletivo como aquele em que o empregador, utilizando-se abusivamente do seu direito subjetivo de organizar, regulamentar, fiscalizar a produção e punir os empregados, utiliza-se desses direitos de forma reiterada e sistemática, como política gerencial, atentando contra os direitos humanos fundamentais dos empregados em todas as suas dimensões, geralmente para o incremento de sua produção”. [42]
Para Adriane Reis, e nisto se difere do conceito acima, apresentado, a finalidade do assédio moral organizacional não é mais causar dano ao empregado, excluindo-o, ou mesmo causar degradação ao meio ambiente de trabalho, essas são suas consequências. A finalidade, e nisto o conceito jurídico inova com relação ao clássico de assédio moral, é a adesão subjetiva dos trabalhadores aos interesses e metas das empresas[43]. O aumento de produção é uma consequência da adesão subjetiva.
Definir essa finalidade é interessante, pois, com isso, resta claro que as práticas adotadas pelas empresas alcançam todos os trabalhadores, embora possam expor diretamente ao vexame, humilhação, só alguns. Exemplo disso são os casos de trabalhadores obrigados a vestir-se de forma ridícula e humilhante por não terem alcançado determinada meta[44]. Ainda que só os que não atingiram o objetivo traçado sejam diretamente humilhados, a regra aplica-se a qualquer um. Não se trata de uma perseguição reiterada a um mesmo empregado. Um mês, o empregado pode ser humilhado, no outro, receber prêmio por produtividade. A existência da regra em si é vexatória e humilhante.
O que pretende a empresa que adota práticas assediantes como forma de estímulo é a adesão total dos trabalhadores às regras da organização, exercendo total controle e disciplina sobre cada um deles. Desta forma, “o efeito do assédio moral organizacional que resulta na exclusão da vítima é muito mais profundo: atinge todo o corpo de funcionários e acarreta um comprometimento maior do aspecto emocional de cada indivíduo com a produção”[45]
Trata-se, assim, do uso do poder diretivo do empregador para introduzir nos empregados os interesses da empresa, homogeneizando as distintas individualidades dos empregados, transformando-os em um ser. Não se afirma aqui que o empregado considerar válidos e verdadeiros os interesses da empresa e, junto com ela, persegui-los, constitui por si uma prática de violência. A agressão está em uma adesão totalizante, em que a empresa exige, como perfil dos trabalhadores, que estes abandonem todas as demais dimensões de sua personalidade, todos os seus interesses e desejos pretéritos para que carreguem somente aqueles que sejam bons para ela. Dispensar toda complexidade da personalidade do empregado, reduzindo-o a reprodução individual da empresa, é uma violência e um atentado contra a dignidade da pessoa humana.
Rompe-se, desta maneira, com a ideia de que o assédio moral dentro da empresa teria como finalidade somente a exclusão do empregado, fazendo-o desistir do seu posto de trabalho, sem que seja necessário pagar-lhe por uma rescisão sem justa causa. Na verdade, a finalidade é que os empregados assumam para si os interesses, a estrutura, o regulamento da empresa. Essa finalidade de conformação dos comportamentos dos empregados serve tanto para incluí-los quanto para excluí-los, incluindo os que se adéquam e excluindo os que não[46]. Os excluídos sofrem o que Lis Soboll considera ser um “darwinismo organizacional”, promovendo a eliminação dos menos adaptáveis[47]. Apesar de nefasto para os excluídos, o assédio alcança e prejudica a todos os trabalhadores.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, percebe-se que a reconceituação do poder diretivo é profundamente impacta pela percepção de que seus limites não podem ser olvidados e dizem respeito ao próprio respeito ao direito ao trabalho como direito humano. Nesse sentido, a análise do abuso do poder direito ganha ainda mais relevo diante de novas práticas abusivas, como o assédio moral organizacional, que visam a, exatamente em seu excesso, atacar os direitos fundamentais dos trabalhadores. Diante disso, revisitar o poder diretivo e ressignificá-lo significa dar nova teleologia À própria relação de emprego, a fim de evitar que práticas perniciosas como o assédio moral organizacional sejam naturalizadas.
Informações Sobre o Autor
Luísa Nunes de Castro Anabuki
Advogada. Formada em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Direito do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público