(THE LAW DID NOT EXPECT IT: Unconstitutionalities arising from the pandemic)
Autor[1]: Guilherme Francisco Souza Perez
Autor[2]: Marcus Vinicius Peixoto Gomes
Orientador(a)[3]: Prof.ª Camilli Meira
Resumo: Se a população mundial não esperava por uma pandemia da magnitude que é a pandemia causada pelo coronavírus (COVID-19), o direito muito menos, mesmo que grande parte dos países tenham suas legislações completas e bem asseguradas, com normas que apresentam meios de solução para inúmeros casos extraordinários, que no direito brasileiro são chamados de fatos jurídicos naturais, desde terremoto a furacões, e demais acontecimentos. Tal lacuna, precisou ser preenchido, no prazo mais curto possível, para que, vidas pudessem ser preservadas, e para que houvesse segurança jurídica, visto que, tal momento extraordinário, afetou muitos ramos do direito, seja as regras trabalhistas ou inclusive, os direitos fundamentais que são assegurados pela CF/88, este último, que infelizmente, em algumas oportunidades, foram transgredidos de maneira clara, por isso, merecem suas críticas.
Palvras-chaves: Direito Constitucional. Pandemia. Inconstitucionalidade.
Abstract: If the world population did not expect a pandemic of the magnitude that is the pandemic caused by the coronavirus (COVID-19), much less the law, even if most countries have their legislation complete and well assured, with rules that present means of solution for countless extraordinary cases, which in Brazilian law are called natural legal facts, from earthquakes to hurricanes, and other events. This gap needed to be filled, in the shortest possible time, so that lives could be preserved, and so that there was legal certainty, since such an extraordinary moment has affected many branches of law, be it labor rules or even rights fundamental principles that are ensured by CF/88, the latter, which unfortunately, on some occasions, were clearly transgressed, therefore, deserve their criticism.
Keywords: Constitucional Rights. Pandemic. Unconstitucional.
Sumario: Introdução. 1 Medidas iniciais para o combate a pandemia. 2 Atos inconstitucionais decorrentes da pandemia. 2.1 Missa é encerrada por agentes públicos. 2.2 Possível adiamento das eleições municipais. 2.3 Lockdown nos estados e municípios brasileiros. Conclusão. Referências.
Introdução
Por mais que estudiosos e cientistas dizem que, pandemias acontecem em um ciclo de tempo, visto que, já tivemos outras, como a peste negra ou peste bubônica e a gripe espanhola, ambas de propagação mundial, poucos são os países que tem em seu ordenamento jurídico, normas para o combate eficiente de futuros surtos de doenças, já que, cada doença/vírus tem sua particularidade, que muitas vezes ainda são desconhecidas e apenas são apresentadas tais particularidades ao mundo quando já difundida em inúmeras nações, o que impede que o direito possa normatizar as medidas para o combate a propagação de maneira mais eficaz, pois a norma apenas pode ser elaborada depois de já acontecido o fato, e não antes deste acontecer. Para a sustentação da tese, uso de doutrinas variadas, legislação, posicionamento do Supremo Tribunal Federal e notícias divulgadas pelos jornais serão apresentadas.
1 Medidas iniciais para o combate a pandemia
Inicialmente, faz-se possível entender que, o Brasil se encaixa no grupo de países que não tinha previamente um dispositivo para regular as medidas adotadas em caso de pandemia. E também, como já foi dito, essa não regulação prévia se faz totalmente justificável, assim sendo, não se pode argumentar que o país tem um Poder Legislativo ineficiente.
Especificamente, ao tratar da pandemia causada pela COVID-19, os representantes dos poderes da União trataram de “arrumar a casa” antes mesmo que o vírus fizesse sua primeira vítima. Nota-se isso, uma vez que, ao olharmos a linha do tempo, percebemos que, a primeira medida para o combate da pandemia foi tomada antes mesmo da confirmação do primeiro caso pelo Ministério da Saúde. Em 6 de fevereiro de 2020, o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, sancionou a LEI N. 13.979, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. E na data de 26 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso na cidade de São Paulo.
Infelizmente, após o “alastramento descontrolado” de casos de pessoas infectadas por todas as regiões do Brasil, viu-se que seria necessário a tomada de outras medidas, que não se faziam presente na lei federal, retro citada, e que posteriormente vieram a ser reguladas por meio de Medidas Provisórias decretadas pelo Poder Executivo, redundância didática, pois Medidas Provisórias apenas podem ser decretadas pelo Poder Executivo. A problemática real, se sustenta uma vez que, algumas medidas adotadas, violam a Constituição Federal ou, podem vir a violar dependendo de como aplicada. Violações essas que, causam notória insegurança jurídica, que pode vir a se transformar em uma “bola de neve” futuramente, pois servirão como precedentes jurídicos, além de alimentar ideologias ditatoriais, já que há violações a direitos fundamentais, que a priori são assegurados pela Constituição Federal de 1988.
2 Atos inconstitucionais decorrentes da pandemia
Antes de comentar os atos, analisados e criticados no presente artigo, faz-se necessário elencar quais são. A priori tem se a divulgação de notícia de que, agentes da prefeitura de Poços de Caldas, cidade do estado de Minas Gerais, interromperam e pediram que fosse encerrada uma missa, que estava sendo realizada por transmissão via internet, caso esse que mostrou total violação a Carta Magna; ademais, conforme o vírus continuou se propagando pelo país, mesmo com medidas para o combate, surgiu-se a discussão sobre o adiamento das eleições, o que estenderia o mandato dos prefeitos e vereadores por mais 1 (um) ano, totalizando 5 (cinco) anos de mandato, que, dependendo da forma que se adotar, pode vir a contrariar o texto constitucional que prevê apenas 4 (quatro) anos; por último exemplo, e algo que de fato está sendo implementado já em alguns munícipios, e que demonstra a clara desconsideração com o texto constitucional, é a instauração do chamado lockdown, que seria basicamente uma medida que proibiria as pessoas de circularem pela cidade, uma óbvio transgressão ao direito de livre locomoção.
Primeiramente, para contextualizar as análises, vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a competência concorrente entre União, Estados e Municípios para adoção e manutenção de medidas preventivas no combate ao coronavírus. Dentre as decisões que tratam do tema, destaca-se duas, a primeira foi concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) número 6.341 (seis mil trezentos e quarenta e um), em que foi referendada a liminar concedida monocraticamente pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido de interpretar o §9º do art. 3º da Lei nº 13.979, que diz:
“§ 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º”
Interpretação essa que seria feita a luz do inciso I do art. 198 da Constituição Federal, que dispõe:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
Outra decisão do STF muito importante, foi concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 672 (seiscentos e setenta e dois), em que Ministro relator Alexandre de Moraes, concedeu liminar, explicitando o seguinte: “(…) concedo parcialmente a medida cautelar, (…), reconhecendo e assegurando o exercício da competência concorrente dos governos estaduais e distrital e suplementar dos governos municipais, (…), independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário, sem prejuízo da competência geral da união para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário”. Durante os comentários acerca dos atos retro citados, far-se-á necessário comentar a distorção no entendimento da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes.
2.1 Missa é encerrada por agentes públicos
Acerca do primeiro caso, supracitado, tem-se que, agentes da prefeitura da cidade de Poços de Caldas-MG, interromperam uma missa que estava sendo celebrada de portas fechadas, dizendo estes que estavam a cumprir o decreto municipal que proibia, por prazo indeterminado, eventos como o que ali se realizava. Contudo, a missa era celebrada via internet, contendo apenas 5 pessoas no local, ou seja, apenas os necessários para a realização da transmissão, sendo que, conforme relato, todos estavam tomando as medidas de segurança aconselhadas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS)[4].
A base usada pelos agentes, seria o art. 7º do Decreto n. 13.286[5] da prefeitura, que assim dispõe:
Art.7° Para resguardar o interesse da coletividade, fica proibida, por prazo indeterminado, a realização de cultos, missas e eventos religiosos em igrejas e templos de qualquer natureza e a abertura e funcionamento de todo e qualquer estabelecimento comercial, prestadores de serviços, empresas, tais como: shopping center, lojas comerciais, cinemas, salões de beleza, clínicas de estética, academias, centros automotivos, praça de alimentação de shopping, bares, restaurantes, lanchonetes, cafeterias, lojas de conveniência, traillers, serviço de zona azul, comércio ambulante em geral.
Nota-se que não há restrição nenhuma à realização virtual do mesmo evento, caracterizando assim a “invasão” e o interrompimento da cerimônia, uma vez que, a igreja não estava de portas abertas, ou seja, não era permitida a entrada do público no local, apenas das pessoas necessárias para a manutenção da transmissão online. Além de caracterizar violações constitucionais, sendo elas, a prevista no inciso VI do art. 5º, que diz:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
E também o caso demonstra transgressão ao inciso I do art. 19 da Constituição que diz:
Art. 19 – É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles os seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
2.2 Possível adiamento das eleições municipais
Em momento seguinte, surge-se o debate do possível adiamento das eleições municipais, visto que, como já se é de costume, as datas em que são realizadas as votações, comumente reúnem inúmeras pessoas em um mesmo espaço, geralmente em filas, para que seja aplicado de fato a democracia. Tal aglomeração, é repreendida pelas organizações de saúde por serem fortes disseminadores do coronavírus.
Acontece que, tal inconstitucionalidade, ainda não está materializada, pelo não acontecimento do fato, o que não impede seu amplo debate.
Contudo, imagina-se que, de fato à grave crise sanitária causada pela COVID-19, impossibilite a realização das eleições. A medida mais lógica seria o adiamento para o ano seguinte, 2021, porém, se adotado, tal medida iria de encontro com o texto constitucional que é claro ao dizer, no inciso I do art. 29 que:
I – eleição do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores, para mandato de quatro anos, mediante pleito direto e simultâneo realizado em todo o país.
Mandato este de, exatos quatro anos, que apenas seria prorrogados em caso de reeleição. Um dos poucos momentos em que a Carta Magna é exata, é quando se trata do tempo total do mandato daquele que foi eleito democraticamente, que para todos, é de quatro anos.
De fato, entende-se que a Constituição é um texto que deve ser interpretado, conforme lição do professor da Unisinos/RS e pós-doutor Lenio Streck em seu podcast, intitulado “Nem Gulliver escapou dos literalistas!”[6], aonde o mesmo argumenta que a não interpretação e a aplicação da literalidade incorre em pena de demasiadas injustiças. Um exemplo prático que o professor apresenta, caso não houvesse interpretação, seria uma placa em uma plataforma, que proibiria cães naquele local, contudo, permitiria ursos e jacarés, e proibiria o cão-guia.
A interpretação feita neste caso, para que houvesse uma mudança no texto constitucional, deveria levar em conta diversos dispositivos, prioritariamente, o já citado inciso I do art. 29, subsequentemente, deveria se fazer uma análise do art.16, “que tem o fator teleológico de impedir modificações abruptas e casuísticas que possam estorvar a paridade de armas, de modo a favorecer determinados atores eleitorais”[7], conforme assinala o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pós-doutor Walber de Moura Agra. A título didático, segue o texto do referido artigo:
Art. 16 – A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
Acerca do referido artigo, comenta o professor Walber:
“O princípio da paridade de armas no pleito eleitoral é desdobramento do cânone da isonomia, que garante a igualdade dos meios utilizados na ambiência do pleito a todos os candidatos”[8].
Por fim, tem se a análise da periodicidade das eleições, tratada pelo inciso II, do §4º do art. 60, que elenca como cláusula pétrea:
- 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(…)
II – o voto, direto, secreto, universal e periódico.
Assim sendo, tem-se como principal “obstáculo” para o adiamento das eleições, o art. 16 da CF/88, contudo, defende o professor Walber Agra, que há tal possibilidade, conforme a passagem a seguir:
“(…) exala-se como conclusão que as eleições apenas podem ser adiadas se houver, além da incidência de um suporte fático excepcionalíssimo que se amolde à tipificação de caso fortuito ou força maior; o respeito indeclinável à segurança jurídica, especificamente ao princípio da anualidade eleitoral, que impede o vilipêndio ao princípio da paridade de armas e a ocorrência de casuísmos e indefinições ensejadoras de ilícitos eleitorais. Respeitadas essas premissas, as eleições, caso realmente sejam adiadas, seriam pelo menor tempo possível para esperar que a normalidade volte a imperar no Brasil. No entanto, ainda assim se exigiria uma Emenda à Constituição, especificamente no ADCT”[9].
2.3 Lockdown nos estados e municípios brasileiros
A medida nomeada de lockdown, é a medida que está sendo adotada em Estados e Municípios brasileiros, e visa, resumidamente, restringir a circulação de pessoas nas ruas, aplicando, em alguns casos, multas e conduções à delegacias para aqueles que descumprirem a norma.
Para que não haja possíveis dúvidas, segue a apresentação do art. 2º, seus respectivos incisos e o §3º do Decreto n. 729/2020 do estado do Pará:
Art. 2º Fica proibida, nas cidades acima referidas, a circulação de pessoas, salvo por motivo de força maior, justificada nos seguintes casos:
I – para aquisição de gêneros alimentícios, medicamentos, produtos médico-hospitalares, produtos de limpeza e higiene pessoal;
II – para o comparecimento, próprio ou de uma pessoa como acompanhante, a consultas ou realização de exames médico-hospitalares, nos casos de problemas de saúde;
III – para realização de operações de saque e depósito de numerário; e
IV – para a realização de trabalho, nos serviços e atividades consideradas essenciais, nos termos do Anexo Único deste Decreto.
(…)
- 3º A circulação de pessoas nos casos permitidos deverá ser devidamente comprovada, inclusive com a apresentação de documento de identificação oficial com foto.
O art. 6º do decreto ainda trata das multas aplicadas aos que não respeitarem a norma:
Art. 6º Ficam os órgãos e entidades componentes do Sistema Integrado de Segurança Pública e Defesa Social (SIEDS), bem como aqueles responsáveis pela fiscalização dos serviços públicos, autorizados a aplicar sanções previstas em lei relativas ao descumprimento de determinações do órgão licenciador, autorizador e/ou concedente, independente da responsabilidade civil e criminal, tais como, de maneira progressiva:
I – advertência;
II – multa diária de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para pessoas jurídicas, a ser duplicada por cada reincidência; e
III – multa diária de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) para pessoas físicas, MEI, ME, e EPP’s, a ser duplicada por cada reincidência;
IV – embargo e/ou interdição de estabelecimentos.
A priori, faz-se necessário o entendimento acerca das colisões entre os direitos fundamentais. Sobre tal, entende-se que tais direitos possuem como característica a limitabilidade, ou seja, não são absolutos, e por isso, caso a própria CF não discrimine a resolução do conflito, cabe ao interprete essa tarefa, decidindo sobre qual direito deverá prevalecer.
Diante do exposto, vale a análise sobre a possível violação ao direito constitucional de livre locomoção, assegurado pelo inciso XV do art. 5º.
O inciso citado do art. 5º da Lex Mater, assegura a livre locomoção em tempo de paz. Como já argumentado, indubitavelmente, a Carta Magna é um texto que precisa ser interpretado. Seria então possível o termo “tempo de paz” ser associado ao estado de calamidade pública ao qual vive o país? Talvez. O fato é que o Poder Constituinte Originário já se anteviu sobre o tema, e classificou os momentos em que tal direito fundamental poderia ser suprimido. Seriam eles o estado de defesa e o estado de sítio. Dispõe o art. 139, I da CF/88:
Art. 139 – Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
I – obrigação de permanência em localidade determinada.
Ressalta-se que, não foi decretado o estado de sítio, e tampouco poderia ser decretado pois não há, todavia, o complemento dos requisitos para tal, e sim, o estado de calamidade pública, o que, não legitimaria a proibição, visto que não é uma restrição, mas de fato, a proibição de circulação, e o art. 2º do decreto 729/2020 do Pará explicita isso, mesmo que liberadas as que exercem serviços essenciais.
