A democracia participativa brasileira

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1. Introdução ao Tema.

Resolvemos abordar o tema “Democracia Participativa” por entender que, em nosso país, muito deve ser feito para a sua efetiva implantação. Acreditamos que a participação popular, através dos meios constitucionalmente previstos para tanto, é a única forma de desvencilharmo-nos do atual elitismo que caracteriza a condução de nosso Estado1.

A palavra democracia pode ser traduzida como um meio para a realização dos valores essenciais da convivência humana, através da participação dos cidadãos diretamente na gerência dos atos estatais. Repousa ela, assim, sobre dois princípios fundamentais: o princípio da soberania e o princípio da participação popular2, que conjugados tendem a realização dos valores da igualdade e da liberdade.

Na atual conjuntura social brasileira, concluímos, sem medo de errar, que estamos diante de uma “quase democracia”. Não resta dúvida de que há obediência ao princípio da soberania, com eleições diretas dos representantes, em homenagem pelo menos aparente ao mandamento de que todo o poder emana do povo. Todavia, o segundo postulado, que determina o exercício do poder pelo povo, o da participação popular, não foi até hoje implementado. Pelo que se vê diariamente, não há relação direta entre os programas e práticas governamentais e a expressão da vontade popular que os legitima.

É nesse contexto que pretendemos examinar os instrumentos de democracia participativa existentes em nosso ordenamento constitucional.

2. O Estado Democrático de Direito.

O Estado constitui-se pela conjugação de seus elementos: povo, território e governo. Forma-se, pois, da aglutinação natural de um determinado povo, num dado território, sob o comando de um certo governo, com a finalidade própria de alcançar o bem comum3. Essa a essência de todo o Estado.

O Estado de Direito surge como forma de oposição ao Estado Polícia. Na origem sua idéia e concepção fundava-se em conceitos tipicamente liberais, que pretendiam assegurar a observância do princípio da legalidade e da generalidade da lei4. Sobrevieram várias definições, todas elas assentadas em diferentes premissas, mas tendo em comum o sustentáculo da juridicidade estatal5.

A democracia6, por outro lado, quer significar a efetiva participação do povo nas decisões e destinos do Estado, seja através da formação das instituições representativas, seja através do controle da atividade estatal. Em síntese, traduz-se na idéia de que o povo é o verdadeiro titular do poder, mesmo que este seja exercido através de representantes eleitos. Nela os representantes devem se submeter à vontade popular, bem como à fiscalização de sua atividade; o povo deve viver numa sociedade livre, justa e igualitária.

A expressão Estado Democrático de Direito, por certo, decorre da união destes conceitos. Todavia, significa algo mais do que essa mera conjugação. Representa algo novo, que incorpora essas idéias, mas as supera, na medida em que introduz um componente revolucionário e transformador do Estado tradicional. A intenção do legislador constituinte, ao cunhar a expressão “Estado Democrático de Direito”, já no primeiro artigo de nossa Carta Política, foi deixar evidente que o país deve ser governado e administrado por poderes legítimos, submissos à lei e obedientes aos princípios democráticos fundamentais. Certamente, não se pretendia, ao adjetivar o Estado de democrático, apenas travar o poder, mas sim alcançar-lhe legitimação, fortalecimento e condições de sustentação7.

3. A Constituição de 1988.

A Constituição, como diploma que institui, organiza e delimita os poderes do Estado, é a fonte da qual provém as garantias e liberdades individuais, bem como os meios de organização e sustentação do Estado. Essas são as metas fundamentais que devem estar presentes em qualquer Texto Constitucional.

Embora não seja perfeita, nossa Carta Política pode ser considerada uma das mais modernas e democráticas no que diz respeito ao tema enfocado. Afinal, determina que o Brasil será uma República; qualifica o Estado como Democrático de Direito e textualiza outros princípios presentes em todos os Estados contemporâneos8. E vai além disso, prevendo mecanismos de participação ativa não só através do voto, mas também do controle aos poderes instituídos.

É certo, porém, que o Estado Democrático de Direito somente se aperfeiçoa na proporção em que o povo nele ativamente possa se inserir; na medida em que os representantes reflitam em seus atos os verdadeiros anseios populares. E os mecanismos constitucionais para tal foram previstos sem dúvida. A cidadania foi erigida a fundamento e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um objetivo a ser alcançado pelos representantes populares. Mas somente esses valores não seriam suficiente se não tivessem sido também incorporadas algumas instituições fundamentais à sua realização9. E, em todas elas, o ponto fulcral é sempre a participação popular.

A legitimação popular, sem dúvida, decorre lógica e diretamente da forma de governo (República) e do tipo de Estado (Democrático de Direito) eleitos pelo constituinte, além é claro da titularidade do poder que lhe foi conferida. Mas não só disso. A cidadania, parece-nos, é o grande fator de legitimação do povo, permitindo que atue na defesa das instituições democráticas.

Nossa Constituição foi chamada de “Carta Cidadã” exatamente pelo fato de estarem nela presentes os mecanismos de expressão das vontades populares10. Alçada a fundamento constitucional do Estado, a cidadania representa muito mais do que a mera participação no processo eleitoral. Cidadão, no caso, não é sinônimo de eleitor, mas sim de indivíduo participante e controlador da atividade estatal.

O que pretendeu o constituinte, enfim, foi deixar claro que o povo está apto a fiscalizar e participar da elaboração e concreção dos programas e políticas de gerência da coisa pública. Sem dúvida, ai está o pilar essencial a conferir plena eficácia aos postulados democráticos insertos em nossa Constituição. Passemos, pois, ao exame dos meios de participação popular na sociedade democrática.

4. Mecanismos de Participação.

Diversas naturezas possuem os instrumentos entregues ao povo para se tornar membro efetivo e participante da sociedade em que vive. Políticos, sociais ou jurisdicionais, todos eles se destinam à mesma finalidade de submeter o administrador ao controle e à aprovação do administrado. Como escreve Eduardo K. Carrion, “quando se fala em controle social da administração pública, procura-se sugerir a idéia de um controle ao mesmo tempo político e social, a exemplo dos últimos referidos. Não apenas um controle de legalidade, mas principalmente um controle de mérito, de eficácia, de conveniência e de oportunidade do ato administrativo11.

O Brasil é uma democracia semidireta, constando expressamente na Carta Política a titularidade do poder pelo povo, que o exerce através de representantes ou diretamente. Assim, veremos que o constituinte elegeu alguns instrumentos para reaproximar o cidadão das decisões políticas, seja através de democracia representativa (sufrágio universal), seja pelo caminho da democracia participativa (plebiscito, referendo, iniciativa popular).

4.1. Sufrágio Universal.

Trata-se de mecanismo de controle de índole eminentemente política12. Em nosso país, está ele previsto no art. 14 da Carta Política, que assegura ainda o voto direto e secreto, de igual valor para todos.

Constitui-se no direito de escolha dos representantes e na faculdade de candidatar-se à escolha por seus pares13. Visa a escolha de pessoas para atuar em nome do povo, através de mandatos com períodos determinados. Daí a importância fundamental deste que, sem dúvida, é o momento máximo de uma democracia. Nas eleições, invariavelmente, o povo aprova ou reprova os governantes. É a oportunidade em que vigora, na plenitude, a prevalência da vontade da maioria, que legitima os representantes eleitos inclusive perante a minoria vencida.

Como acentua Nelson Oscar de Souza, se faz necessária sempre a distinção entre sufrágio, voto e eleição. Sufrágio é o direito de escolha, como já se disse; voto é o ato que o assegura e a eleição e o processo dessa escolha14.

Costuma-se dizer que a forma de sufrágio denuncia, em princípio, o regime político de uma determinada sociedade. Isto é, quando mais democrática esta, maior será a amplitude do sufrágio e mais ressonância terá a sua caracterização como universal.

Mas, se isso é verdade, não se pode negar também que não é totalmente absoluta. Um sistema eleitoral pode prever condições legítimas a serem preenchidas para se tornar eleitor, sem que isso importe em desconsideração do princípio, desde que não sejam discriminatórias ou em consideração a valores pessoais. Segundo José Afonso da Silva, “considera-se, pois, universal o sufrágio quando se outorga o direito de votar a todos os nacionais de um país, sem restrições derivadas de condições de nascimento, de fortuna ou de capacidade especial”15.

No Brasil, só é considerado eleitor quem preencher os requisitos da nacionalidade, idade e capacidade, além do requisito formal do alistamento eleitoral. Todos requisitos legítimos e que não descaracterizam ou diminuem o adjetivo “universal”.

Vê-se, pois, que vivemos num país em que o sufrágio, em tese, pode ser adjetivado de “universal”. Todavia, é preciso deixar uma indagação a respeito de nossos processos eleitorais; é preciso questionar a respeito da licitude e da lisura dos procedimentos eleitorais de nossa jovem democracia.

Desde 1982, quando tivemos a realização do primeiro pleito direto em nosso país, após o Golpe Militar de 1º de abril de 1964, temos testemunhado uma série de acontecimentos que colocam em cheque a legitimidade de nossos procedimentos eleitorais. Não pela lisura dos pleitos, mas sim pelos fatos e eventos que o cercam.

As influências políticas nos rincões mais distantes; o monopólio da opinião pública em certas regiões, em que a imprensa é parcial e comprometida com interesses locais; o poder econômico e, sobretudo, o baixo nível educacional de nossa população, sem dúvida, são elementos que comprometem sobremaneira a credibilidade das eleições em nosso país.

Aliás, não é só por aqui que tais elementos influenciam no resultado das urnas. Ao abordar o tema “democracia participativa”, German J. Bidart Campos assevera que esta não se esgota no sufrágio e que o regime eleitoral não se circunscreve à data da eleição. Segundo o jurista porteño, um processo eleitoral num sistema democrático participativo exige que haja “un lapso sin cronologias fijas y com un clima ambiental propicio de muy amplia libertad para la intervención, la participación y la competencia de las fuerzas políticas y de las personas; la igualdad de oportunidades para todas ellas; la transparencia de las campañas preelectorales; la correcta confección de los padrones electorales, su publicidad, y la legitimación de los ciudadanos y los partidos para tener acceso a ellos, rectificarlos, impugnarlos, etc.; la libertad de infromación, de comunicación, y de expresión; la libertad de propaganda y publicidad en orden a las ofertas y programas electorales; el escrutinio también público y controlado, etc.”16.

E ai, queremos crer, reside um dos grandes desafios a serem enfrentados por nossa população na construção de uma sociedade mais justa e na sedimentação de uma democracia real. Acabar com os fatores extra urnas e conquistar meios através dos quais o resultado destas seja cada vez mais próximo da realidade, sem dúvida, é uma tarefa a cargo de todos nós; influenciar no processo democrático, com certeza, é o primeiro instrumento de participação a nós alcançado.

4.2. Plebiscito.

É o primeiro dos instrumentos de democracia participativa postos à disposição do cidadão pela Carta Constitucional (art. 14, inciso I, da CF/88). Trata-se de instituto típico de democracia semidireta17, que consiste na possibilidade de o eleitorado deliberar sobre determinada questão de relevo para os destinos do país, mediante escolha entre opções. A decisão soberana do plebiscito possui efeito vinculante para as autoridades públicas atingidas, que não poderão adotar, por conveniência, caminhos diversos daqueles definidos pelo povo.

Disciplina a Constituição (art. 14, caput), que ela se dará “nos termos da lei”. Evidencia-se, pois, que se tratava de dispositivo constitucional não-auto-aplicável, que dependia da integração do legislador ordinário para ganhar eficácia. E a regulamentação, passados mais de dez anos, veio com a edição da Lei Federal n. 9.709, de 18 de novembro de 1998. Tardiamente, mas veio!

Segundo o diploma regulamentador, o plebiscito é consulta formulada “ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa” (art. 2º). Prevê, também, a norma, que o povo será convocado, “com anterioridade”,  para “aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido” (parágrafo 1º do art. 2º).

Denota-se, da forma como foi redigido o dispositivo que regulamenta o instituto, que a sua convocação somente se dará quando houve acentuada relevância sobre a matéria e quando se tratar de tema de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.

O termo vago “acentuada relevância” nos parece por demais amplo, o que, sem dúvida, abre campo para interpretação subjetivamente rica e extensa quanto à possibilidade de utilização do instituto. De outra parte, mostra-se difícil encontrar, no atual panorama jurídico-social, um tema que não se enquadre no tipo “natureza constitucional” ou que não guarde estreita relação com este. As matérias envolvendo direito do trabalho, direito eleitoral, direito tributário, direito previdenciário, direito econômico, entre outros, estão todas interligadas com o direito constitucional, ficando, portanto, todas elas submetidas à possibilidade de deliberação pela via do plebiscito, quando se verificar acentuada relevância e quando as circunstâncias recomendarem a utilização do instituto.

Tais observações se faz com a exclusiva intenção de demonstrar que o plebiscito, salvo melhor juízo, é instituto apto a propiciar a participação popular numa gama sem fim de matérias. Ao nosso ver, contudo, é preciso que as circunstâncias de determinada época configurem situação de fundado relevo e interesse em que o assunto seja submetido à vontade popular. Isto é, o instituto não pode ser utilizado para a tomada de decisões ordinárias, quando existam meios próprios e corriqueiros à realização do ato (ex. procedimentos legislativos ordinários).

A lei regulamentar, a propósito, parece deixar o aspecto da conveniência da convocação a critério dos Parlamentares, ao prever que a deliberação popular será convocada mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 3º). A nosso ver, o ato administrativo consubstanciado na convocação do plebiscito, através de decreto legislativo, não fica sujeito à anulação por parte do Poder Judiciário, salvo nos casos em que se tratar de matéria diversa daquelas elencadas no art. 2º da L. 9.709/98 ou de algum vício formal do ato. Quanto à presença de “acentuada relevância”, parece-nos que se trata de critério de conveniência pertinente ao mérito do ato administrativo, que refoge ao controle pela via judiciária.

Importante previsão, a merecer destaque, no diploma legal que regulamenta a matéria, é aquela constante do artigo 8º, inciso IV, que determina à Justiça Eleitoral “assegurar a gratuidade nos meios de comunicação de massa concessionária de serviço público, aos partidos políticos e às frentes suprapartidárias organizadas pela sociedade civil em torno da matéria em questão, para a divulgação de seus postulados referentes ao tema sob consulta”. A norma revela preocupação com o princípio da publicidade dos atos estatais e homenageia o debate na sociedade em torno do tema objeto de plebiscito.

Sobre a vinculação do administrador ao resultado das urnas a lei é omissa. Entretanto, como já observado, há vinculação do administrador. Parece-nos que a menção expressa à obrigação de que o administrador torne efetiva a vontade soberada dos cidadãos, externada no plebiscito, é desnecessária, face à natureza do instituto. Há, sem dúvida, dever do administrador de vincular-se ao resultado das urnas, sob pena de estar cometendo crime de responsabilidade, sujeito às penas da lei.

No Brasil, tivemos em 1993 um plebiscito para decidir a forma (República x Monarquia) e o sistema de governo (Presidencialista x Parlamentarista), definido no art. 2º das Disposições Transitórias da Carta de 1988. A vontade popular optou pela manutenção da forma de governo republicana e do sistema presidencialista.

Cogita-se sobre a realização de uma reforma constitucional ampla, com atribuição de poderes especiais e gerais de revisão ao congresso. Pensamos que a sua legitimação dependa da convocação popular, para que se manifeste através de plebiscito, pois os atuais Parlamentares não têm legitimidade para fazê-lo. A sua legitimação é de legislador ordinário e/ou de constituinte derivado (com poder restrito a emendas) e não originário18.

Aliás, o Ato das Disposições Transitórias da Carta de 1988 previu expressamente, em seu artigo 3º, que a revisão constitucional seria realizada cinco anos após a promulgação do Diploma Maior. Depois dessa oportunidade de revisão, parece-nos que somente através de plebiscito terá o Congresso, ou qualquer outra Assembléia designada, legitimidade para proceder a nova revisão da Carta Magna.

Outra hipótese que exige a consulta popular pela via plebiscitária, é a da incorporação de Estados entre si, sua subdivisão ou desmembramento (art. 18, §3º, da CF/88). Nesse sentido é claro o artigo 4º da L. 9.709/98, que, inclusive, estipula o “iter” a ser obedecido no caso de resultado favorável da consulta. 

4.3. Referendo.

O “referendum” também importa na participação do povo, mediante voto, mas com o fim específico de confirmar, ou não, um ato governamental. Nos termos da Lei 9.709/98, “o referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição” (art. 2º, parágrafo 2º).

Aplicam-se ao instituto todas aquelas observações anteriormente feitas em relação ao plebiscito, especialmente no que diz respeito à necessidade de “acentuada relevância” da questão submetida ao crivo popular e às matérias passíveis de consulta (art. 2º da lei regulamentar).

Alguns autores lhe conferem finalidade específica de confirmação de ato do corpo legislativo19, com o que não concordamos por entendê-lo de forma mais ampla. Pensamos que não há qualquer óbice para que se determine a submissão de um ato do Poder Executivo ao referendo popular. Aliás, a L. 9.709/98 confirma tal tese, ao estabelecer que tanto ato legislativo como administrativo podem ser objeto de referendo. Contudo, não se pode negar que sua aplicação mais corriqueira se refere mesmo aos atos emanados do Poder Legislativo.

Até mesmo por fidelidade à tese de que o instituto é aplicável contra qualquer ato governamental, entendemos que o poder de iniciativa compete aos órgãos do Estado (em nossa opinião somente ao órgão do qual emana o ato, em virtude do princípio da separação dos poderes)20 ou a um certo número de cidadãos (iniciativa popular). E aqui, em nossa opinião, equivocou-se o legislador ao estabelecer que o referendo, assim como o plebiscito, será convocado mediante decreto legislativo, por iniciativa de 1/3 dos membros de qualquer das Casas do Parlamento (art. 3º da L. 9.709/98). Isso porque, repita-se, o referendo se presta a contrastar qualquer ato governamental e não só atos legislativos; por isso, não só os Parlamentares deveriam ter legitimidade para propô-lo, mas sim aquele órgão do qual emana o ato, bem como o povo, através do instrumento da iniciativa popular.

O que diferencia o referendo do plebiscito é a pré-existência de um ato de gestão, que deve ser referendado ou rechaçado pela soberania popular. No plebiscito, ao contrário, o administrador somente atuará depois de conhecer a vontade popular, se for autorizado. Neste a convocação se dá com anterioridade, enquanto naquele com posterioridade ao ato contrastado.

Aplica-se aqui, também, o que se disse a respeito da vinculação do administrador ao resultado das urnas. Não pode desrespeitá-lo, adotando consequência diversa daquela determinada pela soberania popular, sob pena de estar praticando crime de responsabilidade.

A prática evidencia a fragilidade e a imaturidade de nossa democracia, pois o mecanismo não foi utilizado sequer uma vez nos dez anos de vida da Carta Constitucional, até mesmo pela ausência de regulamentação. Esperamos, todavia, que a sua utilização se torne freqüente. Sem dúvida, a incorporação do referendo à tradição democrática brasileira será de grande valia e freará uma série de atos estatais contrários à vontade popular.

4.4. Iniciativa popular.

Este procedimento consiste no desencadeamento do processo legiferante pelo povo, mediante proposição de determinado projeto de lei por certo número de eleitores. Nos termos da Constituição Federal “a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles” (art. 61, §2º).

Novamente há vinculação do órgão para com o projeto apresentado. Contudo, isso não significa que sua aprovação seja obrigatória, o que, com certeza, não faria sentido. A vinculação aqui diz respeito ao dever de apreciação do projeto por parte do Congresso. Não há como negar, todavia, a pressão natural contida num projeto de lei desta natureza, que chega à Casa Parlamentar respaldado pela iniciativa popular. A pressão, no caso, será maior a medida em que crescer o número de eleitores que subscrevem o ato. E isso, por certo, funciona como verdadeiro fator de legitimação da proposta, a dificultar a sua rejeição pelos Parlamentares.

A obrigatoriedade de apreciação do projeto pelo Parlamento, a nosso ver, resulta evidente do contido no §2º do art. 13 da L. 9.709/98, que dispõe: “o projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação”. Embora mencione que o projeto não poderá ser rejeitado por vício de forma, obviamente, ai não se inclui o vício decorrente da ausência de subscrição do mesmo pelo “quorum” de cidadãos exigido tanto pela disposição constitucional como pelo caput do art. 13 da lei, que eiva o ato popular de nulidade absoluta.

A lei regulamentar, a nosso juízo, pecou ao não estabelecer um prazo compulsório para que o Congresso apreciasse o projeto de iniciativa popular. Com isso, nem mesmo o instrumento da ação de inconstitucionalidade por omissão pode ser utilmente manejado, pelas pessoas legitimadas a propô-la, tendo em vista a ausência de consequências do ato omissivo. Melhor teria sido, sem dúvida, adotar o modelo argentino, que prevê um prazo de 12 meses para que o Congresso se manifeste sobre a proposta21.

Outra falha que observamos em nosso sistema de iniciativa legislativa popular é a ausência de delimitação de temas sobre os quais é cabível a utilização do instituto. Parece-nos que isso seria de todo recomendável, tendo em vista a existência de matérias sobre as quais a iniciativa popular não pode ser admitida. É o caso, por exemplo, de assuntos relativos ao direito tributário, penal, financeiro e administrativo, os quais ou exigem um conhecimento profundo de dados a respeito da máquina pública ou da participação vertical do estado, como ente abstrato. Diante dessa ausência de delimitação de matérias, resulta inequívoco que as únicas restrições à ação popular são aquelas cuja iniciativa é privatida do Presidente da República, conforme preceitua o artigo 61 da Carta Constitucional.

Ainda no mesmo ponto, parece-nos inexplicável a timidez do legislador constituinte, ao retirar do povo a possibilidade de iniciar o processo de emenda à constituição, segundo exegese restrita do artigo 60 da Carta de 1988. Foi tímida a evolução, pois se o povo é titular do poder (art. 1º, parágrafo único, da CF/88) deve poder não só o menos (lei ordinária), como também o mais (emenda à constituição). Difícil, “data venia”, encontrar justificativa para não elencar os cidadãos, num “quorum” específico, no rol do artigo 60 da CF/88.

Ressalvadas as críticas aqui formuladas, parece-nos que é de todo salutar conviver com a existência de um mecanismo de participação popular deste calibre. Infelizmente, contudo, são raríssimas as manifestações populares no sentido de encaminhar ao Congresso um projeto de lei. Essa realidade, sem dúvida, precisa se alterar na próxima década.

4.5. Outros Instrumentos de Democracia Participativa.

Existem ainda outros instrumentos de participação popular nos atos governamentais, diferentes destes adotados explicitamente em nosso sistema constitucional

O veto é um exemplo, adotado pelo direito português. Consiste num instrumento político, através do qual se permite aos cidadãos exigir que um dado projeto de lei seja submetido ao veto popular. A rejeição do projeto importará em se tomar o projeto como se nunca tivesse existido. Difere ai do veto tradicional, que em nosso sistema é prerrogativa do Presidente da República, dos Governadores de Estado e dos Prefeitos (de acordo com a esfera), que ainda possibilita ao Parlamento derrubá-lo, com um certo número de votos. Embora interessante, parece de pouca eficiência, até mesmo por se confundir a sua finalidade com a do referendo.

Outra forma de participação nas decisões estatais são os conselhos sociais. Constituem-se em entidades organizadas para deliberar sobre assuntos ligados a áreas sensíveis da atividade social, das liberdades públicas e dos direitos relativos à política de desenvolvimento. Segundo Eduardo K. Carrion, “trata-se de um efetivo direito de participação de certas entidades na definição de políticas públicas. Direito este que radica nas idéias de democratização do Estado e de aprofundamento da democracia participativa. Através desse direito de participação, ele mesmo direito fundamental, asseguram-se melhor os direitos fundamentais constitucionalmente prescritos”22. A Carta de 1988, por exemplo, determinou a criação de um Conselho de Comunicação Social, efetivado pela L. 8.389/91, para decidir sobre os temas relacionados com a área.

A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, determina que “a ação político-administrativa do Estado será acompanhada e avaliada, através de mecanismos estáveis, por Conselhos Populares, na forma da lei” (art. 19, §2º). E a prática tem demonstrado que estes Conselhos Populares vêm prestando grandes serviços no acompanhamento da atividade estatal.

Além desse exemplos, vários outras formas de participação através de entidades representativas têm sido instituídas em nosso país. Alguns Municípios brasileiros têm adotado um interessante sistema de participação popular na escolha da destinação dos investimentos do Poder Público. É a experiência do orçamento participativo, adotada, com grande êxito, pela Prefeitura de Porto Alegre. No orçamento participativo, é permitido estar presente e opinar, inclusive com possibilidade de explanação oral de suas idéias, sobre as prioridades e necessidades de uma dada região da cidade. Dá-se, assim, ao povo, a faculdade de eleger quando, como e aonde os dinheiros públicos serão aplicados. É importante notar que, além de elogiável mecanismo de participação, este sistema funciona como verdadeiro inibidor indireto de sonegação fiscal, tendo em vista o efeito reflexo causado pela consciência popular de que os impostos pagos estão sendo efetivamente utilizados para os fins desejados.

Interessante mecanismo, que deveria ter sido estendido ao povo brasileiro, é o do controle de constitucionalidade das leis, através da legitimação popular para propor ação direta de inconstitucionalidade.

No Brasil, optou o legislador constituinte, na linha que inspirou toda a elaboração da chamada Carta Cidadã, pelo caminho da democratização dos procedimentos. Isso acarretou na ampliação da legitimidade “ad causam” para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, alcançando além das pessoas com cunho eminentemente político (Presidente da República, Mesas Legislativas, Governados de Estado), outras representativas de vários seguimentos da sociedade (partido político com representação no Congresso e entidade de classe de âmbito nacional), com ênfase para o representante da comunidade jurídica (Conselho Federal da OAB).

Contudo, acreditamos que teria sido mais correto se se tivesse autorizado também o cidadão a propô-la. Afinal, se pode fiscalizar o administrador, através da ação popular, porque não fazê-lo também em relação ao legislador?! Se tem a iniciativa para propor a criação de atos normativos, porque deixá-lo à margem dos mecanismos diretos de controle?!  Sem dúvida, não há respostas, do ponto de vista jurídico, razoáveis a tais questionamentos. Apesar do avanço, o legislador constituinte poderia ter ultrapassado os Diplomas que lhe serviram de norte.

Mas, com toda certeza, existiram razões outras, que não jurídicas, para esta cautela por parte do constituinte. E a que mais nos conforta é o baixo nível cultural e o pouco preparo jurídico de nosso povo, no atual momento, para tal avanço. Alie-se a isso a crise enfrentada por nosso Poder Judiciário.

Por certo, este passo acarretaria numa exagerada demanda ao Suprema Tribunal, o que provocaria o atravancamento e a total inoperância daquela Corte, já tão atribulada com seus atuais afazeres. Esperamos, apenas, que nosso país possa evoluir social e culturalmente, que nosso sistema jurisdicional se aprimore, a tal ponto que possamos defender nossa posição, sem os empecilhos hoje existentes.

Conclusões

De tudo que foi exposto, é possível crer que não é no Texto Constitucional que se encontra o problema da efetivação da democracia participativa em nosso país. Parece-nos que poucos acréscimos seriam necessários para que nosso Texto Fundamental se aproxime da perfeição no que diz respeito ao tema. Aliás, ousariamos sustentar, inclusive, que nenhuma reforma tem urgência.

Colocar em práticas as normas constitucionais, tornando-as aliadas da realização das políticas sociais necessárias, a meu juízo, é o grande desafio que temos a enfrentar. Nossas autoridades e até mesmo o povo têm-se furtado à implementar as prerrogativas constitucionais. Em relação ao povo, com certeza, isso não decorre da falta de vontade, mas sim da ausência de conhecimento do poder que detém e da falta de cultura participativa e de informação a respeito dos meios disponíveis.

A efetiva utilização de tais mecanismos, sem dúvida, engrandeceria nossa sociedade. Não só pela participação popular na escolha de seu próprio destino, mas também pela inequívoca assimilação dessas escolhas pelos representantes populares. A prática tem demonstrado isso e rechaçado qualquer crítica que se possa fazer à participação direta da população nos destinos da sociedade.

Nosso país precisa, para se tornar um verdadeiro Estado Democrático de Direito, da seguida e reiterada participação popular na realização das atividades estatais. Esta participação, com certeza, não pode continuar a se dar somente de quatro em quatro anos, em épocas eleitorais.

Notas

1. Atualmente, vivemos numa Democracia aparente. Na prática, a situação se mostra bastante perversa, tendo em vista que pelas realidades político-sociais, um pequeno grupo da elite nacional se reveza no poder, sem solução de continuidade. Aliás, exatamente essa era a visão que fundamentava a “doutrina da segurança nacional”, embasadora do constitucionalismo do regime militar, segundo a qual competia a elite a tarefa de promover o bem comum mediante um processo de integração com a massa.

2. “A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; nos casos em que a participação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação.” (José Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 9ª edição, Malheiros, p. 120);

3. “O bem comum: ‘consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana’, in Mater et Magistra, n. 62 e Pacem in Terris, n. 58, de João XXIII” (Nelson Oscar de Souza, “Manual de Direito Constitucional”, 2ª edição, Forense, 1998, p. 12, nota de roda pé);

4. José Afonso da Silva, “O Estado Democrático de Direito”, Revista Forense 305/45, JAN/FEV/MAR/89;

5. Rechtsstaat, rule of law, État légal, always under law

6. “A democracia representa na vastidão dos séculos um sonho acalentado pela humanidade, transmitido de geração em geração através dos tempos, e assinalando a marcha para a liberdade, a tolerância e a justiça social. O homem, livre e entusiasta, constrói a felicidade e a vida, no esplendor da convivência democrática, com um sentimento de liberdade e de alegre confiança no futuro” (Pinto Ferreira, “Curso de Direito Constitucional”, 8ª edição, Saraiva, 1996, p. 76);

7. “o elemento democrático não foi apenas introduzido para ‘travar’ o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize the power).” (J.J. Gomes Canotilho, Op. Cit., pp. 93/94);

8. Entre eles o da separação de poderes, da legalidade e da moralidade administrativa, da inafastabilidade do controle judicial, da motivação, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório etc.

9. “A democracia não se identifica unicamente com um sistema de valores, mas se traduz igualmente em mecanismos e instituições. Quais mecanismos e instituições asseguram finalmente a legitimidade democrática do poder? Não somente quanto à sua origem, mas também quanto ao seu exercício, já que a democracia é não apenas uma forma de chegar ao poder, mas ainda uma forma de exercê-lo” (Eduardo Kroeff Machado Carrion, “Apontamentos de Direito Constitucional”, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1997, p. 82);

10. “A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento dos indivíduos como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular…” (José Afonso da Silva, “Curso…”, Op. Cit., p. 96);

11. Eduardo Kroeff  Machado Carrion, Op. Cit, pp. 83/84;

12. “O sufrágio (do latim sufragium = aprovação, apoio) é, como nota Carlos S. Fayt, um direito público subjetivo de natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de participar da organização e da atividade do poder estatal” (José Afonso da Silva, Curso…, Op. Cit., p. 309);

13. “De um modo geral, os direitos políticos são os que asseguram a participação do indivíduo no governo de seu país, seja votando ou sendo votado” (Pinto Ferreira, Op. Cit., p. 166);

14. Nelson Oscar de Souza, Op. Cit., p. 45;

15. José Afonso da Silva, Curso…, Op. Cit., p. 311;

16. German Bidart Campos, “Manual de la Constitución Reformada”, Tomo II, Primera Reimpression, EDIAR, Buenos Aires, 1998, pp. 250/251;

17. “o plebiscito é um instrumento da chamada democracia semidireta, que procura corrigir o caráter indireto da democracia representativa pela participação popular na tomada de determinadas decisões”  (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, Vol. 1, Saraiva, 1990, p. 123);

18. “A legitimidade de um poder constituinte assentado sobre a vontade dos governados e tendo por base o princípio democrático da participação apresenta uma extensão tanto horizontal como vertical, que permite estabelecer a força e a intensidade com que ele escora e ampara o exercício da autoridade. (…) A extensão vertical da legitimidade é a que permite mensurar os distintos graus de participação dos governados: primeiro, o poder decisório sobre a Constituição, mediante referendum ou distintos meios plebiscitários (…) A distância e debilidade da interferência dos governados conduz a legitimidade constituinte aqui aos seus níveis mais baixos, tocante ao princípio democrático de organização das instituições políticas no interior do sistema representativo clássico e tradicional da cultura do ocidente” (Paulo Bonavides, “Curso de Direito Constitucional”, 7ª edição, 2ª tiragem, Malheiros, pp. 138/139);

19. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Op. Cit., p. 124; Pinto Ferreira, Op. Cit., p. 168.

20. Nesse sentido também J.J. Gomes Canotilho, Op. Cit., pp. 287/288;

21. “Los ciudadanos tienen el derecho de iniciativa para apresentar proyectos de ley en la Câmara de Diputados. El Congreso deberá darles expreso tratamiento dentro del término de doce meses” (Constituição da República da Argentina, artículo 39, introduzido pela Reforma de 1994);

22. Eduardo K. Machado Carrion, Op. Cit., p. 86;

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luiz Cláudio Portinho Dias

 

Procurador Autárquico do INSS
membro do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública).