A aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos do Sistema Financeiro da Habitacão

1 Aspectos gerais

O tema tratado diz respeito à admissibilidade da aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90, aos contratos do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), buscando, sobretudo, a harmonização dos princípios constitucionais que conferem ao cidadão o direito à moradia e determinam que o Estado promova a proteção ao consumidor, dentre outros direitos e garantias fundamentais inscritos no corpo da lei máxima do Brasil e que dela emanam.

Como se sabe, o sistema de financiamento habitacional, tem origem na Lei nº 4.380, de 21/08/1964, que trazia em seu bojo o princípio norteador de equivalência entre a prestação do financiamento da casa própria e a renda do mutuário, com vistas a criar um sistema equilibrado e justo, que satisfizesse o anseio geral de aquisição de moradia, principalmente das camadas sociais menos favorecidas economicamente, sem que, para tanto, houvesse comprometimento severo da renda familiar.

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Porém, como também é de conhecimento geral, durante as décadas seguintes, anos 70 e, principalmente, no curso dos anos 80 – a chamada década perdida, o sistema foi sofrendo diversas e significativas alterações, muito em razão do imenso descontrole da economia do país e dos diversos e malsucedidos planos macroeconômicos, consolidando-se nos anos 90 numa legislação intrincada e complexa, tendente a dificultar o acesso dos necessitados ao sistema e, em muitos casos, torná-lo perverso àqueles que ainda amortizam seus financiamentos.

Desde a segunda metade da última década do século XX, tendo o governo federal assumido o paradigma neoliberal, o SFH sofreu modificações drásticas que, em verdade, consolidaram o espírito de privatização dos investimentos em infra-estrutura no país, no qual foram incluídos os financiamentos habitacionais, pelo que, para muitos, o sistema simplesmente deixou de existir, sendo substituído pelas regras do crédito privado, sabidamente menos acessíveis à coletividade e onde desaparece por completo o aspecto social primitivo do sistema.

Assim, na intenção de recuperar a iniciativa de promover a facilitação da aquisição da casa própria, razão de ser primeira do SFH, e de buscar dar efetividade ao direito social à moradia previsto no caput  do artigo 6o da Constituição Federal, pretende-se inserir no sistema vigente, ou no que dele restou, o princípio da proteção ao consumidor, implantado expressamente em nosso sistema jurídico pela própria CF/88 e positivado com a edição da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Passando-se a tratar o mutuário como consumidor, e o agente financeiro como fornecedor, utilizando-se a lógica da Lei nº 8.078/90, pretende-se alcançar o desiderato de justiça social, almejado nos primórdios do sistema de financiamento habitacional, encarando-se de frente o problema e focando-se em seu principal objetivo: propiciar aos cidadãos a aquisição da casa própria, de forma módica, que não comprometa o exercício da cidadania, sem que isso, no entanto, inviabilize economicamente o sistema.

Essa é, inclusive, a principal crítica daqueles que entendem inaplicável o Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos contratos do SFH; levantando a hipótese de inviabilização econômico-financeira do sistema como um todo, com a aplicação dos princípios e regras consumeiristas, acabam por manter a forma perversa com que ele vem se sustentando. À custa de juros e encargos exorbitantes, fatores de correção mal aplicados, entre outras mazelas financistas, o sistema, na forma em que é atualmente aplicado, gera saldos devedores – e, por conseguinte, contratos, impagáveis. Em muitos casos, ao final do prazo de financiamento, paga-se o imóvel mais de três vezes, ainda restando imenso saldo devedor a ser quitado, o que por si só demonstra a lógica equivocada que tem norteado o sistema.

Portanto, o que se pretende no presente trabalho é resgatar aquilo que pode ser chamado de coerência inicial do sistema, por meio da integração das disposições do CDC e, sobretudo, dos princípio afetos às relações de consumo, resgatando a possibilidade da aquisição da casa própria sem comprometimento dos demais projetos de vida dos mutuários, retratando o resgate do conceito amplo de cidadania.

2. O direito a moradia

A publicação da Emenda Constitucional número 26, em 15/02/2000, que deu nova redação ao artigo 6o da Constituição brasileira, passou a abrigar expressamente em seu rol de direitos sociais o direito à moradia.

Porém, antes mesmo desta inclusão, o artigo 23, que define a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em seu inciso IX, já garantia este direito:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

IX. promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

Ora, se é competência comum a todos os entes federados a promoção de programas de construção de moradias, bem como promover a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, mostra-se clara a preocupação constitucional com o direito de morar dos brasileiros.

As competências estabelecidas na Constituição, em verdade, determinam deveres a serem desincumbidos pelos entes federados, de forma particular ou compartilhada, exatamente nos moldes ali desenhados. E, neste norte, se é dever de todos os entes que compõem a Federação propiciar as condições para a construção de moradias e, da mesma forma, tornar melhores as condições habitacionais dos cidadãos, clara está a definição de um direito à moradia consagrado pela lei máxima do Estado a toda a coletividade.

Assim, pode-se entender sem embargo que o direito à moradia é garantia constitucional introduzida pelo Poder Constituinte Originário e explicitada pelo Poder Constituinte Reformador, que a incluiu expressamente no rol de direitos sociais.

O que é importante salientar, sobretudo, é que o direito à moradia é um direito de estatura constitucional, o que deverá sempre ser levado em consideração no momento de interpretação das diversas normas infraconstitucionais que regulam os programas públicos de construção e de aquisição de unidades habitacionais, bem como os contratos particulares que envolvem a compra de imóveis residenciais.

É sobre esse enfoque que deverá ser tratado o problema dos programas de financiamento governamental direcionados à aquisição da casa própria, invariavelmente regulados por normas de cunho financeiro, que, por certo, não deverão prevalecer sobre o objetivo último dos programas, a realização do ditame constitucional de garantia de moradia e de programas que tornem acessível aos brasileiros a construção da sua morada ou a aquisição desta já construída, de forma facilitada e menos onerosa possível.

3. O Sistema Financeiro da Habitação

O SFH, é um programa governamental instituído na década de 60, pela Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, que objetivava propiciar à população, sobretudo à população carente, a aquisição da casa própria. Nas palavras de Laerte Vieira Gonçalves Neto (2002), o sistema pode ser entendido como “um conjunto de normas (legais e infra-legais), órgãos, instituições e recursos financeiros voltados para um objetivo social”.

Arnaldo Rizzardo o define da seguinte maneira:

Cuida-se do contrato de mútuo para a aquisição da casa própria ou de abertura de crédito para construção de unidades habitacionais.

O crédito é aberto com o fim específico de ser aplicado na construção de casas ou de edifícios de apartamentos, destinados às pessoas sem moradia.

As leis formuladoras do sistema expressam tal desiderato. (RIZZARDO, 1999, p. 117)

O sistema, que já está na iminência de completar seus 40 anos, funcionou a contento durante um longo período, mas as diversas alterações que foi sofrendo com o passar dos anos, fruto das mudanças de concepções de política habitacional e macroeconomia, parecem lhe ter tirado a essência social e socializante inicial. O SFH foi extremamente modificado ao longo dos anos e, com as diversas mudanças que abalaram ano após ano a economia do país, foi significativamente transfigurado, tornando-se finalmente uma pequena sombra do grande programa de inclusão social que um dia foi, ou se imaginou ser.

Assim, pois, hoje em dia, o SFH não é mais a primeira opção para as famílias que desejam adquirir a casa própria, eis que suas regras já se encontram extremamente próximas das regras do mercado em geral, que, por certo, não oferece o crédito com intuito de promover ascensão social, mas tão somente o de lucrar com os juros dos financiamentos.

4. O Código de Defesa do Consumidor

A proteção ao consumidor é, hoje no Brasil, um direito de indubitável importância. Fruto do movimento consumeirista, com origens alienígenas e que, aos poucos, foi se integrando ao ordenamento jurídico nacional, pela via dos precedentes jurisprudenciais, o direito do consumidor aqui atingiu seu auge com a promulgação da Constituição Federal, em 1998.

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A carta política brasileira prevê expressamente que o Estado deverá promover, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5o, XXXII) e que este será objeto de especial proteção no contexto da ordem econômica, elevando a defesa do consumidor ao patamar de princípio norteador da atividade econômica no país (art. 170, V).

Prevista no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, é atualmente o instrumento que serve à efetividade do princípio constitucional da defesa do consumidor e veio para codificar o sistema de proteção ao consumidor. É uma lei moderna, festejada e considerada internacionalmente como exemplo de norma de proteção a um dos mais importantes momentos da vida social humana: o ato de consumo.

É necessário ressaltar a natureza principiológica das normas de defesa do consumidor que, como visto, emana do próprio dispositivo constitucional que confere, de forma expressa, especial proteção aos consumidores, enquanto parte mais frágil da relação de consumo e, pois, mais sujeita às práticas abusivas ou desleais dos maus fornecedores. Essa garantia serve, ainda, como norma reguladora da atividade econômica, que deverá se desenvolver com respeito ao citado princípio, influenciando de forma decisiva no sistema de concorrência do mercado, até mesmo como diferencial competitivo.

Assim, as disposições do microssistema de defesa do consumidor, positivaram o horizonte jurídico a ser levado em consideração pelo Direito brasileiro, que deverá sempre observar na interpretação das normas jurídicas que envolvam relações de consumo o princípio de garantia da proteção ao consumidor.

Essa é a posição, dentre outros, de Nelson Nery Júnior (2001):

O CDC, por outro lado, é lei principiológica. Não é analítica, mas sintética. Nem seria de boa técnica legislativa aprovar-se lei de relações de consumo que regulamentasse cada divisão do setor produtivo (automóveis, cosméticos, eletroeletrônicos, vestuário etc.). Optou-se por aprovar lei que contivesse preceitos gerais, que fixasse os princípios fundamentais das relações de consumo. É isto que significa ser uma lei principiológica. Todas as demais leis que se destinarem, de forma específica, a regular determinado setor das relações de consumo deverão submeter-se aos preceitos gerais da lei principiológica, que é o CDC.

Assim, sobrevindo lei que regule, v.g., transportes aéreos, deve obedecer aos princípios gerais estabelecidos no CDC. Não pode, por exemplo, essa lei específica, setorizada, posterior, estabelecer responsabilidade subjetiva para acidentes aéreos de consumo, contrariando o sistema principiológico do CDC. Como a regra da lei principiológica (CDC), no que toca à reparação dos danos, é a da responsabilidade objetiva pelo risco da atividade (art. 6o, nº VI, CDC), essa regra se impõe a todos os setores da economia nacional, quando se tratar de relação de consumo. Destarte, o princípio de que a lei especial derroga a geral não se aplica ao caso em análise, porquanto o CDC não é apenas lei geral das relações de consumo, mas, sim, lei principiológica das relações de consumo.

Pensar-se o contrário é desconhecer o que significa o microssistema do Código de Defesa do Consumidor, como lei especial sobre relações de consumo e lei geral, principiológica, à qual todas as demais leis especiais setorizadas das relações de consumo, presentes e futuras, estão subordinadas.” (NERY JÚNIOR, 2001)

Como se vê, as normas chamadas “leis de ocasião”, comumente derivadas de lobbies, bancados financeira e ideologicamente por setores específicos e a eles destinadas, na maioria das vezes, com o claro intuito de apenas retirá-los do campo de incidência do CDC, diante da lei principiológica, deixam de ter eficácia plena, eis que sua interpretação necessariamente deverá se nortear pelos princípios estabelecidos por aquele. Exemplos recentes são as normas que pretenderam instituir o indigitado “CDC Bancário” (Resoluções nº 2.878/01 e 2.892/01 do Banco Central do Brasil), as quais, por imperativo jurídico, jamais poderão prevalecer sobre as disposições da Lei nº 8.078/90.

Portanto, leis especiais que porventura disciplinem segmentos de mercado através do qual se travam relações de consumo, deverão se adequarem aos princípios instituídos no CDC. Podem ampliar direitos, mas nunca restringi-los. Da mesma forma, por se tratarem as regras do Código de normas de ordem pública, como se verá adiante, estas também terão influência na aplicação da legislação que lhe é anterior, ao regular as relações continuativas, de trato sucessivo.

Esse é o caso da legislação reguladora do SFH. Mesmo constituindo legislação especial, destinada a regular um determinado segmento do mercado – os financiamentos para aquisição de unidades habitacionais, deverá ser aplicada com o devido acatamento do princípio da proteção ao consumidor, que é, como já dito, regulador da atividade econômica em geral, bem como aplicar-se-ão as normas de proteção ao consumidor, dado o seu inegável caráter principiológico.

Quanto à conceituação dos componentes da relação jurídica de consumo, o CDC, em seu artigo 2o, dá a definição de consumidor, verbis:

Art. 2o – Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único – Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Vê-se, de modo claro, que a lei procurou dar ao consumidor um conceito meramente econômico, evitando digressões de ordem sociológica, psicológica, ou filosófica, dentre outras possíveis, para que se pudesse tutelar situações concretas e bem delimitar o campo de atuação do Direito do Consumidor.

Torna-se necessário salientar ainda que o conceito legal de consumidor, acima transcrito, tem como característica restritiva a aquisição ou utilização do bem como destinatário final. Essa especial característica – ser ou não aquele que adquire ou utiliza determinado produto ou serviço seu destinatário final, pode ser interpretada de várias formas.

A questão reside, pois, em saber se um sujeito que adquire ou utiliza o produto ou serviço como profissional deve ou não ser considerado, para os efeitos do Código, seu destinatário final.

Uma das soluções para esse problema traz consigo os conceitos de destinatário final fático (aquele que retira o produto da cadeia de produção) e destinatário econômico (aquele que adquire para si, sem intuito de recolocação no mercado). Por isso, somente estariam sob a proteção do CDC os chamados consumidores não profissionais, ou seja, aqueles que adquirem ou utilizam produtos e serviços para si ou para seus familiares. Tal interpretação, que reforça os aspectos de vulnerabilidade e hipossuficiência de uma das partes da relação de consumo, tem inspiração na chamada corrente finalista do consumeirismo. Essa concepção se opõe à chamada corrente maximalista, que procura identificar nas normas do CDC um novo regulamento para o mercado de consumo, e não normas orientadas para proteger somente o consumidor não profissional.

Prevalece, hoje, na jurisprudência nacional, o entendimento da corrente finalista, representado por importantes estudiosos do Direito do Consumidor no Brasil, dentre os quais citamos Bejamin, Tomasetti, Grau e Pasqualotto.

Da lição de Cláudia Lima Marques, também ilustre representante da corrente finalista, trazemos o seguinte trecho:

Para os finalistas, pioneiros do consumeirismo, a definição de consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial, agora concedida aos consumidores. Esta tutela só existe porque o consumidor é a parte vulnerável nas relações contratuais no mercado, como afirma o próprio CDC no art. 4o, I. Logo, convém delimitar claramente quem merece esta tutela e quem não a necessita, quem é o consumidor e quem não é. Propõem, então, que se interprete a expressão “destinatário final” do art. 2o de maneira restrita, como requerem os princípios básicos do CDC, expostos nos arts. 4o e 6o. (MARQUES, 1999)

Consideramos mais adequada à realidade das relações de consumo e à proteção necessária ao consumidor a definição finalista, por ser centrada na vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor – destinatário final fático e econômico do produto ou serviço, em relação ao fornecedor, o outro pólo da relação de consumo. Essa definição é suficiente para a garantia dos princípios consumeiristas, é completada pelas definições do parágrafo único – coletividade de consumidores e do art. 17 – consumidor por equiparação, além das definições de consumidor bystander (MARQUES, 1999) e de agentes equiparados a consumidores (CDC, art. 29).

Os consumidores-profissionais, por sua vez, poderão encontrar guarida suficiente nas disposições das leis comerciais e, principalmente, no Novo Código Civil. Ressalta-se ainda que, havendo demonstrada hipossuficiência ou vulnerabilidade, o CDC poderá ser aplicado às relações de consumo travadas entre fornecedor e consumidor-profissional, utilizando-se, conforme o caso, o conceito abstrato do artigo 29.

O fornecedor, o outro sujeito da relação jurídica de consumo, é conceituado pelo art. 3o do Código:

Art. 3o – Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§1o – Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§2o – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Nesse ponto, é visível a preocupação da lei em introduzir um conceito bastante amplo de fornecedor, procurando abarcar todos os possíveis componentes de uma relação de consumo. O próprio Poder Público é relacionado como fornecedor para os efeitos da proteção legal ao consumidor, lembrando-se que a lei é anterior à onda de privatizações ocorridas no Brasil, a partir da segunda metade da década de 90, e que, naquela ocasião, era ele um dos maiores fornecedores do mercado de consumo, principalmente no que diz respeito à prestação de serviços.

Sobre o assunto, escreve José Geraldo Brito Filomeno:

Fala ainda o art. 3o do Código de Proteção ao Consumidor que o fornecedor pode ser público ou privado, entendendo-se no primeiro caso o próprio Poder Público, por si ou por suas empresas públicas que desenvolvam atividade de produção, ou ainda as concessionárias de serviços públicos, sobrelevando-se salientar neste aspecto que um dos direitos dos consumidores expressamente consagrados pelo art. 6o, mais precisamente em seu inc. X, é a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. (FILOMENO, 2001, p. 30)

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O parágrafo 2o é também bastante claro ao conceituar e relacionar as atividades consideradas como serviço, incluindo expressamente as de natureza bancária, financeira e de crédito.

A despeito das opiniões contrárias, normalmente provenientes de representantes dos próprios bancos e de suas entidades representativas, a exemplo da ADI 2591/STF, que busca a exclusão dos serviços bancários do campo de incidência do CDC, parece-nos cristalino o objetivo da lei de incluir os serviços desta natureza na sua esfera de proteção.

Esse objetivo, espelho do que se verifica na maioria das legislações que regulam o consumo ao redor do mundo desenvolvido, justifica-se até mesmo porque os contratos bancários configuram típicos contratos de adesão. Como afirma Cláudia Lima Marques (1999), o contrato bancário “é o contrato de adesão por excelência, é uma das relações consumidor-fornecedor que mais se utiliza do método de constratação por adesão e com ‘condições gerais’ impostas e desconhecidas”.

Também esta a opinião de José Geraldo Brito Filomeno (2001), que sintetizou a conformação dos serviços bancários como relações de consumo, elencando quatro circunstâncias características: “a) por serem remunerados; b) por serem oferecidos de modo amplo e geral, despersonalizado; c) por serem vulneráveis os tomadores de tais serviços, na nomenclatura própria do CDC; d) pela habitualidade e profissionalismo na sua prestação”.

Portanto, caracterizados consumidor e fornecedor – particularmente o fornecedor de serviços de natureza bancária, financeira e de crédito – passamos ao estudo da aplicabilidade desses conceitos ao SFH.

5. A aplicabilidade do CDC aos contratos regidos pelo SFH

Como foi visto, os contratos do SFH têm natureza bancária, sendo necessário o intermédio de uma instituição financeira para que o interessado possa ter acesso ao crédito que lhe garantirá a aquisição de um bem determinado: o imóvel para a sua moradia.

Examinada a capacidade financeira do proponente, futuro mutuário, bem como sua adequação subjetiva ao sistema, o banco aprova ou não a proposta de financiamento. Em caso positivo, nessa proposta constam o valor financiado, o número de parcelas, a forma de atualização e correção das mesmas e do saldo devedor, dentre outras condições, tudo de forma previamente determinada pela instituição financeira e configurada num contrato de adesão, cabendo ao interessado apenas assiná-lo.

Assinado o contrato, estabelece-se o vínculo entre as partes, cabendo ao banco o fornecimento do numerário pré-acertado (crédito) para aquisição do imóvel e ao mutuário o pagamento das prestações do financiamento. O banco, durante o prazo de duração do contrato, deverá manter uma prestação contínua de serviços, dentre os quais Alcio Manoel de Souza Figueiredo (2000) destaca:

I. obrigatoriedade de manter-se o binômio prestação/salário, com a conseqüente revisão das prestações pelo agente financeiro;

II. renegociação e adequação das prestações mensais ao comprometimento da renda familiar;

III. emissão das prestações mensais, através de SLIP’s para pagamento junto ao agente financeiro;

IV. obrigação de manter demonstrativo da evolução do saldo devedor do financiamento, discriminando o valor mensal das quotas de amortização , juros, seguros, FCVS e CES; etc. (FIGUEIREDO, 2000)

Assim, verificam-se as duas atividades principais dos agentes financeiros: conceder o crédito e a prestação contínua de obrigações durante o período de duração do contrato.

Novamente tomando a lição de Arnaldo Rizzardo (1994), citamos:

Existe, no contrato de financiamento da casa própria, uma prestação de serviços, dirigida a atividades a consumidores, isto é, aos que necessitam da casa para a moradia. Trata-se de uma atividade que certos bancos exercem, prestada ao público, desde que preenchidos alguns requisitos ou satisfeitas certas formalidades.

Assim, nota-se que não constitui o contrato um negócio particular regido pelo Direito comum. A atividade financeira, neste setor, é controlada pelo Estado e programada por inúmeros diplomas específicos.

Por ser dirigida ao público, ou oferecida a quem tem necessidade dela, cuida-se de uma relação de consumo. (RIZZARDO, 1994, p. 46)

Não é outra a opinião de Cláudia Lima Marques (1999):

Muitas preocupações têm surgido no Brasil quanto ao contrato de financiamento com garantia hipotecária, e os contratos de mútuo para a obtenção de unidades de planos habitacionais. Nestes casos o financiador, o órgão estatal ou o banco responsável, caracteriza-se como fornecedor. As pessoas físicas, as pessoas jurídicas, sem fim de lucro, enfim todos aqueles que contratam para benefício próprio, privado ou de seu grupo social, são consumidores. Os contratos firmados regem-se, então, pelo novo regime imposto aos contratos de consumo, presente no CDC. (MARQUES, 1999, p. 203)

Todos os dados expostos demonstram que, no caso específico de financiamento regido pelo SFH, a interpretação sistemática dos dispositivos do CDC autorizam classificar a relação como de consumo.

Considere-se, assim, o que dispõem o já citado artigo 3º, § 2º e os artigos 29, 52 e 53, do CDC, respectivamente:

Art. 3º. (…)

§ 2º – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Art. 29. Para fins deste capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores, todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.

Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolvam a outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor (…)”

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento de prestações (…).

Como se vê, os dispositivos citados denotam claramente que as atividades de empréstimo, regidas pelo SFH, para aquisição de imóvel, submetem-se aos princípios e regras do Código.

De fato, nos contratos mencionados, pode-se identificar, de um lado, um fornecedor e, de outro, um consumidor, os quais atuam da seguinte forma:

O agente financeiro, ao pactuar o contrato de financiamento pelo Sistema Financeiro da Habitação, exerce duas atividades: a primeira, a concessão do crédito. A segunda, a aprovação de financiamento ao mutuário, obedecendo às normas do Sistema Financeiro da Habitação e a prestação de um serviço contínuo com prazo de duração equivalente ao número de meses do financiamento.

Com efeito, as atividades do agente financeiro estão sedimentadas em ambos os conceitos estabelecidos nos § § 1º e 2º do art. 3º do CDC: o produto: a concessão do crédito; o serviço: aprovação do financiamento e a prestação de serviço contínuo até o termo final do contrato.