Em tese contrária, argumenta o professor, já citado, da Unisinos/RS e pós-doutor Lenio Luiz Streck, no sentido de que:
“Ora, restrições a direitos são próprias e comuns das e nas democracias. Liberdades de ir e vir são a todo momento restringidas. Eventos cívicos, desportivos e coisas do gênero fazem com que as pessoas possam ser impedidas de circular por determinados lugares. Portanto, não parece difícil sustentar a tese da decretação de lockdown nos moldes em que vem sendo feito no Brasil. Ninguém pode ser compelido a fazer algo a não ser em virtude lei quer dizer também “por decreto”. De lockdown. Sim”[10].
E conclui:
“Numa palavra: Em termos legais-constitucionais, não há qualquer exigência de Estado de sítio ou de defesa para restringir o direito de ir e vir. Todos os dias essas restrições são feitas até por portaria. Aeroportos restringem, estádios, ruas etc. Leis restringem liberdades. Então, qual seria o problema de, em meio a uma pandemia, via legalidade extraordinária, restringir direitos para salvar vidas? Aliás, decretar Estado de Sítio ou de Defesa seria desproporcional. No sentido mais cru da palavra “proporcionalidade” (lá do Código Prussiano)”[11].
Em pensamento oposto, argumenta o ex-desembargador do TJ-RS, professor da PUC-RS e doutor em direito Ingo Wolfgang Sarlet, que:
“O ponto nodal da questão, contudo, como, aliás, amplamente conhecido, não é o fato corriqueiro da restrição a direitos, característico e indissociável do dia a dia da vida numa sociedade politicamente organizada, mas sim, a sua legitimação jurídico-constitucional, que parte do pressuposto (essencial ao Estado Democrático de Direito), de que os fins não justificam o uso de todo e qualquer meio e da conexa (mas não idêntica) proibição de arbítrio”[12].
A tese apresentada neste presente artigo, seria no sentido de respeitar os moldes constitucionais para a supressão de tal direito fundamental em detrimento de outro. O que sustenta a possível inconstitucionalidade do lockdown seriam também a anulação, pelos tribunais, da medida do “toque de recolher”, adotada por municípios também como medida preventiva ao coronavírus. Municípios como Umuarama no estado do Paraná e Itapira no interior de São Paulo, tiveram a medida do “toque de recolher” revogadas por decisões judiciais. Ambas decisões alegaram violação ao direito constitucional de livre locomoção.
Debatendo com a tese defendida pelo professor Lenio Streck, tem-se o seguinte ponto. O §1º do art. 60 da CF, aduz que:
- 1º – A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
Acerca disso, em 7 de maio de 2020, foi aprovada a emenda constitucional n. 106 que “institui regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia”. Emenda está que seguiu todos os requisitos e por isso pode ser inserida no ordenamento jurídico. Imagine-se agora, caso estivesse decretado no país o estado de sítio, em situação “emergencial” ou de precaução, poderia também esta emenda ser aprovada? Mesmo violando norma constitucional? Essa indagação apenas fica no imaginário, pois não se pode prever o futuro e saber o que de fato aconteceria. O que sabe-se é o que acontece no presente e aconteceu no passado.
Sobre a decisão da ADPF 672, retro citada, em que o Ministro Alexandre de Moraes permitiu que estados e municípios poderiam restringir a circulação de pessoas. Esta restrição, daria se pelo fechamento de serviços considerados não essenciais e pelo isolamento social, e não pela proibição instituída pelo lockdown.
Se legitimo o uso de tal decisão para a instauração da citada medida, seria então a liberdade de ir e vir algo subjetivo? Passível de supressão a qualquer momento? Uma vez que o art. 2º do Decreto 729/2020 do Pará expressa que é proibida a circulação de pessoas que não atendem aos requisitos da norma. De fato, há a necessidade de esclarecimento da decisão para que não sejam tomados atos equivocados por governantes, ou talvez, até mesmo uma nova análise do tema pelo plenário do STF, com auxílio da opinião pública e dos chamados amicus curiae, exercendo o que, Peter Häberle, nomeou de “sociedade aberta dos interpretes da Constituição”, que citado pelo professor Pedro Lenza em sua obra, “propõe a ideia de que a interpretação não possa ficar restrita aos órgãos estatais, mas que deve ser aberta para todos os que vivem a norma, sendo, assim, esses destinatários, legítimos intérpretes, em um interessante processo de revisão da metodologia jurídica tradicional de interpretação”[13].
