À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana (Jean Baudrillard)
A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que queremos ter (Ronald Dworkin)
1. A sociedade de consumo e o código brasileiro de defesa do consumidor
Os sistemas jurídicos costumam espelhar as transformações ocorridas no tecido das relações sociais. Verificou-se que a crise da modernidade rendeu ensejo para a configuração da sociedade de consumo, demandando o redimensionamento das instituições jurídicas. O surgimento do direito do consumidor decorre da manifestação dos desequilíbrios inerentes a este novo modelo de coexistência social.
Neste sentido, sustenta Ada Grinover (1998, p.6) que o homem do século XX vive em função de um modelo novo de associativismo: a sociedade de consumo (mass consumption society ou konsumgesellschaft), caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça. São esses aspectos que marcaram o nascimento e desenvolvimento do direito do consumidor, como disciplina autônoma.
Tratando do tema, Adriana Vieira destaca que (2002, p.71) que as grandes descobertas que prestaram serviços à Revolução Industrial vieram modificar, de modo fundamental, as relações de consumo. A propriedade passa por uma transformação, pois a atividade começa a evoluir, tornando –se industrial, e se sobrepõe à produção artesanal. Foi nessa época, com o desenvolvimento e expansão do comércio, que começou a se manifestar o desequilíbrio nas relações de consumo, exacerbado no século atual em função do fenômeno da concentração de grandes capitais. Polarizou-se o conflito no setor das relações entre produtor e consumidor, atraindo a atenção do legislador, em nível internacional e nacional, para a edificação do regime próprio e sem prejuízo dos mecanismos normais de defesa dos contratantes.
A conseqüência desta mudança social foi sentida primeiramente nos países desenvolvidos. No ano de 1962, foi dirigida mensagem presidencial ao congresso norte-americano em que se anunciava um programa de reformas econômicas consoante os interesses dos consumidores. Também, durante a década de sessenta, difundiram-se na Europa associações de defesa do consumidor que ocasionaram a criação de entidades públicas voltadas para a tutela dos direitos do consumidor.
No sistema jurídico brasileiro, a Carta Magna de 1988 teve a primazia de contemplar os direitos do consumidor. No inciso XXII do art. 5º, dispôs o legislador constituinte que o Estado promoveria, na forma da lei, a defesa do consumidor. Não bastasse isso, a Constituição Federal consagrou, no art. 170, V, a defesa do consumidor como um princípio geral da ordem econômica. Ainda, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborasse o Código de Defesa do Consumidor. Assim sendo, foi promulgada a Lei n. 8.078/90, uma das mais avançadas legislações protetivas de consumo. Rompendo com o modelo liberal e individualista do direito privado clássico, o CDC renovou o ordenamento jurídico pátrio, tutelando as legítimas expectativas de uma maior simetria dos agentes que integram o mercado de consumo.
Neste diapasão, salienta Antônio Azevedo (1996, p.17) que a demora na atualização do Código Civil fez com que o Código de Defesa do Consumidor, de uma certa forma, viesse a preencher a vasta lacuna que, no campo do direito privado brasileiro, a doutrina e a jurisprudência percebiam há muito tempo. Na impossibilidade de encontrar, no velho Código Civil, base para o desenvolvimento teórico do que há de mais apto para transformar o sistema fechado em sistema aberto – por exemplo, a referência expressa a cláusulas gerais, como a da boa fé, e a princípios jurídicos, como o da exigência de igualdade real nos negócios jurídicos-, é no Código de Defesa do Consumidor que se pode encontrar um Ersatz do Código Civil que não veio ou, no mínimo, um ponto de apoio para alavancar a atualização principiológica do sistema jurídico brasileiro.
2. A nova visão do contrato na sociedade de consumo
Ao concretizar o discurso do ordenamento jurídico, através da mediação interpretativa, o hermeneuta manipula as fórmulas lingüísticas, de acordo com as circunstâncias da realidade emergente. Se a linguagem espelha o devir dos valores e fatos sociais, também o discurso jurídico se revela permeável às mutações semânticas e pragmáticas de seus vocábulos. Os novos sentidos dos signos normativos são demarcados mediante redefinições hermenêuticas. Entende-se por redefinição hermenêutica o aperfeiçoamento de um dos usos comuns da mensagem para atender às necessidades do intérprete do direito. Trata-se de uma forma de estipulação que possibilita delimitar termos já conhecidos, relacionando-os com um determinado panorama histórico-cultural. Enquanto uma definição puramente léxica se limita a descrever o uso arraigado de um vocábulo numa comunidade lingüística, tal não ocorre com a redefinição hermenêutica. Através desta operação interpretativa, um dos significados possíveis é selecionado e, portanto, erigido à categoria de significado mais apropriado a um contexto social. A redefinição hermenêutica confere embasamento à decisão do intérprete, frisando a utilidade ou funcionalidade do sentido jurídico.
Sendo assim, a redefinição hermenêutica implica a alteração do significado de um termo, possibilitando a sua aplicabilidade a situações antes não consideradas. Na interpretação da lei, os fatores axiológicos e fáticos orientam o processo hermenêutico redefinitório. Esta alteração hermenêutica não só preside a adequação do Direito aos reclamos sociais, como também favorece a decidibilidade dos conflitos intersubjetivos. Neste sentido, é possível destacar, em grau de importância, a redefinição hermenêutica do contrato perante as relações de consumo. A interpretação do significado de contrato, no ordenamento jurídico-consumerista, é reformulada em conformidade com as transformações ocorridas na sociedade capitalista ocidental.
Como ensina Enzo Ropo (1988, p.24), uma vez que o contrato reflete, pela sua natureza, operações econômicas, é evidente que o seu papel no quadro do sistema resulta determinado pelo gênero e pela quantidade das operações econômicas a que é chamado a conferir dignidade legal, para além do modo como, entre si, se relacionam – numa palavra pelo modelo de organização econômica a cada momento prevalecente. Analogamente, se é verdade que a sua disciplina jurídica – que resulta definida pelas leis e pelas regras jurisprudenciais – corresponde instrumentalmente à realização dos objetivos e interesses valorados consoante as opções políticas e, por isso mesmo, contingentes e historicamente mutáveis, daí resulta que o próprio modo de ser e de se conformar do contrato como instituto jurídico, não pode deixar de sofrer a influência decisiva do tipo de organização político-social a cada momento afirmada.
Com efeito, no contexto da modernidade, sob os influxos das revoluções burguesas, o jusnaturalismo lançou as bases para a clássica definição de contrato. A moderna exaltação à liberdade e à igualdade, traduzindo os direitos naturais do ser humano, acrescida do contratualismo como base fundante da organização política, implicou na afirmação do princípio da autonomia da vontade. Estava consolidado o dogma da livre manifestação do consentimento individual, pedra de toque do direito privado tradicional. O liberalismo dominante propugnava pela livre circulação da riqueza, despontando o contrato como o instrumento jurídico capaz de operacionalizar as transações econômicas. Tinha-se como verdadeira a crença de que as avenças contratuais potencializariam o equilíbrio harmônico dos interesses sociais, sem a necessidade do Estado promover ingerências no mercado, concebido como o espaço cativo das relações privadas.
