A Vítima no Processo Penal: Um Instrumento Probatório

Marcela Nascimento Feitosa[1]

 

RESUMO

O presente artigo traz à reflexão a relevância do papel desempenhado pela vítima, durante a persecução penal, e sobre as consequências de tratar a vítima como meramente um instrumento probatório. Para tanto foram feitas pesquisas bibliográficas, e utilizado o método hipotético dedutivo, a fim de esclarecer pontos relevantes da temática. O objetivo central é destacar os perigos do resultado útil do processo para a parte lesada, quando a sua vontade se faz irrelevante. Além de demonstrar a importância da participação de todos os envolvidos no processo penal, para uma justa construção da sentença. Sendo o Estado o detentor do direito de punir, chamado de Jus puniendi, toma para si o lugar de vítima, pois o crime é praticado contra a ordem pública e o Estado se faz representante da sociedade, cabendo-lhe o interesse de punir, não necessitando da anuência da vítima, como são os casos das ações incondicionadas a representação, tornando irrelevante o interesse da vítima na persecução penal. Importante mencionar, como o paradigma punitivo contribui para a banalização do papel da vítima no processo penal, dessa forma é necessário uma reanalise do atual modelo processual penal.

Palavras-chave: Processo Penal. Instrumento probatório. Paradigma punitivo.

 

RESUMEN

El presente artículo trae a la reflexión la relevancia del papel desempeñado por la víctima durante la persecución penal y sobre las consecuencias de tratar a la víctima como meramente un instrumento probatorio. Para ello se realizaron investigaciones bibliográficas, y se utilizó el método hipotético deductivo, a fin de aclarar puntos relevantes de la temática. El objetivo central es destacar los peligros del resultado útil del proceso para la parte dañada, cuando su voluntad se hace irrelevante. Además de demostrar la importancia de la participación de todos los involucrados en el proceso penal, para una justa construcción de la sentencia. Siendo el Estado el poseedor del derecho de castigar, llamado Jus puniendi, toma para sí el lugar de víctima, pues el crimen es practicado contra el orden público y el Estado se hace representante de la sociedad, cabiéndole el interés de castigar, no necesitando la anuencia de la víctima, como son los casos de las acciones incondicionadas la representación, haciendo irrelevante el interés de la víctima en la persecución penal. Es importante mencionar, como el paradigma punitivo contribuye a la banalización del papel de la víctima en el proceso penal, de esa forma es necesario una reanudación del actual modelo procesal penal.

Palabras clave: Proceso Penal. Instrumento probatorio. Paradigma punitivo.

 

Sumário: 1. Introdução. 2. O Estado como “a vítima”: 2.1. O papel da vítima: assistente de acusação. 3. Interesses da vítima: 3.1. O perigo da relativização dos interesses da vítima. 4. ConclusãoReferências bibliográficas.

 

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo trata de um questionamento contemporâneo, a respeito do papel que a vítima, efetivamente, tem no processo penal. Essa questão se faz relevante para que se possa ter uma dimensão dos objetivos reais da persecução penal. Atualmente, na persecução penal, a vítima tem seus interesses relativizados com a objetivação da condenação do réu.

Sendo de participação mínima em todo o processamento, a vítima, passa a ser entendida como um meio de prova, o foco passa a ser da condenação do réu. É necessário que a vítima tenha voz no curso processo penal.  A sua vontade deve ser relevante, não para gerar impunidades, mas para que se tenha uma real dimensão das consequências do crime. Este trabalho dará ênfase aos casos em quê e pertinente a Ação Penal Publica Incondicionada, no qual a vítima aparece como assistente de acusação.

Este artigo foi organizado em três eixos, onde será analisado em um primeiro momento, a visão geral do processo penal a partir da analise das possibilidades de atuação do assistente à acusação.  A segunda abordagem será de como o modelo retributivo e punitivo contribui para a desimportância da vítima, no curso do processo. Já no terceiro eixo, serão levantadas as consequências da não observância, dos interesses da vítima, e qual é o seu papel no processo penal. Finalizando o artigo demonstrando a importância da participação de todo os envolvidos, e o perigo da instrumentalização da vítima.

 

2 O estado como “A vítima”

A vítima em tese é quem foi individualmente atingido “por uma ação ou omissão criminosa e suporta os danos e prejuízos gerados por essa conduta, demandando políticas criminais compensatórias” (ROSA L. e MANDARINO R., 2017, p.317).

Numa sociedade é necessario o estabelecimento de normas, para regular as relaões, diante de um Estado de Direito, a responsabilidade de criação e imposição de normas fica exclusivamente para o Estado sendo este o detentor do direito de punir, chamado de ius puniendi. No sentido objetivo o ius puniendi, atraves do poder legislativo ou executivo,cria normas limitadoras e proibitivas, à um determinado comportamento, sob a ameça de sanção. No sentido subjetivo, o Estado, atraves do Poder Judiciario, decide contra aqueles que infringiram a suas normas. (GRECO, 2017, p. 1).

Neste sentido, quando um individuo comete um fato típico, ilicito e culpavel,  ainda que seja contra um outro indivíduo, ele estará indiretamente cometendo contra o Estado, pois infringiu uma norma determinada por este.  No mesmo sentido, nas palavras de Capez (2017, p.76), “Mesmo no caso da ação penal exclusivamente privada, o Estado somente delega ao ofendido a legitimidade para dar início ao processo, isto é, confere-lhe o jus persequendi in judicio, conservando consigo a exclusividade do jus puniendi.”

No processo penal há uma classificação das ações em: a) Ação Penal Pública incondicionada,  b) Ação Penal  Pública condicionada; c) Ação Penal Privada; d) Ação Penal Privada Personalíssima; e e) Ação Penal Privada subsidiária da Pública. Diz o artigo 129, I da Constituição Federal, que cabe ao Ministério Público a persecução penal. Conforme Pacelli (2017, p.67), nos casos de ação penal privada a iniciativa fica a cargo do próprio ofendido, é o que ocorre, por exemplo, em relação aos crimes contra a honra. Importa para o presente trabalho a analise da Ação Penal Publica Incondicionada, no qual a vítima atua como assistente[2] de acusação.

2.1 O papel da vítima: assistente de acusação

Destarte não ser todos os crimes que se admita da figura do assistente do Ministério Publico, para Tavora e Alencar (2017, p.871), os que admitem são aqueles que têm um sujeito passivo determinado. A doutrina se divide sobre a legitimação de sua participação, uma parte afirma que “seu interesse de participação no processo é legitimado pela necessidade que o ofendido tem de obtenção de reparação em eventual ação civil ex delicto.” (TAVORA; ALENCAR, 2017, p.871). Outra entende que seu interesse não tem só a finalidade indenizatória, tendo o ofendido interesse na condenação do réu.

Conforme preceitua o artigo 268 do Código de Processo Penal (CPP), poderá atuar na condição de assistente, dentre outros, o ofendido ou o seu representante legal, ou seja, a vítima ou quem a represente, já o artigo 271 explicita os atos do assistente, podendo este, dentre outras coisas, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público. Ao analisar essa dicotomia, é evidente que a vítima, na qualidade de assistente, ajuda ao Ministério Público, no  papel de acusar.

Com o advento da lei 11.690/08 que alterou o Codigo de Processo Penal – CPP, a vítima teve o seu papel ampliado, tendo o artigo 201, uma nova redação. As mudanças trazidas por esta lei, deixou claro a tentativa de valorização da vítima, porém na prátrica o Processo Penal toma rumos opostos ao determinado em lei, exemplo disso é o § 4º que menciona, que o ofendido deverá ficar em um local reservado, ou seja, não deve estar junto com o réu ou seus familiares.

Porém na prática, isso não ocorre, ficando o ofendido, junto às partes do processo, sejam elas testemunhas de acusação ou defesa, familiares do acusado, e até mesmo o próprio acusado quando este encontra-se em liberdade e aguarda do lado de fora (junto com todos já mencionados) ser chamado para a oitiva.

Outra disparidade com a realidade facilmente detectada é o disposto no §5º do artigo 201 do Código de Processo Penal, o qual diz que o juiz encaminhará a vítima à uma equipe multiciplinar, o que na prática dificilmente acontece, somente em casos extremos de violência, ou em casos que ganham publicidade através da mídia.

 

3 Os interesses da vítima

Quando se trata de casos em que o autor do delito, e a vítima não tem nenhum vínculo anterior à prática do crime, fica mais fácil detectar o interesse da vítima, qual seja a condenação do réu e a reparação dos danos causados.  Neste sentido a sua participação como assistente de acusação, tem um duplo interesse, o primeiro seria a justa condenação, e o segundo seria o interesse em uma reparação em ação cívil ex delicto, como menciona boa parte da doutrina, dentre os quais destaca-se, segundo Capez (2016, p.285), “Florêncio de Abreu, Joaquim Canuto Mendes de Almeida, Fernando da Costa Tourinho Filho  e outros”.

No entanto, quando se trata de crimes praticados por alguém que a vítima nutria algum vínculo afetivo, como são os casos de violência familiar, geralmente o ofendido só busca a proteção do estado, idealizando que cesse o ciclo de violência, e nestes casos por vezes a própria vítima tenta atenuar os fatos, para minimizar os efeitos do processo criminal.

Não há no curso do processo penal uma atenção especial á vítima, mesmo após o advento da lei 11.690/2008, não houve grandes progressos, visto que apesar ter uma previsão de preservação da intimidade da vítima, isso não acontece na prática.

Nas ações publicas, o “ofendido” (expressão utilizada no Capitulo V do CPP) poderá atuar como assistente, porem necessita da concordância do Ministério Publico, ou seja, nitidamente é uma parte dispensável ao processo, como se vê no artigo 272 do CPP, baseado no interesse Publico da punição e não tão somente da vítima, eis a ideia do jus puniendi do Estado, já mencionado neste artigo.

Quando dispensada, a vítima nem mesmo acompanhará o processo, visto que, apenas deve ser informada dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, e alguns atos previstos no artigo 201 §2 do Código de Processo Penal, no entanto na prática a vítima, ou seus representantes (no caso de homicídio) ficam totalmente por fora do andamento processual.

Segundo Aury Lopes (2017, p.39), a vítima no momento do crime é hipossuficiente, sendo assim, faz jus à tutela penal, “contudo, no processo penal, opera-se uma importante modificação: o mais fraco passa a ser o acusado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre a violência institucionalizada do processo e, posteriormente, da pena”, sendo assim este passa a ser o personagem principal.

3.1. O perigo da relativização dos interesses da vítima

Quando se institucionaliza a vítima, tira de quem realmente sofreu a lesão dos direitos, a sensação de justiça e no lugar restando a sensação de impunidade, pois não participando efetivamente do  processo, não entende o desfecho da história. Neste sentido, a vítima não acha um lugar apropriado no curso do processo, e pode ocorrer a revitimização por ter que inúmeras vezes narrar os fatos, muitas vezes já esquecidos, ocorridos há anos atrás.

Um ponto que merece destaque, é que nem sempre a vítima descrita no tipo penal, é no caso concreto, real. No caso do artigo 217-A do Código Penal, está tipificado o crime de estupro de vulnerável, incluído pela lei 12.015/2009, diz o tipo: “Ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. Ato libidinoso seria qualquer ato que tenha uma conotação sexual, relativo ao prazer, nesse sentido até mesmo um mesmo um beijo é considerado um ato libidinoso, e por consequência, se praticado em menor de 14 anos, configuraria a prática de estupro de vulnerável. Deve-se observar que não há qualquer menção sobre a anuência ou não da “vítima”, ou seja, neste caso qualquer que se relacionar com menor de 14 anos estará praticando o crime, ainda que a própria “vítima” queira.

Neste caso, o autor o crime é processado independentemente do interesse da vítima, ainda que seja o seu namorado, pela natureza publica da Ação Penal. Beccaria (2012, p.124), no clássico “Dos delitos e das penas” finaliza seu último capítulo explanando que o perdão da vítima não retira do Estado o seu dever de punir, “O direito de punir não pertence a um individuo em particular mas à sociedade em geral, ou ao soberano”.

 

4 CONCLUSÃO

O Estado não sente as consequências diretas do crime, no entanto busca de maneira concreta a condenação do réu, essa punição tem o objetivo de disciplinar o apenado e tem uma função publica, e este ser o exemplo posto para a sociedade, como uma resposta, porém a real vítima quer, primeiramente, a reparação do dano causado e secundariamente a sua justa condenação, nem sempre há uma concordância nos interesses da vítima e o poder estatal, e nesse sentindo, prevalece o poder dever de punir do Estado, ainda que o resultado do processo não seja útil para a vítima.

Conclui-se que apesar das inovações trazidas pela lei 11.690/2008, não houve grandes mudanças no arcabouço do processo penal, porem devem ser observados os interesses da vítima, a fim de haver a reparação dos danos causados, de maneira especifica, e tenha uma resposta penal para o crime praticado. A banalização do papel da vítima gera insegurança e um sentimento de impunidade, pois ela sente-se apenas como uma testemunha ocular do fato e não como a titular do direito lesionado.

Neste sentido é de suma importância o estudo da vítimologia, a fim de entender os perigos da relativização dos interesses da vítima, que gera num plano secundário uma tendência à revitimização, e a perda do resultado útil do processo. A mudança de paradigma deve ser progressiva.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 12.015, de  7 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12015.htm>. Acesso em: 22 de julho de 2018.

BRASIL. Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11690.htm>. Acesso em: 22 de julho de 2018.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução: Neury Cravalho Lima. São Paulo: Hunter Books, 2012.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 23. ed.  São Paulo : Saraiva, 2016.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da língua portuguesa. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

GRECO, Rogério. Sistema Prisional: colapso atual e soluções alternativas. 4º ed. rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2017.

LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo : Saraiva, 3ª ed., 2017.

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 21ª ed. rev., atual. e ampl., 2017.

ROSA , Larissa; MANDARINO, Renan P. O lugar da vítima nas ciências criminais: política criminal orientada para a vítima de crime In: SAAD-DINIZ, Eduardo. et al. O lugar da vítima nas ciências criminais. São Paulo: LiberArs, 2017.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar R.  Curso de direito processual penal. Salvador: JusPodvim, 12. ed. rev. e atul., 2017.

 

[1] Bacharel em Direito pela Faculdade de Administração e Negocio de Sergipe- FANESE. Pós graduanda em Direito Publico: Constitucional, Administrativo e Tributário pela Universidade Estácio de Sá. Advogada, OAB/SE. E-mail: [email protected].

[2] A palavra “assistente”, segundo definições de FERREIRA (1986, p. 185), é destinado aquele que assiste ou promove assistência.

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