Assim, o agente financeiro empresta o dinheiro ao mutuário para que este possa adquirir a moradia própria, pagando o referido financiamento em um determinado número de prestações mensais, ou seja, o mutuário é o “destinatário final” do crédito tomado do agente financeiro. (FIGUEIREDO, 1999, p. 42).

Assim, diferentemente dos demais contratos de mútuo para aquisição de imóvel – em que a definição do mutuário como consumidor dependerá do exame do caso concreto, nos contratos regidos pelo SFH, aquele figura sempre como destinatário final, fático e econômico, pois necessariamente usa o crédito para aquisição de casa própria. Não há outra opção.

É importante lembrar, ainda, que o fato de as normas reguladoras do SFH constituírem legislação especial não afasta a aplicação dos ditames do CDC, dado o seu caráter principiológico, o que antes determina que sua interpretação seja norteada pela garantia de proteção ao consumidor.

Por todas essas razões, é de se considerar o mutuário do SFH como consumidor, e o agente financeiro, fornecedor de serviços (e também de produto). Portanto, aplicam-se as disposições do CDC aos contratos de financiamento habitacional regidas pelo SFH.

5.1. O aspecto temporal

Sabe-se que o CDC, datado de 11 de setembro de 1990, é posterior ao SFH (1964). Torna-se, pois, necessária uma ponderação acerca da sua aplicabilidade aos contratos de financiamento da casa própria, já em curso, quando da entrada em vigor do CDC.

Acima, já se discorreu sobre o caráter principiológico das normas de proteção ao consumidor, o que, rememorando, faz com que a legislação incidente sobre setores específicos do mercado deva se adequar aos ditames do microssistema consumeirista no que disser respeito às relações de consumo ali travadas.

A isso deve se acrescentar que, já em seu artigo primeiro, o CDC prescreve que as normas pertinentes à defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social. Como se sabe, dizer que uma norma é de ordem pública, significa que suas disposições são inderrogáveis por vontade das partes, embora se admita a disposição de certos interesses de caráter patrimonial.

As normas de ordem pública têm também como característica sua aplicação imediata, o que vai exatamente ao encontro dos contratos que aqui nos propusemos a discutir. Os contratos de financiamento de imóveis pelo SFH são de execução continuada no tempo (trato sucessivo), e um considerável número desses contratos foram celebrados antes do nascimento do CDC.

Nas palavras de Arnaldo Rizzardo (1994):

A ordem pública se manifesta ou é realizada se todas as relações jurídicas por ela afetadas, não importando o momento de sua formação, receberem o mesmo tratamento, de modo a se amoldarem a um padrão preconizado de jurídico pelo ordenamento que passou a vigorar. E desde que um diploma cria ou cristaliza um sistema de deveres e direitos que são de todos, ou que interessa à universalidade das pessoas, é ele de ordem pública, denominando-se estatuto legal.

(…)

A lei de interesse público concentra em um novo sistema jurídico, uma ordem antes já defendida e mesmo obedecida. Impõe, ao surgir, determinada conduta padronizada, ou um comportamento uniformizado de todos os cidadãos de um país. O consumo é uma prática comum, da qual ninguém fica excluído, pois todos consomem. Diferente o caso de vir uma lei disciplinando unicamente a venda de terrenos urbanos, cujo regime deve respeitar os contratos formalizados antes de sua vigência. A menos, no caso do estatuto legal, que sobrevenha ou exista uma lei especial, a qual trata particularmente de certas condutas. (RIZZARDO, 1994, P. 43)

Assim, também no aspecto temporal, é indubitável a aplicabilidade das disposições do CDC aos contratos efetuados conforme as regras do SFH, celebrados anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 8.078/90, ressalvado apenas o ato jurídico perfeito, ou seja, os contratos já cumpridos e findos.

Como dissemos, tratando-se de norma de ordem pública, sua aplicabilidade é imediata e deverá, assim, incidir exatamente para adequar os instrumentos em execução ao novo paradigma por ela instituído.

Conclusão

Diante do exposto, podemos concluir que os contratos regidos pelas regras do SFH estão sujeitos às regras contidas no CDC.

No conceito de consumidor se enquadra o mutuário do SFH; este, necessariamente, utiliza-se dos serviços de concessão de crédito e financiamento como destinatário final, fático e econômico. Fica vinculado à aquisição da casa própria e não poderá empregar o crédito concedido de outra forma, recolocando-o na atividade econômica. Não há opção. Do outro lado, o agente financeiro encaixa-se na definição legal de fornecedor; coloca no mercado e oferece a todos, indistintamente, o serviço de concessão de crédito para a aquisição da moradia, concedendo-o conforme análise própria e enquadramento às normas que regem o SFH. Deverá ainda prestar serviços durante todo o prazo de duração do contrato.

O intuito do CDC foi procurar submeter às suas regras – de cunho principiológico e norteadas primordialmente pelo princípio da boa-fé objetiva, uma gama diversificada e ampla de operações de consumo que ocorrem diariamente no mercado nacional. Em todos os dispositivos do Código, lei de ordem pública, o que se vê é a tentativa de enquadrar o mais possível de situações (atos de consumo) ao seu regramento. Enfim, busca evitar práticas nocivas, mas com vistas também a harmonizar os interesses envolvidos, buscando tornar sadio o mercado de consumo e possibilitar sua expansão e o conseqüente desenvolvimento da atividade econômica.

Os contratos firmados entre mutuários e agentes financeiros são tipicamente de adesão, não permitindo aos primeiros efetuar qualquer alteração em suas cláusulas – eles simplesmente aderem aos termos ali contidos, normalmente desconhecendo as minúcias da vinculação a que estão se submetendo, o que também torna necessária uma interpretação que leve em conta a proteção do consumidor.

A vulnerabilidade e hipossuficiência do contratante também ocorrem. A necessidade de adquirir a moradia leva o mutuário a se submeter a regras que desconhece ou não entende e que podem lhe causar prejuízo. Por outro lado, a instituição financeira, que capta os recursos a um custo sensivelmente baixo, busca obter a maior contrapartida possível, com a garantia agravante de que o imóvel financiado também responderá por eventual inadimplemento.

Isso demonstra a necessidade de se utilizar o CDC para de fato harmonizar as relações entre as partes dessa relação contratual, procurando sobretudo manter a vida do pacto, apenas modificando-o naquilo que se mostrar excessivamente dificultoso ou oneroso ao consumidor e, de forma oposta, demasiado vantajoso para o fornecedor. Até mesmo porque espera-se que um contrato deva ser igualmente profícuo para ambos os contratantes.

Ressalte-se, ainda, que a jurisprudência, principalmente a do STJ, vem, através de inúmeros precedentes, decidindo ser possível, e até mesmo desejável, a aplicação das regras do CDC aos contratos regidos pelo SFH, capazes de corrigir injustiças e desigualdades devido à delegação de uma tarefa de cunho eminentemente social à iniciativa privada.

Como foi dito na introdução deste trabalho, o que se espera, com a aplicação do CDC aos contratos regidos pelo SFH, é a sua humanização. Procura-se o resgate da inicial função social do sistema, dando ao cidadão, sobretudo aquele de baixa renda, a oportunidade de adquirir a sua casa própria, sem que isto signifique o sério comprometimento da renda de sua família, inviabilizando uma vida digna e a consecução de outros projetos.

Esperamos, com este breve trabalho, ter contribuído para o desenvolvimento do tema; e que a sua leitura desperte nos operadores do Direito o sentimento de que é necessário considerar o SFH, primordialmente, como um programa de inclusão social; e que, aplicando-lhe as disposições do CDC, seja possível realizar, sem maiores percalços, o sonho que leva os mutuários a ingressar no sistema: adquirir a casa própria.

 

Referências bibliográficas
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Informações Sobre o Autor

 

Bruno de Almeida Oliveira

 

Professor Universitário. Mestre em Direito Público pela PUC Minas. Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pelo Instituto de Educação Continuada – IEC/PUC Minas. Doutorando em Direito Público.

 


 

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