A modernidade jurídica sedimentou também o primado da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). Ora, se o ser humano, igual aos seus pares, seria livre para exprimir a sua vontade, a força matriz do consentimento teria que preponderar sobre as prescrições estatais. O contrato foi, então, vislumbrado como verdadeira lei entre as partes. As normas legais, assim, teriam mera função supletória, ante as manifestações volitivas. Com o agravamento dos problemas sociais do sistema capitalista, emergiu a reação aos postulados jurídicos da modernidade. Rompeu-se com a concepção individualista e liberal do direito das obrigações, introduzindo uma nova leitura hermenêutica do contrato.
O significado de igualdade jurídica foi repensado. Voltada à limitação do absolutismo monárquico, a igualdade atomística dos homens, consagrada nas modernas constituições e declarações de direitos, pecava pela total discrepância com a realidade cambiante. A previsão da isonomia, em termos puramente abstratos e formais, não se coadunava com as desigualdades produzidas pelo capitalismo liberal, seja nas relações entre os proprietários dos meios-de-produção e trabalhadores, seja nas interações entre fornecedores e consumidores de mercadorias e serviços.
A concentração do capital em grandes permitiu uma produção em massa. Mas essa produção em massa não poderia jamais ser dirigida a pessoas individualizadas. Era preciso, através de mecanismos de publicidade e marketing, induzir o consumidor a necessidades artificiais. Para cercear o acesso às informações de produtos e serviços – qualidade, quantidade, especificidade e preço – foi criado o contrato de adesão, com evidente prejuízo aos vulneráveis consumidores. Essa situação de flagrante desequilíbrio entre os agentes econômicos do mercado de consumo tornou imperiosa a pronta ingerência estatal, mormente pela via legislativa, de sorte a relativizar os princípios da autonomia da vontade, da obrigatoriedade do contrato e da igualdade formal.
Sobre esta reformulação principiológica, refere Georges Ripert (1937, pp. 313-314) que o declínio do contrato não provém unicamente da limitação cada vez mais estreita do seu domínio; tem outra causa: a negação audaciosa da força contratual. O contrato já não é considerado como o ato criador da obrigação e o vínculo obrigacional já não dá ao credor poder sobre o devedor. O reconhecimento da força contratual é, diz-se, uma concepção do individualismo jurídico, e a idéia dum direito subjetivo conferido ao credor é arcaica. O contrato cria simplesmente uma situação jurídica, que não poderá ser mais imutável que a situação legal. Esta situação jurídica gera conseqüências que o legislador determina soberanamente. O ato da vontade consiste unicamente em submeter-se à lei do contrato, mas não pertence às partes decidir para sempre, e em todos os casos, qual seja essa lei.
No vórtice destas transformações, já nos albores do século XX, o espaço social ocupado pelo Estado se expande. Verifica-se então um maior equilíbrio entre o Estado, agente de regulamentação social, e o mercado, espaço de produção e distribuição de riqueza. A consolidação do movimento operário, o fortalecimento dos sindicatos, o movimento consumerista e a crise estrutural do sistema financeiro capitalista alteram o perfil estatal. O Estado-mínimo do liberalismo burguês, mero ente ordenador das relações sociais, é substituído pelo Estado-providência, que passa a intervir na sociedade. Assume, pois, duas funções básicas: a promoção do progresso econômico e a tutela dos cidadãos mais desfavorecidos. No que se refere a esta última vertente, o Estado intervencionista, mediante prestações positivas, potencializa o exercício dos direitos fundamentais de segunda geração.
Descrevendo o intervencionismo do Estado, assinala Orlando Gomes (1986, p. 15) que, ao longo do processo de consolidação dessas transformações, legitimou-se a intervenção do Estado na vida econômica como a forma por excelência de obtê-las. Orientou-se, desse modo, para a limitação da propriedade privada e da liberdade de contratar. Passou-se a admitir que a propriedade tem função social e que a autonomia privada deve ser comprimida em todos os modos do seu exercício.
As legislações consumeristas surgem, portanto, na transição histórica do Estado-liberal para Estado-providência, organizado para desenvolver políticas públicas de concretização da igualdade material. Deste modo, o intervencionismo estatal passa a objetivar a busca de uma isonomia fática, mediante o implemento de prestações positivas. Na sociedade de massas e de economia oligopolizada, a ingerência estatal, para a tutela do equilíbrio consumerista, tornou-se cada vez mais necessária, mormente nos contratos de adesão, ante o estreito campo negocial, a impessoalidade e a discrepância de poderes entre quem se organiza profissionalmente – o fornecedor – e quem deseja realizar ato isolado de aquisição do produto ou serviço – o consumidor.
Impôs-se, assim, normas de ordem pública, de natureza cogente, para a promoção do chamado dirigismo contratual. O contrato, assim como a propriedade, foi limitado e eficazmente disciplinado, tendo em vista o reconhecimento da função social destes institutos. Esta nova concepção social de contrato não só valoriza o momento da cristalização do consenso, mas também os efeitos contratuais sâo levados em conta, atentando-se, igualmente, para a condição econômica das partes contratantes. O espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações – autonomia da vontade – é reduzido por normas imperativas, como as constantes da legislação consumerista. É uma nova concepção de contrato em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar um vetor hemenêutico que transcende os sujeitos de direito – o interesse público. À procura do equilíbrio contratual, no âmbito sociedade de consumo, o Direito passa a destacar o papel da Lei como limitadora e legitimadora da autonomia da vontade. O contrato de consumo é, pois, iluminado por novos valores, admitindo-se a supremacia do interesse público, o respeito à vulnerabilidade, a transparência, a igualdade material, a boa-fé, a eqüidade e a confiança como diretrizes a serem realizadas no mercado de consumo.
Atenta para este redimensionamento axiológico, elucida Judith Martins-Costa (1992,p.141) que, contemporaneamente, modificado tal panorama, a autonomia contratual não é mais vista como um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca-se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização, entre outros, dos princípios de superioridade do interesse comum sobre o particular, da igualdade (em sua face positiva) e da boa-fé em sua feição objetiva.
Diante do exposto, resta demonstrado que a mutação semântica e a redefinição pragmática do instituto contratual, alimentada pelas mudanças socias da transição pós-moderna, exige que as relações de consumo sejam vislumbradas sob uma ótica interpretativa diferenciada, o que só se manifesta mediante a própria redefinição hermenêutica da noção de contrato, à luz de novos princípios jurídicos.
3. O código brasileiro de defesa do consumidor como discurso principiológico
As legislações contemporâneas que tutelam os direitos fundamentais costumam ser estruturadas através de proposições principiológicas, as quais sinalizam para os valores e fins maiores a ser tutelados pela ordem jurídica. O microssistema do direito do consumidor, enquanto manifestação da cultura jurídica pátria, absorve, naturalmente, uma carga expressiva de valores. Estas estimativas comunitárias são cristalizadas em pautas de comportamento, exigindo uma interpretação capaz de atender a realização das finalidades deste ramo jurídico. A interpretação das normas consumeristas deve, igualmente, apresentar uma natureza teleológica, operacionalizando a busca de significados socialmente aceitos.
Sem o trabalho de mediação e de concretização, que se impõe ao intérprete-aplicador do direito, o direito do consumidor não logra realizar os seus valores fundantes, satisfazendo os anseios da sociedade. O sentido jurídico, sendo externo às normas jurídicas, em certa medida, embora não possa contrariar de todo o seu enunciado, exige a sensibilidade do intérprete para se revelar completamente. Com a positivação histórica dos direitos humanos, nas esferas constitucional e infraconstitucional, a interpretação dos direitos do consumidor se colocou como problema a partir do momento em que os diplomas legais deixaram de ser apenas catálogos de competências do Estado para se converterem em verdadeiras cartas de cidadania. Diante da previsão dos direitos humanos sob estruturas normativo-materiais necessariamente abertas e indeterminadas, cuidaram os juristas de oferecer uma teoria hermenêutica que pudesse responde à necessidade de interpretar e aplicar princípios. A interpretação passou a ser entendida como uma hermenêutica de princípios, baseada em pautas axiológicas, para cuja efetividade se deve substituir a idéia retrospectiva de interpretação pela idéia prospectiva de concretização.
Destacaram-se, assim, pela ingente função fundamentadora e hermenêutica, os princípios consumeristas. Decerto, o art. 4º do CDC, ao prescrever o objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo, afigura–se como referencial teleológico para a interpretação de todo o arcabouço normativo do Código de Defesa do Consumidor, visto que, mediante a compreensão dos princípios jurídicos catalogados no art.4º, o hermeneuta logra apreender os fins maiores que imantam a legislação consumerista. Por informar todo o conjunto normativo do CDC, os princípios consumeristas funcionam como reguladores teleológicos da atividade interpretativa, iluminando a aplicação das normas jurídicas estampadas neste diploma legal.
Não é outro o magistério de Luiz Rizzatto Nunes (2002, p.19), para quem os princípios são, dentre as formulações deônticas de todo o sistema ético-jurídico, os mais importantes a serem considerados, não só pelo aplicador do direito mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se dirijam. E essa influência tem uma eficácia efetiva, real e concreta. Não faz parte apenas do plano abstrato do sistema. É de ser levada em conta na determinação do sentido de qualquer norma, como exigência de influência plena e direta. Vale dizer: o princípio, em qualquer caso concreto de aplicação das normas jurídicas, da mais simples à mais complexa, desce das altas esferas do sistema ético-jurídico em que se encontra para imediata e concretamente ser implementado no caso real que se está a analisar.
Em se tratando dos princípios jurídicos do CDC, porque a sua estrutura normativo-material é necessariamente aberta e indeterminada, a atuação do intérprete é condição de possibilidade para se concretizar as finalidades indicadas e corporificadas pela legislação consumerista. Decerto, a incapacidade humana de prever o futuro é a base da indeterminação dos princípios jurídicos. Há situações de via deliberada de escape interpretativo, com o emprego de expressões lingüísticas valorativas que podem ser interpretadas de diversos modos num contexto específico. Esta base principiológica torna flexível e dinâmica a interpretação dos direitos do consumidor.
Sendo assim, o significado normativo das legislações consumeristas, longe de ser um dado objetivamente dissociado do hermeneuta, emerge no âmbito da própria atividade interpretativa. Guiado pela principiologia, exerce o intérprete um relevante papel na reconstrução do sentido do microssistema do CDC, mormente no que se refere à necessária abertura aos valores sociais. A substituição da referência hermenêutica da voluntas legislatoris, por uma viva e objetiva voluntas legis, institucionalmente valorada, abre espaço para uma interpretação atual, porque orientada pelos princípios jurídicos.
Neste sentido, refere Eduardo de Enterría (1986, p.20) que “la autonomia de esa supuesta voluntad de la ley respecto de su autor y el hecho de su movilidad en el tiempo no podrían explicarse si la ley misma no fuese vista como expresión de algo substancial y más profundo, lo cual, por serlo, es capaz de someter y relativizar lo que no es más que una simple manifestación o formalización suya; aquí aparecen ya los famosos principios generales del derecho (sobre los que hemos de hablar luego), sin cuya realidad todo ese proceso esencial de la traducción de la ley en vida jurídica efectiva y su incesante movilidad no tendrían explicación posible; – sería, en rigor, una arbitrariedad de los intérpretes sin norte posible, la misma cabalmente que el legalismo quiso en su momento desalojar”.
4. O princípio constitucional de defesa do consumidor no sistema jurídico brasileiro
Com a inserção dos princípios nos textos constitucionais, operou-se uma revolução de juridicidade no constitucionalismo ocidental contemporâneo, visto que os princípios gerais do direito se transformaram em normas positivadas em Cartas Magnas. Sendo assim, as novas Constituições passaram a acentuar a hegemonia axiológica dos princípios constitucionais sobre todas as normas do direito positivo. Hoje, não há mais como pensar numa hermenêutica jurídico-constitucional sem referir-se a princípios, como referências valorativas para a interpretação teleológica do direito.
Conforme adverte Glauco Magalhães Filho (2002, p.11), a nova hermenêutica constitucional volta-se para as normas com estrutura de princípios (Constituição Material). Ela aproxima dialeticamente interpretação da aplicação. Objetiva, acima de tudo, a concretização de valores, e não a imediata submissão de fatos a disposições normativas. Assim, enquanto a interpretação teleológica da hermenêutica clássica busca a fixação do sentido da norma pelo seu fim imediato, a interpretação conforme a Constituição remete a norma aos fins do ordenamento jurídico e do Estado Democrático de Direito, gerando uma sistematização (unidade) axiológica do ordenamento jurídico.
No âmbito do sistema constitucional contemporâneo, a positivação dos princípios ocorreu, em larga medida, na ordem econômica de cada Carta Magna, estabelecendo os marcos do intervencionismo estatal para a satisfação dos direitos fundamentais de segunda geração, tendente a instaurar um regime de democracia substancial, ao determinarem a realização de fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, com vistas à realização da justiça social.
A ordem econômica adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente, o que teve início com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar em 1919. No Brasil, com o advento da Carta Magna de 1988, a ordem econômica passou a ser disciplinada nos arts. 170 a 192. A Constituição enunciou que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada, tendo por escopo assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. No art.170, ocorreu a constitucionalização de inúmeros princípios, dentre eles, o primado da defesa do consumidor.
A este princípio da ordem econômica confere a Constituição Federal , desde logo, concreção nas regras constitucionais estampadas nos seus arts. 5º. XXXII – “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”-, 24, VIII – responsabilidade por dano ao consumidor -, 150, parágrafo 5º – “ a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços” – , e 48 da A.D.C.T – “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias, elaborará Código de Defesa do Consumidor”. Ademais, o parágrafo único, II, do art. 175, insere entre as matérias sobre as quais deverá dispor a lei que trate da concessão ou permissão de serviço público os direitos dos usuários.
Sobre seu substrato ideológico, sublinha Eros Grau (2003, pp. 216-217) que, a par de consubstanciar, a defesa do consumidor, um modismo modernizante do capitalismo – a ideologia do consumo contemporizada (a regra “acumulai, acumulai” impõe o ditame “consumi, consumi”, agora porém sob proteção jurídica de quem consome) – afeta todo o exercício de atividade econômica, inclusive tomada a expressão em sentido amplo, como se apura da leitura do parágrafo único, II do art. 175. O caráter constitucional conformador da ordem econômica, deste como dos demais princípios de que tenho cogitado, é inquestionável.
Trata-se de uma proposta de conciliação dialética entre diversos elementos sócio-ideológicos, ora apontando para o capitalismo e a configuração de um Estado liberal, ora indicando uma opção pelo socialismo e pela organização de um Estado intervencionista. Certo é que a previsão de alguns princípios, como o da defesa do consumidor, revelam um compromisso entre as forças políticas liberais e as reivindicações populares de justiça social no mercado de consumo, possibilitando que o capitalismo seja domado e humanizado.
Além desta conotação na Carta Magna, a defesa do consumidor constitui-se em um dos princípios a ser seguido para o desenvolvimento da atividade econômica, sendo um meio para se atingir o desiderato constitucional em que ela se fundamenta, que é a valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, para que possa assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Com efeito, a realização do princípio constitucional da defesa do consumidor não elide as demais normas principiológicas do art. 170 da CF/88, ainda que, aparentemente, polarizem um conflito inconciliável.
Neste sentido, ressalta Ricardo Camargo (1992, p.52) que não se pode perder de vista que o CDC tem seu fundamento de validade na Constituição Econômica, de sorte que sua aplicação não pode conduzir a uma nulificação dos demais princípios que a informam. Se a defesa do consumidor constitui um dos modos pelos quais a propriedade dos bens de produção cumpre a sua função social e poder econômico se põe em seus justos trilhos, não pode ela chegar ao cúmulo de comprometer a soberania nacional nem de tornar enunciados puramente ornamentais os concernentes à propriedade privada, à livre iniciativa e à livre concorrência. Afinal, são apenas aparentes as contradições da Constituição Econômica, já que nenhum de seus princípios se aplica sem restrições.
5. A principiologia consumerista como norte hermenêutico do código brasileiro de defesa do consumidor
A elevação da defesa do consumidor à categoria de princípio constitucional demanda que as normas infraconstitucionais se apresentem como realizando algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e juridicas, pois, os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada, impondo, em verdade, a otimização dos valores jurídicos.
O princípio constitucional da defesa do consumidor não se esgota na densificação promovida pelo legislador ao elaborar o CDC. Torna-se imperiosa a concretização da defesa do consumidor na miríade das relações sociais, o que exige o esforço do operador do direito na correta interpretação e aplicação do referido diploma legal, capilarizando o mandamento constitucional. Logo, também no plano infraconstitucional, serão relevantes os princípios jurídicos, mormente aqueles positivados na própria legislação consumerista, no desenvolvimento de suas funções fundamentadora e hermenêutica. Neste sentido, o CDC contempla, além das normas de conduta e de organização, uma terceira categoria normativa, denominada de normas-objetivo, que ostenta uma inegável tessitura principiológica.
Tratando do tema, sustenta Eros Grau (2002, p.35) que o direito passa a ser operacionalizado tendo em vista a implementação de políticas públicas, políticas referidas a fins múltiplos e específicos. Pois a definição dos fins dessas políticas é enunciada precisamente em textos normativos que consubstanciam normas-objetivo e que, mercê disto, passam a determinar os processos de interpretação do direito, reduzindo a amplitude da moldura do texto e dos fatos, de modo que nela não cabem soluções que não sejam absolutamente adequadas a tais norma-objetivo.
A norma que se depreende do art. 4º do CDC se enquadra nesta última tipologia, pois estabelece a responsabilidade dos poderes públicos e agentes econômicos na realização dos princípios consumeristas, configurando a verdadeira ratio essendi do diploma legal. Com efeito, o art. 4º condiciona a incidência e a aplicação das normas da lei a estes princípios/objetivos, que passam a ser finalidades jurídicas prioritárias. Por isso que é uma norma-objetivo. Dado ao caráter imperativo das regras do CDC, o art. 4º vincula o intérprete aos resultados pretendidos, o qual fica na contingência de aplicar o CDC teleologicamente, não por sua opção hermenêutica, mas pela própria determinação legal.
Neste sentido, assinala Newton de Lucca (1995, p. 42) que o art. 4º define uma série de princípios, e, como tais, orientam a interpretação dos demais dispositivos do Código no sentido de que eles sejam efetivamente preservados, não podendo uma simples regra jurídica sobrepor-se à idéia contida no princípio. O universo jurídico é composto por normas. Estas podem ser simples regras ou verdadeiros princípios. Estes últimos afastarão a aplicação das primeiras se tal procedimento contrariar o seu princípio fundamental.
Por essa razão, o legislador estabeleceu, no art. 4º4º do CDC, uma política nacional de consumo, adotando princípios específicos a serem seguidos pelo hermeneuta. A obediência a tais princípios é imperativa, pelo que as relações de consumo devem se desenvolver e serem interpretadas sem qualquer afastamento dos propósitos que os revestem e os caracterizam.
As dicções do art. 4º, da Lei n. 8078/90, não são programáticas, como alguns autores sustentam, a indicar os valores básicos que o Estado, entendendo relevantes, concretiza como metas a alcançar no tocante à relações de consumo. Não há outorga ao Estado de atividade discricionária pelo referido dispositivo, produzindo, ao revés, uma força cogente obrigatória não só para os órgãos estatais, mas também para os agentes da relação de consumo.
6. Os Princípios tutelares das relações de consumo
Os princípios consumeristas propiciam a singularização e manutenção do direito do consumidor como ramo autônomo da ciência jurídica. Além de conferir identidade ontológica, este arcabouço principiológico serve de liame condutor entre o sentido da norma jurídica (esfera do dever ser) e a opção hermenêutica concreta (esfera do ser). Desdobrando-se o princípio constitucional da defesa do consumidor, é possível constatar, no patamar infraconstitucional, os princípios setoriais aplicáveis às relações de consumo. O art. 4º figura, prevalentemente, como o locus principiológico do CDC, iluminando a compreensão dos objetivos maiores da legislação consumerista.
Cumpre ressaltar que o rol de princípios, doravante analisado, está longe de ser exaustivo. Isto porque a ordem jurídico-consumerista sofre uma permanente influência da principiologia jurídica. É o que se depreende do art. 7º do CDC, ao preceituar que os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes, e eqüidade.
Destarte, convém abordar os princípios que são basilares para o direito do consumidor, tais como a transparência, a vulnerabilidade, a igualdade, a boa-fé objetiva, a repressão eficiente a abusos, a harmonia do mercado de consumo, a eqüidade e a confiança.
6.1 Princípio da transparência
Inicialmente, encontra-se no art. 4º, caput, do CDC, a transparência como objetivo a ser, entre outros, perseguido pela Política Nacional das Relações de Consumo. Ainda no mesmo dispositivo, no inciso IV, é apontado como princípio, ao se prescrever a educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado.
Discorrendo sobre o tema, Alcides Tomasetti (1992, p.53) define transparência como uma situação informativa favorável à apreensão racional pelos agentes econômicos que figuram como sujeitos naquelas declarações e decorrentes nexos normativos – dos sentimentos, impulsos, interesses, fatores, conveniências e injunções, todos os quais surgem ou são suscitados para interferir ou condicionar as expectativas e os comportamentos daqueles mesmos sujeitos, enquanto consumidores e fornecedores conscientes de seus papéis, poderes, deveres e responsabilidade
Rompendo com a tradição do direito privado, de base acentuadamente voluntarista, o CDC propôs uma proteção aos contratantes, centrada em dois planos: a formação do contrato e a execução da avença. Almejando a proteção do consumidor na fase pré-contratual, temos, assim, o princípio da transparência, que pressupõe uma maior aproximação entre as partes, a fim de que se obtenha uma relação de consumo mais sincera e leal. Importa o primado da transparência na obrigação de informação clara e precisa quanto ao produto a ser vendido e ao conteúdo do negócio jurídico.
Neste sentido, leciona Cláudia Marques (2002, p.1064) que o princípio da transparência impõe uma nova conduta mais leal e aberta na fase pré-contratual, antiga fase de negociações preliminares entre os futuros parceiros contratuais. A finalidade destas normas do CDC será, portanto, possibilitar uma aproximação e uma futura relação mais sincera e menos danosa para o consumidor. Transparência significa, para nós, informação é lealdade na fase pé-contratual.
O princípio da transparência objetiva evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor, pois sem ter conhecimento do conteúdo da avença contratual, poderia vincular-se a obrigações que não pode suportar ou simplesmente não deseja. Ao adquirir um produto ou serviço, sem ter informações claras e precisas, pode o consumidor se deparar com um objeto que não é adequado ao que pretende ou que não possui as qualidades alardeadas pelo fornecedor.
Desdobrando o princípio da transparência, o art. 6º, incisos II e III, do CDC consagra a obrigação de informar do fornecedor e o correlato direito do consumidor, desembocando não somente na educação formal, a cargo das escolas públicas e privadas, como na educação informal, a cargo dos fornecedores, em face do aspecto ético do marketing, procurando-se informar o consumidor a contento com relação às características dos produtos e serviços.
O art. 31 do CDC, relativo às práticas contratuais, é também a concretização do valor de transparência, quando prescreve que a oferta e a apresentação de produtos e serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentem à saúde e segurança dos consumidores.
Ademais, por ocasião do ajuste, constata-se a norma do art. 46, ao preceituar que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. Esse dispositivo impõe ao fornecedor o dever de oportunizar informações ao consumidor, antes de ultimado o contrato, no sentido de conhecer o teor deste, tanto no que diz respeito aos direitos e obrigações das partes quanto às sanções em face do inadimplemento. Assegura ao consumidor o conhecimento efetivo e prévio do contrato que irá celebrar, vedando-se ao fornecedor inserir cláusulas de maneira sub-reptícia.
6.2 Princípio da vulnerabilidade
No tocante à interpretação do Código de Defesa do Consumidor, destaca-se, prevalentemente, o princípio da vulnerabilidade. Trata-se de uma diretriz reconhecida expressamente no art. 4º, I, do CDC.
Segundo João Batista de Almeida (1993, p.11), a vulnerabilidade é a espinha dorsal da proteção ao consumidor, sobre o que se assenta toda a linha filosófica do movimento. É, sem dúvida, que o consumidor é a parte mais fraca das relações de consumo; apresenta ele sinais de fragilidade e impotência diante do poder econômico.
O vocábulo vulnerabilidade comporta diversos significados no mercado de consumo, os quais defluem da desigualdade sócio-econômica verificada entre fornecedores e consumidores. Esta vulnerabilidade do consumidor é multifária, decorrendo ora da atuação dos monopólios e oligopólios, ora da carência de informação sobre qualidade, preço, crédito e outros caracteres dos produtos e serviços. Não bastasse tudo isto, o consumidor ainda é cercado por uma publicidade crescente, indutora de necessidades artificiais, não estando, além disto, tão organizado quanto os fornecedores, para defender seus interesses.
Sobre o caratér polifacético da vulnerbilidade do consumidor, salienta Adalberto Pasqualotto (1993, p.36) que o consumidor é reconhecido como parte fraca, afetado em sua liberdade pela ignorância, pela dispersão, pela desvantagem econômica, pela pressão das necessidades, pela influência da propaganda. A vontade deixa de ter valor absoluto. Não se acredita mais na espontaneidade do equilíbrio entre as partes.
Com efeito, sofre o consumidor com as pressões do mercado, que invade a sua própria privacidade. Não raro o consumidor se torna alvo de maciças técnicas publicitárias, criando necessidades artificiais de consumo. Estes mecanismos de convencimento e de manipulação psíquica são utilizados, especialmente, pelos meios de comunicação de massa. Os modos subliminares de incutir idéias na mente humana não costumam ser identificados com facilidade, pelo que a reiteração destes expedientes passa, com o tempo, a integrar o subconsciente do consumidor, favorecendo os interesses dos fornecedores.
Outrossim, esta vulnerabilidade também emerge da falta de conhecimentos técnicos sobre os produtos e os serviços. Decerto, cada área do conhecimento já possui naturalmente suas peculiaridades, somente sendo oportunizado ao especialista o domínio integral das causas e conseqüências dos fenômenos relativos a um campo de objetos. Transferindo esta constatação para o mundo pós-moderno, no qual as descobertas científicas se sucedem com celeridade espantosa, torna-se patente a fragilidade do consumidor. Logo, o vulnerável-consumidor não tem como ser equiparado aos fornecedores, visto que estes detêm o saber especializado para o manuseio de produtos e a prestação de serviços.
Por outro lado, descortina-se a vulnerabilidade no plano jurídico-processual, porquanto os agentes econômicos se valem dos chamados contratos de massa, os quais primam pela complexidade, tecnicidade e falta de transparência. Este modelo de avença contratual dificulta a livre e consciente manifestação volitiva do consumidor. Além disto, sofre também o consumidor quando pretende fazer valer seus escassos direitos advindos das relações de consumo, haja vista que os fornecedores, obviamente, possuem equipes jurídicas mais preparadas para os conflitos judiciais e extrajudiciais.
6.3 Princípio da igualdade
Trata-se de um princípio jurídico fundamental que faz contraponto às situações de assimetria sócio-econômica entre fornecedores e consumidores.
Nesse diapasão, Adolfo Ziulu (1997, p.253), refere que “la igualdad es un principio que emana de la naturaleza misma del hombre, y que tiene su fundamento en su identidad de origen y destino. Se presenta como una relación en virtud de la cual cabe reconecer a todos los hombres sus derechos fundamentales y su plena dignidad, evitando discriminaciones arbitrarias. La igualdad constituye um principio liminar, y no un derecho. La igualdad no es, por si misma, un derecho, sino una condición necesaria que permite la armonización y el equilibrio en el goce de todos los derechos”.
Além do reconhecimento universal do primado da igualdade nas declarações internacionais de direitos, o ordenamento jurídico brasileiro consagra o relevante princípio da isonomia nos âmbitos constitucional e infraconstitucional. O princípio da igualdade é consagrado na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, caput), ao preceituar que todos são iguais perante a lei, comando normativo que é reproduzido no Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, inciso III, quando se tutela o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Conforme o entendimento dominante, a igualdade não pode ser interpretada em seu sentido abstrato, sem o devido amparo na realidade do sistema capitalista. Não raro, o consumidor se submete aos sortilégios dos fornecedores de produtos e serviços, como única forma de satisfazer suas necessidades básicas. Esta situação de desequilíbrio, todavia, é prejudicial para o convívio harmônico entre os atores sociais, cabendo ao direito do consumidor modular as relações dos agentes econômicos, de molde a garantir a igualdade real no seio do mercado de consumo.
Neste sentido, refere Nelson Nery (1992, p.53) que devem os consumidores ser tratados de forma desigual pela lei, afim de que se atinja, efetivamente, a igualdade real, em obediência ao dogma constitucional da isonomia (art. 5º., caput, CF), pois devem os desiguais ser tratados desigualmente na exata medida de suas desigualdades (isonomia real, substancial e não meramente formal).
No sistema jurídico brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor representa simboliza um marco desta renovação do paradigma da igualdade. A compreensão dos regramentos do CDC passa pelo entendimento de que seus destinatários encontram-se descompassados na sociedade e a consecução do primado da igualdade implica em tratamento tendente à mitigação destas disparidades entre os atores sociais.
Neste diapasão, sustenta Luís Ferreira da Silva (1993:156) que cumpre ao aplicador do Código de Defesa do Consumidor concretizar os conceitos indeterminados que permeiam esta lei, de modo a implementar a ideologia constitucional, marcada, como este estudo tenta demonstrar, pela noção de igualdade. Ao concretizar cláusulas gerais como a boa-fé, além da objetividade que se deve alcançar a esta noção, é necessário o exame concreto da realidade dos interessados, aparando-se arestas de desigualdades, ainda que, à primeira vista, sejam estabelecidas regulamentações que acolham estas dessemelhanças.
Sendo assim, a verificação da vantagem exagerada, a tornar abusiva a cláusula que a consagre; a inversão do ônus da prova como meio de facilitação da defesa do consumidor; a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade fornecedora para evitar o abuso de direito em detrimento do consumidor são exemplos de concretizações necessárias nas quais devem estar presentes a principiologia constitucional do Direito do Consumidor.
6.4. Princípio da boa fé objetiva
Outro cânon consagrado no CDC, com reflexo na formação dos contratos de consumo, é o que recomenda aos contratantes se portarem com boa-fé. De velhas raízes, foi incorporado pelos arts. 1.134 e 1.135 do Código Civil Francês, constando igualmente do §242 do Código Civil Alemão (BGB). No antigo Código Civil, podia ser depreendido do art. 85, ao indicar importante norte interpretativo dos negócios jurídicos. Da mesma maneira, já se encontrava, com referência expressa, no art. 131, n.1, do Código Comercial de 1850.
Discorrendo sobre o princípio, leciona Orlando Gomes (1995. p.42) que, ao princípio da boa-fé empresta-se, ainda, outro significado. Para traduzir o interesse social da segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com boa-fé. Indo mais adiante, aventa-se a idéia de que entre o credor e o devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato. A tanto, evidentemente não se pode chegar, dada a contraposição de interesses, mas é certo que a conduta, tanto de um como de outro, subordina-se a regras que visam a impedir dificulte uma parte a ação da outra.
Tradicionalmente, o princípio da boa-fé apresentava uma construção rígida, envolta numa visão eminentemente subjetiva. A boa fé traduzia o comportamento produzido com pureza de intenção, sem qualquer manifestação dolosa, com obediência aos padrões normais de conduta e sem vontade de produzir qualquer dano a alguém. O Código de Defesa do Consumidor erigiu, contudo, a boa-fé objetiva à condição de conduta obrigatória pelo art. 4º, III, parte final, compondo um dos seus princípios fundamentais. A boa fé foi concebida não como mera intenção, mas como imperativo objetivo de conduta, exigência de respeito, lealdade, cuidado com a integridade física, moral e patrimonial. Para os fins do CDC, deve prevalecer a boa-fé desde a formação inicial da relação de consumo, especialmente para que seja uma relação harmônica e transparente , preservando-se a dignidade, a saúde, a segurança, a proteção dos interesses econômicos do consumidor em face da presunção legal da sua vulnerabilidade no mercado de consumo.
Com efeito, a boa-fé subjetiva não se confunde com a boa-fé objetiva. A expressão boa-fé subjetiva denota um estado de consciência de atuar em conformidade ao direito. Diz-se subjetiva justamente porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica , o seu estado psicológico ou íntima convicção. Por seu turno, boa-fé objetiva quer significar modelo de conduta social ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta ao arquétipo normativo, atuando com honestidade, lealdade e probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatos concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de forma meramente subsuntiva.
A boa-fé objetiva traduz, assim, a necessidade de que as condutas sociais estejam adequadas a padrões aceitáveis de procedimento que não induzam a qualquer resultado danoso para o indivíduo, não sendo perquirida a existência de culpa ou de dolo. O aspecto relevante na abordagem do tema é a absoluta ausência de artifícios, atitudes comissivas ou omissivas, que possam alterar a justa e perfeita manifestação de vontade dos envolvidos numa relação de consumo.
Além disto, o contrato de consumo não pode mais ser aceito como uma manifestação isolada do contexto social, na qual dois pólos executam um negócio jurídico do qual dispõem plenamente. O massificado mercado de consumo atual obriga a uma nova e atualizada maneira de observar a vida moderna, evidenciado que ficou que o contrato é um mecanismo fundamental para a circulação rápida e eficaz de riquezas.
Conforme assinala Ruy Aguiar Júnior (1994:22), a aproximação dos termos ordem econômica e boa-fé serve para realçar que esta não é apenas um conceito ético, mas também econômico, ligado à funcionalidade econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social, pois são dois os lados, ambos iluminados pela boa-fé: externamente, o contrato assume uma função social, como um dos fenômenos integrantes da ordem econômica, submetido aos princípios constitucionais de justiça social, solidariedade, livre concorrência, liberdade de iniciativa; internamente, o contrato aparece como o vínculo funcional que estabelece uma planificação econômica entre as partes, às quais incumbe comportar-se de modo a garantir a realização dos seus fins e a plena satisfação das expectativas dos participantes do negócio.
Esta diretriz se cristaliza em diversas normas do Código de Defesa do Consumidor. Bem por isso é que a legislação do consumidor contém diversas presunções legais, absolutas ou relativas, para assegurar o equilíbrio entre as partes e conter as formas insidiosas de abusos e fraudes, engendradas pelo poder econômico para burlar o intuito de proteção do legislador. O Código de Defesa do Consumidor é repleto dessas presunções, como a que prevê a responsabilidade objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço (art.12), a que autoriza a inversão do ônus da prova em favor do consumidor no processo civil (art. 6º, VIII), a que contempla o exagero em cláusulas que instituam determinadas vantagens (art. 51, parágrafo 1º) e de nulidade daquelas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor na compra e venda de móveis e imóveis mediante pagamento parcelado (art.53).
Nas hipóteses ora aludidas, cumpre ao intérprete do CDC observar as circunstâncias e as peculiaridades que envolveram a relação jurídica em concreto, pesquisando se as partes agiram com boa-fé para conclusão do negócio jurídico de consumo, a fim de verificar se a relação de consumo está em consonância com os referidos preceitos legais.
6.5 Princípio da repressão eficiente a abusos
Trata-se de princípio catalogado no art. 4º, VI, do Código de Defesa do Consumidor. A noção de abuso costuma estar relacionada ao exercício de direitos, pois abusar significa realizar, com excessos, uma dada conduta, acobertada, em princípio, pelo manto da licitude. Há, pois, uma necessária correspondência do conceito de abuso com a idéia de proporcionalidade. O situação abusiva se configura toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente.
Segundo Jean Louis Bergel, (2001, pp.339-340), a teoria do abuso de direito constitui o instrumento principal do controle da conformidade do exercício dos direitos com a função deles. É oriunda do abandono do absolutismo dos direitos e da afirmação da relatividade deles, por influência das doutrinas sociais para as quais o direito e os direitos têm acima de tudo uma função social.
Busca-se, portanto, coibir o arbítrio e calibrar o uso dos meios, visto que o meio deve ser então dosado para se alcançar o escopo de um comportamento. Isto justifica a intervenção da lei, sempre que abusos estejam sendo praticados no mercado de consumo, mormente pelo fornecedor de produtos e serviços. O abuso deve ser reconhecido sempre que um titular de direito escolhe o que é mais danoso para outrem, não sendo mais útil para si ou adequado ao espírito da instituição, ocorrendo, no caso de pessoas jurídicas, sempre que o exercício de direitos venha ferir a finalidade social a que se destina a organização empresarial.
Os abusos por parte dos fornecedores podem acontecer de inúmeras maneiras, seja na publicidade (art. 37, parágrafo 2º, do CDC), seja na oferta (arts. 30 e 31), na prática abusiva (art. 39) ou nas cláusulas contratuais abusivas (art.51).
6.6 Princípio da harmonia do mercado de consumo
Trata-se de princípio jurídico-consumerista que se depreende do art.4º, caput e III, do CDC. Harmonizar o mercado de consumo significa, concretamente, atender a totalidade dos princípios da ordem econômica consubstanciados no art.170 da Constituição Federal de 1988, sede constitucional da defesa do consumidor. Não se mais se aceita o antagonismo entre o consumidor e o fornecedor, como se fossem litigantes no espaço social, visto que os agentes econômicos dependem uns dos outros para potencializar a geração de riquezas e o desenvolvimento econômico.
Neste diapasão, esclarece João Baptista (1978, p.32) que a concepção individualista do direito privado estava toda ela assentada na idéia de concorrência. O contrato era mesmo apresentado como o equilíbrio momentâneo de forças antagônicas. O princípio cardeal que tudo informava era o da obrigação concebida como vínculo jurídico exercitável pelo constrangimento. Hoje o direito privado se esforça por se organizar em novas bases. As prerrogativas individuais se mesclam de objetivos da comunidade, a pessoa substitui o indivíduo e a colaboração se desenvolve onde antes florescia, desembaraçada e forte, a concorrência.
Sendo assim, novas atividades empresariais surgirão à medida que os consumidores invistam nestas unidades de produção de bens ou de serviços. As empresas tenderão a aumentar de porte, fazendo com que seja absorvida a mão-de-obra e, conseqüentemente, ingressando novos consumidores no mercado de consumo.
Sobre o tema em comento, refere Luiz Amaral (1993: 70) que o empresário tem responsabilidades sociais perante, não seus herdeiros e familiares, mas acionistas, trabalhadores e consumidores. De certa maneira estamos superando a principal contradição do capitalismo: caráter social da produção versus apropriação privada de seus meios; produto social versus direção privada da economia.
Como exemplos de aplicação do princípio da harmonia do mercado de consumo, pode-se mencionar a prática do recall e o compromisso de ajustamento de condutas. O primeiro instituto faz parte do rol dos instrumentos de marketing consumerista. Isto porque funciona como eficaz comunicação positiva do fornecedor perante o consumidor, v.g., como aquele chamado publicitário para troca de peça defeituosa de um veículo. De outro lado, o CDC acrescentou o parágrafo 6º, ao artigo 5º, da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), no qual foi previsto o compromisso de ajustamento de conduta dos agentes econômicos às exigências legais, podendo qualquer órgão público formalizá-lo. Por intermédio deste instrumento, eventual atividade danosa aos consumidores é corrigida, mediante a cominação de elevadas multas. A importância do compromisso de ajustamento é notória, pois evita a propositura de ações individuais ou coletivas contra o fornecedor, uma vez sanados os vícios originais da atividade econômica.
6.7 Princípio da eqüidade contratual
Compreende-se eqüidade como sendo o instrumento de aplicação do direito positivo que busca refletir o valor o justo nas relações intersubjetivas, mesmo que, muitas vezes, seja necessário contrariar a expressão gramatical dos modelos normativos do direito. Adquire relevo, portanto, a aplicação do princípio da eqüidade nos contratos de consumo, por permitir que o hermeneuta, ao examinar cada caso concreto, adote, em decorrência das circunstâncias, a solução mais afeta aos padrões de justiça.
Sobre a eqüidade contratual nas relações de consumo, salienta Cláudia Marques (2002, p.1.065) que o princípio da eqüidade contratual significa o reconhecimento da necessidade, na sociedade de consumo de massa, de restabelecer um patamar mínimo de equilíbrio de direitos e deveres nos contratos, intervindo o Estado de forma a compensar o desequilíbrio fático existente entre aquele que pré-redige unilateralmente o contrato e aquele que simplesmente adere, submetido à vontade do parceiro contratual mais forte.
Como assevera Paulo Soares (2001, p.223), a idéia de eqüidade contratual se vincula também ao conceito de sinalagma, que preside o equilíbrio interno de uma avença contratual, visto que, efetivamente, com o advento do Código do Consumidor, o contrato passa a ter seu equilíbrio, conteúdo ou eqüidade mais controlados, valorizando o seu sinalagma. Como ensinam os doutrinadores alemães, sinalagma é um elemento imanente estrutural do contrato, é a dependência genética, condicionada e funcional de pelo menos duas prestações correspectivas.
O primeiro instrumento para assegurar a eqüidade – concebida como justiça contratual – mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em massa, é a interpretação do contrato em favor do consumidor, cânone consagrado no art. 47 do CDC. A legislação consumerista optou por tutelar o consumidor como parte contratual mais débil, a proteger suas legítimas expectativas, nascidas da boa-fé e da confiança no vínculo contratual.
O CDC criou novas diretivas para a interpretação dos contratos de consumo, determinando que a exegese contratual se faça sempre em benefício do consumidor, a parte mais vulnerável do mercado de consumo. Rompendo com a hermenêutica tradicional dos negócios jurídicos, firmaram-se novos postulados para a interpretação das avenças consumeristas, quais sejam: deve-se atender mais à intenção das partes do que à literalidade da manifestação de vontade; a cláusula geral da boa-fé reputa-se ínsita em toda relação jurídica de consumo, ainda que não conste expressamente do instrumento do contrato; havendo cláusula negociada em comum acordo, prevalecerá sobre as cláusulas estipuladas unilateralmente pelo fornecedor; e as cláusulas ambíguas ou contraditórias, nos contratos de adesão, são vislumbradas contra stipulatorem, em favor do aderente – consumidor.
Ademais, como desdobramento do princípio da eqüidade, é possível referir também a cláusula geral do art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor. A norma mencionada elenca como nulas de pleno direito, entre outras, cláusulas contratuais iníquas, abusivas, exageradamente desvantajosas para o consumidor e incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
Tratando do tema, acentua Maria Amarante (1998, p.113) a eqüidade é um princípio que vem instrumentalizar controle das cláusulas contratuais abusivas. Esta é, aliás, tarefa extraordinariamente importante, porquanto não só vem permitir o entendimento do que seja a abusividade nas relações de consumo, a partir da compreensão do nexo de causalidade existente entre esse princípio e o conceito de equilíbrio das posições contratuais. Mas é importante, sobretudo, porque subentende a adoção de uma hermenêutica de prudência, de sensatez e de precaução, que tem por meta estar em condições de avaliar, em cada caso concreto, o alcance dos valiosos princípios instituídos pela Política Nacional das Relações de Consumo.
Logo, a delimitação do que seja uma cláusula incompatível com a eqüidade reclama do intérprete e aplicador do CDC um juízo fundado em padrões ético-valorativos, tendo em vista as situações concretas que envolvam fornecedores e consumidores.
6.8 Princípio da confiança
O princípio da proteção da confiança faz com que o sistema normativo do CDC priorize as legítimas expectativas despertadas no mercado de consumo pelos fornecedores. O princípio da confiança garante a adequação, a qualidade e mesmo uma segurança razoável dos produtos e serviços, de molde a evitar danos à saúde e eventuais prejuízos econômicos para os consumidores.
Sobre o tema, salienta Humberto Theodoro (2000, p.11) que as várias regras inovadoras neste terreno inseridas se inspiram numa razão unificante, que é “ a exigência de tutelar a confiança (e enquanto isso, como sabemos, garantir a estabilidade, a ligeireza, o dinamismo das relações contratuais e, portanto, das transferências de riqueza)” – o que, portanto, não corresponde ao desígnio muito diferente daquele que, em última análise, se procurava atingir na concepção antiga do instituto. O que é novo é a forma de tutelar a confiança, “dando proeminência – na definição do tratamento jurídico das relações – aos elementos exteriores, ao significado objetivo e típico dos comportamentos, à sua cognoscibilidade social”, alterando o tradicional relevo dado às atitudes psíquicas singulares, concretas e individuais dos contratantes, do seu foro íntimo, à sua vontade, em síntese.
Saliente-se ainda que o reconhecimento da confiança negocial evidencia a valorização da pessoa humana, nos termos expostos por Luiz Edson Fachin (1998, 145), para quem um claro cenário se produz em torno da confiança: o repensar das relações jurídicas nucleadas em torno da pessoa e sua revalorização como centro das preocupações do ordenamento civil. O tema de tutela da confiança não pode ser confinado a um incidente de retorno indevido ao voluntarismo do século passado, nem é apenas um legado da Pandectística e dos postulados clássicos do Direito Privado. Pode estar além de sua formulação inicial essa temática se for posta num plano diferenciado de recuperação epistemológica.
Como desdobramento do primado da confiança, podem ser mencionadas, a título exemplificativo, as regras que disciplinam a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço (arts. 12 a 17), a responsabilidade por vício do produto ou serviço (arts. 18 a 25), a desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor em caso de inadimplemento contratual (art. 28) e o modo de cobrança de dívidas, sem exposição do devedor ao ridículo, constrangimento ou ameaça (art. 42).
7. Notas conclusivas: a interpretação principiológica e a efetividade dos direitos do consumidor
Ao longo do presente trabalho, verificou-se a emergência da racionalidade hermenêutica, no contexto mais global da crise da modernidade. Sob os influxos do pensamento filosófico, a hermenêutica jurídica, gradativamente, foi se consolidando como um saber destinado a problematizar os pressupostos, a natureza, a metodologia e a finalidade da interpretação do direito, de molde a propiciar a melhor aplicação dos modelos normativos às situações concretas. Do mesmo modo, salientou-se a necessidade de respaldar a interpretação jurídica em bases principiológicas, de modo a exteriorizar significados hermenêuticos mais compatíveis com os valores fundantes da experiência jurídica.
Este modelo hermenêutico revela-se também adequado para a compeensão da Lei nº. 8.078/90. Decerto, as contribuições da semiótica e da principiologia pós-positivista podem alicerçar e orientar, a contento, uma interpretação progressista do CDC, permitindo que se tornem efetivos os direitos do consumidor. A eficácia social do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor se vincula, portanto, diretamente às práticas interpretativas. A interpretação, como atividade mediadora entre o legislador e o mercado de consumo, exterioriza as mensagens normativas do CDC. Ao delimitar o significado de seus modelos normativos, o hermeneuta concretiza os valores e objetivos da legislação consumerista.
No desenvolvimento deste processo hermenêutico, torna-se imprescindível ao intérprete reconhecer a lingüisticidade do discurso legislativo do CDC, perquirindo, meticulosamente, as dimensões da linguagem jurídica, em seus aspectos sintático, semântico e pragmático. O mapeamento da estrutura lingüistica da lei consumerista possibilita a materialização dos sentidos emancipatórios deste diploma legal. Para que seja potencializada a índole protetiva do CDC, a compreensão interpretativa de seu arcabouço normativo requer o uso dos princípios jurídicos constitucionais e infraconstitucionais. A principiologia oferece ao intérprete os vetores axiológicos de orientação hermenêutica, embasando a interpretação teleológica da lei consumerista. Os princípios jurídicos, imbuídos que são de uma reserva ética, maximizam a tutela do consumidor, minimizando as desigualdades inerentes ao mercado capitalista.
A efetividade dos direitos do consumidor pode ser garantida pela própria textura aberta dos princípios jurídicos, característica não encontrada nas regras de direito. Com efeito, os princípios jurídicos ostentam uma estrutura dialógica, capaz de apreender as mudanças da realidade circundante, e uma permeabilidade aos conteúdos valorativos, o que melhor permite a realização da justiça. Devido a esta abertura, os princípios jurídicos não encerram verdades absolutas e imutáveis. As interpretações principiológicas se adaptam, pois, mais facilmente às exigências fáticas e valorativas da sociedade. Como são fluidos, plásticos e poliformes, os princípios transcendem a literalidade da norma jurídica, possibilitando que se mude o sentido, sem que seja necessário alterar, textualmente, o enunciado normativo.
Esta abertura, também encontrada nos princípios consumeristas, faz com que o CDC cumpra o seu papel na disciplina da realidade social, sem amarrar os atores sociais aos modelos inflexíveis e definitivos das regras jurídicas. A textura aberta da principiologia permite, pois, que o intérprete, em face das situações concretas, atualize os direitos do consumidor, de modo a espelhar as demandas de uma sociedade cada vez mais dinâmica e plural.
Decerto, os princípios norteadores das relações de consumo, tais como a transparência, a vulnerabilidade, a igualdade, a boa-fé objetiva, a repressão eficiente a abusos, a harmonia do mercado de consumo, a eqüidade e a confiança oferecem importante norte hermenêutico para a compreensão do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. O reconhecimento de uma hermenêutica compreensiva do CDC, fundada na estrutura lingüística do cotidiano e guiada por princípios ético-jurídicos, abre margem para um reafirmação permanente dos valores supremos que regem os direitos do vulnerável – consumidor. Eis uma alternativa capaz de garantir a efetividade do espírito protetivo do CDC, na busca incessante por um mercado de consumo mais transparente, equilibrado, leal e harmônico.
Sendo assim, a interpretação principiológica do Código de Defesa do Consumidor enseja a construção de novos paradigmas de convivência sócio-econômica entre fornecedores e consumidores, descortinando um horizonte mais promissor para a realização da justiça no âmbito do mercado capitalista brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Ricardo Maurício Freire Soares
Doutorando e Mestre em Direito (UFBA). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UFBA, Faculdade Baiana de Direito, Faculdade de Direito da UNIFACS e da FTE. Professor-convidado da Università di Roma La Sapienza, Università degli Studi di Roma Tre, Università degli Studi di Roma Tor Vergata (Itália) e Martin-Luther Universität Halle Wittenberg (Alemanha). Professor do Curso JUSPODIVM de preparação para carreira jurídica. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia. Autor da obra “ A nova interpretação do código brasileiro de defesa do consumidor” (Editora Saraiva).