A colocação da criança ou adolescente em lar substituto e a Lei de Adoção (Lei Federal Nº 12010/09)

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I – ASPECTOS GERAIS


O infante ou jovem que esteja com seus direitos fundamentais postos em risco por ação ou omissão dos pais ou responsável terá todo o amparo legal para que seja assegurada sua convivência familiar e comunitária.


Como primeira providência, buscar-se-á a inclusão da família de origem em programas oficiais ou comunitários de orientação e auxílio. Sendo o caso de extrema gravidade (violência doméstica, abuso sexual etc.), proceder-se-á ao afastamento cautelar do agressor da moradia comum, sem prejuízo de outras ações pertinentes.


Se essas providências não forem suficientes para amparar a criança ou adolescente em situação de risco, buscar-se-á a inclusão do infante ou jovem em lar acolhedor (ou instituição, em último caso).


Claro que não precisarão ser esgotadas essas etapas. Não há uma gradação entre elas. Nada impedirá que se proceda ao acolhimento institucional da criança ou adolescente vitimizada de imediato, constatada a gravidade do ato que afetou a vida dessa pessoa.


Não sendo o caso de reintegração da criança ou adolescente a seu lar de origem, deverá ela ser encaminhada para família substituta.


Determina a Lei de Adoção (Lei Federal nº 12010/09), em seu artigo 1º, §2º, que tal atitude se traduz num verdadeiro dever por parte das autoridades, de acordo com regras e princípios contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8069/90).


Dessa forma, busca-se a proteção integral almejada pelo legislador para a defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente. Uma vez posta a situação de risco, deverá ser feito o possível para a manutenção da família de origem em sua integralidade.


Caso tal não seja factível, surge a obrigação imposta aos envolvidos na questão infanto-juvenil (em especial o juiz de direito, o promotor de justiça e os conselheiros tutelares) para a busca de alternativa para o infante ou jovem em ambiente substituto.


II – GRAU DE AFINIDADE E DE AFETIVIDADE


Em qualquer das modalidades escolhidas para a colocação (guarda, tutela ou adoção), a criança ou jovem deverá ser entrevistada e suas opiniões, devidamente consideradas para o fim de aproximação com a nova família (artigo 28, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, com redação dada pela Lei de Adoção).


No caso do adolescente, inova a Lei de Adoção ao modificar o §2º do referido artigo, exigindo que, em qualquer das modalidades de inclusão em lar substituto, o adolescente deve ter seu consentimento expresso colhido em audiência perante o magistrado.


Todavia, mesmo que a criança ou adolescente discorde de modo aberto com a colocação em família substituta, tal gesto não traduz em impedimento automático para a aplicação de tal medida.


Nesse caso, deverá o magistrado se valer de outros elementos (como a reavaliação psicossocial do caso periodicamente, sua experiência pessoal etc.) para uma nova análise da questão, ainda que a posteriori.


Afinal de contas, mesmo que a criança ou adolescente discorde da medida que é proposta (como no caso da guarda, por exemplo), tal não tem o aspecto de definitividade – até mesmo porque o infante ou jovem pode estar passando por um período conturbado da vida pessoal, com enfrentamentos e questionamentos típicos da idade, merecendo o caso uma nova análise em tempo oportuno.


De qualquer forma, o magistrado deverá, analisando a questão da colocação em lar substituto, aplicar a medida que for a melhor possível para o infante ou jovem na qualidade de sujeito de direitos, considerados os princípios da prioridade absoluta e da proteção integral à criança e ao adolescente.


Para a colocação o magistrado também deverá levar em conta aspectos como a afetividade e a afinidade entre o infante ou jovem e as pessoas junto às quais passará a viver (§3º do artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente, incluído pela Lei de Adoção). Também deverá ser levado em consideração o grau de parentesco com relação aos interessados em receber o infante ou jovem.


Note-se que o parentesco é aquele estipulado pelos artigos 1591 a 1595 do Código Civil. Não há a figura do “parente por afinidade”, referindo-se à pessoa ligada por laços meramente afetivos, por exemplo. A pessoa que não tenha parentesco com a criança ou adolescente deverá ter sua pretensão de acolhida estudada pelo magistrado e pelo promotor de justiça, mas de acordo com o nível de afinidade e de afetividade com o infante ou jovem.


Vale dizer que, numa determinada hipótese, se um parente próximo (irmão ou tio) pleiteia a guarda de criança, e o mesmo desejo tem uma pessoa que não tem qualquer vínculo de parentesco (como um padrinho), nem por isso o vínculo de sangue prevalecerá necessariamente.


Para que se busque a solução ideal para o caso, o magistrado determinará a oitiva das partes interessadas, bem como da criança (caso seu estágio de desenvolvimento e o grau de compreensão sobre as implicações da medida permitam) ou do adolescente. Também ordenará que se realizem estudos pela equipe interprofissional do Juízo, a fim de aquilatar qual será o lar mais benéfico para aquela pessoa em situação peculiar de desenvolvimento.


III – COLOCAÇÃO DE GRUPOS DE IRMÃOS EM LAR SUBSTITUTO


Assim dispõe o §4º do artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (incluído pela Lei de Adoção):


 “Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais”.


Na prática, há problemas com os quais se pode deparar no tocante a grupos de irmãos. Isso porque há a possibilidade concreta de surgimento de grupo superior a três pessoas, as quais deverão ser postas em família substituta.


Tradicionalmente há uma clara tendência das pessoas interessadas em acolher crianças ou adolescentes de receber em seu lar um ou dois pequenos. O número superior a três acolhidos já é costumeiramente recusado pelos que se cadastram perante o Juízo da Infância e da Juventude.


Tal exigência não faz parte apenas do panorama envolvendo os interessados nacionais domiciliados em solo brasileiro. Frequentemente são vistos casos de estrangeiros com domicílio no Exterior que desejam adotar no máximo duas crianças. Raríssimo é ver um caso em que estrangeiros são autorizados a acolher grupo de três ou quatro irmãos.


Em algumas vezes, há a possibilidade de que vão todos para uma mesma família, mas os profissionais da área da Infância e da Juventude devem se preparar para casos adversos em que o grupo de irmãos não poderá permanecer residindo sob um mesmo teto.


Para resolver tal questão, o magistrado tem que se valer do bom senso, que deve apontar para a melhor solução para as crianças ou adolescentes envolvidos. Sempre lembrando que, segundo a lei, a medida de separação de irmãos deve ser excepcional, haverá a necessidade de tomada de tal atitude de modo que seja o menos doloroso para o grupo como um todo.


Tome-se como exemplo o caso de grupo de irmãos em que o mais velho deles esteja em plena adolescência e que os mais novos sejam de idades geralmente aceitáveis para adoção. Não haverá a possibilidade de manter os mais novos juntos ao mais velho até que este complete a maioridade, já que, além de haver o dispêndio de muito tempo, não haverá garantias de que o mais velho vá acolher necessariamente os irmãos mais novos.


Isso sem contar que, como a institucionalização é medida excepcional e breve por natureza, não podendo ultrapassar o prazo de dois anos, manter todos os irmãos em instituição por tanto tempo violará abertamente seus direitos essenciais.


Nesse caso, abre-se ao juiz de direito a possibilidade de determinar que haja a separação dos irmãos. Com frequência há casos de estrangeiros que, por imposição da legislação de seus próprios países, aceitam adotar o mais velho dos irmãos juntamente com o mais novo, deixando os outros irmãos abertos para outra adoção.


Tem-se para o magistrado o desafio de que, mesmo estando o grupo de irmãos separado, sejam eles adotados por famílias que residam em locais próximos, a fim de que sejam mantidos os elos fraternais entre eles.


Pode ocorrer o fato de um dos irmãos permanecer em acolhimento institucional enquanto os demais são postos em lar substituto. Se assim for, deve o magistrado agir de forma a determinar que os vínculos entre os irmãos sejam mantidos, estimulando o contato entre eles (visitas, troca de correspondências etc.) e propiciando o fortalecimento dos elos que ligam o grupo fraterno.


IV – PREPARAÇÃO PARA A COLOCAÇÃO EM LAR SUBSTITUTO


Uma vez constatada a impossibilidade de retorno da criança ou adolescente a seu lar de origem, é dever do Estado encaminhá-la para família substituta, tentando-se todas as diligências possíveis para que tal se efetive.


Essa colocação em lar substituto não pode ocorrer de forma pura e simples, de modo abrupto para a criança ou adolescente em questão.


Veja-se o disposto no §5º do artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (incluído pela Lei de Adoção):


A colocação da criança ou adolescente em família substituta será precedida de sua preparação gradativa e acompanhamento posterior, realizados pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com o apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar”.


Com tal determinação, o legislador busca a realização de uma preparação prévia da criança e do adolescente para o que está para vir – no caso, uma nova família, um novo lar, uma nova vizinhança, novas pessoas que participarão de sua vida.