Ademais, não há, até o presente momento[14], previsões legais federais que autorizem a implementação de tal medida, se não bastasse a não previsão constitucional. A lei federal que dispõe de medidas para o enfrentamento da pandemia, é a Lei n, 13.979, que em nenhum momento dispõe de autorização para medida proibitiva de circulação de pessoas, em suma, apresenta três medidas sobre circulação de pessoas, seriam elas a quarentena; o isolamento social; e a restrição excepcional e temporária de locomoção interestadual e intermunicipal, o que não impede o fluxo interno.
Tratando de tal violação constitucional, assinala, novamente o professor Walber de Moura Agra:
“As fraudes pululantes no constitucionalismo moderno servem apenas para deslegitimar a Carta Magna e estimular rompantes autoritários dos mais diversos matizes”[15].
Em pequena reflexão, tal estimulação à ideologias autoritárias citadas pelo professor, se faz coerente com o momento de pandemia que assola o país, uma vez que, em paralelo com a crise sanitária, instaurou-se uma crise política, além de que, em diversos momentos houveram manifestações que pediam a volta do Ato Institucional 5º, que foi o responsável pelo fortalecimento do regime ditatorial que viveu o brasil entre os anos de 1964 e 1985. Manifestações que, inclusive, tiveram como apoiador expresso, o Presidente da República Jair Bolsonaro.
Retomando o foco da tese, ainda ressalta-se a fala do professor Lenio Streck, que, em parte, indo contra sua própria tese no artigo citado, publicou fala em seu perfil oficial na rede social Instagram em que diz:
“Aplica-se o Direito por princípio e não por política. Vidas não podem ser hierarquizadas! E, atenção: legalidade extraordinária não justifica solapar o texto da Constituição Federal!”.
Conforme dito no início da explanação, direitos fundamentais não são absolutos e por isso podem ser sobrepostos um sobre o outro, em caso especifico, em caso de importância pública e nacional, em que, há diversas diferenças regionais e da propagação do vírus, ou seja, uma mesma medida não pode ser aplicada para todas as regiões, decerto há melhores maneiras para lidar com a temática. Assim sendo, ressalta-se novamente a possibilidade de interpretação do termo “tempo de paz” para que haja a possibilidade da implementação, porém, o mais adequado ao momento, seria que a interpretação viesse do Supremo Tribunal Federal e vinculasse aos tribunais inferiores. Ou talvez, por emenda constitucional, poderia se abrir mais uma brecha para a implementação da proibição de circulação de pessoas, em casos excepcionais, ao exemplo, de crise sanitária, que não pode o legislador prever, causando o que se chama de defeasibility, em livre tradução, derrotabilidade, que se materializaria no momento em que a norma fosse derrotada por uma ocasião que não pode o legislador prever. Salienta-se como a aprovação de uma súmula vinculante que tratasse da matéria seria o meio mais rápido e tão eficaz quanto a aprovação de uma EC, para o momento.
Destaca-se que, a crítica aprofundada neste tópico, não se fez sobre a eficácia ou não da medida implementada pelos estados e municípios, e sim pelo meio de instauração e a contradição constitucional.
Como último suspiro de sustentação da tese apresentada, segue outra passagem, novamente, do professor Ingo Sarlet ao defender os direitos fundamentais:
“Sem isso, a proteção dos direitos fundamentais e dos princípios estruturantes do nosso Estado Democrático de Direito está colocada em sério risco, até mesmo pelo fato de inexistir Estado Democrático de Direito sem direitos e garantias fundamentais, do mesmo modo que na ausência ou grave comprometimento desses implode a ordem constitucional democrática”[16].
CONCLUSÃO
Indiscutivelmente, o direito, realmente, não estava preparado para lidar com tal crise. O que não impede que os legitimados usem de suas atribuições para reformas à legislação em vigor, que possibilite, de maneira coerente, e que não venha causar futuros danos, que medidas de contenção sejam adotadas com respaldo constitucional. Sem que haja um abuso de poder, que possivelmente alimentaria ideologias autoritárias, o que, iria de encontro com a Constituição Cidadã, promulgada, que é reconhecida como marco de ruptura entre duas realidades distintas, uma sociedade reprimida e posterior uma sociedade com direitos e garantias fundamentais.
Acerca de possíveis meios para a solução dos conflitos, principalmente tratando de reformas constitucionais, no caso a mutação, entende-se que o estudo hermeneuta, apontado como possível solução, deve ser feito respeitado os moldes constitucionais, uma vez que, os ministros da Suprema Corte não se posicionam hierarquicamente acima da Constituição Federal, ao contrário, assim como todos os cidadãos, eles também estão subordinados ao texto constitucional. Tem as excelências como função típica resguardar o texto da Lex Mater, assim como preceitua o art. 102 da CF, e não deixar que as normas sejam transgredidas. Entende-se com isso, que, mesmo os ministros podem interpretar o texto de maneira equivocada, sendo a melhor saída, um estudo coletivos dos magistrados. E que se cumpra o texto constitucional para que assim, seja mantido o Estado Democrático de Direito e não haja o cometimento de erros já vistos no passado.
REFERÊNCIAS
AGRA, Walber de Moura. A possibilidade de adiamento das eleições municipais. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/moura-agra-possibilidade-adiamento-eleicoes. Acesso em: 16 de mai. 2020.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 de mai. 2020.
Lenio Streck em Podcast. Ep. 05. Nem Gulliver escapou dos literalistas. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/2u5j6rD69bzuofKfyWlkPX?si=nzxJnVj8QC2wE6WZWzZ1OA. Acesso em: 16 de mai. 2020.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23º ed. São Paulo. Saraiva. 2019
Rádio Onda Poços. Mesmo de portas fechadas, igreja é obrigada a encerrar transmissão de celebração. Disponível em: https://www.ondapocos.com.br/mesmo-de-portas-fechadas-igreja-e-obrigada-a-encerrar-transmissao-de-celebracao/. Acesso em: 16 de mai. 2020.
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais em tempos de pandemia – I. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-23/direitos-fundamentais-direitos-fundamentais-tempos-pandemia. Acesso em: 16 de mai. 2020.
STRECK, Lenio Luiz. Lockdown e Estado de Sítio: operar uma unha não exige anestesia geral!. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-11/lenio-streck-operar-unha-nao-exige-anistia-geral. Acesso em: 16 de mai. 2020.
[1] Acadêmico de Direito na Universidade de Cuiabá (UNIC); [email protected]
[2] Acadêmico de Direito na Universidade de Cuiabá (UNIC); [email protected]
[3] Professora de Direito Constitucional e Direito Internacional na Universidade de Cuiabá (UNIC); [email protected]
[4] Rádio Onda Poços, Mesmo de portas fechadas, igreja é obrigada a encerrar transmissão de celebração, 2020.
[5] DECRETO Nº 13.286, Poços de Caldas/MG
[6] Lenio Streck em Podcast, ep. 05, Nem Gulliver escapou dos literalistas, 2020.
[7] Walber de Moura Agra, A possibilidade de adiamento das eleições municipais, ConJur, 2020.
[8] Ibidem
[9] Ibidem
[10] Lenio Luiz Streck, Lockdown e Estado de Sítio: operar uma unha não exige anestesia geral!, ConJur, 2020.
[11] Ibidem
[12] Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos fundamentais em tempos de pandemia – I, ConJur, 2020.
[13] Pedro Lenza, Direito Constitucional Esquematizado 2019, 23. ed., p. 194.
[14] 15/05/2020
[15] Walber de Moura Agra, A possibilidade de adiamento das eleições municipais, ConJur, 2020.
[16] Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos fundamentais em tempos de pandemia – I, ConJur, 2020.