A ação de cobrança das cotas condominiais diante da promessa de compra e venda do imóvel

Resumo:  o artigo trata da cobrança de cotas condominiais em atraso diante de um imóvel objeto de promessa de compra e venda, com atenção à legitimidade passiva para a ação e à responsabilidade patrimonial pela dívida.
Palavras-chave: condomínio – responsabilidade – penhora responsabilidade patrimonial pela dívida.


Sumário:  1. Introdução. 2. A cobrança em face do promitente-vendedor. 3. A cobrança em face do promitente-comprador. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.


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1. Introdução


Em recente decisão, firmou o STJ o seguinte entendimento:


“RESPONSABILIDADE. DESPESAS CONDOMINIAIS. PROMESSA. COMPRA E VENDA. A Turma deu provimento ao recurso especial a fim de reconhecer a ilegitimidade passiva da recorrente para figurar na ação de cobrança de despesas condominiais (relativas a meses de 2004 e 2005) proposta, na origem, pelo condomínio no qual é proprietária de uma sala. Na espécie, ela havia vendido o imóvel em 1999 por meio de contrato de promessa de compra e venda, tendo o promissário comprador se imitido na posse precária do bem. De acordo com o Min. Relator, a responsabilidade pelos encargos condominiais, quando há contrato de promessa de compra e venda, pode recair tanto sobre o promissário comprador quanto sobre o promitente vendedor. Entretanto, salientou que não cabe ao autor da ação escolher um dos dois aleatoriamente, sendo necessário aferir com quem a relação jurídica material foi estabelecida no caso concreto. Assim, asseverou que, nessas hipóteses, o promissário comprador que se imitiu na posse do imóvel, ainda que em caráter precário, e de cuja imissão o condomínio teve conhecimento, deve responder pelas despesas condominiais no período em que exerceu essa posse, mostrando-se irrelevante o fato de o contrato ter sido ou não registrado. Precedentes citados: EREsp 136.389-MG, DJ 13/9/1999; REsp 470.487-SP, DJ 30/6/ 2003; REsp 200.914-SP, DJ 13/12/1999; AgRg no REsp 573.801-SP, DJe 27/10/2010; REsp 579.943-RS, DJ 16/11/2004; REsp 813.161-SP, DJ 8/5/2006, e REsp 172.859-PR, DJ 1º/10/ 2001.” [1]


O entendimento é inovador porque decisões anteriores do próprio STJ admitiam que, diante da promessa de compra e venda e da inadimplência das cotas condominiais, a ação do condomínio poderia ser proposta contra qualquer uma das partes (promitente-vendedor ou promitente-comprador). A questão da legitimidade passiva se resumiria a um mero juízo de conveniência do condomínio. Vejamos a guisa de exemplo  uma decisão neste sentido:


“CONDOMÍNIO – COBRANÇA – COMPROMISSO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA – ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DE PARTE – INEXISTÊNCIA – DÍVIDA “PROPTER REM” – PREVALÊNCIA DO INTERESSE DA COLETIVIDADE CONDOMINIAL – PROPOSITURA DA DEMANDA EM FACE DE QUEM FOR MAIS CONVENIENTE, OU SEJA, CONTRA QUEM PODERÁ CUMPRIR MAIS PRONTAMENTE A OBRIGAÇÃO – PRECEDENTES DO STJ NESSE SENTIDO – AÇÃO PROPOSTA EM FACE DA ALIENANTE – REGISTRO IMOBILIÁRIO APONTANDO A RÉ COMO PROPRIETÁRIA DA UNIDADE CONDOMINIAL – LEGITIMIDADE PASSIVA CONFIGURADA -CONDENAÇÃO MANTIDA COM A RESSALVA DE QUE A EXCUSSÃO SOMENTE PODERÁ ATINGIR O IMÓVEL INTEGRANTE DO CONDOMÍNIO VEDADA A INVASÃO NA ESFERA JURÍDICA DA RÉ EM BUSCA DE OUTROS BENS QUE FAZEM PARTE DE SEU PATRIMÔNIO. Como o condomínio elegeu a proprietária entre aqueles que têm uma relação jurídica vinculada às unidades em atraso (proprietário, possuidor, promissário comprador, etc.) como responsável pelo débito referente ao imóvel em questão, apoiando-se nos termos do que dispõe a lei, e amparado ainda, em v. precedentes jurisprudenciais do C. STJ nesse sentido, a sua opção deve ser respeitada, pois o interesse prevalente é o da coletividade de receber os recursos para o pagamento de despesas indispensáveis e inadiáveis, ressalvado a quem cumprir a obrigação exercer o direito regressivo contra quem entenda responsável”. [2]


A questão não é tão simples e merece uma reflexão mais profunda. Mais que a simples discussão acerca da legitimidade passiva ad causam para a ação de cobrança das cotas condominiais, a questão abordada pelo Eg. STJ repercute no próprio direito patrimonial que será alienado para a satisfação do credor. Vejamos o porquê.


Sabe-se que a promessa de compra e venda de imóvel faz nascer para o promitente-comprador o direito à aquisição do bem. A propriedade continua sendo do promitente-vendedor. Ao promitente-comprador cabe, após o cumprimento das obrigações previstas no pacto preliminar (em regra, o adimplemento do preço), exigir a outorga da escritura definita, por vontade do promitente-vendedor ou por decisão judicial. Somente a partir de então, com o registro deste título (o contrato definitivo ou a decisão judicial que supra a sua outorga), é que passará o até então promitente-comprador a ser o proprietário do bem.


Pois bem, com o atraso do pagamento das despesas condominiais, ao condomínio inicialmente se apresentam duas possibilidades: cobrar do proprietário (que ainda consta na matrícula do imóvel como proprietário) ou do promitente-comprador (tenha ele título registrado ou não, pois ainda que registrado o título não lhe atribui a qualidade de proprietário). Como visto, a jurisprudência anterior admitia que a ação fosse proposta contra qualquer um deles.


2. A cobrança em face do promitente-vendedor


Proposta a ação contra o proprietário do bem, na quase totalidade dos casos a garantia do juízo se dará através da penhora do próprio imóvel. Ainda que o proprietário tenha celebrado promessa de compra e venda com terceiro, a natureza propter rem da dívida de condomínio legitimaria a propositura da ação contra o proprietário. Adimplida a obrigação por pagamento voluntário do promitente-vendedor, não se poderia negar o direito de o proprietário cobrar regressivamente do promitente-comprador todos os valores pagos relativamente ao período posterior à promessa de compra e venda (uma vez que era ele quem de fato exercia a posse sobre o imóvel e dele desfrutava). Inadimplida a obrigação, contudo, o imóvel penhorado iria para a hasta pública, para a satisfação do condomínio credor. Nesta hipótese há polêmica acerca do direito de o promitente-comprador defender sua posse através de embargos de terceiro. Conta esta possibilidade já se decidiu que:


“CONDOMÍNIO DE EDIFÍCIO – DESPESAS CONDOMINIAIS – AÇÃO DE COBRANÇA – PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO REGISTRADA – EMBARGOS DE TERCEIRO – IMPROCEDÊNCIA – Execução. Embargos de Terceiro para afastar penhora. Ação incidental proposta por quem tem a posse efetiva do imóvel, eis que o adquiriu por escritura pública de promessa de compra e venda, não registrada. Embora a dívida condominial tenha natureza propter rem, se o promitente comprador do imóvel, por escritura publica, ainda que não registrada no RGI, tem a posse efetiva da unidade e se declara responsável por “todas as obrigações afetas ao imóvel”, não há como prosperar pedido por ele feito, através de Embargos de Terceiro, visando o levantamento da penhora incidente sobre o mesmo bem, que garante o debito. Litigância de má-fé afastada. Não procede com má-fé quem se vale dos meios judiciais para defender direito que considera seu. Recurso provido, em parte. (DSF) (TJRJ – AC 1.292/99 – (Reg. 180.599) – 14ª C.Cív. – Rel. Des. Mauro Nogueira – J. 12.04.1999) [3]


EXECUÇÃO – TÍTULO JUDICIAL – PENHORA DE UNIDADE CONDOMINIAL – CONDOMÍNIO – DESPESAS CONDOMINIAIS – EMBARGOS DE TERCEIRO – INTERPOSIÇÃO POR COMPROMISSÁRIO-COMPRADOR SEM TÍTULO REGISTRADO – COBRANÇA AJUIZADA CONTRA COMPROMISSÁRIO-VENDEDOR – PARCELAS POSTERIORES À AQUISIÇÃO – SUBSISTÊNCIA DA CONSTRIÇÃO – DESCABIMENTO. Não obstante o disposto no enunciado da Súmula n. 84 do E. Superior Tribunal de Justiça, se o imóvel `sub judice` ainda é de propriedade do promitente vendedor segundo o registro imobiliário, e, se a inadimplência é imputável ao promissário comprador (quem desfrutou dos benefícios e vantagens propiciados pela comunidade condominial), afigura-se admissível a penhora do imóvel gerador das despesas condominiais em ação de execução por título judicial proposta  pelo Condomínio contra o promitente vendedor (Código de Processo Civil, artigo 584, inciso I)”. [4]


Em sentido contrário, vide:


“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA. TAXAS CONDOMINIAIS. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. IMÓVEL AINDA REGISTRADO EM NOME DA VENDEDORA. FATO DO QUAL O CONDOMÍNIO TINHA CONHECIMENTO. EXECUÇÃO CONTRA VENDEDOR. POSSUIDORA. AÇÃO DE COBRANÇA DA QUAL NÃO PARTICIPOU. PENHORA SOBRE O APARTAMENTO GERADOR DAS TAXAS. IMPOSSIBILIDADE. I) “O condomínio em plano horizontal impõe direitos limitantes e limitados e a obrigação propter rem de contribuir pro rata para as despesas condominiais se transmuda em indisponibilidade e inalienabilidade da unidade autônoma, desde o momento em que o titular se torna inadimplente. II) O promissário comprador de imóvel, já investido na posse deste, detém legitimidade para figurar no pólo passivo de demanda que vise à cobrança de cotas condominiais em atraso, ainda que o instrumento contratual não haja sido registrado no ofício competente, e desde que a dívida se refira a prestações vencidas após a ocupação do imóvel. III) Se o condomínio, visando à cobrança de cotas condominiais vencidas após a ocupação, propõe ação de cobrança em face do promitente vendedor, não pode o imóvel adquirido pelo promissário comprador, em sede de execução de sentença, ser penhorado para garantir o pagamento da dívida, à medida que esta não lhe foi atribuída e em face dele não foi proposta nenhuma ação, medida que afrontaria os princípios do devido processo legal, ampla defesa e do contraditório.” [5]


Contudo, a tese da legitimidade passiva do promitente-vendedor não é simpática à doutrina e à jurisprudência. Vejamos as razões:


“O alienante, desde a celebração do contrato de compromisso de compra e venda pretende se desfazer da coisa compromissada e confere ao adquirente desde logo, o ius utendi, fruendi e parte do abutendi, além de não poder vender ou prometer vender, de forma legítima, o mesmo imóvel a terceiros. A conservação do direito de propriedade em suas mãos dá-se apenas pela necessidade do recebimento integral do preço que, uma vez quitado, o obriga ao cumprimento do dever de outorgar escritura pública, não como novo contrato, mas como ato devido, passível inclusive de execução específica.


O adquirente, por sua vez, pretende o quanto antes exercer posse sobre o imó­vel para dele tirar proveito e efetua o pagamento do preço com o único objetivo de, no futuro, tornar-se proprietário mediante o recebimento da escritura pública definitiva e posterior registro no cartório de imóveis.


O alienante, portanto, corresponde a um `quase proprietário` titular, se­gundo Barbosa Lima Sobrinho, de mera `recordação da propriedade`. E, diante do caráter limitado do seu direito e da intenção das partes de transferir a titularidade da coisa alienada, justifica-se a sua não-responsabilização por despesas condominiais não pagas pelo adquirente, a partir da data da sua imissão na posse  do  bem compromissado.” [6]


3. A cobrança em face do promitente-comprador


Contudo, outro  problema, a nosso entender, se coloca quando a ação é proposta contra o promitente-comprador. Quando tratamos da ação proposta em face do promitente-comprador estamos fazendo referência a dívidas posteriores à celebração da promessa de compra e venda, até porque o § único do artigo 4º da Lei 4591/64 dispõe que


“Art. 4º A alienação de cada unidade, a transferência de direitos pertinentes à sua aquisição e a constituição de direitos reais sobre ela independerão do consentimento dos condôminos


§ único – A alienação ou transferência de direitos de que trata este artigo dependerá de prova de quitação das obrigações do alienante para com o respectivo condomínio.”


A penhora, neste caso, não poderia incidir sobre a propriedade do imóvel, mas apenas sobre os direitos à aquisição do mesmo.  São coisas absolutamente distintas: no direito à aquisição há uma contrapartida – o pagamento das prestações porventura ainda em aberto. Penhorar a propriedade de um bem em uma ação na qual não figura o proprietário no polo passivo seria uma excrecência jurídica. O próprio STJ, em outra recente decisão, afirma isto. Vejamos


“AÇÃO. COBRANÇA. COTAS CONDOMINIAIS. ARQUIVAMENTO. IMÓVEL.
A jurisprudência assente é no sentido de que o adquirente de imóvel em condomínio responde pelas cotas condominiais em atraso, ainda que anteriores à aquisição, ressalvado o direito de regresso contra o antigo proprietário. Não constitui ofensa à coisa julgada o trânsito em julgado de ação de cobrança proposta contra os antigos proprietários que se encontrava em fase de cumprimento de sentença quando homologada a desistência requerida pelo exequente. Isso decorre porque, de acordo com os limites subjetivos da coisa julgada material, essa produz efeitos apenas em relação aos integrantes na relação jurídico-processual em curso, de maneira que, nessa regra, terceiros não podem ser beneficiados ou prejudicados. Assim, nenhum impedimento havia de que o condomínio, autor da demanda, propusesse nova ação de cobrança contra os atuais proprietários do imóvel, recorridos.” [7] 


Ora, se o proprietário não foi parte na ação, ele não poderia ser “beneficiado ou prejudicado” pelo direito ali discutido. O óbvio às vezes precisa ser repetido: salvo as hipóteses de garantia real, quem deve responder pela execução são os bens do devedor [8]. Logo, proposta a ação contra o promitente-comprador, apenas os direitos à aquisição do imóvel poderão ser penhorados e levados à hasta pública. Se todas as prestações devidas pela aquisição do imóvel tiverem sido pagas, não haverá maior problema. Neste caso o valor do direito à aquisição do imóvel se aproxima ao próprio valor do imóvel (eis que as obrigações pecuniárias decorrentes do contrato preliminar já foram adimplidas).  A dificuldade se coloca quando há prestações em atraso, e neste caso, a existência da dívida deverá constar do edital do leilão e o eventual arrematante se sub-rogará nos direitos e obrigações decorrentes da promessa de compra e venda original.


A questão que se coloca implica alguns cuidados práticos. Se o que vai ser levado a leilão é o direito à aquisição do imóvel, a avaliação que deve preceder ao leilão deve levar em conta tal situação. Costumeiramente, os juízes determinam que nesta situação se avalie o imóvel em si. O direito à aquisição do imóvel é coisa completamente diversa. Deve o avaliador apurar o saldo devedor existente e deduzi-lo do valor do bem. Se o imóvel vale R$ 100.000,00 e a dívida das prestações devidas pelo promitente-comprador alcança R$ 40.000,00, os direitos aquisitivos deste imóvel valem R$ 60.000,00. A existência da dívida de R$ 40.000,00 deve constar do edital do leilão, de forma a permitir ao arrematante saber qual o valor da dívida que assumirá.


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Não obstante, há decisões judiciais que vêm entendendo que:


“Processo civil. Execução. Obrigação propter rem . A doutrina ensina que o cumprimento das obrigações atinentes aos encargos condominiais constitui uma espécie peculiar de ônus real, gravando a própria unidade, eis que lhe imprime poder de seqüela. Isso porque o adquirente do imóvel em sistema de condomínio responde pelos débitos da unidade adquirida [9]


AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA DE COTAS DE CONDOMÍNIO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMÓVEL GERADOR DO DÉBITO REGISTRADO EM NOME DO PROMITENTE VENDEDOR. POSSIBILIDADE DE PENHORA. As cotas condominiais, porque decorrentes da conservação da coisa, situam-se como obrigações propter rem, ou seja, obrigações reais, que passam a pesar sobre quem é o titular da coisa; se o direito real que a origina é transmitido, as obrigações o seguem, de modo que nada obsta que se volte à ação de cobrança dos encargos condominiais contra o promissário comprador do imóvel. Se a legitimidade passiva para a cobrança de cotas condominiais pode recair até mesmo no promissário comprador do imóvel gerador das despesas, óbvia é a possibilidade de penhora do imóvel objeto do contrato de promessa de compra e venda visto que a obrigação acompanha o imóvel. Recurso provido.[10]


AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONDOMÍNIO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA SOBRE DIREITOS E AÇÕES DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. INVIABILIDADE.


No cumprimento de sentença de ação de cobrança de cotas condominiais, o fato de o executado não ser proprietário do imóvel, mas tão-somente promitentecomprador, não é impedimento para que a penhora recaia sobre o bem, pois a dívida é de natureza “propter rem. Na espécie, mostra-se inviável que o edital de publicação da hasta pública indique que a constrição judicial recai apenas sobre os direitos e ações resultantes da promessa de compra e venda, pois a penhora deve recair sobre o bem imóvel que deu origem à dívida condominial.
Reforma da decisão agravada para determinar que o edital de publicação da hasta pública indique o imóvel como bem penhorado.” [11]


Há aqui uma evidente confusão entre a natureza propter rem da dívida e a questão da legitimidade passiva ad causam. Ora, não se nega que a dívida condominial tem natureza propter rem; e é justamente em função disto que seria de todo conveniente que o credor que pretende penhorar a propriedade do imóvel devesse propor a ação em face do proprietário. Admitir entendimento contrário equivaleria a aceitar que bem de terceiro (o proprietário) responda por dívida em processo no qual ele não figurou como parte, ou seja, seria admitir contradição entre os artigos 1345 do código civil (“o adquirente de uma unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios”) e 591 do código de processo civil (“o devedor [rectius: e somente ele] responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei [rectius: p.ex., os bens impenhoráveis]”).


Certamente, o erro das decisões apontadas está na confusão entre os conceitos de obrigação propter rem e de direito real de garantia, como bem salientado por Eduardo Sócrates Castanheira  Sarmento Filho, a saber:


“Costuma-se afirmar, também equivocadamente, que ‘a unidade condominial sempre responde pelo débito em razão de sua natureza propter rem’.


Essa afirmação tornou-se verdadeiro dogma, sendo feita, inclusive, pelos especialistas na matéria e pelas altas cortes brasileiras, apesar da inexistência de previsão legal nesse sentido.


Provavelmente tenha contribuído para isto o fato de haver confusão entre os conceitos de ônus real, direito real de garantia e obrigação propter rem, mas também o fato de que a unidade autônoma é, normalmente, alienada em hasta pública para pagar a dívida (isto porque integra o patrimônio do devedor e não porque seja a dívida garantida pela coisa).


Recorrendo à lição de Messineo e Torrente, Maria Helena Diniz, ao cuidar da distinção entre obrigação propter rem e o ônus real, ensina que ‘na obrigação propter rem é a pessoa que se encontra vinculada, respondendo, portanto, o devedor com todos os seus bens’, asseverando que somente responde a coisa quando se estiver diante de um ônus real.[12]


Em que pesem os entendimentos citados, parte da jurisprudência já passou a atentar para estas questões. O STJ já entendeu que:


“O promissário comprador de imóvel, já investido na posse desse, detém legitimidade para figurar no pólo passivo de demanda que vise à cobrança de quotas condominiais em atraso, ainda que o instrumento contratual não haja sido registrado no ofício competente, e desde que a dívida se refira a prestações vencidas após a sua ocupação do imóvel. Precedentes. Se o Condomínio, visando à cobrança de quotas condominiais vencidas após a ocupação, propõe ação de cobrança em face do promitente vendedor, não pode o imóvel adquirido pelo promissário comprador, em sede de execução de sentença, ser penhorado para garantir o pagamento da dívida, na medida em que essa não lhe foi atribuída e não foi em face dele proposta a ação de cobrança.” [13]


Vejamos uma lapidar decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com a transcrição de parte do bem fundamentado voto do relator:


“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE COBRANÇA DE DESPESAS CONDOMINIAIS – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – PENHORA – BENS DE TERCEIRO – IMPOSSIBILIDADE. Em cumprimento de sentença prolatada em ação de cobrança de despesas condominiais, não pode ser penhorado o bem pertencente à pessoa que não figura no pólo passivo da demanda.


 Voto do relator


Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo Condomínio Edifício Missouri-Mississipi em face da decisão prolatada nos autos da ação de cobrança, em fase de cumprimento de sentença, que ajuizou contra Renato José da Silva.


A citada decisão encontra-se assim redigida:
“Verifica-se da cópia do Registro de Imóveis de f. 111 que o mesmo foi adjudicado pela EMGEA – Empresa Gestora de Ativos, em decorrência de execução extrajudicial do contrato de compra e venda firmado entre o ora executado e a CEF.


Não obstante o Superior Tribunal de Justiça tenha posicionamento solidificado no sentido de que ‘a responsabilidade pelas despesas de condomínio, ante a existência de promessa de compra e venda, pode incidir tanto sobre o promitente comprador quanto sobre o promissário vendedor, devendo ser aferida de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto’ (EDcl no REsp 324329/MG, d.j. 08.10.2007), não pode o condomínio-exequente se esquecer de que a referida empresa EMGEA não foi parte nos autos, pelo que não é possível exigir da mesma o pagamento, senão pela via própria.


…omissis…


Ao se averbar a penhora, constatou-se que o imóvel não mais pertencia ao executado Renato José da Silva (f. 34-TJ), pois fora adjudicado à EMGEA – Empresa Gestora de Ativos (f. 36-TJ).
Por não figurar a referida empresa no pólo passivo da ação e por não poder a penhora recair em bem pertencente a terceiro estranho à lide, não pode a  penhora  incidir sobre o imóvel em questão.
Observo que as dívidas relativas às taxas de condomínio são de natureza propter rem, cuja particularidade reside, na lição de Antônio Junqueira de Azevedo, “justamente no fato de que, nelas, o devedor somente é determinado pela sua condição de titular da propriedade; mudando a coisa de dono, muda a obrigação do devedor. Por isso, também se chamam obrigações ambulatórias”. (“Restrições Convencionais de Loteamento – Obrigações Propter Rem e suas Condições de Persistência”, em Revista dos Tribunais, nº. 741, p. 116, citado por Arnaldo Rizzardo em Direito das Obrigações. Editora Forense, 2008 p. 72).
Assim, em ações dessa natureza, faculta-se ao credor a propositura da demanda tanto contra o devedor, quanto contra o proprietário atual da coisa vinculada à obrigação, independente de ter tido este qualquer relação com o fato gerador da dívida.
Contudo, não se pode penhorar o imóvel se o proprietário atual não figurar no pólo passivo da ação, como bem ressaltou o ilustre Juiz da causa.
Consequentemente, correta se mostra a decisão agravada, ao desconstituir a penhora por entender que a “empresa EMGEA não foi parte nos autos, pelo que não é possível exigir da mesma o pagamento, senão pela via própria”.


Com tais considerações, NEGO PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO”. [14]


No mesmo sentido são as seguintes decisões:


“Despesas de condomínio. Cobrança. Execução. Indeferimento de penhora do imóvel cuja propriedade é de terceiro conforme registro imobiliário. Possibilidade de constrição apenas do direito do promitente comprador. Inteligência do inciso VII do artigo 1.225 do Código Civil de 2003 Recurso impróvido. [15]


Condomínio – Cobrança de despesas condominiais – Compromisso de compra e venda não registrado – Irrelevância – Promitente-vendedor que não responde por encargos condominiais após a alienação do imóvel, se o condomínio tem ciência inequívoca do compromisso de venda e compra não levado a registro e de que o promissário comprador está na posse do imóvel – Ilegitimidade passiva do alienante – Sentença de extinção sem resolução do mérito – Recurso desprovido. 1. A orientação mais justa e que preserva os interesses da comunidade de condôminos é aquela segundo a qual “as despesas e cotas condominiais devem ser cobradas do adquirente do imóvel ou do promitente comprador e não do seu antigo proprietário, mesmo que ainda não levado a registro no Cartório de Registro Imobiliário o contrato correspondente, se o condomínio tiver ciência da alienação” (STJ, AgRg no Agravo de Instrumento n° 552.739-SP). 2. A penhora dos direitos dos compromissários compradores de unidade nada tem de inócua, em termos de garantia de pagamento da dívida condominial: tais direitos podem ser penhorados e arrematados ou adjudicados e gerarão direito à reintegração ou imissão na posse, utilização da unidade e, quitadas as obrigações, a transferência voluntária ou compulsória do domínio, por meio de demanda contra a promitente vendedora, (cf. Agravo de Instrumento n° 1.113.035-0/6 – São Paulo – 26ª Câmara de Direito Privado – Relator: Norival Oliva – 27.08.07)”.[16]


4. Conclusão


A questão da legitimidade passiva para a ação de cobrança de cotas condominiais diante de uma promessa de compra e venda é questão polêmica que, aparentemente, agora parece se consolidar no STJ em favor da legitimidade do promitente-comprador – desde que o condomínio tenha ciência da celebração do contrato, seja através do registro do mesmo, seja pela prática ostensiva dos atos que evidenciam a posse do mesmo. Tal entendimento, contudo, não pode levar à conclusão de que a propriedade do imóvel poderia responder pelos débitos. O credor deverá dirigir sua cobrança aos direitos à aquisição do bem (hipótese em que eventual arrematante se sub-rogará na posição anteriormente ocupada pelo promitente-comprador) ou tentar localizar outros bens no seu patrimônio que possam fazer frente às dividas.


 


Referências bibliográficas:

ANTONIO JUNIOR, Valter Farid. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Atlas, 2009, p. 148.

LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil, volume VI, 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1991

SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. A responsabilidade pelo pagamento de cotas condominiais no regime da propriedade horizontal. RT 767/86 e RF 346/65.

SILVA, Antônio Carlos Costa. Tratado do Processo de Execução. Rio de Janeiro: Aide, 1986, 2º vol.


Notas:
[1] STJ, acórdão no REsp nº 1.079.177-MG, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 2/6/2011.

[2] TJSP, acórdão da 25ª Câmara de Direito Privado na apelação 992070302315, Relator Des.  Amorim Cantuária, julgado em  14/09/2010, publicado em  17/09/2010.

[3] Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, acórdão da 14ª Câmara Cível na apelação cível 1292/99, relator Des. Mauro Nogueira, julgado em  12/04/1999

[4] 2º Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, acórdão da 3ª Câmara na  Ap. c/ Rev. 847.954-00/6, relator  Juiz ANTÔNIO BENEDITO RIBEIRO PINTO, julgado em 24/8/2004.

[5] TAMG, acórdão da 9ª Câmara Cível na apelação 453864-9/Belo Horizonte, , Rel. Márcia de Paoli Balbino, 02/09/2004.

[6] ANTONIO JUNIOR, Valter Farid. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Atlas, 2009, p. 148.

[7] . STJ, REsp 1.119.090-DF , Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/2/2011.

[8] Neste sentido, apenas a título de ilustração, vide:  LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil, volume VI, 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1991, § 1037, página 415 e SILVA, Antônio Carlos Costa. Tratado do Processo de Execução. Rio de Janeiro: Aide, 1986, 2º vol. , p. 805.

[9] STJ, acórdão da 3ª Turma, no julgamento do Recurso Especial nº 6.123, Rel. Ministro Waldemar Szveiter, Acórdão de 11.12.90, DJ de 18.2.91, p. 137.

[10] Tribunal de Justiça de Minas Gerais, acórdão da 10ª CÂMARA CÍVEL no processo  1.0702.07.381798-4/001(1), Relator Des. CABRAL DA SILVA, julgado em 18/11/2008, publicado em  28/11/2008.

[11] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, decisão  da 8ª Câmara Cível no recurso 70033947284, Relator: Nelson José Gonzaga, julgado em 21/12/2009, publicado em  29/12/2009

[12] Sarmento Filho, Eduardo Sócrates Castanheira. A responsabilidade pelo pagamento de cotas condominiais no regime da propriedade horizontal. RT 767/86 e RF 346/65.

[13] REsp. 326.159/RJ, Relª Minª Nancy Andrighi, DJ de 2-9-2002

[14] Tribunal de Justiça de Minas Gerais, acórdão da 15ª Câmara Cível no processo  1.0024.07.506355-2/001(1), relator Des. MAURÍLIO GABRIEL, julgado em  28/10/2009, publicado em 25/11/2009.

[15] Tribunal de Justiça de São Paulo, acórdão da 32ª Câmara de Direito Privado no processo 992090739050 (1286769000), Relator: Rocha de Souza, julgado em 08/10/2009, publicado em  05/11/2009.

[16] Tribunal de Justiça de São Paulo, acórdão da 26ª  Câmara de Direito Privado no processo 0167934-37.2010.8.26.0000, relator Des. Reinado Caldas, julgado em 30/03/2011, publicado em 04/04/2011. Grifos nossos.


Informações Sobre o Autor

Jose Eduardo Ribeiro de Assis

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Advogado, especialista em Direito Privado e em Direito Empresarial, Mestre e Doutor em Direito. Procurador do Banco Central


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