Na prática, vê-se uma multiplicidade de casos de infantes e jovens acolhidos em instituição cujo retorno a suas famílias de origem foi constatado como inviável. Com a perspectiva de inclusão em um novo lar, busca-se dar à criança ou adolescente todas as informações sobre a colocação nesse ambiente, a fim de que a transição da instituição para a outra família se dê da forma menos traumática para o acolhido.


Além do fornecimento de todos os dados necessários para a adaptação à nova família, será realizado o acompanhamento psicológico da criança ou adolescente, detectando-se eventuais problemas relativos à rejeição dela a uma nova família ou afastando possíveis temores dela quanto a um não acolhimento familiar.


Rotineiramente essa transição é realizada pela própria equipe interprofissional do Juízo da Infância e da Juventude (assistentes sociais, psicólogos etc.). Todavia, a Lei de Adoção, ao alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, indica que se deve dar preferência ao apoio realizado por técnicos responsáveis pela execução de política municipal de garantia do direito à convivência familiar.


Embora a lei adote esse acompanhamento também a ser realizado pelos técnicos municipais, tal procedimento é preferencial, ou seja, não obrigatório. Nada impede que o magistrado se valha única e exclusivamente de sua equipe interprofissional, devidamente qualificada, para a preparação da criança ou jovem para a inclusão em lar substituto.


V – HIPÓTESES DIFERENCIADAS DE COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA


O §6º do artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (incluído pela Lei de Adoção) indica duas hipóteses que deverão ter tratamento específico em se tratando de colocação de criança ou adolescente em lar substituto.


São elas referentes a infantes ou jovens indígenas ou provenientes de comunidade remanescente de quilombo.


O espírito do legislador buscou preservar a identidade cultural e social, as tradições e costumes de tais crianças ou adolescentes (inciso I do referido artigo).


Ademais, pessoas com tais origens se tornam acolhidas muito mais facilmente no mesmo ambiente do grupo ao qual pertencem (mesma etnia com relação aos indígenas ou mesma comunidade em se tratando de quilombolas, de acordo com o inciso II do mencionado artigo).


É claro que o disposto no inciso II não se aplica a crianças ou adolescentes que tiveram pouquíssimo (ou nenhum) contato com sua etnia (ou comunidade) de origem. Tome-se por exemplo o caso de infante que, devido a gravíssimos problemas de saúde desde o nascimento (com o agravante de não tratamento adequado pela família de origem), não teve qualquer contato com seu grupo natural.


Nesse caso, nada impedirá que seja a criança colocada junto a lar substituto que não pertença à etnia (ou comunidade) de onde o infante é oriundo, já que entre ele e o grupo original os vínculos de ordem subjetiva (afetividade, afinidade, ligações de ordem comunitária, estabelecimento de valores culturais etc.) são inexistentes.


No tocante aos oriundos de comunidades indígenas, também há a previsão descrita no inciso III do referido artigo, segundo a qual deverá haver


a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista (…), e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso”.


No caso de criança ou adolescente indígena a ser colocada em lar substituto, dúvida que poderá surgir é a referente à intervenção do órgão federal responsável pela política indigenista (no caso, a FUNAI).


Essa intervenção é meramente referente às entrevistas que serão levadas a cabo pela equipe interprofissional, de acordo com o inciso III do §6º do artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (acrescido pela Lei de Adoção). Não há a intervenção da FUNAI no processo de colocação (com manifestações por parte do advogado do órgão federal), mas apenas na parte referente às diligências que serão tomadas pela equipe interprofissional do Juízo.


Prova disso é que haverá a oitiva e intervenção dos representantes da FUNAI e de antropólogos perante a equipe técnica que irá acompanhar o caso.


Também vale dizer que a intervenção da FUNAI no caso não deslocará a competência para a Justiça Federal, permanecendo o processo no âmbito da Justiça Estadual (especializada na área da Infância e da Juventude).


Prova disso é o disposto no inciso III quando se diz que a intervenção ocorrerá “perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso” (verbis), ou seja, será a colocação objeto de análise e acompanhamento pela equipe técnica do Juízo da Infância e da Juventude, perante o qual todo o processo deverá tramitar.


Outro ponto de relevo se refere à desnecessidade de intervenção da FUNAI em se tratando da ação de destituição do poder familiar promovida em face de indígena, posto que a referida norma indica atuação daquele órgão apenas em se tratando da colocação de criança ou adolescente em lar substituto, não se justificando a extensão da interpretação do inciso III para processos afins.



Informações Sobre o Autor

Francismar Lamenza

Promotor de Justiça da Infância e da Juventude da Lapa
Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP