A desconsideração da pessoa jurídica: A polêmica sobre a necessidade da prova

Resumo: Refere-se o presente artigo à polêmica sobre a necessidade de prova no caso de aplicação judicial da desconsideração da pessoa jurídica. A análise se inicia com a tipificação das pessoas jurídicas de direito privado no Brasil, com o estudo do conceito e das teorias explicativas de sua natureza jurídica, culminando na concepção atual do seu significado. Na sequência são estudas, sob a ótica proposta pelo jurista Lamartine Corrêa de Oliveira, as posturas adotadas na atribuição de personalidade às pessoas jurídicas do direito comparado alemão, francês, italiano e português, bem como brasileiro. Partindo-se dessas premissas é que se aborda o tema da desconsideração da pessoa jurídica, examinando-se o significado da expressão doutrinária, a origem, os pressupostos, os requisitos e as formas de efetivação como subsídios da pesquisa aqui proposta, qual seja, da necessidade da prova de fraude e ou de abuso de direito para a aplicação prática do instituto.


Palavras-chave: pessoa jurídica – tipificação – personalidade – desconsideração – prova.


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Abstract: This issue concerns about the controversial legal evidence necessity in case of disregard of legal entity doctrine application. The analysis starts with Brazilian private legal entities typify, comprehending its concept, theories about legal nature until legal entity present conception. In sequence, according to Lamartine Corrêa da Silva view, the position in legal entities attribution are studed from Germany, France, Italy and Portugal laws, and also in the Brazilian system. From this premises is allowed to get in disregard of legal entity doctrine theme, examining its doctrinary expression, origin, prerequisites, requirements and effectiveness forms to subsidize the research of fraud or and misure of a right legal evidence necessity to justify disregard of legal entity application.


Keywords: legal entity – typify – personality – disregard of legal entity – legal evidence.


Sumário: 1. Introdução. 2. A tipificação das pessoas jurídicas de direito privado no direito brasileiro. 2.1. O conceito de pessoa jurídica. 2.2.1 Teorias Sobre a Natureza da Pessoa Jurídica. 2.2.1.1 Teoria ficcionista. 2.2.1.2 Teorias negativistas da realidade da pessoa jurídica. 2.2.1.3 Teorias realistas da pessoa jurídica. 2.2.1.4 Concepção atual de pessoa jurídica. 2.3. Atribuição de personalidade às pessoas jurídicas de direito privado no direito brasileiro. 2.3.1 Postura Maximalista (monista) x Postura Minimalista (dualista). 2.3.1.1 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico da República Federal Alemã segundo Lamartine Corrêa de Oliveira. 2.3.1.1.1 A adoção do sistema das disposições normativas. Sistema excepcional – o da concessão. 2.3.1.1.2 O princípio do “numerus clausus”. 2.3.1.1.3 Os agrupamentos humanos não dotados de personalidade no direito alemão. A dicotomia fundamental entre corporação e sociedade. 2.3.1.1.4 Comunhão em mão comum e comunhão por cota. 2.3.1.2 As pessoas jurídicas de direito privado no direito francês segundo Lamartine Corrêa de Oliveira. 2.3.1.3 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico da Itália segundo Lamartine Corrêa de Oliveira. 2.3.1.4 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico de Portugal segundo Lamartine Corrêa de Oliveira. 2.3.1.5 Balanço do exame comparativo segundo Lamartine Corrêa de Oliveira. 2.3.1.6 Forma de Atribuição de Personalidade às Pessoas Jurídicas no Brasil segundo Lamartine Corrêa de Oliveira. 3. A desconstituição da personalidade jurídica. 3.1. O significado da expressão. 3.2 Disregard of legal entity doctrine. 3.2.1 Origem. 3.2.2 Pressupostos. 3.2.3 Requisitos. 3.3. Formas de efetivação segundo Marçal Justen Filho. 3.3.1 Desconsideração Direta. 3.3.2 Desconsideração Incidental. 3.3.3 Desconsideração “Inversa”. 3.3.4 Desconsideração Indireta. 4. A prova da desconsideração da personalidade jurídica. 4.1. Teoria menor. 4.2. Teoria maior. 5. Conclusão. Referências.


1 INTRODUÇÃO


Refletir sobre o tema da desconsideração da pessoa jurídica exige, preliminarmente, a indagação sobre o conceito e a natureza da pessoa jurídica. A resposta é revelada mediante a investigação do desenvolvimento histórico da humanidade – e do próprio Direito.


No estudo das teorias explicativas da existência da pessoa jurídica tornou-se usual a alusão sobre a crise da pessoa jurídica. Após alçar a condição de ente capaz de contrair direitos e obrigações, a pessoa jurídica iniciou um período de crise motivada por abusos cometidos em seu nome. José Lamartine Corrêa de Oliveira[1] analisou a crise sob dois aspectos: o primeiro concernente ao sistema normativo a ela aplicável – a chamada crise orgânica – no sentido da negação formal da condição de pessoa jurídica a inúmeros agrupamentos humanos, ainda que detentores de tratamento jurídico análogo, e o segundo ângulo da crise – a nominada crise de função – relativa à incompatibilidade entre os fins do direito e a conduta de alguns agentes que se utilizam das regras sobre pessoas jurídicas como instrumento para atingir resultado imoral ou antijurídico.


É exatamente no enfoque da crise de função da pessoa jurídica que se consagrou a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica, traduzida em soluções casuísticas aplicadas com o objetivo de punir aqueles que da personalidade jurídica se aproveitam. E é exatamente nesse contexto que se questiona a necessidade de prova que justifique a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, tema da presente abordagem.


2 A TIPIFICAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO NO DIREITO BRASILEIRO


2.1 O Conceito de Pessoa Jurídica


A análise do conceito de pessoa jurídica demanda breve digressão histórica para sua melhor compreensão.


No direito romano o patrimônio era pertencente aos que celebravam a transação, pertencendo a cada titular a parcela de bens adquiridos com o próprio esforço. A desvinculação das pessoas naturais das pessoas jurídicas somente surge com a idéia da corporação, com a distinção entre a universitas e os singuli. As corporações passam a ser titulares de direitos e obrigações, celebrando contratos e representando o interesse dos sócios. O patrimônio era, então, considerado como de titularidade da organização, desvinculado da pessoa de seus integrantes.


Na Idade Média, com a realização de negócios com associações mercantis, começa a se delinear o conceito de pessoa jurídica como ente com existência e responsabilidade distintas dos membros que a compõem. Os canonistas desenvolvem o conceito de personalidade jurídica, denominando a corporação de persona ficta, pensamento prevalecente até o século XIX.


A partir desse período ocorre, segundo Marçal Justen Filho[2], verdadeira fratura no pensamento jurídico acerca da teoria da pessoa jurídica, alertando o autor guardar a pessoa jurídica do século XIX pouca identidade com a das Idades Média e Moderna. Explica que até esse período o direito desconhecia agrupamentos personificados com fins egoísticos, “a noção de pessoa jurídica, até então vigorante, abrangia exclusivamente as entidades que transcendessem à individualidade, tanto no tocante à duração como aos fins perseguidos”[3] de forma a poder reconhecer a “personificação e a assimilação do ser humano daquele corpus que se mantinham duradouramente na sociedade – e assim se mantinham porque inconfundíveis com as circunstâncias dos homens que os integravam ao longo de sua vida”. Dessa forma “a Igreja, a Comuna, a Corporação, a Fundação acabavam por ser reconhecidas como pessoas por não serem fenômenos circunstanciais”[4]. Esclarece o doutrinador que a ruptura ocorrida no século XIX diz respeito, portanto, à generalização do conceito de pessoa jurídica, estendendo-se-o para agrupamentos situacionais e contingenciais: entidades não dotadas de transcendência tornaram-se, dessa forma, personificáveis.  


Sob o enfoque epistemológico, o homem primitivo até o da a Idade Média conhecia somente uma verdade pré-concebida e com um só fundamento. A verdade do homem primitivo era fundamentada no sobrenatural e a do homem da Idade Média na fé, de forma relegá-lo a um papel meramente secundário. Já na Idade Moderna, com o surgimento do Estado de Direito, o homem torna-se um sujeito livre, emancipado pela razão e pela sua capacidade de raciocínio. O papel central desempenhado pelo homem fica evidente no pensamento filosófico da época, no sentido de que se Deus existe é porque o homem o criou por sua razão. Já não há mais a verdade e sim “verdades”. No mundo moderno, em que a razão é universal, institui-se a subjetividade, o homem é uma construção do elemento da razão humana: precisa ser autônomo, precisa abandonar a natureza, mitos e fé, as pessoas se emancipam pela razão. Com o surgimento do Estado de Direito na Idade Moderna e da filosofia política liberal a ele inerente, o direito privado se afirma, então, como instrumento da consecução das liberdades individuais. Verifica-se o surgimento da positivação do direito no lugar dos costumes, de forma que a vontade humana é exteriorizada por meio de normas jurídicas positivadas.


O primado filosófico do individualismo inspira, dessa forma, a generalização da personalização societária, especialmente na instituição das sociedades anônimas à época da Revolução Industrial, como entes totalmente destacados das pessoas dos sócios, consagrando-se, de fato, a personificação das pessoas jurídicas: “a distinção entre a pessoa dos sócios e a pessoa da corporação está no cerne do conceito de personificação[5]”.


Após o positivismo jurídico o objeto do direito não é mais estático, e sim de natureza dinâmica: as normas, as regras e as leis mudam. A verdade já não é mais una nem universal, passa a ser uma construção fenomênica do sujeito sobre o objeto, de forma a propiciar a concepção da personificação jurídica cada vez mais abrangente.


Atualmente pode-se compreender a pessoa jurídica como um entre abstrato dotado de personalidade e capacidade jurídica própria, formado por um conjunto de pessoas e de bens, fruto do convívio do homem em sociedade e da necessidade de união de forças conjugadas, com o objetivo de alçar uma atuação mais forte para a consecução de certos fins comuns da atividade econômica e de interesse social. Segundo Silvio Rodrigues[6]: “esses seres, que se distinguem das pessoas que os compõe, que atuam na vida jurídica ao lado dos indivíduos humanos e aos quais a lei atribui personalidade, ou seja, prerrogativa de serem titulares do direito, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou pessoas morais”.


Encerram as pessoas jurídicas, portanto, três aspectos fundamentais: personalidade própria, patrimônio distinto de seus membros e vida autônoma em relação a seus sócios.


O Código Civil de 1916 indicou expressamente o nascimento da personalidade jurídica ao prescrever a existência das pessoas jurídicas distinta de seus membros. Já o Código Civil de 2002 contemplou a personalidade jurídica de forma mais ampla e generalizada, com o surgimento do conceito de empresariedade como exercício da atividade econômica organizada para a produção de circulação de bens e serviços. O empresário definido no código em vigor é aquele exerce atividade econômica organizada e pode ser legalmente reconhecido sob duas formas: o empresário individual, quando trabalha sozinho, caso em que não há atribuição personalidade jurídica distinta da pessoa que a instituiu por tratar-se do próprio comerciante atuando como empreendedor, ou, ainda, pode ser o empresário coletivo, que são as sociedades empresárias a que alude o artigo 44, estas sim dotadas de personalidade jurídica própria. 


No Brasil as empresas individuais correspondem a 55% do total, as sociedades limitadas representam 43% e as S/A correspondem a apenas 2%[7] das sociedades existentes. Essa informação revela a importância das pessoas jurídicas representadas pelas sociedades empresárias de responsabilidade limitada no empreendedorismo brasileiro. À época da Revolução Industrial européia, assentada somente em indústrias de grande porte, praticamente não existia empreendedorismo de pequeno e médio porte no Brasil.


Ainda que surgida num primeiro plano como um instrumento estatal de fomento à pequena e média atividade econômica, para somente depois estabelecer-se na prática, a maioria das empresas brasileiras assume a forma de sociedade limitada. A justificativa seria o fato do risco da atividade empresarial ficar adstrito ao que o sócio investiu na empresa. A contumaz utilização da desconsideração da personalidade jurídica, entretanto, eleva significativamente o risco da atividade empreendedora, compromete a atividade empresarial e inibe o desenvolvimento econômico do país. Em razão dos efeitos micro e macroeconômicos que a utilização do instituto comporta, revela-se de primaz relevância a análise sobre a polêmica da necessidade de prova para deferi-la.


2.2 Natureza Jurídica


O estudo da natureza da pessoa jurídica pressupõe, em primeiro lugar, a análise das diversas teorias que tratam do assunto. As dificuldades do estudo das teorias que se propõem a explicar a natureza das pessoas jurídicas são explicadas pelo professor Ferrara[8]:


“As concepções nem sempre aparecem em linhas nítidas e precisas, mas com freqüência se apresentam como teorias intermediárias e misturadas de várias doutrinas, conservando, porém, matizes próprios pelos quais não se deixam facilmente identificar. Outras vezes também os autores tomam uma posição indecisa nos limites de duas teorias, e, enquanto acolhem uma pela forma, subscrevem a outra substancialmente, assim por exemplo Windscheid e Bekker, enquanto admitem os direitos sem sujeito, declaram-se sem embargo partidários da teoria da ficção. Por último, um mesmo autor muda de opinião, várias vezes, indo de um extremo a outro, sendo exemplo característico a flutuação do pensamento de Unger que, começando pelo mais rígido ficcionismo, pouco a pouco acabou por se aproximar da doutrina de Brinz, ou o exemplo de Laband, que enquanto declara as pessoas jurídicas fingidas no Direito Privado, admite a sua realidade no Direito Público”.


Ainda que a pesquisa apresente dificuldades, faz-se necessária a análise de algumas teorias que melhor esclareça a natureza da pessoa jurídica, podendo-se adiantar, desde logo, que em nosso direito impera a tese da pessoa jurídica não ser pura ficção como simples criação legal, mas uma entidade real, totalmente distinta dos membros que a compõe.


2.2.1 Teorias Sobre a Natureza da Pessoa Jurídica


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2.2.1.1 Teoria ficcionista


A teoria mais antiga é a que considera a pessoa jurídica uma simples ficção, mera criação legal, tendo sido Savigny não o seu fundador, mas que lhe deu verdadeiro valor científico, sistematizando os seus princípios. Foi a mais difundida entre os escritores do século passado, caindo, porém, em desprestígio por não corresponder à realidade dos fatos.


Parte do princípio que só o homem é capaz de direitos e obrigações, de forma a ser a pessoa jurídica mera ficção legal, criada por lei, abstrata, sem existência real.


Para Savigny a idéia de pessoa confunde-se com a de homem, de forma que todo o homem e só ele tem capacidade de direito. O direito positivo pode, entretanto, modificar a idéia primitiva de pessoa, criando artificialmente uma personalidade jurídica, porém, esta capacidade artificial da pessoa jurídica se restringiria ao direito privado. O individualismo marcante da época do surgimento do Estado de Direito, na Idade Moderna, sob a ótica do homem emancipado pela razão, justificou os fundamentos da teoria segundo Marçal Justen Filho[9]:


“O entendimento de Windscheid (e de Savigny) expressava diretamente a filosofia individualista então vigente. (…) o individualismo conduzia a centrar-se no ser humano a origem do direito; o voluntarismo só podia defender que a vontade era o ângulo identificador do ser humano e causa do direito subjetivo. O direito objetivo (seja o positivo, seja o natural) só podia recolher essa vontade humana para reconhecer sua eficácia”.


O argumento utilizado para oposição à teoria é o de existir uma contradição a ela adjetiva: se algo é fictício, imaginário, fingido, a teoria da ficção propõe-se a criar o que não existe. A pessoa jurídica seria, portanto, uma entidade imaginária, que nada tem de real. Para José Joaquim de Almeida, a lei poderia ordenar, permitir, proibir, dispor, jamais, porém, criar novos sujeitos de direito para a vida social [10]: “A pessoa jurídica não deve sua vida à Lei, mas sim, como diria Saleilles, à coesão de seus membros, à coordenação de seu organismo, aos elementos de vida individual que lhe servem de material construtivo”. Assim, “a lei nada mais faz do que reconhecer a sua existência e esse reconhecimento ‘tem um valor declarativo e não atributivo da personalidade’”[11].


Sobre a teoria ficcionista assim afirmou Hariou[12]: “Hoje o sistema da ficção é démodé, todo o mundo concorda em reconhecer que em si a personalidade jurídica é aceitável para os agrupamentos sociais, aí se manifesta de um mundo natural”.


A fragilidade dos argumentos em torno da teoria da ficção, defendida também por Pontes de Miranda e por Clóvis Beviláqua, pode ser extraída do seguinte excerto escrito por Savigny[13]: “Se examinarmos as pessoas jurídicas tais como na realidade existem, encontraremos diferenças nelas que influem sobre a sua natureza jurídica. Uma tem uma existência natural ou necessária, as outras, artificial ou contingente”. A mencionada existência natural ou necessária seria o primeiro indício de que esta personalidade é um fato natural, bem mais que uma pura invenção legislativa. A impropriedade da teoria evidencia, pois, a existência natural e não fictícia da pessoa jurídica, tendo a lei por finalidade não a de criá-la, mas de reconhecer-lhe existência legal. Tanto é assim que há o reconhecimento legal de pessoas jurídicas ainda que não obedientes às prescrições legais de constituição.


A doutrina mais condizente com as novas conquistas da civilização seria, assim, a tese da realidade da pessoa jurídica, a qual subtrai a do arbítrio do legislador a noção de personalidade. Ainda que pareça a mais adequada, mesmo a tese realista apresenta certas carências de fundamento, como se demonstrará na sequência no tópico relativo à concepção atual da pessoa jurídica.


2.2.1.2 Teorias negativistas da realidade da pessoa jurídica


Criadas como reação à teoria da ficção criou-se a teoria individualista de Ihering, negando a realidade da pessoa jurídica. Esse autor não forneceu um estudo detalhado, uma teoria completa das pessoas jurídicas, sendo suas principais idéias extraídas das várias passagens de sua obra “O Espírito do Direito Romano”[14].


Para Ihering os direitos são interesses juridicamente protegidos, sujeito de direito é aquele a quem a lei destina a utilidade do direito, é o destinatário do interesse jurídico e o destinatário de todos os direitos é o homem, concluindo que “as pessoas jurídicas não por si mesmas as destinatárias dos direitos que possuem, mas sim as pessoas físicas que as compõe, pouco importando que se trate de um círculo determinado de indivíduos (universitas personarum) ou de uma quantidade indeterminada (univer sitas bonorum)”[15].


As pessoas jurídicas seriam não mais do que a forma especial mediante a qual os seus membros manifestam suas relações jurídicas com o mundo exterior. Nesse sentido “a pessoa jurídica é apenas um nomen júris, um instrumento técnico que serve para assegurar aos indivíduos certo modo de fruição dos direitos fixados nos estatutos das sociedades ou nos atos das fundações. Mas os verdadeiros sujeitos dos direitos são os membros da corporação e os destinatários das fundações”[16].


Considerando as fortes objeções traçadas principalmente por Duguit, que discute a evidente contradição quando Ihering qualifica as corporações de pessoas jurídicas, foi o autor obrigado a reconhecer que “considerações práticas exigem certamente que os interesses comuns sejam demandados, não pelos indivíduos isolados, [da corporação como titular de direitos], mas pelo seu conjunto representado por uma unidade pessoal artificial[17]. Aqui está implicitamente reconhecida a necessidade da existência da pessoa jurídica.


Duguit, não obstante ter objetado a teoria de Ihering, negava a realidade das pessoas jurídicas. A sua teoria pode ser assim resumida:


“Todas as vezes que homens se associam para realizar em comum um fim lícito, os atos praticados em vista desse fim deve ser juridicamente protegidos por uma ação. Para isto, não há necessidade de supor que a associação seja uma pessoa titular de direitos, um sujeito de direito. Basta compreender que todo ato, que tem um objeto conforme o direito e que é determinado por um fim lícito, é socialmente protegido, e que os efeitos de direito não são criados pela vontade de uma pretendida pessoa titular de pretendidos direitos, mas pelo direito objetivo cuja aplicação é condicionada por um ato de vontade conforme ao direito em seu objeto e em seu fim”[18].


Por observar Duguit salientar serem suas teorias baseadas na rigorosa observação dos fatos sociais é que surpreende não ter reconhecido a realidade das pessoas jurídicas, a qual pode ser facilmente constatada pela simples observação dos fatos sociais. Porém, os seus traços teóricos podem ser justificados pelo fato de tratar-se de um positivista extremado, só admitindo no mundo social ou no físico a realidade material.


Para José Joaquim de Almeida, “negar que a pessoa jurídica seja uma entidade real, distinta dos seus membros componentes, podendo até ter interesses opostos aos destes, isoladamente considerados, é negar fatos de observação comum”[19].


Outras teorias negativistas existiram como as de Brinz e Planiol, que inspiraram Queiroz Lima que define a pessoa jurídica como o sujeito das relações jurídicas que tem por objeto a propriedade coletiva, e considera a fundação como sendo um patrimônio destinado à realização de determinados fins. Esta concepção não parece justificável para a ciência do Direito, sobretudo naquela em que o patrimônio não pertence a ninguém.


2.2.1.3 Teorias realistas da pessoa jurídica


As teorias da instituição (Hariou) e da equiparação (Windscheid) assemelham o homem ao ente coletivo, as pessoas jurídicas são tratadas como entes reais, com realidade objetiva, apenas reconhecida pelo ordenamento jurídico e realidade técnica (mais aceita doutrinariamente), correspondente a uma necessidade social.


O direito, assim, personifica alguns agrupamentos e os dota de existência própria ou autônoma com a finalidade de realizar interesses e preencher exigências sociais de forma destacada de seus membros.


2.2.1.4 Concepção atual de pessoa jurídica


Existe um equívoco em se partir da premissa para a análise do conceito de pessoa jurídica das teorias ficcionistas ou realistas como alerta Marçal Justen Filho[20]:


“Tamanha modificação da estrutura sócio-econômica-política-jurídica afasta o mundo em que vivemos e o mundo do século passado. A ciência do direito atual não é a mesma de então, como também não o são o Estado e o direito. Bem por isso, tornou-se indecidível a questão ficção-realidade da pessoa jurídica. As teorias formuladas, desde os seus extremos até seus momentos mais atenuados, conectavam-se com outro mundo de valores, concepções e significações. […] A questão que se coloca hoje é diversa. Portanto, haverá que ser diversa a solução”.


Esclarece o autor corresponder a crise no sistema ao “choque entre conceitos inadequados e defasados, herdados de ambientação ultrapassada”[21], tendo como “ponto fulcral” da crise “a crença no absolutismo do conceito de pessoa jurídica”[22] revelada nas seguintes manifestações: consideração da pessoa jurídica como algo existente, como um objeto cognoscível, na identificação entre pessoa jurídica e pessoa física, traçando-se um paralelo entre elas, na fé da imutabilidade temporal e espacial da pessoa jurídica e no entendimento de que pessoa jurídica é conceito único dentro de um mesmo ordenamento jurídico.


Em oposição à análise das teorias ficcionistas e realistas da pessoa jurídica, sustenta concepção da qual se partilha nesta pesquisa por ser mais adequada à realidade jurídica, no que tange à relatividade, à historicidade e à funcionalidade do conceito de pessoa jurídica, considerada a personificação societária como sanção positiva prevista pelo ordenamento jurídico[23]:


“A pessoa jurídica, enquanto expressão técnico-jurídica, refere-se a conceitos e a situações jurídicas que se inserem dentro de contextos históricos e com os quais estabelece interação. O fracionamento e pulverização do conceito de “pessoa jurídica” (ou melhor, a substituição dos conceitos indicados sob tal expressão) corresponde exatamente ao fracionamento e à pulverização do conceito de “direito subjetivo” […]. Era concebível a unitariedade do conceito enquanto reconduzíveis todos os fenômenos a uma essência única ou a um mesmo fundamento. Assim, a vontade permitia a construção de uma arquitetônica conceitual unitária acerca de direito subjetivo e de pessoa, porquanto todas as figuras repousavam sobre o mesmo e único pressuposto. A evolução do pensamento filosófico-jurídico vai evidenciando a inviabilidade de reconhecer a unitariedade absoluta e perfeita do fenômeno jurídico, que se desdobra a partir de fundamentos diversos. […] A intangibilidade do individual, afirmada pelas concepções sócio-político-econômicas assumida pelo fundamento voluntarístico do direito, perdeu sua razão de ser. Alterou-se, então, a concepção acerca da função do direito. A idéia voluntarística envolvia uma função passiva para o direito. […] Com a alteração dessa ideologia, o direito passa a deter uma função ativa. Trata-se de um instrumento fundamental de intervenção sobre a realidade a fim de realizar os fins do Estado. Não mais se destina a assegurar a manutenção da realidade, mas a interferir sobre ela. O que se busca é adequar a conduta humana à necessidade coletiva e obter uma melhoria das condições de convivência.”


A conclusão quanto à concepção atual da pessoa jurídica é a constatação da fragilidade principiológica em que se fundavam as teorias anteriormente existentes sobre a pessoa jurídica por estarem cada qual inseridas num contexto histórico próprio, com nuances filosóficas, políticas, econômicas e sociais que partiam da mesma premissa estática e unitária do conceito de pessoa jurídica, desprezando, portanto, a sua relatividade, historicidade e funcionalidade.


Michel Foucault aponta as modificações que ocorreram da racionalidade governamental desde o liberalismo (individualista) até o neoliberalismo (pluralista). Enquanto que no liberalismo o princípio de mercado era a troca, no neoliberalismo a preocupação central do Estado é a concorrência. A racionalidade governamental volta-se então para a política da vida (vitalpolitik). Trata-se de fazer a forma da empresarialidade atingir a pessoa, a concorrência, o mercado. O consumo constitui uma espécie de poder uniformizador da sociedade. Mas, quanto mais se multiplicam “formas empresariais” mais aumentam as zonas de atrito. A ordem econômica neoliberal multiplica contenciosos e a necessidade de intervenção jurídica. Sociedade empresarial e sociedade judiciária são as duas faces da ordem econômica neoliberal.


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No contexto da racionalidade governamental imperante no neoliberalismo atual a função do Estado é a de regular a concorrência numa sociedade impregnada pelo conceito da empresariedade, incumbindo a ele, portanto, o papel de interferir na vida social no sentido de estimular juridicamente condutas socialmente desejáveis. Nesse contexto, a intervenção do Estado na economia não tem caráter simplesmente limitador da atividade empresarial. Atualmente, o Estado intervém na economia para regular a concorrência e, principalmente, para incentivar a atividade empresarial e o desenvolvimento econômico.


A intervenção do Estado, portanto, não se dá contra, mas a favor do mercado e da atividade empresarial. É exatamente neste sentido que se pode compreender a personificação societária, portanto, como sanção positiva do direito, no sentido de justificar a principal razão de interferência estatal, que é exatamente o estímulo ao empreendedorismo inerente à atividade empresarial e ao desenvolvimento econômico e, em última análise, aprimoramento das condições de convívio social.


2.3 Atribuição de Personalidade às Pessoas Jurídicas de Direito Privado no Direito Brasileiro


O problema das formas das pessoas jurídicas no direito positivo, o problema da tipificação, oferece maior interesse ao campo do direito privado, quanto ao rigor em relação ao conteúdo ontológico-estrutural para o reconhecimento da personalidade jurídica. É no direito privado que surgem e se desenvolvem as grandes categorias típicas de instituições humanas que determinam o reconhecimento das características da pessoa jurídica – associações, fundações, sociedades, civis ou mercantis. No direito público há pessoas jurídicas que assumem formas calcadas sob as de direito privado.


Na distinção Público – Privado tal como se apresenta na ordem jurídica capitalista, a capacidade de direito e a capacidade de fato das pessoas jurídicas (incluindo as de direito público) têm sentido e função que só podem ser entendidos a partir da análise de relações jurídicas de Direito Privado.


A relevância da distinção entre sociedades civis e comerciais está paulatinamente desaparecendo. Fortalece-se cada vez mais a idéia de um “Direito Societário” que englobe ambas as espécies. Paralelamente e embora o Direito Societário não coincida em âmbito com o problema da pessoa jurídica, os estudos dos “societaristas” ganham cada vez mais importância para a teoria da pessoa jurídica, pois é no campo do direito societário que coexistem, em maior número, realidades institucionais a que a ordem jurídica positiva nega tal personalidade.


O nosso dualismo, resultante de uma visão mais liberal da pessoa jurídica (pelas quais as fundações, as associações e sociedades de qualquer tipo são pessoas jurídicas) não estimulou uma reflexão sobre a possibilidade de existência de capacidade de direito parcial ou limitada no caso de entidades ou organizações excluídas da personalidade jurídica. Os problemas como o da massa falida, do espólio, do condomínio e da sociedade irregular desafiam a imaginação dos juristas e dos magistrados, não preparados para dar-lhes uma solução. Daí o relevo do estudo do direito alemão, quer no direito positivo, quer na análise da crise do sistema.


2.3.1 Postura Maximalista (monista) x Postura Minimalista (dualista)


A dicotomia básica do direito comparado é a existência entre sistemas jurídicos que estabelecem rígida existência de natureza ontológico-estrutural como pressuposto para o reconhecimento da personalidade jurídica e sistemas mais tolerantes no que tange à fixação de tais pressupostos. Essa divisão corresponde basicamente a uma divisão entre sistemas jurídicos em que se exige maior rigor na apuração da analogia de situações entre a entidade supra-individual e o homem (como o alemão) e sistemas em que tal rigor é reduzido a proporções bem menores (como o brasileiro).


O direito alemão estudado era o vigente na Alemanha Ocidental, o de economia capitalista da República Federal da Alemanha.


As crises da pessoa jurídica da Alemanha capitalista oferecem excelente campo de comparação, pois a função econômica da pessoa jurídica é a mesma, e também pelo fato da influência que a técnica jurídica alemã sempre exerceu em nosso pensamento jurídico.


2.3.1.1 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico da República Federal Alemã segundo Lamartine Corrêa de Oliveira


As formas de pessoas jurídicas de direito privado admitidas pelo direito então vigente na Alemanha Ocidental são as seguintes:


“a) as associações, consideradas um dos tipos principais de agrupamentos dotados de personalidade jurídica, sendo o tipo principal dentro do direito civil, constituindo-se o protótipo das corporações. Pode haver associações sem fins lucrativos ou com fins lucrativos (associações econômicas). Aquelas alcançaram personalidade jurídica através do registro e da inscrição (direito subjetivo público material), ao passo que essas só alcançam personalidade por meio de um ato de concessão estatal, com ampla margem de discricionariedade da administração. As associações econômicas não possuem normas que garantem um patrimônio capaz de responder por dívidas da sociedade, como no caso das S/A, por isso a autoridade examina se existe “suficiente segurança” antes de conceder a personalidade. Nas que não possuem fins lucrativos tal necessidade não existe, dada a delimitação de sua finalidade, limitação do tipo e facilitação da forma, especialmente na dispensa de formação e conservação de uma base de capital. O número de associações criadas por concessão estatal é mínimo, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Federal. A determinação de sua natureza não advém dos estatutos exclusivamente, mas da atividade faticamente considerada da entidade. Daí a possibilidade de surgimento de discrepância entre o registro e a realidade, como dar um registro de associação com fins ideais, quando na realidade se trata de uma econômica.


b) a sociedade por ações, que é nossa S/A, é regulada no direito alemão por uma lei especial, a Lei de Ações. São consideradas sociedades comerciais, ainda que seu objeto consista em atividade considerada mercantil, regra que também se aplica às sociedades comanditas por ações e às de responsabilidade limitada, o que significa poder ter seu objeto natureza não lucrativa. Uma série de normas procuram, no interesse público, velar pela presença real de um capital que responda pelas dívidas da sociedade, tais como os dispositivos que proíbem alienação de ações por valor abaixo do nominal. São formas apropriadas de organização de empresas que necessitem, para a realização de seus propósitos, de grandes capitais. O risco limitado, a vantagem de uma participação com valor determinado, e perspectiva de lucro estimulam grandes e pequenos investidores a colocar seu dinheiro em ações. São as preferidas para investimentos de capital, como as grandes empresas da indústria, do comércio, bancos e empresas seguradoras.


c) sociedade em comandita por ações em que um dos sócios responde ilimitadamente perante os credores sociais (sócio com responsabilidade pessoal) e os demais participam do capital básico divido em ações, sem responderem pessoalmente pelas dívidas da sociedade (acionistas em comandita). É considerada forma mista entre a comandita simples e a S/A. Sua importância econômica e prática é reduzida.


d) sociedade de responsabilidade limitada, regulada por lei própria. Também é considerada, tal como as S/A e a comandita por ações, uma sociedade de capital. Isso porque qualquer membro está ligado à titularidade de uma cota sobre o capital da sociedade. Existe um caráter personalizante, compõe-se em regra de um pequeno número de sócios, entre os quais existe uma confiança pessoal. Distingue-se da sociedade em nome coletivo pelo fato de seus sócios não responderem pessoalmente pelas obrigações da sociedade.


e) cooperativas registradas, reguladas pela “lei das cooperativas de aquisição e economia”, sociedade com um número aberto de membros, que visam o estímulo da poupança, das aquisições e da economia de seus membros por meio de atividade econômica comum. São consideradas sociedades comerciais por força de lei. Existe um dever de responder não em relação aos credores da sociedade, mas em face da própria cooperativa, da própria sociedade, somente em caso de abertura de processo de insolvência, de modo ilimitado, caracterizando-se, pois, como um dever de contribuição complementar. Em face dos credores responde somente o patrimônio da cooperativa.


f) sociedades de seguros mútuos, reguladas pela lei sobre a fiscalização das empresas privadas de seguros. A personalidade jurídica é adquirida por ato estatal de concessão e pelas dívidas da sociedade responde tão somente o patrimônio da sociedade, não o dos sócios.


g) fundações, que é o único tipo de pessoa jurídica que não tem por base um agrupamento de pessoas, pois que é pessoa jurídica sem membros, tratando o direito alemão como uma espécie de “só-coisônico”, posição refutada por alguns doutrinadores. Há dificuldade de conceituação pois que, nela, é bem maior o grau de abstração, dada a inexistência de uma coletividade. A personalidade é adquirida por ato de concessão estatal representada pela aprovação dada ao negócio jurídico de fundação. Também há a fundação não autônoma, com regras da doação com encargo e do legado do encargo, conforme sua origem e em que também está presente a idéia de fidúcia, sendo proprietário fiduciário, pessoa física ou jurídica encarregada da administração do patrimônio vinculado a um fim. Neste caso não há criação de pessoa jurídica nova.”


2.3.1.1.1 A adoção do sistema das disposições normativas. Sistema excepcional – o da concessão


Tradicionalmente o sistema de formação de pessoas jurídicas classificam-se em três grandes categorias: sistemas da concessão, sistema das disposições normativas e sistema da livre formação. Vigora no direito alemão o sistema das disposições normativas, alcançando personalidade jurídica através de tal sistema as associações de finalidades ideais, as sociedades anônimas, as em comandita por ações e as de responsabilidade limitada, as cooperativas, enquanto que o sistema de concessão vigora para as associações de finalidade econômica, para as sociedades de seguros mútuos e para as fundações. Já o sistema da livre formação (com a criação da entidade pelos fundadores, estaria completado o suporte fático necessário para o surgimento da personalidade) não existe aplicado às pessoas jurídicas, só existindo no que tange às pessoas naturais. Sempre algo mais é exigido: a inscrição ou o registro ou a aprovação ou concessão estatal. Isto se deve ao receio de que a livre formação levasse à impotência estatal em face de organizações de natureza privada.


O sistema das disposições normativas permite resolver por via legislativa o problema da dialética entre subjetividade e objetividade latente na pessoa jurídica. A lei pode, portanto, deixar à liberdade das partes o resolver sobre a organização interna da pessoa jurídica, não pode fazê-lo, porém, no que tange à caracterização das figuras admissíveis como pessoas jurídicas (tipificação do elenco), regida pelo princípio numerus clausus. Há opção maximalista do legislador alemão, que parte da profunda dicotomia e antinomia corporação versus sociedade, pois só a primeira é pessoa jurídica (as corporações e as fundações) e só uma sociedade dotada de estrutura corporativa pode ser considerada pessoa jurídica, pois que então não é mais sociedade em sentido estrito. O sistema geral de concessão representa um atraso do ponto de vista jurídico, e embora tenha dominado o século XIX, foi grande a alegria por seu abandono. No caso específico da associação de finalidade econômica há uma justificativa de necessidade de proteger terceiros e o público em geral, não subsistindo tais perigos no caso de sociedades com estrutura corporativa, em relação às quais há normas específicas sobre a conservação das bases de capital e de crédito da entidade. Também nas corporações de finalidade ideal, dada a natureza das atividades, este perigo não existe.


2.3.1.1.2 O princípio do “numerus clausus”


Há necessidade de previsão em lei do número de figuras, de tipos de pessoas jurídicas de Direito Privado, de modo a limitar o máximo as dúvidas sobre imputação de direitos.


Este princípio não destrói os princípios básicos da liberdade de autodeterminação e da autonomia da vontade. Dentro do quadro legal, há liberdade de escolha do tipo. Só há duas exceções: os casos de determinação legal do tipo (como a sociedades de seguros mútuos) e os de limitação legal do tipo (como as associações registradas e as cooperativas registradas).


2.3.1.1.3 Os agrupamentos humanos não dotados de personalidade no direito alemão. A dicotomia fundamental entre corporação e sociedade


Formas não dotadas de personalidade jurídica no direito alemão são três: a sociedade civil, as sociedades comerciais de pessoas, subdivididas em sociedade aberta (equivalente à nossa sociedade em nome coletivo) e a sociedade em comandita simples. São consideradas sociedades em sentido estrito, que abrange a sociedade de pessoas, quer as duas de direito comercial, quer a de direito civil.


A doutrina dominante estabelece uma básica dicotomia entre elas (sociedades em sentido estrito) e as formas de estrutura corporativa, a que se reconhece personalidade jurídica, a associação, as cooperativas, e as sociedades de capitais.


Grande parte dos autores inclui no elenco dos grupamentos não dotados de personalidade jurídica a associação regular. Trata-se de entidade que se organizou e se estruturou como associação, porém não se registrou (as de finalidade ideal) ou não obteve concessão estatal (as de fins lucrativos). Em princípio são regidas pelas normas sobre a sociedade civil. Aqui há um descompasso das disposições normativas com a realidade, pois a associação, embora possua estrutura corporativa, é regida por normas de sociedade em sentido estrito.


Isto deriva da postura maximalista do direito alemão: o de um máximo de exigências ontológicas de similitude para, admitindo a analogia com o ser humano, reconhecer a personalidade jurídica. No direito alemão é fundamental a diferença entre a corporação, a universitas e a sociedade, que guarda traços a antiga societas (fidelidade à dicotomia romana neste sentido).


2.3.1.1.4 Comunhão em mão comum e comunhão por cota


Segundo a doutrina dominante, as organizações destituídas de personalidade jurídica, em especial as sociedades de pessoas, divergem essencialmente da societas romana. Nesta, a vinculação a um fim social era assegurada por um dever, imposto aos sócios, de só praticar os atos de administração e disposição compatíveis com o fim comum.


No direito alemão existe a comunidade, correspondente à comunhão do tipo romano – em que os direitos patrimoniais individuais estão fracionados em cotas, imputadas a cada um dos comunheiros – e a sociedade (em sentido estrito), onde se contempla a sociedade civil, dominada pelo princípio da vinculação da mão conjunta – o patrimônio pertence a todos os comunheiros conjuntamente e só conjuntamente dele podem dispor, como por exemplo a comunhão entre co-herdeiros e a entre cônjuges. A exata determinação do critério teórico diferenciador entre elas tem atribulado os juristas germânicos.


2.3.1.2 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico da França segundo Lamartine Corrêa de Oliveira


Os dois códigos franceses não consagram nenhum tipo de disposição sobre a pessoa jurídica. Leis esparsas regularam a associação, definidas como grupos que se destinam à consecução de fins não lucrativos, em especial os de beneficência, culturais, políticos, etc.


Pelo regime básico existe a associação declarada se declara a sua existência perante a préfecture local adquire a chamada petite personnalité que envolve capacidade patrimonial, processual, porém é limitada quanto à aquisição de direitos de propriedade: não pode adquirir bens a título gratuito, somente a oneroso, na estrita medida da necessidade para a consecução de seus fins. Nessa declaração deve constar: o nome dos dirigentes, a denominação e as finalidades, acompanhada de cópia dos estatutos. Já a grande personnalité depende de ato de concessão estatal, representado por decreto do Conselho de Estado que reconheça a utilidade pública da associação, tornando-se uma associação reconhecida de utilidade pública. Ainda assim a capacidade de direito é limitada: só pode conservar propriedade imobiliária dos bens estritamente indispensáveis a seu funcionamento. Em relação à associação declarada pode mais, ou seja, receber liberalidades, por atos intervivos ou mortiscausa. As associações não declaradas são destituídas de personalidade jurídica, sendo os bens utilizados considerados de titularidade dos associados, em regime de comunhão do tipo romano. As associações são pessoas morais no sentido institucional da expressão, porém adquirem personalidade por decisão discricionária do Estado, o problema não é ontológico e sim político.


Pelo regime especial há regulação das chamadas associações familiares, esportivas e de culto. Também há os sindicatos profissionais (formados pelos assalariados de uma mesma indústria) e, na forma do disposto no Código do Trabalho, adquirem personalidade jurídica sem qualquer limitação de capacidade, pelo simples depósito de seus estatutos na prefeitura. As congregações religiosas equiparam-se às não declaradas, adquirem personalidade somente por decreto governamental, dificilmente obtido.


As sociedades comerciais gozam de personalidade, independentemente do tipo, à exceção da sociedade en participación, pois não possui exteriorização perante terceiros. Quanto às sociedades civis, não era reconhecida a elas a personalidade moral, pois os textos do código civil a ela dedicados regulavam-na de modo aproximado à societas romana, privada de qualquer existência que a distinguisse de seus sócios. Porém, mais tarde foi-lhes reconhecida a natureza de pessoas “morais”. Aqui se salienta o caráter minimalista do sistema francês, em que basta um mínimo de analogia ao ser humano para que se admita a aptidão para a personificação. Doutrina da realidade técnica de Carbonnier: deve ser reconhecida pelo intérprete, mesmo no silêncio da lei, como pessoa moral sempre que o interesse coletivo suficientemente consistente se expresse num mínimo de organização. Admite o sistema francês novas formas de pessoas jurídicas.


Coexistem, portanto, o sistema da livre formação (sociedades civis), o das disposições normativas (sociedades mercantis) e o da concessão (fundações, congregações religiosas e associações), porém estas últimas adquirem personalidade com capacidade restringida.


As fundações também não são pessoas jurídicas de direito privado, só se forem de utilidade pública, dependendo de decreto de reconhecimento desta emanado do Conselho de Estado para adquirir personalidade. O direito francês é pouco favorável à teoria das fundações em seu completo grau de abstração, tal como nós a conhecemos.


2.3.1.3 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico da Itália segundo Lamartine Corrêa de Oliveira


O velho código civil também não continha qualquer norma legal que afirmasse ou negasse a personalidade jurídica das sociedades civis. Ao contrário da França, onde a magistratura sempre teve maior liberdade na interpretação da lei do que na Itália, a opinião dominante permaneceu apegada à negação da personalidade jurídica às sociedades civis. Em 1942 o Codice Civile previu a personalidade jurídica das associações e das fundações, concedidas mediante decreto.


É pacífica a personalidade jurídica da sociedade por ações, da sociedade em comandita por ações, da responsabilidade limitada, das cooperativas e das sociedades de seguros mútuos. É um sistema tipicamente maximalista, exigindo um limiar máximo de analogia para que se possa falar em personalidade jurídica, negando-a sempre que este limiar não é atingido.


Quanto às associações, vigora o sistema de concessão (reconhecimento por decreto) e de limitação da capacidade de direito (dependência de autorização para certos atos). O mesmo vale quanto às fundações, com a diferença de que a lei não cogita de fundações não reconhecidas, figura negada pela doutrina.


2.3.1.4 O quadro das pessoas jurídicas de direito privado no sistema jurídico de Portugal segundo Lamartine Corrêa de Oliveira


As associações são distinguidas as sociedades a partir do critério clássico do fim lucrativo. Podem ter caráter desinteressado ou altruístico (de beneficência), ter fim ideal, mas interessado ou egoístico (recreativas ou esportivas) e fim econômico não lucrativo (de socorros mútuos). Adquirem personalidade por ato de concessão denominado reconhecimento. Existem as associações não reconhecidas, sendo reguladas pelas regras estabelecidas pelos associados e, na sua falta, as disposições legais relativas à associações, excetuadas as que pressupõe a personalidade destas.


As fundações são instituídas por ato entre vivos (escritura pública) ou por testamento e também só pelo reconhecimento.


As sociedades podem ser civis ou comerciais (soc. em nome coletivo, S/A e soc. em comandita e por cotas, de responsabilidade limitada). É ainda admitida a categoria das soc. mútuas de seguros. As sociedades comerciais são detentoras de personalidade jurídica e também as soc. civis de forma comercial. A capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessárias ou convenientes à persecução dos seus fins. É a versão portuguesa do princípio da especialidade francês (introdução da noção de conveniência). Os atos não necessários ou convenientes são nulos.


Existe um maximalismo dualista, que admite entidades – pessoa (sociedades comerciais e civis com forma mercantil, associações e fundações reconhecidas) e entidades não dotadas de personalidade (sociedades civis, associações não reconhecidas, comissões não reconhecidas como associações). É atenuado pelo fato do reconhecimento de todas as sociedades mercantis como pessoas jurídicas. Esse caráter maximalista só pode ser falado em relação às sociedades civis, em que a negação da personalidade decorre de considerações ontológicas.


2.3.1.5 Balanço do exame comparativo segundo Lamartine Corrêa de Oliveira


A análise demonstra a dicotomia fundamental existente entre os sistemas maximalistas (um máximo de analogia é exigido para o reconhecimento da personalidade jurídica: Alemanha, Suíça e Itália) e os sistemas minimalistas (amplo reconhecimento de personalidade jurídica a qualquer grupamento ou entidade que satisfaça os requisitos mínimos de analogia: França).


Existe uma dicotomia entre os sistemas dualistas (os maximalistas, por recusarem a personalidade jurídica a determinadas figuras, que para outros sistemas são pessoas jurídicas, têm necessidade de dualidade de institutos e sistemas monistas, em que há apenas pessoas jurídicas como única forma reconhecida de autonomização, de unificação de relações, de subjetividade de direitos, além, é claro, da pessoa natural.


Normalmente subjaz ao sistema maximalista uma doutrina realista em tema da pessoa jurídica, vendo-a como uma entidade realmente análoga à pessoa humana, por falta de separação entre a unidade supra-individual e o ser humano que se torna membro ou órgão. Nos sistemas minimalistas faz com que a única barreira ao reconhecimento da personalidade jurídica seja o discricionarismo estatal, como no caso das associações (concepção atrasada e autoritária do Estado).


2.3.1.6 Forma de Atribuição de Personalidade às Pessoas Jurídicas no Brasil segundo Lamartine Corrêa de Oliveira


No direito brasileiro anterior ao código civil não era pacífico o elenco das pessoas jurídicas. Lembremos o pensamento minimalista de Clóvis Beviláqua, que considerava pessoas jurídicas todas as sociedades, civis ou mercantis e o maximalista, de Lacerda de Almeida, que distinguia corporações das sociedades em sentido estrito, negando personalidade jurídica às segundas.


O Código Civil de 1917, fiel à orientação monista de seu ilustre autor, viria a reconhecer personalidade jurídica de todas as sociedades, civis ou mercantis, deixando expresso que a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa com a inscrição dos contratos, ato constitutivo e estatutos no registro peculiar, ressalvando-se às sociedades que possuam, por norma excepcional, exigência de autorização governamental, sendo a regra geral, portanto, o sistema das disposições normativas, inclusive quanto às associações.


Temos, portanto, no Brasil, um regime monista, minimalista, e, ao contrário dos precedentes europeus monistas (França), totalmente liberal em matéria de concessão de personalidade. Mínimos são os requisitos de analogia para que se reconheça a personalidade jurídica, visto que são consideradas ontologicamente pessoas as sociedades, as associações e as fundações. A atitude do Poder Público é liberal, pois não existe sistema de concessão de personalidade, embora exista o sistema excepcional de autorização para constituição ou funcionamento.


3 A DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA


3.1 O Significado da Expressão


O direito existe para a realização dos interesses do homem, demandando, em alguns casos, uma conjugação de esforços para a consecução desses fins, criando-se um ente autônomo com direitos e obrigações próprias, não confundidas com a de seus membros, assumindo limitadamente os riscos da atividade empresarial.


Com o desvio da finalidade dos propósitos para a qual a pessoa jurídica foi criada, quando de sua concepção, criou-se um mecanismo jurídico capaz de excepcionalmente desconsiderar a sua autonomia patrimonial, fazendo recair a responsabilidade patrimonial sobre os sócios componentes da sociedade, que praticaram atos fraudulentos ou ilícitos.


Santos Cifuentes[24], discorrendo sobre a Teoría de la penetrassem en El ente: “La persona jurídica no se identifica com los hombres que se hallan detrás de la misma; su patrimonio tampoco puede ser equiparado com los derechos de participación em la persona jurídica; lo único que ocurre es que se dan situaciones en las que es menester apartarse de esta regla para que, por encima de la forma jurídica, se alcance uma decisións justa”.


Desconsiderar a pessoa jurídica é, pois, reequilibrar uma situação legal injusta, gerada por ato de sócio contraposto aos desígnios e finalidades para a qual foi criada, de forma a puni-lo com o comprometimento patrimonial pessoal pelos prejuízos por ele causados em nome da pessoa jurídica.


3.2 Disregard of Legal Entity Doctrine


3.2.1 Origem


A terminologia em língua estrangeira é justificada em razão dos locais do berço da teoria (EUA com o caso Bank of United States v. Deveaux e Inglaterra com o caso Salomon v. Salomon & Co[25]).


A doutrina se expandiu no direito norte-americano, tradicionalmente conhecida no direito norte-americano e inglês como disregard of legal entity doctrine, disregard of corporate entity doctrine e chegou ao Brasil por meio de Rubens Requião, que embasou seu raciocínio na fraude e não no abuso do direito.


Após o célebre caso da Aaron Salomon foi criada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. No Brasil não é mais teoria, pois prevista legalmente no caso de fraude (há necessidade de prova) ou falência, encerramento da atividade, inatividade ou insolvência e também no caso de má administração (esse último não é conceito jurídico).


3.2.2 Pressupostos


Preceitua o art. 50 do Código Civil: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o Juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.


Como bem elucida Alexandre Couto Silva[26] “o abuso da pessoa jurídica é possível, precisamente, graças ao caráter instrumental que tem o reconhecimento da personalidade jurídica como aparato técnico oferecido pela lei à obtenção de finalidade ilícita que os indivíduos por si sós não poderiam conseguir. Assim, esse instituto pode dar lugar a um uso indevido”. Em razão disso “iniciaram-se, então, ações tendentes a, quando necessário, superar a forma externa da pessoa jurídica, para, penetrando através dela, alcançar as pessoas e bens que debaixo de seu véu estivessem encobertas”[27].


A teoria da desconsideração da personalidade jurídica possui como pressupostos:


a) a personificação, a regular atribuição da personalidade jurídica pelo direito, sem qualquer irregularidade, com as conseqüências advindas da separação entre sócio e sociedade. No Brasil a personalidade nasce com o registro dos atos constitutivos no órgão competente. Por óbvio, se irregular ou de fato, não há que se falar em sociedade, tampouco em autonomia patrimonial, não sendo possível a utilização desta autonomia para fins ilícitos, mesmo porque os sócios, nestes casos, são responsabilizados ilimitadamente, não se justificando a aplicação do instituto;


b) responsabilização limitada dos sócios da sociedade;


c) desvio de função da pessoa jurídica, reproduzida pela fraude ou pelo abuso do direito relacionados à autonomia patrimonial.


Lamartine Corrêa de Oliveira distingue operações de imputação de atos jurídicos e a desconsideração propriamente dita, de forma que caso houvesse imputação do ato jurídico ou dos seus efeitos a pessoa distinta daquela a quem usualmente seria imputável não se trataria de desconsideração, esta seria caracterizada somente se fosse o caso de responsabilidade subsidiária por débito alheio[28]:


“Os problemas ditos de “desconsideração” envolvem frequentemente um problema de imputação. O que importa basicamente é a verificação da resposta adequada à seguinte pergunta: no caso em exame, foi realmente a pessoa jurídica que agiu, ou foi ela mero instrumento nas mãos de outras pessoas, físicas ou jurídicas? É exatamente porque nossa conclusão quanto à essência da pessoa jurídica se dirige a uma postura de realismo moderado – repudiados os normativismos, os ficcionismos, os nominalismos – que essa pergunta tem sentido. Se é em verdade uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é essa utilização da pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas fundamentais da ordem jurídica (bons costumes, ordem pública), é necessário fazer com que a imputação se faça com predomínio da realidade sobre a aparência”.


Justen Filho[29], por considerar não ter a pessoa jurídica uma essência ideal, atrela o conceito de desconsideração estritamente à finalidade de evitar o perecimento de um interesse, discordando de Lamartine no seguinte sentido:


“Aspecto fundamental do conceito de desconsideração reside no tópico da finalidade. O ângulo teleológico é fundamental para apreender adequadamente a natureza do conceito. […] O que justifica toda a teoria da desconsideração é o risco de uma utilização anômala do regime correspondente à pessoa jurídica acarretar um resultado indesejável. […] Pedimos autorização para discordar e insistir na conceituação formulada por dois argumentos. O primeiro é o de que a definição da desconsideração é estipulativa. Portanto, não vislumbramos, ainda aqui, uma essência ideal que possa ser revelada pelo raciocínio ou por uma definição para o dito vocábulo. O segundo fundamento é o de que a concepção proposta por Lamartine revela, em última análise, uma posição filosófica a propósito de pessoa jurídica – ao discordarmos de tal posição filosófica, acabamos por discordar igualmente da conceituação dela decorrente.”


Trata-se de importante “técnica casuística (e, portanto, de construção pretoriana) de solução de desvios de função da pessoa jurídica, quando o Juiz se vê diante de situações em que prestigiar a autonomia e a limitação da responsabilidade da pessoa jurídica implica sacrificar um interesse que ele reputa legítimo[30]”.


3.2.3 Requisitos


A aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica possui como requisitos o reconhecimento da personalidade do ente abstrato destacado das pessoas dos sócios, bem como a existência da limitação da responsabilidade. Como bem observa Alexandre Couto Silva[31]


“Diante de tais afirmativas pode-se restringir a aplicação da teoria a apenas dois tipos societários, que são as sociedades anônimas e as sociedades por cotas de responsabilidade limitada. Os outros tipos societários que misturam responsabilidade limitada e ilimitada não nos interessam, pois os sócios dirigentes sempre serão responsabilizados ilimitadamente […]. Quanto às pessoas jurídicas de direito público, são elas responsabilizadas civilmente por atos de seus representantes que se beneficiem dessa qualidade utilizando a pessoa jurídica para prejudicar terceiros, ressalvado o direito de regresso contra os causadores, não se podendo falar em aplicação da teoria da desconsideração”.


A desconsideração pressupõe um uso inadequado da pessoa jurídica, com desvio de sua vontade, de seu objeto social, do que consta em seu estatuto. A pessoa jurídica é, de fato, o que o contrato social ou o estatuto prescrevem, porém, o desvio de finalidade perpetrado pelas pessoas naturais que materializam suas ações implica a cessação de sua existência e a transferência da responsabilidade para si.


3.3 Formas de Efetivação sob a Ótica de Marçal Justen Filho[32]


3.3.1 Desconsideração Direta


Ocorre quando a fraude for caracterizada de plano, de forma que o Judiciário desconsidera a personalidade jurídica para o alcance patrimonial daquele sócio que praticou o ato lesivo, utilizando-se do anteparo protetor da sociedade para agir ilicitamente.


3.3.2 Desconsideração Incidental


Configura-se nas hipóteses em que a fraude, por sua estrutura, não é percebida de pronto, o concilium fraudis é aferido somente no curso da instrução processual da demanda travada contra a sociedade. Há dúvida se neste caso poderia haver uma desconsideração incidental, dentro do processo, ou se seria necessária ação autônoma para tanto. A jurisprudência têm se firmado no sentido de que, uma vez assegurado o contraditório, há possibilidade da declaração incidental. O art. 50 do CC chancela esta possibilidade ao indicar a legitimidade ativa da parte ou do Ministério Público para o pedido, pois estes pressupõe a existência de demanda preexistente.


3.3.3 Desconsideração Inversa


Abrange os casos em que o sócio passa a esconder bens da sociedade, ela é por ele ocultada. A terminologia da desconsideração “inversa” justifica-se pelo fato de se pretender, com a desconsideração, atingir bens da própria sociedade, em decorrência de atos praticados por sócios.


3.3.4 Desconsideração Indireta


É quando atinge sociedade pertencente a um mesmo grupo econômico, caso as empresas integrantes sejam utilizadas como algum objetivo ilícito.


4 A PROVA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA


A desconsideração é uma forma de limitar o uso da pessoa jurídica à finalidade para a qual é destinada, sendo o seu pressuposto fundamental o desvio de função da pessoa jurídica, que se constata na fraude e no abuso de direito relativos à autonomia patrimonial.


O Superior Tribunal de Justiça possui acórdão paradigma[33] na questão da necessidade ou não da prova para a desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se de acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi em que os recorrentes B. Sete Participações, seus sócios e conselheiros, bem como a Administradora Osasco Plaza Shopping S/C Ltda. foram responsabilizados e condenados a reparar os danos morais e/ou patrimoniais sofridos por todas as vítimas em decorrência do acidente ocorrido em 11.06.96, uma explosão ocorrida na área próxima à área de alimentação do shopping Osasco, causando dano em mais de 40 lojas, 40 mortes e mais de 300 feridos, retratado a seguir:


4.1 Teoria Menor


Acolhida em nosso ordenamento jurídico de forma excepcional no Direito do Consumidor, no Direito Ambiental e no Direito do Trabalho, aplica-se a desconsideração da pessoa jurídica com a mera comprovação da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.


Para esta teoria, o risco econômico da atividade empresarial não pode ser transferido a terceiro que contratou com a pessoa jurídica, e sim por seus sócios e administradores, ainda que demonstrada conduta administrativa proba, ou seja, ainda que ausente prova de conduta dolosa ou culposa por parte deles.


A aplicação dessa teoria encontra respaldo no § 5º do art. 28 do CPC, pois a incidência deste dispositivo independe da demonstração dos requisitos contidos no caput do artigo, mas tão somente à prova de causar, a existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados a consumidores. A exegese deve ser, portanto, autônoma em relação ao caput do artigo.


Para a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica basta que a diferenciação patrimonial da sociedade e sócio obste a satisfação dos credores. Nas situações em que a pessoa jurídica não tiver bens suficientes aptos à satisfação do crédito ou até mesmo em razão de sua iliquidez, os sócios serão responsabilizados ilimitadamente pelas dívidas sociais.


Os críticos desta postura afirmam que o princípio da autonomia patrimonial necessita ser respeitado para que se alcance os objetivos de crescimento da nação.


Segundo o Professor do Mestrado de Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA, Fábio Leandro Tokars, no nosso país a desconsideração é regra, o sócio sequer é citado. Há um risco que irá refletir no preço. Quem não coloca risco na precificação a hora que o risco vira custo a empresa quebra. Cria-se uma estrutura de mercado que favorece o empresário que não coloca o risco no preço. Essa postura temerária “contra o empresário” beneficiaria, assim, só o empresário que não cumpre com suas obrigações. Parte-se da premissa que o empresário é um inimigo a ser combatido, colidindo com a função social do direito. Sustenta ele uma lógica oposta, em nome do benefício da sociedade, sendo por isso a atribuição nominativa de função social e não de piedade social. A própria razão que levou a criar uma sociedade limitada foi o dimensionamento dos riscos dos empreendedores. A partir que há possibilidade de alcançar o patrimônio dos sócios existe uma enorme gama de pessoas que jamais desenvolverá atividade empresarial. Há uma estrutura de mercado que favorece o sujeito sem patrimônio, se há patrimônio guardado por várias gerações não há estimulo ao desenvolvimento de uma atividade econômica. O que se propõe, então, é que o Estado tem que somente controlar e não viabilizar nem combater.


Sobre o tema alerta o Ex-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho Almir Pazzianotto Pinto[34]: “o temor pânico que o uso indiscriminado do princípio da desconsideração da pessoa jurídica causa no mercado acabará por desestimular e impedir transferências, aquisições e fusões de empresas, e trará mais inibição à contratação de empregados”.


A utilização do instituto requer, portanto, excepcionalidade e prudência quando da sua aplicação, de forma a não comprometer a atividade econômica baseada no empreendedorismo praticado mediante a formação de sociedades limitadas e anônimas, que representam praticamente a totalidade das empresas do Brasil.


4.2 Teoria Maior


É a regra geral do sistema jurídico brasileiro que dita não poder ser aplicada a desconsideração da pessoa jurídica com a mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica. Mostra-se imprescindível, além disso, a prova de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) ou da confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).


O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica. Já a confusão patrimonial caracteriza-se pela existência fática, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica e do de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas.


Fundamenta-se em requisitos sólidos identificadores de fraude, da utilização pelo sócio da figura da sociedade para acobertar atos ilícitos. É o que preconiza o art. 50 do Código Civil.


A fraude é o artifício malicioso praticado pelo sócio, a ilicitude na utilização da pessoa jurídica com o objetivo de prejudicar terceiros, independentemente de serem ou não credores. O uso indevido da autonomia patrimonial pelos sócios da pessoa jurídica é que permite a desconsideração da personalidade e a responsabilização patrimonial direta e ilimitada dos sócios. Porém “embora a patologia justifique o emprego do remédio, a patologia ainda tem caráter de exceção e não se presume”[35]. Deve a fraude, portanto, ser necessariamente comprovada, são “os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente os seus membros”[36].


A execução deve, portanto, ser dirigida aos sócios e não à pessoa jurídica. Como esclarece Ada Pelegrini Grinover[37] “a conclusão só poderia ser diferente se a lei ditasse alguma presunção de fraude. Mas como isso inexiste e seria mesmo iníquo, é sempre ao credor que cumpre provar os fundamentos da pretendida desconsideração da pessoa jurídica. Sendo a má-fé considerada excepcional na vida das pessoas, aquele a quem o seu convencimento pelo juiz possa aproveitar tem o ônus de prová-la”.


A desconsideração é sempre momentânea, para o caso concreto, por isso não se fala em despersonalização, que pressupõe o fim da personalidade, e sim em desconsideração.


5 CONCLUSÃO


A pessoa jurídica em sua atual acepção traduz realidade contingencial e teleológica, ligada à finalidade social a que se propõe. Este é o retrato da transição paradigmática da epistemologia jurídica contemporânea, na qual a verdade jurídica não é una nem universal, é construção fenomênica do sujeito sobre o objeto. A justificativa da existência da pessoa jurídica, com tendência à personificação cada vez mais ampla pelo direito brasileiro, é a de alçar os objetivos jurídicos definidos em seus estatutos.


Caso haja um desvio de finalidade social na utilização da personalidade jurídica, a despeito de sua licitude, o Juiz está autorizado a ignorar a autonomia patrimonial nos casos em que a pessoa jurídica for manipulada, por fraude ou mau uso, para macular interesse legítimo do credor.


A aplicação da disregard doctrine deve, porém, ser feita com extrema cautela, a fim de evitar a negação da vigência ao princípio básico da teoria da personalidade jurídica, o da existência distinta de seus membros, inibindo o comprometimento do empreendedorismo em nosso país perante o risco comportado pela atividade econômica. Deve ser medida excepcional só aceita mediante o devido processo legal contra os agentes fraudadores dos quais se teme a conduta.


A teoria menor da desconsideração, portanto, acolhida em nosso ordenamento jurídico no Direito do Consumidor, no Direito Ambiental e no Direito do Trabalho, mediante a qual se desconsidera a pessoa jurídica com a mera comprovação de insolvência para o pagamento de suas obrigações, prescindindo de prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, deve ser excepcionalmente aplicada, mediante cautelosa análise do caso concreto.


A regra geral do sistema jurídico brasileiro é a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica com a estrita comprovação não só da insolvência da pessoa jurídica, como também a prova de desvio de finalidade ou da confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), condizente com interesse da comunidade de incentivo à atividade econômica assentada na constituição de sociedades empresárias.


 


Referências

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BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Novos estudos de teoria do direito. Daniela Beccaccia Versiani (Trad.). Barueri – SP: Manole, 2007.

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Notas:

[1] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. A desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 19.

[3]  Idem, ibidem. p. 19.

[4] Idem, ibidem. p. 19.

[5] Idem, ibidem. p. 24.

[6] RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 33. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. In FRAGA, Vitor Bizarro. Personalidade jurídica: visão histórica. Informativo Jurídico Consulex, Brasília, Consulex, ano XIX, n. 26, p. 19-35/4-19-35/5, jul. 2005.

[7] Segundo o site do Departamento Nacional de Registro do Comércio vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Governo Federal www.dnrc.gov.br/estatisticas.

[8] In ALMEIDA, José Joaquim de. Da realidade no conceito da pessoa jurídica. Recife: Casa Ramiro, 1933. p. 30-31.

[9] JUSTEN FILHO, Marçal. A desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 25. 

[10] In ALMEIDA, José Joaquim. Op. cit., p. 34.

[11] Idem, ibidem. p. 34.

[12] In ALMEIDA, José Joaquim. Op. cit., p. 31-32.

[13] Idem, ibidem. p. 35.

[14] Idem, ibidem. p. 42.

[15] Idem, ibidem. p. 42.

[16] CARDOSO, Atinoel Luiz. Das pessoas jurídicas e seus aspectos legais. São Paulo: Albuquerque Editores Associados, 1999. p. 28.

[17] ALMEIDA, José Joaquim de. Da realidade no conceito da pessoa jurídica. Recife: Casa Ramiro, 1933. p. 45.

[18] Idem, ibidem. p. 48.

[19] Idem, ibidem. p. 46.

[20] JUSTEN FILHO, Marçal. A desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 30.

[21] Idem, ibidem. p. 30.

[22] Idem, ibidem. p. 30.

[23] Idem, ibidem. p. 31-51, passim.

[24] CIFUENTES, Santos. Elementos de derecho civil: parte general. 4. ed. actualizada y ampliada. 4. reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009. p. 235.

[25] Para consultar detalhadamente no que consistiu os casos Salomon v. Salomon & Co. Ltd. e Bank of United States v. Deveaux, com comentários sobre sua relevância quanto à teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos direitos inglês e norte-americano ver SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. p. 31-33.

[26] SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. p. 26.

[27] CARREIRO, Luciano Dorea Martinez. A pessoa jurídica e a sua crise de identidade. Revista Trabalhista Direito e Processo, Rio de Janeiro, Forense, v. VII, p. 194, jul./ago./set. 2003.

[28] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 613.

[29] JUSTEN FILHO, Marçal. A desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 56-58. 

[30] GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica (aspectos de direito material e processual. Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, p. 5-6, jan./fev. 2004.

[31] SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. p. 26.

[32] JUSTEN FILHO, Marçal. A desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. .

[33] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RE 279.273-SP, Rela. Min. Nancy Andrighi, j. 04.12.2003. DJ 29.03.2004.

[34] PINTO, Almir Pazzianotto. Agonia e morte da pessoa jurídica. Jornal Trabalhista Consulex, Brasília, Consulex, p. 19-35/4-19-35/5, jan./dez. 2005.

[35] GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica (aspectos de direito material e processual. Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, p. 7, jan./fev. 2004.

[36] Idem, ibidem. p. 8.

[37] Idem, ibidem. p. 7.


Informações Sobre o Autor

Juliana Cristina Busnardo Augusto de Araujo

Servidora Pública Federal do TRT da 9ª Região. Assistente de Desembargador Federal do Trabalho. Especialista em Direito Empresarial pelo IBEJ. Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.


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