O delineamento conceitual de governança a partir de André-Jean Arnaud como um fenômeno complexo segundo Orlando Villas Bôas Filho

Resumo: Orlando Villas Bôas Filho, procura examinar o modo pelo qual a governança é enfocada por André-Jean Arnaud e o seu delineamento conceitual em nível global, regional, nacional, territorial e empresarial, de forma a sublinhar a relevância da governança como fenômeno expressivo das configurações importantes ocorridas no âmbito de suas decisões e implantação. Em seguida, conceitua governança como fenômeno complexo no conjunto de obras de André-Jean Arnaud, analisando o fenômeno em suas múltiplas formas de expressão, discutindo a ambivalência que perpassa as questões da governança, contrastando a concepção da importância da governança como instrumento de participação, em contraponto com Laura Nader e Ugo Mattei que tendem a enfatizar nela um instrumento de espoliação. Por fim, é enfocada a discussão relativa ao caráter paradigmático assumido pela governança.

Palavra chave: Governança. Conceito. André-Jean Arnaud. Global.

Abstract: Orlando Villas Bôas Filho, seeks to examine the way in which governance is focused by André-Jean Arnaud and its conceptual design at the global, regional, national, territorial, and business levels, in order to underline the relevance of governance as an expressive form of configurations decisions and implementation. He then conceptualizes governance as a complex phenomenon in André-Jean Arnaud's set of works, analyzing the phenomenon in its multiple forms of expression, discussing the ambivalence that permeates governance issues, contrasting the conception of the importance of governance as an instrument of participation, in counterpoint with Laura Nader and Ugo Mattei who tend to emphasize in her an instrument of espoliation. Finally, the discussion on the paradigmatic character assumed by governance is focused.

Keyword: Governance. Concept. André-Jean Arnaud. Global.

Sumário: Introdução. 1. Delineamento conceitual. Conclusão. Referência.

INTRODUÇÃO

No exercício do poder estatal, em âmbito das sociedades pós-modernas, crescentemente, se apresenta um problema de governabilidade imposto por um problema estrutural, desencadeando o problema da (in)governabilidade que só se resolveria com a implementação de métodos (protomodelos), distintos das técnicas clássicas. Essa temática ganhou novos contornos em termos de amplitude e aprofundamento a partir das análises de Michel Foucault (1993. p.277-293) acerca da governamentalidade, segundo Villas Boas Filho, e, é nesse âmbito que se inscreve a questão da governança, entendida por Chevallier (2008, p.13-18), a partir da clássica definição de James Nathan Rosenau, como um conjunto de mecanismos complexo de interação que se desenvolve entre uma multiplicidade de atores públicos, privados e autônomos, com o intuito de produzir regras elaboradas coletivamente. Assim, André-Jean Arnaud (1997), explica em sentido análogo, definindo governança como a expressão de uma dinâmica complexa relação e inter-relação transformadoras que articulam os mais diversos âmbitos dos Estados nacionais e as instâncias que lhe são constitutivas, sendo a sociedade civil, grupos de interesse, lobbies, redes sociais, empresas e atores implicados na gestão de negócios públicos em nível local. E, argumenta a erosão do impacto da governança no modelo top down de decisão, como instrumento de participação no exercício da autoridade política, econômica e/ou administrativa, na gestão dos negócios comuns nos níveis global, regional, nacional, local (territorial e empresarial), abrangendo os setores: público, privado e a sociedade civil.

1. O DELINEAMENTO CONCEITUAL

Segundo Orlando Villas Bôas Filho, o artigo de 1997, escrito por André-Jean Arnaud, tem contorno “propriamente sociológico”, o La governance. Un outil de participation, publicado na revista Droit et société, que aborda criticamente a regulação jurídica no contexto da globalização, enfocando a governança como um termo de grande adequação para a compressão do desenvolvimento progressivo de um processo interativo, dinâmico e projetivo de decisão instado a evoluir constantemente para dar respostas adequadas a circunstância cambiantes.

Nesse sentido, decorreria da “progressiva difusão de informações”, permitindo o desenvolvimento de políticas e práticas, voltadas ao interesse comum, nos interstício da intervenção estatal ou interestatal. Dessa forma, a governança permitiria transcender a velha ideia de uma tomada de decisão soberana, de tipo top down, emanada em nome do poder público.

Mediante esse contexto, o que chama a atenção para o problema da complexidade decorrente do “interstício da intervenção estatal ou interestatal”, especialmente no que concerne aos eventuais “déficits de participação dos cidadãos”, é a multiplicação do número de atores estatal e interestatal que, em virtude dela, passam a figurar nos processos decisórios de modo a aumentar ainda mais sua complexidade.

André-Jean Arnaud, já conceituava governança como uma forma de “gestão eficaz”, tanto no domínio privado como do “administrativo e do político”, que se expressam em diversos planos: “global, regional e territorial”. Confirmando sua tese, vários artigos são publicado, pela revista Droit et sosiété, sobre a importância da governança como matriz conceitual para o diálogo interdisciplinar. Assim como, Vincent Simoulin, analisa a relevância da governança para a questão da “ação pública”, na medida em que permitiria esclarecer as “práticas contemporâneas” direcionada a uma coordenação “alheia às hierarquias tradicionais”.

Já Catherine Baron (2003. p. 329-349), por sua vez, examina o caráter “polissêmico do conceito de governança”, ressaltando, entre outra coisa que ela expressaria uma forma de “apreensão das novas práticas e representações suscitadas” pela globalização. Também, Anne Isla (2003. p. 353-373), discute a governança no plano da Comunidade Européia, procurando traçar, a partir daí, a relação entre “direito e economia”. Como os autores Claude Dupuy, Isabelle Leroux e Frédéric Wallet (2003. p. 377-396), partindo da constatação da emergência de “novas formas de territorialidade”, procuram mostrar a importância da noção de governança no âmbito dos “conflitos territorializados” a partir de uma discussão atenta dos atores de como o modo de “atuação das autoridades públicas” nessa seara.

Já em 2004, no plano global ao direito internacional, Orlando V. B. Filho, ensina que a governança é abordada como uma “alternativa à concepção clássica do processo de tomada de decisão jurídica em matéria de relações internacionais”, e que isso somente seria viável mediante “condições de implementação e de controle” e com uma “participação democrática em nível global”. E, explica que na obra, La governançe Un outil de participation, André-Jean Arnaud, ensina que a Governança é enfocada como “um instrumento de participação” na tomada de decisão complexa, no contexto “regulatório contemporâneo”, com significado potencialmente democrático. Dessa maneira o conceito de governança é “polissêmico”, surgido da necessidade de delimitá-lo a outros que lhe são próximos, como: governo, governabilidade e governamentalidade, diferentemente do que já era conceituado. Nesse sentido, governança era enfocado predominantemente a partir do “plano regional e global”.

Citando, Jacques Chevallier (2008), ensina que a governança implica sua apreensão a partir de seus vários níveis: internacional, regional, nacional e local, de ação coletiva (multi-level Governance) em suas várias facetas de expressão, “inclusive, o caráter problemático de se utilizar o termo no singular”.

E explicando que para André-Jean Arnaud, a uma progressiva imposição da governança empresarial como sendo um modelo de gestão complexa, surgida como um modelo provindo do contexto empresarial norte-americano, da “superação da tradicional onipotência patronal” mediante a introdução massiva de um conjunto de “stakeholders”, que a partir da instauração de “mecanismos internos e externos de controle”, se afigurou como um “instrumento de gestão” que precisava garantir: equilíbrio de poderes, direitos, transparência e eficácia.

Dessa forma, a governança pode ser entendida, em termos gerais, como a “organização e a repartição de poderes entre diferentes instâncias de uma empresa”, sendo ela um conjunto de “procedimentos e estruturas cuja finalidade seria gerir eficazmente” os negócios empresariais de modo a assegurar “transparência e equilíbrio de poderes entre administradores, proprietários e seus representantes”. 

André-Jean Arnaud (1997) aponta a “progressiva inserção da governança empresarial no contexto da globalização”, como um dever de observância aos preceitos contidos na “soft Law”, com “normatividade flexível” que expressa o “progressivo descentramento da regulação jurídica” na sua forma estatal de expressão. E, a “passagem (não ocasional) da corporate governance para a global governance”, resulta de importantes contribuições dos economistas Oliver Williamson, John Williamson e Joseph Stiglitz ao desenvolver a “governança global”.

Assim, pela influência da cultura econômica dos EUA, que foram criadas as instituições financeiras internacionais, em decorrência disso, surgem a governança global, sendo concebida, “em seu conjunto, como a gestão dos negócios mundiais no nível das organizações e das agências internacionais”, enquadrando esta a “atividade soberana dos Estados pelos regimes multilaterais de governança”, a partir dos principais componentes do que se convencionou designar de “Consenso de Washington”, sendo elas: disciplina fiscal; abertura comercial; estímulo a investimentos estrangeiros; privatização de empresas públicas; desregulação e respeito ao direito de propriedade.

Nesse sentido, Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, “converteram em imperativos administrativos as decisões que deveriam nortear as políticas dos países, especialmente os endividados em desenvolvimento, surgindo assim a “good governance”, como instrumento imperativo para a noção no “âmbito da governança global”, uma referência para a avaliação das economias nos países, por parte das “autoridades financeiras internacionais”. E, em contraponto a essa estaria a “poor governançe”, como instrumento, para a avaliação dos Estados em matéria de “corrupção e de criminalidade global”.

O autor descreve que André-Jean Arnaud, ensina que a governança global vista no “plano internacional” garantiria, acima de tudo, a “paz mundial”, sendo conduzida por uma “dimensão estratégica de promoção da segurança mundial” por meio do “impulso à cooperação, ao entendimento e à moderação mútua entre os Estados nacionais”, o que, segundo o autor, estaria expresso nos capítulos VI e VII da Carta da ONU, que trata da resolução pacífica dos conflitos e divergências e das ações relativas à “ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”. Já Laura Nader e Ugo Mattei (2003) interpretam a governança global como uma “reabilitação moral do imperialismo”.

Orlando V. B. Filho, esclarece que para André-Jean Arnaud, governança implica a superação de uma forma de “gestão piramidal e autoritária”, através da substituição progressiva de um “sistema top down” de tomada de decisão por um sistema "bottom up”, caracterizado pela “ausência de uma produção normativa ordenada e sem atos de governo impostos” a partir de instâncias centrais a de modo verticalizado, uma passagem da “pirâmide” à “rede”, em meio a quais as agências multilaterais, ONGs e a sociedade civil tornam-se cada vez mais atuantes e decisivas no “estabelecimentos de pautas de interesse comum a serem implementadas em nível global”, entre as quais, o autor destaca, para fins de sua análise, a questão “ecológica”.

Mas, é certo que a regulação produzida pelas organizações internacionais e globais na “intervenção” teria apenas um caráter de soft law. Desse modo, as diversas hipóteses em que se enquadram os “Standards” e os indicadores que compõem a “soft Law” demandariam a intervenção dos Estados para se converterem em normas de direito impositivas. Dessa forma, a intervenção estatal não é indispensável para que tais regulações assumam “imposição efetiva”.

Ensina que nos blocos regionais, com a experiência da “gouvernance européenne”, os assuntos comuns aos Estados que passaram a compor a Comunidade Européia, vão além de uma articulação de caráter “essencialmente econômico e sem pretensão política” e, sim, alargam-se para além de uma “simples coalizão econômica”, fazendo com que a União Européia constituísse em uma “Federação Plurinacional”, fundada num acordo cuja natureza decorreria do compromisso de preservação das identidades culturais e nacionais, que lhe são constitutivas, não havendo, um “povo europeu” nem muito menos um “governo para geri-lo”.

Desse modo, em virtude dessas “particularidades”, à União Européia não seria passível de ser gerida mediante o processo “top down” que caracteriza o “governo” na tradição moderna dos “regimes de democracia representativa”. Impor-se-ia a ela, por conseguinte, a “governança como instrumento de gestão”.

E, expressa que André-Jean Arnaud ao longo de seu exame acerca da “governança no âmbito regional”, “descentra-se da União Européia”, ao perceber, que há um “déficit de participação dos cidadãos”, e que essa experiência é “análoga a desenvolvida no Mercosul”, dessa forma, pode-se traçar paralelos existentes entre eles, especialmente no que tange à “pretensão de construção de dois espaços regionais de cooperação transnacional” com aspirações análogas de “integração econômica e de constituição de um projeto político mais global”, apesar dos indiscutíveis avanços ocorridos, eles não passam de “laboratórios de experimentação” para a governança “regional”.

Assim, o “déficit de participação real dos cidadãos” aparece, nesse contexto, como o principal entrave a um desenvolvimento mais “consequente da governança regional”, entendida como “dinâmica complexa das relações e inter-relações transformadoras” que articulam instituições, Estados-membros, sociedade civil, grupos de interesse, lobbies e redes sociais.

Nesse sentido, a governança no plano nacional está atrelada às questões culturais. A exemplo da experiência político-administrativa norte-americana e a francesa, surge como uma representação da governança que “ameaça à soberania estatal” em países nos quais se verifica uma “visão cultural centralista do Estado moderno”. Desse modo, o Estado não poderia mais ser visto como “única instância detentora do poder”, afigurando-se possível gerir as questões públicas para além do direito estatal, expressando a progressiva passagem de uma ação política fundada na intervenção do governo (gouvernement) para outra amparada na governança (gouvernance).

Ressalta-se, que decorreria daí, inclusive, o “declínio da concepção top down” que atribui apenas aos governantes a criação do “dever-ser”. Observar-se-ia, assim, a progressiva substituição, no debate jurídico, dos conceitos clássicos de governo, lei e regulamentação pelos de governança, políticas públicas, ação direta, resolução de conflitos e, especialmente, regulação.

O autor explica que para André-Jean Arnaud, a governança implica a “redefinição das funções estatais”, nos níveis empresarial, global e regional, e também no nacional, a governança se expressaria e deveria ser estudada como uma “dinâmica complexa de relações e inter-relações transformadoras” que se tecem entre os diversos âmbitos que constituem o Estado nacional. Nesse sentido, sua implementação supõe que se ponha em questão a concepção de Estado, legada pela tradição ocidental.

E, a definição de governança territorial, recupera a ideia de “governança subnacional”, proposta por James Nathan Rosenau. Surgindo, assim, os mesmos desafios que se impõem aos transnacionais, caracterizado por não poder se “estender para além da jurisdição dos Estados” em que ela se exerce.

Segundo Orlando Villas Bôas Filho, André-Jean Arnaud retomando sua definição e proposta por Vincent Simoulin (2003), em afirma que a expressão recobriria o “conjunto de situações de cooperação entre autoridades públicas, atores privados, associações e cidadãos”, não ordenados hierarquicamente, envolvidos na construção, na gestão ou na representação dos territórios em que vivem e em relação ao “ambiente exterior”.

E para ilustrar, em primeiro lugar, a experiência do orçamento participativo, que expressaria um modelo de governança local, e “esboçaria num sistema de decisão” de perfil “bottom up” em substituição à lógica “top down”, manifestando na dinâmica tradicional das decisões governamentais, e, em segundo lugar, na experiência da governança, no que concerne, ao “desenvolvimento sustentável na floresta amazônica”.

Assim, a governança territorial, associa-se a democracia local e a participação cidadã, onde demanda uma reconfiguração de poderes entre governantes, sociedade civil e mercado. O que engendra o confronto de diversas “racionalidades políticas”. A governança territorial suporia a construção e a manutenção permanente de novos quadros institucionais e o manejo de instrumentos complexos, tais como: procedimentos administrativos e jurídicos, finanças públicas etc. Nesse sentido, demandaria o engajamento dos representantes e a participação dos cidadãos e associações civis nesse sentido demandaria a necessidade de um processo progressivo de “empowerment”.

Implicando a “redefinição das funções publicas”, tais como foram concebidas tanto pela “filosofia jurídica como pela política da época moderna (séculos XVII e XVIII)”, as quais teriam pautado, desde então, toda a conquista da democracia no Ocidente e o seu papel como “paradigma de auxílio à decisão”, ressaltando que ela consistiria, em primeiro lugar como uma nova maneira de enfocar a administração dos negócios, públicos e privados, que rompe com a tradição “top down” que se desenvolveu no bojo do regime da democracia representativa e, em segundo lugar, como um “instrumento capaz de proporcionar uma gestão de tipo novo”.

Segundo Orlando Villas Bôas Filho, a “governança perfeita” deveria compreender as seguintes características: a) uma coordenação de atores, grupos sociais, instituições envolvidos na ação pública ou na ação política com a finalidade de definir os objetivos discutidos e definidos coletivamente, bem como a elaboração de programas de ação e de políticas públicas coordenadas suscetíveis de permitir o adimplemento dos objetivos fixados; b) uma intenção de articulação de lógicas de ação divergentes visando a construção de um consenso pela negociação e, se necessário, pelo compromisso ou pela arbitragem.

Nesse sentido, e em decorrência dela, estar-se-ia diante de uma espécie de “reabilitação da sociedade civil” por meio de novas formas de “produções normativas inscritas”, no âmbito da democracia representativa, o que remete para o aspecto fundamental que André-Jean Arnaud atribui à governança como um “instrumento de participação na tomada de decisões complexas” (públicas e privadas) e em todos os níveis, do global ao local.

O autor citando, Laura Nader e Ugo Mattei, informa que a configuração “etnocêntrica das instituições e dos sistemas de crenças” teria produzido uma poderosa utilização euro-americana da ideologia do “Rule of Law” para a implementação de “projetos imperiais e colonialistas”.

Nesse sentido, os autores, apontam o quanto a concepção sobre “civilização, democracia, desenvolvimento, modernização e Rule of Law” servem aos propósitos para a sustentação da “pilhagem de recursos” e de ideias disseminadoras, pelas potências ocidentais hegemônicas, e que se revelam mediante o exame do que designam de “lado negro do direito” (law’s dark side) demonstrando a utilização crescente da ideia de “Rule of Law” para a legitimação de pilhagens. Reproduzindo um nexo de continuidade entre o “colonialismo e o capitalismo neoliberal”, sublinhada pelo “uso retórico do Rule of Law” que serve de “camuflagem da rapina” realizada pelas potências capitalistas ocidentais em escala global.

Dessa forma, o direito, “legitimaria a pilhagem” realizada pelas nações hegemônicas e outros atores transnacionais poderosos, tais como: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Mediante a mobilização do “argumento da falta” (lack argument) imputando às demais sociedades a incapacidade de uma organização institucional e jurídica comparável à dos países ocidentais. Assim, o argumento da falta seria utilizado como “sustentáculo retórico” para a transferência de um direito de “matriz ocidental” para as demais sociedades. O que basta era enfatizar o modo negativo pelo qual a governança é enfocado.

Segundo os autores, a governança, especialmente no plano global, a partir de representações “falsas” só serviriam apenas para reforçar a supremacia das potências hegemônicas, com a ideia de boa governança que se expressaria como uma espécie de “espinha dorsal” (backbone) dos argumentos mobilizados para “legitimar a pilhagem”.

O projeto de “governança mundial”, atualmente imposto pelo neoliberalismo, transformaria, mediante o uso do direito, “as instituições de Bretton Woods”, concebidas originalmente como mecanismos de “estabilização financeira”, em agentes de “desestabilização política”. E afirmam inclusive, que o modelo de governança em curso atualmente “refletiria as práticas da dominação colonial”, com isso, toda uma “dimensão instrumentalizada da governança” perde sua finalidade de sustentação das relações “assimétricas tecidas entre as nações hegemônicas e as demais”.

Villas Bôas Filho, ao analisar o conceito de governança, sublinha uma das característica essencial que é a participação das pessoas concernidas na tomada de decisões comuns. Mas, isso não significa afirmar que essa característica essencial seja capaz de exaurir em si mesma toda a complexidade que conceitualmente o termo consigna, conforme mencionado por André-Jean Arnaud, quando enfatiza a “ruptura” introduzida pela experiência da governança em relação à tradição “top down” de estruturação do poder”, tal como concretamente expressa no horizonte da experiência da democracia representativa. Segundo ele, ao ensejar uma ampliação do rol de atores sociais na “formulação de decisões complexas” relativamente a assuntos de interesse comum, ele elabora de forma normativa e vinculativa, a maneira que a governança se afiguraria como um “instrumento de participação democrática”.

Já citando Pierre Rosanvallon, ensina que a experiência democrática atual demanda cada vez mais uma “legitimação” que não se restringiria à esfera “eleitoral-representativa”. E explica, que André-Jean Arnaud não envereda por uma caracterização onírica da governança. Apesar de enfatizar seu potencial para o fomento de uma participação mais ampla na tomada de decisões comuns, de modo a se contrapor ao modelo top down, mas, o autor observa que, evidentemente, não se trata aqui de uma panacéia”.

Assim, o conceito de governança poderia – no complexo contexto da regulação jurídica contemporânea – ser considerado paradigmático, especialmente no que tange à tomada de decisões. Aludindo à clássica concepção de paradigma, proposta por Thomas Kuhn na obra: A estrutura das revoluções científicas, André-Jean Arnaud observa que a governança forneceria um quadro de referência capaz de traduzir velhos problemas em novos termos com o intuito de permitir a obtenção de soluções, sublinhando todo o seu potencial heurístico.

CONCLUSÃO

Villas Boas Filho, quando citando, Wanda Capeller e Vincent Simoulin, ensina que baseando-se na noção de “programa de pesquisa”, proposta por Jean-Michel Berthelot (2003), afirmam que a governança – na medida em que abrange os mais diversos domínios, tais como o social, o cultural, o econômico e o jurídico – poderia ser considerada uma matriz conceitual para o diálogo transdisciplinar. E quando fala de Wanda Capeller e Vincent Simoulin, a noção de “programa de pesquisa”, tal como proposta por Berthelot, serviria, sobretudo, para designar abordagens, métodos e modos de análise. Tratar-se-ia ai, de uma noção que se distancia da de paradigma, tal como formulada por Thomas Kuhn, uma vez que insistira na continuidade e não de descontinuidade. Assim, nessa perspectiva, a noção de “programa de pesquisa” indicaria, acima de tudo, um lugar de encontro transdisciplinar em meio o qual disciplinas autônomas poderiam dialogar a partir de um debate fértil que as articularia de modo a ensejar a criação de instrumentos analíticos novos não vinculados especificamente a nenhuma das disciplinas, e desenvolveriam uma estrutura holística que comportaria o estudo da governança global.

 

Referência
Villas Bôas Filho, Orlando. O impacto da governança sobre a regulação jurídica contemporânea: uma abordagem a partir de André-Jean Arnaud. REDES – revista eletrônica direito e sociedade, Canoas, vol.4, n. 1, maio 2016. Disponível em: < http://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes> http://dx.doi.org/10.18316/2318-8081.16.16.


Informações Sobre o Autor

Marco Antonio Pereira Ferreira

Advogado Mestrando em Direito Governança e Políticas Públicas pela Universidade Salvador UNIFACS Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco FACESF


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